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NORDESTESSE: SUSTENTABILIDADE, POSICIONAMENTO DE MARCA E A VALORIZAÇÃO DOS SABERES DE UMA REGIÃO

Ticiana Albuquerque, Universidade Federal do Ceará, tici.alb@gmail.com Marina Rios, Universidade Federal do Ceará, mariprios@hotmail.com

Resumo: A presente pesquisa se propõe a analisar a plataforma Nordestesse, balizando seu posicionamento pelos pilares da sustentabilidade e sua correlação com a valorização das culturas locais da região. Teorizando acerca da sustentabilidade na indústria da moda e apontando tendências mercadológicas que privilegiam os localismos, a plataforma Nordestesse desponta como um espaço valioso para uma moda mais justa e inclusiva.

Palavras-chave: sustentabilidade; moda; localismo; Nordestesse.

INTRODUÇÃO

Quando se trata do tema sustentabilidade na indústria da moda, atualmente é observado como algumas empresas de moda vem evidenciando como seus produtos e processos são pensados de forma que se relacionem com a responsabilidade socioambiental, levando em conta fatores como o tempo, a velocidade de regeneração da natureza, a cultura e valor das tradições e dando ênfase tanto na qualidade dos produtos, como também do meio ambiente e das condições dos trabalhadores, contribuindo dessa forma com um desenvolvimento mais sustentável (FLETCHER, 2010). Cietta (2017) considera a moda um produto criativo híbrido, uma vez que “A moda tem, na realidade, características que são criativas e não criativas, materiais e imateriais, que fazem dela não simplesmente um outro setor criativo, mas um setor criativo especial” (CIETTA, 2017 p. 125) . Assim, esse setor é híbrido por possuir essa dupla natureza que envolve tanto os produtos culturais como os manufatureiros.

O Triple Bottom Line, também conhecido como tripé da sustentabilidade, é um termo criado pelo autor John Elkington em 1994 que teve como objetivo trazer uma nova linguagem que pudesse expressar essa ampliação da agenda ambiental, integrando as dimensões sociais e econômicas ao progresso ambiental como forma de direcionamento aos profissionais das empresas, se dividindo nas categorias: 1) da economia, envolvendo os recursos das organizações, além das remunerações dos empregados e clientes da empresa; 2) do ambiental, medindo os impactos que seus produtos ou serviços causam no meio ambiente e 3) do social, que se relaciona com os direitos humanos e práticas trabalhistas. Atualmente, vemos como

os pilares da sustentabilidade se equilibram nesse inter-relação entre o meio ambiente e a sociedade e como isso vem transformando os rumos dessa temática na indústria da moda. Colocar a plataforma Nordestesse como objeto de estudo, ainda que tão jovem, mostrou-se relevante sob perspectivas da sustentabilidade uma vez que, ao analisá-la, verificamos a presença das três dimensões do desenvolvimento sustentável supracitadas. Nosso foco é refletir como esses pilares coexistem e se manifestam na plataforma, onde vemos características de sustentabilidade ambiental nos trabalhos autorais como também sociais no trabalho com artesãs e na valorização desses profissionais e saberes.

2. A NORDESTESSE E OS LOCALISMOS

A plataforma Nordestesse, em seu sítio eletrônico, se descreve como: “uma plataforma colaborativa que tem como missão documentar, amplificar e fomentar o talento de empreendedores criativos dos nove estados do Nordeste, com ênfase no design autoral e no resgate de tradições, saberes e matérias-primas da região”. Criada em 2021, para além do sítio institucional - que também funciona como marketplace -, um perfil no Instagram completa a presença digital do hub criativo. Fundada por Daniela Falcão, a Nordestesse surge em um momento histórico peculiar, uma vez que estávamos há pouco mais de um ano convivendo com a presença da Covid-19, mas já tendo alguma flexibilização na retomada das atividades que foram interrompidas com os protocolos de distanciamento social. Vimos ascender, durante a pandemia, novas formas de consumir cultura, novos interesses acerca de como as marcas se posicionavam, outras formas de perceber o espaço e o impacto que cada pessoa e instituição causava na comunidade na qual estava inserida.

Em tempos de isolamento físico e hiperconexão digital, percebemos a valorização do local despontar e logo se estabelecer como uma macrotendência mercadológica:

[…] a comunidade ganhou ainda mais centralidade na vida dos consumidores no último ano. Seguindo esse movimento, cada vez mais varejistas têm investido em estratégias locais. As projeções são promissoras para aqueles dispostos a investir. O estudo da Brightpearl revelou que seis em cada dez consumidores planejam consumir de forma mais local nos próximos 12 meses, enquanto uma pesquisa da Springboard aponta que o movimento no comércio de cidades litorâneas e históricas do Reino Unido está crescendo até 37% a cada semana. Para varejistas, há uma clara vantagem em se tornar parte de uma comunidade, visto que o público expressa, cada vez mais, o de-

sejo de apoiar a economia local. Essa é uma oportunidade de se aproximar de uma base consumidora localista e consciente, fortalecendo laços, aumentando a fidelização e dando início a um relacionamento profundo com a próxima geração de consumidores. (WGSN, 2021, sem página)

Já a consultoria McKinsey & Company, em 2020, já predizia sobre esta tendência, mais particularmente no tocante a varejistas de moda e o comportamento de seus consumidores:

As atitudes dos consumidores também estão mudando, ao passo que buscam mais valor, transparência e conteúdo local dos players de moda. [...] Esperamos que os varejistas de moda aumentem sua presença em bairros e novos distritos além das zonas comerciais tradicionais, com lojas que refletem a comunidade local e se concentram no serviço e na experiência. (McKinsey & Company, 2020, sem página)

Para além das tendências mercadológicas que obedecem à uma lógica neoliberal, imposta pelo Norte global às regiões não hegemônicas do mundo, e aludindo à Sociologia das Ausências de Boaventura de Sousa Santos (2004), encontramos na Nordestesse a possibilidade de estudar o potencial de uma plataforma que se propõe a dar palco para criadores, para saberes, para processos de uma região historicamente menosprezada e constantemente caricaturizada.

O objectivo da sociologia das ausências é transformar objectos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças. Fá-lo centrando-se nos fragmentos da experiência social não socializados pela totalidade metonímica. O que é que existe no Sul que escapa à dicotomia Norte/Sul? O que é que existe na medicina tradicional que escapa à dicotomia medicina moderna/medicina tradicional? O que é que existe na mulher que é independente da sua relação com o homem? É possível ver o que é subalterno sem olhar à relação de subalternidade? (Santos, 2004, p. 246) (grifo nosso)

Acreditamos que relações horizontalizadas com ênfase no local como uma das alternativas para repensarmos um futuro mais justo e sustentável para a nossa cultura. Assim, com a análise da Nordestesse, desejamos tornar epistemologicamente presente o que nos parece ausente no cenário cultural brasileiro: o desejo de ver o Nordeste representado nesse cenário de alcance global, pela natureza da plata-

forma, a crença no potencial mercadológico dos imaginários da região, buscando ampliar a visão do todo que não direciona o olhar para essa parte, para esse lugar do Sul global e desafiando a magnitude de grandes capitais cosmopolitas como São Paulo, Paris, Milão e Nova Iorque, ao mostrar que o Nordeste pode ser também estratégico e valoroso para as marcas e seus clientes.

3. A SUSTENTABILIDADE COMO POSICIONAMENTO

Tanto no site como em seu perfil no Instagram, fica facilmente evidente como a Nordestesse reforça constantemente seu viés sustentável como importante componente de seu posicionamento. O que traz um diferencial para a Nordestesse parece ser justamente a minuciosa curadoria das marcas que perfilam em suas mídias: todas apresentam pelo menos uma das categorias do supracitado Triple Bottom Line.

Com textos – em legendas de publicações ou como matérias no site – de forte apelo emocional e muito pessoalizados, contam as histórias das marcas que publicizam, falando dos caminhos trilhados pelos criadores, suas vivências, inspirações e, quase como um padrão editorial, descrevem seus processos, enfatizando cadeias que priorizam a mão-de-obra local, o orgulho de utilizar referências da região e a produção ambientalmente responsável, seja de moda, produtos gastronômicos, peças de mobiliário, etc.

Na imagem (Figura 1) verificamos a categoria ambiental demonstrada no texto sobre a marca Obi, do piauiense Savio Drew: “toda sua produção faz reaproveitamento de tecidos, muitos deles doações de grandes fábricas”. (NORDESTESSE, 2022, sem página) Sobre a Grão, da cearense Renata Pinheiro, lê-se: “[...] uma moda sustentável, do início da cadeia produtiva às campanhas. As peças são todas de tecidos naturais biodegradáveis [...] e tingidas naturalmente com pigmentos de plantas tintórias da flora brasileira” (idem). Já na Feito de Nó, marca de acessórios da pernambucana Elaine Leite, podemos verificar a questão econômica da sustentabilidade sendo ressaltada: “O propósito é adornar com história, além da beleza. Nossa produção é consciente e todos os processos, incluindo embalagens e fornecedores, todos pernambucanos, isso é passado aos nossos clientes” (idem). Ainda, as criações de Júlio César Barbosa, de Mossoró (RN) fazem uma clara menção à questão do design inclusivo com alusão a um Nordeste não caricaturizado, mas valorizado e elevado a um lugar de imaginários valiosos: “Sua coleção inspirada no cangaço, por exemplo, foge dos símbolos óbvios de Lampião. [...] O terno que faz releitura da chita [...] é prova deste olhar regional luxuoso e global” (idem).

Imagem 1 - Publicações do perfil do Instagram da plataforma Nordestesse. Da esquerda para a direita, as marcas Obi, Grão, Feito de Nó e Júlio César NYC Brasil. Fonte: NORDESTESSE, 2022.

Cabe pontuar, entretanto, que muito embora a plataforma divulgue as ações de sustentabilidade e o posicionamento das marcas, enaltecendo-os, não ficou claro, dentro do período no qual a pesquisa foi realizada, que a Nordestesse verifica de alguma forma as informações relatadas pelas marcas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendendo a importância de ações que valorizem saberes e narrativas não hegemônicas para o desenvolvimento de uma moda mais sustentável e de um mundo mais inclusivo e justo, a existência de espaços como a plataforma Nordestesse mostra-se como uma iniciativa louvável para proporcionar acessos tanto das marcas a públicos maiores quanto dos consumidores a novas possibilidades, imaginários e criações.

Segundo Albuquerque e Rios (2021), quando versam acerca de sustentabilidade ancoradas na valorização de localismos, a Nordestesse performa bem no tocante ao seu posicionamento, trazendo uma curadoria de marcas que, de uma forma geral, pensam a sustentabilidade contemplando todos os seus pilares e valorizam a cultura da região, apropriando-se orgulhosamente de suas raízes. As autoras relatam:

Ousamos afirmar que o processo de sustentabilidade e da referida (re)valorização do local - particularmente na indústria da moda - são inseparáveis. Entendemos que quaisquer ações realizadas por marcas de moda que visem tornar a cadeia mais sustentável devem - ou, pelo menos, deveriam - considerar os processos, a cultura e a tradição da comunidade onde elas estão inseridas. Se quisermos pensar uma moda mais sustentável, devemos pensar essa moda olhando para dentro, para o que é nosso. (Albuquerque e Rios, 2021, p. 13)

Cremos de fato que a sustentabilidade não se desvencilhará, nem deveria, de processos de valorização da ancestralidade. A região Nordeste é rica de imaginários, narrativas e representações que, costumeiramente se perdem na lógica neoliberal de um mundo globalizado que é míope para as potencialidades do Sul global.

A moda é cheia de simbolismos e o Brasil é um país cheio de traumas da colonização, com baixa auto estima e rejeição à sua própria história, o que torna ainda valoroso o movimento que está sendo feito pela Nordestesse e as marcas que compõem a plataforma para destacar o que é natural, orgânico, essencial e inato da região.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, Ticiana; RIOS, Marina. 44º CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO - INTERCOM, 2021, Salvador. Sustentabilidade e (re)valorização do local na moda: tendências do presente para o futuro. São Paulo: Intercom, 2021. Disponível em: http://portalintercom.org.br/anais/nacional2021. Acesso em: 31 mar 2022.

CIETTA, E. Economia da moda. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017.

FLETCHER, K.; GROSE, L. “Moda e sustentabilidade: design para mudança”. Tradução Janaína Marcoantonio, São Paulo: Editora SENAC, 2011.

McKINSEY & COMPANY. The fashion industry in 2020: Ten top themes from The State of Fashion. 2020. Disponível em: https://www.mckinsey.com/industries/retail/our-insights/ the-fashion-industry-in-2020-ten-top-themes-from-the-state-of-fashion. Acesso em 25 mar 2022.

SANTOS, B.S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências, Em: SANTOS, B.S. (org.), Conhecimento Prudente para uma Vida Decente. São Paulo: Cortez Editora, 777-821, 2004. WGSN. Varejo local 2021: mudanças e estratégias. 2021. Disponível em: https://www.wgsn. com/insight/p/article/92471?lang=pt. Acesso em: 25 mar. 2022.

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