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AS RELAÇÕES DE TRABALHO NA INDÚSTRIA DO VESTUÁRIO DE SÃO PAULO DURANTE A PANDEMIA

Mariana Tabossi Freire; Projeto Nós, Vós, Elas; mariana@nosvoselas.com.br

RESUMO: Considerando-se o impacto da pandemia de COVID-19 sobre a indústria da moda, busca-se explicar, pelo viés das dinâmicas racializadas da cadeia produtiva, os motivos pelos quais os trabalhadores do setor em São Paulo representam um grupo particularmente vulnerável A maneira como a indústria se desenvolveu e se organizou, somada às questões históricas, impede a determinados grupos de trabalhadores o devido acesso à rede de amparo e proteção social.

PALAVRAS-CHAVE: Pandemia, Indústria do Vestuário, Imigrantes, Racialização, Mulheres.

INTRODUÇÃO

A Pandemia de COVID-19 agravou as desigualdades sociais, evidenciando-as em todo o mundo. Particularmente em São Paulo, onde trabalhadores da indústria do vestuário foram especialmente atingidos. As restrições impostas à circulação da população de uma forma geral, somada à queda no consumo, afetou substancialmente a renda geral dos trabalhadores.

Em grande medida, isso ocorreu por conta da dinâmica produtiva do setor do vestuário: regra geral, à base da subcontratação de várias pequenas oficinas, que operam à margem da lei trabalhista, muitas vezes sem a garantia de direitos básicos ou de condições sanitárias e de segurança laborais mínimas.

Além disso, como a indústria emprega em larga escala mulheres, muitas delas imigrantes, ao mesmo tempo havia as questões de violência de gênero e de jornada dupla, com o acúmulo de tarefas profissionais e domésticas, num momento em que estavam completamente isoladas com os seus agressores.

Para entender como este sistema de trabalho se configurou, vale contextualizar as mudanças experimentadas pelo setor nas últimas décadas, ocorridas no bojo das transformações globais que aconteceram na década de 1970.

Para responder às pressões econômicas do período, as empresas promoveram formas de flexibilizar a produção com o objetivo de eduzir custos (MONTEIRO, 2011). Para isso, houve uma reorganização espacial das cadeias produtivas com o fechamento de fábricas e a realocação produtiva para países com custos trabalhistas mais baixos.

Desta forma, milhares de trabalhadores sindicalizados foram demitidos das fábricas, sendo uma parcela deles recontratada para costurar em casa e receber por peça. Parte da mão de obra utilizada para suprir a demanda era formada por imigrantes com dificuldades de inserção no mercado de trabalho local por conta de questões relativas à segmentação racial (BONACICH e APPELBAUM, 2000).

Apesar da repulsa a práticas excludentes, o processo produtivo do setor do vestuário se amparou nelas para promover e alimentar a submissão da mão de obra à extrema precarização das relações de trabalho.

METODOLOGIA

A partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema, o presente ensaio busca abordar como as relações racializadas se estruturaram em benefício das empresas e revelar os graves efeitos da pandemia sobre as dinâmicas trabalhistas do setor. Nesse sentido, as questões de raça e de gênero devem ser entendidas como estruturas interligadas e a noção de poder compreendida como um elemento constitutivo essencial para o entendimento da desigualdade social. (GLENN, 2002).

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Conduzido pelo Business Human Resources Centre (2020), O relatório Mascarando a Miséria entrevistou 146 trabalhadores imigrantes da indústria do vestuário de São Paulo para fazer um mapeamento do setor. A partir dos dados levantados, traçou um perfil desse grupo observado, analisou o impacto da pandemia sobre o grupo e o grau de proteção social recebido.

A conclusão foi a de que a maioria dos trabalhadores são imigrantes bolivianos (97%), dos quais 73% eram mulheres. Revelou-se ainda que 89% deles viviam no ambiente de trabalho. E o mais grave, 87% não tinham nenhum vínculo formal de trabalho. A contratação dos trabalhadores começa ainda na Bolívia, intermediada por imigrantes como eles que por terem conseguido abrir a sua própria oficina em São Paulo, acabam os empregando, o que revela a importância das redes de relacionamento dentro dessa comunidade. É através delas que os bolivianos chegam destinados ao trabalho em São Paulo e estabelecem relações de socialização.

A recepção encontrada não raro é hostil por causa da forte estigmatização cultural depreciativa que enfrentam. No entanto, os imigrantes foram essenciais para o desenvolvimento da indústria do vestuário paulista. Nos anos 1930, quando o setor começou a se estabelecer em torno dos bairros do Brás, Pari e Bom Retiro, os libaneses foram os pioneiros na produção de roupas íntimas.

Ao longo do tempo, outros grupos de estrangeiros foram absorvidos pela indústria local e alguns conseguiram prosperar com oficinas próprias, com destaque para os coreanos na década de 1990 (FREITAS, 2014).

Na sua gênese, a construção da identidade paulista foi fortemente influenciada pela concepção etnocêntrica dominante no final do século 19 que acreditava numa suposta superioridade racial branca/europeia em relação aos demais povos, justificada pela genética. Desta forma, o mercado de trabalho alimentou uma estrutura que favoreceu a população branca (VIDAL, 2012).

Dessa forma, as estruturas sociais de trabalho se firmaram sobre uma base de privilégios concedidos aos brancos, numa relação de poder construída para permitir o domínio sobre as minorias racializadas e também sobre as mulheres. Era nessa ordem econômica, que ocorria a distribuição dos papéis dos indivíduos e da mão de obra.

Nessa sociedade de exclusão, a noção de cidadania deveria servir como um mecanismo de resgate dos excluídos, no intuito de promover a inclusão dos membros mais necessitados de proteção e respeito. Não foi o que ocorreu, contudo. Por óbvio, a negativa da plena cidadania e dos direitos relacionados inibiram a capacidade de resposta à exploração. Assim, com a manutenção dessa lógica sistêmica perversa, o grupo dominante pode continuar a sua opressão sem dificuldades. Historicamente, são recorrentes as alegações de trabalho análogo à escravidão no setor do vestuário, assentadas em contratações informais que obrigam os empregados a pagar as dívidas dos custos da imigração, pela moradia e pelo período inicial de aprendizagem. Com a baixa remuneração, não conseguem se desobrigar de tais dívidas.

Geralmente, as oficinas são pequenas, com até 20 pessoas, onde os empregados são submetidos a jornadas de longas horas. Nelas, os trabalhadores narram diferentes níveis de abuso, desde violações sanitárias e de segurança à restrição de movimentos físicos. Tipificar este tipo de organização de trabalho pode ser delicado. De outro lado, o não pagamento de salários-mínimos ou hora extra, longas jornadas, a prática do trabalho não registrado e os problemas de segurança e sanitários podem ser entendidos como sweatshop (BONACICH AND APPLEBAUM, 2000). Nas palavras de Montero, a base deste sistema é “uma imensa reserva de trabalho barato, não regulado e vulnerável, ao contrário das forças de trabalho sindicalizadas de fábricas” (MONTERO, 2011: 23). Existem também os sweatshops locais, localizados em economias periféricas ou centrais, onde são produzidos pequenos lotes, destinados geralmente ao consumo interno.

RESULTADOS OBTIDOS

Diante da queda na demanda na pandemia, a renda do trabalhador, submetido à lógica das sweatshps, foi duramente afetada. O auxílio emergencial não abrangeu a totalidade dos trabalhadores imigrantes, carentes da documentação regularizada e, por isso, enfrentaram dificuldades para receber o pagamento efetuado pela Caixa Econômica Federal (MARTINEZ-VARGAZ E MANTOVANI, 2020). Além disso, o relatório Mascarando a Miséria indica que 91% dos entrevistados enfrentaram a paralisação total das encomendas, dos quais 42% não retomaram o ritmo produtivo anterior à pandemia. A remuneração registrou queda para 78% deles. E, com a diminuição da demanda por itens de vestuário, 84% deles passaram a se dedicar à costura de máscaras, cujo valor unitário chegou a irrisórios R$0,05. Diante disso, quando os dados sobre os vínculos laborais e a ausência de pedidos são cruzados, tem-se que 94% dos trabalhadores afetados diretamente pela queda na demanda não detêm vínculos trabalhistas. Ou seja, são informais ou autônomos. Tentativas de negociação foram obstadas pelo temor da perda do emprego. Afora, a divisão do trabalho, fragmentada em várias pequenas oficinas, dificulta a responsabilização dos empregadores reais, que se escondem por detrás das empresas terceirizadas. O caso das máscaras a R$ 0,05 ilustra o cenário cruel.

Ausentes as garantias que os trabalhadores sindicalizados desfrutam, natural que ocorra a exploração dessa mão de obra, pois existe uma imensa força de trabalho não regulado e vulnerável, aponta o estudo.

Dessa forma, durante a pandemia, diante da redução na demanda, as empresas puderam cortar custos e interromper contratos com as oficinas terceirizadas, sem quaisquer consequências, mas com grave prejuízo social para a renda de milhares de famílias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde a sua origem, a indústria do vestuário em São Paulo se organizou em formato precário, com difícil responsabilização dos reais empregadores. A falta de vínculos trabalhistas formais impossibilita a negociação por melhores condições de trabalho. Imigrantes são utilizados como mão-de-obra, num contexto de marginalização e desrespeito a direitos básicos de cidadãos.

Em meio à pandemia, esses fatores agravaram as condições socioeconômicas desses trabalhadores sem o devido o acesso às redes de proteção social. Se considerarmos que 73% dos entrevistados eram mulheres, gritante a percepção de que o impacto foi desproporcionalmente maior para esse grupo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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APPELBAUM, Richard P.; BONACICH, Edna. Behind the Label: Inequality in the Los Angeles Apparel Industry. Califórnia: University of California Press, 2000. AYELÉN, Arcos; MONTERO, Jeronimo. How do Migrant Workers Respond to Labour Abuses in “Local Sweatshops? Antipode: A Radical Journal of Geography. Reino Unido, vol.49, n.2, pp. 1-18. 2016, junho. BUECHLER, Simone. Sweating in the Brazilian Garment Industry: Korean and Bolivian Immigrants and Global Economics Forces in São Paulo. Latin American Perspectives. Londres, vol. 31, n. 3, pp. 99-199. 2004, maio.

COLLINS, Jane L. Threads: Gender, Labor and Power in the Global Apparel Industry. Chicago: The University of Chicago Press, 2003.

FREITAS, Patrícia Tavares. Família e Inserção Laboral de Jovens Migrantes na Indústria de Confecção. Revista Interdisciplinar Mobilidade Humana. Brasília, n. 42, pp. 231-246. 2014, junho.

GLENN, Evelyn Nakano. Unequal Freedom. Boston: Harvard University Press, 2002.

MANTOVANI, Flávia. Imigrantes em SP ganham R$ 0,05 para confeccionar máscaras antiCovid. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/07/imigrantes-em-sp-ganham-r-005-para-confeccionar-mascaras-anticovid.shtml. Acesso em: 05 de julho de 2021. ______________; MARTÍNEZ-VARGAS, Ivan. Caixa barra pagamento de auxílio emergencial a imigrantes. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/caixa-barra-pagamento-de-auxilio-emergencial-a-imigrantes.shtml. Acesso em: 05 de julho de 2021. MCGRATH, Siobán. The Political Economy of Forced Labour in Brazil: Examining Labour dynamics of production networks in two cases of ‘slave labour’. Dissertação de doutorado. Universidade de Manchester, 2010.

MONTERO, Jeronimo. Neoliberal fashion: The political economy of sweatshops in Europe and Latin America. Dissertação de doutorado. Departamento de Geografia, Universidade de Durham, 2011.

NOVAES, Marina. Mascarando a Miséria: A Pandemia de COVID-19 e as(os) Trabalhadoras(es) Migrantes da Indústria de Moda de São Paulo. Disponível em: www.business-humanrights.org/pt/de-nós/informes/mascarando-a-miséria-a-pandemia-de-covid-19-e-asos-trabalhadorases-migrantes-da-indústria-da-moda-de-são-paulo/ Acesso em: 05/07/2021.

VIDAL, Dominique. Bolivian Immigrants in São Paulo: Metaphors of Slavery and Representations of Alterity. Critique Internationale. Paris, n. 57, pp. 71-85. 2012, outubro. ZANELLA, Vanessa Gomes. Imigrantes bolivianas em São Paulo: condições de vida e trabalho. Revista de Estudos Jurídicos - UNESP. Franca, n. 29, pp. 1-20. 2015, janeiro.

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