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O CAMINHO DAS CONTRAFAÇÕES: CUSTOS SISTÊMICOS
Maria Eduarda Mestriner Manzato; Univel; dudamestriner@hotmail.com.
RESUMO: O presente ensaio teórico problematiza a indústria de contrafações, evidenciando a convivência redundante entre moda e falsificação. Perpassa o caminho das contrafações à luz de seus impactos sistêmicos e conclui, por fim, que o consumo é mecanismo de retroalimentação da falsificação, sugestionando solução para mitigar o problema, com vistas à sua total neutralização.
PALAVRAS CHAVE: Falsificação. Impactos. Responsabilização do consumidor.
INTRODUÇÃO
Não é presunçoso aferir que a moda e a sua falsificação convivem de forma quase simbiótica e, benéfica ou não, a relação travada entre as duas faces desta moeda incita questionamentos, sobretudo quanto ao caminho desassistido trilhado pelos itens contrafeitos.
O Brasil consome contrafações. Mas enquanto país, não só recebe itens luxuosos de moda falsificados, como também os fabrica em cidades como Nova Serrana/ MG, Franca/SP e Jaraguá/GO. As falsificações, é claro, são literais violações de propriedade imaterial, as quais se enfrentam por operações coordenadas que envolvem o poder público e culminam em apreensões de toneladas de mercadorias (FERREIRA, 2022). Porém, não é só ao destino que se dá ao que é apreendido que devem se direcionar as atenções. Também é importante questionar: quais rastros a indústria falsificadora deixa pelo seu caminho? A presente pesquisa, bibliográfica, busca escancarar que a propriedade imaterial violada não é a única vítima da falsificação, pois esta sangra o meio ambiente, a sociedade – sobretudo na pessoa dos trabalhadores –, e a economia, produzindo consequências sistêmicas que são, em geral, subestimadas.
UMA CONVIVÊNCIA REDUNDANTE: MODA E FALSIFICAÇÃO
Falar que a indústria da moda convive com a indústria de sua própria falsificação inspira certa redundância, já que a criação da primeira está umbilicalmente relacionada à movimentação da segunda. Contudo, este não é um ensaio que visa abordar os efeitos da falsificação sobre a indústria da moda e sobre os titulares de direitos de propriedade imaterial. Ao contrário: busca-se entender quais são os custos gerados pela indústria das contrafações, e como mitigá-los.
De acordo com um relatório elaborado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Escritório de Propriedade Intelectual da União Europeia em 2019, o comércio de bens falsificados representava, no mesmo ano, uma fatia correspondente a 3,3% do comércio mundial, sendo os itens mais procurados os calçados, as roupas e os artigos de couro. No que tange ao fornecimento das falsificações, possuem destaque economias asiáticas como a China, a Índia e a Malásia, sendo que, nas Américas, o México é um representante latino de relativo destaque.
Nada obstante, embora os países asiáticos sejam, de fato, os maiores produtores de itens falsificados, a indústria de falsificações também vem ganhando corpo no Brasil. Nesse sentido, destacam-se as cidades de Nova Serrana/MG, Franca/SP e Jaraguá/GO, que figuram como grandes fabricantes de calçados, bolsas e roupas falsificadas (FERREIRA, 2022). Porém, mais do que (atualmente) produz, o Brasil é um mercado que consome contrafações da indústria da moda. Em novembro de 2021, um levantamento realizado pelo Instituto Fecomércio de Pesquisas e Análises do Rio de Janeiro (IFec RJ) revelou que, ao longo do referido ano, aproximadamente 20,5% da população adulta do estado teria adquirido produtos falsificados, sendo que as roupas, atrás apenas dos equipamentos eletrônicos (28,6%), ocuparam o segundo lugar do ranking de itens mais consumidos (18,8%), seguidas por calçados, bolsas e tênis (17,1%). Evidentemente, a fabricação e o comércio de produtos falsificados – também ditos produtos piratas – é criminalizada no país pelo Código Penal e, sobretudo, pela Lei n. 9.279/1996. E é com base na criminalização que não são raras as apreensões de grandes e pequenas cargas de falsificações. Neste ponto, questiona-se: que destino se dá ao que é apreendido? E mais: quais rastros ficam pelo caminho das contrafações?
O CAMINHO DAS CONTRAFAÇÕES: CUSTOS SISTÊMICOS
Com relação ao destino dado às falsificações da indústria da moda, quando apreendidas, têm se tornado comuns as notícias de sua doação mediante descaracterização. Contudo, é imperioso destacar: a destruição ou inutilização dos falsos também é uma opção, aliás, regulamentada. Consoante o que dispõe a Portaria MF n. 282/2011, em seu art. 2º, inciso III, alínea “e”, e a Portaria RFB n. 3.010/2011, em seu art. 2º, item 3, inciso III, alínea “e”, mercadorias apreendidas por inobservância à Lei de Propriedade Industrial ou produtos assinalados com marca falsificada, alterada ou imitada podem ter como destino a destruição ou inutilização.
Já a doação ou incorporação, a seu turno, dependem do pedido de entidade interessada, como preconizam os arts. 6º e 27 das portarias respectivamente citadas, devendo observar a descaracterização. Assim, mesmo quando doadas, a neces-
sária descaracterização das peças impinge certa destruição. Mas outros rastros, verdadeiros custos, também ficam pelo caminho das contrafações: ambientais, sociais, econômicos... sistêmicos.
Com relação ao meio ambiente, um relatório elaborado pela OCDE e o Escritório de Propriedade Intelectual da União Europeia em 2021 aponta que a fabricação e o descarte de bens falsificados podem produzir grandes impactos, pois em indústrias que operam às sombras da lei, a utilização de corantes tóxicos, o descarte inadequado de dejetos químicos e a liberação de poluição no ar, muitas vezes proveniente de maquinários obsoletos, não estão sujeitos a regulações. Quanto ao descarte, tem-se notícia que a maior parte dos bens falsificados são incinerados quando apreendidos (usualmente dentro de suas embalagens!), sem levar em conta que a queima é capaz de liberar um grande volume de gases tóxicos resistentes à degradação ambiental e que afetam não apenas trabalhadores diretamente expostos à fumaça tóxica, mas também aumentam o potencial de poluição dos solos e da água.
Do ponto de vista social, os danos são ainda mais tangíveis. A mão de obra é diretamente afetada: os salários, as condições de trabalho e os seus direitos enquanto trabalhadores tendem a ser substancialmente prejudicados, já que os falsificadores não possuem uma reputação a zelar. Em 1996, a Organização Internacional do Trabalho já havia estabelecido uma relação entre a indústria da falsificação de vestuários e suas inferiores condições de trabalho:
In the clothing industry, the number of clandestine workshops has grown exponentially in recent years. Few pay any respect to labour legislation and many hire illegal migrants. Many are involved in counterfeiting products from famous trade marks, an activity estimated to account for more the 5 percent of world trade in clothing (OIT, 1996).1
Socialmente, as falsificações também afetam o consumidor. Uma vez que a indústria de contrafações impinge percas aos detentores de direitos de propriedade imaterial, faltam-lhes incentivos à inovação, o que afeta o bem-estar da sociedade consumidora ante uma menor variedade de produtos disponíveis e, a longo prazo, a própria economia, já que a produtividade possui forte ligação com a inovação (HARDY, 2017).
Também é preciso destacar o efeito de dreno que a falsificação possui, em certo nível, propriamente sobre as economias, já que é responsável por deslocar empregos legítimos e, ainda, não está submetida ao recolhimento de impostos, resultan-
1 Tradução livre: “Na indústria do vestuário, o número de oficinas clandestinas cresceu exponencialmente nos últimos anos. Poucos respeitam minimamente a legislação trabalhista e muitos contratam imigrantes ilegais. Muitos estão envolvidos na falsificação de produtos de marcas famosas, uma atividade que, em estimativa, representa mais de 5% do comércio mundial de roupas”.
do na elevação dos encargos tributários dos contribuintes regulares para o custeio de serviços públicos vitais e despesas governamentais (HARDY, 2017). Finalmente, toca-se em uma faceta ainda mais densa e oculta do mercado dos falsos: o crime organizado. Tratando-se de uma indústria que prescinde de grandes investimentos, aliado ao seu elevado potencial de lucratividade, fato é que as contrafações de moda podem estar por trás de outros comércios clandestinos, movimentando o tráfico de drogas, de armas e de pessoas, vertendo-se seu proveito econômico a robustecer o crime organizado (FERREIRA, 2022).
O CONSUMO RETROALIMENTA A INDÚSTRIA FALSIFICADORA
Os efeitos causados pela indústria falsificadora são nefastos, mas talvez não sejam tão evidentes porque são sistêmicos, camuflando-se em meio a indicadores. Portanto, precisam ser mitigados – e isso com vistas à sua neutralização. Mas como? Em abril de 2022, uma brasileira residente em Waldshut-Tiengen, na Alemanha, foi multada em 235 euros por comprar uma bolsa falsificada da grife Louis Vuitton. Ela contou que comprou vários itens em um site de compras famoso em função unboxings na rede social Tik Tok, mas não recebeu a bolsa, que descobriu estar na alfândega. Dirigindo-se ao local, foi-lhe esclarecido que receberia uma carta para proceder à retirada do item. Na verdade, a carta que efetivamente recebeu adveio da sede da própria Louis Vuitton na cidade de Hamburgo, informando-a que deveria pagar a multa acima valorada. Quanto ao destino de sua bolsa: a incineração (KRUSTY, 2022).
Provavelmente, essa brasileira não voltará a comprar itens falsificados – pelo menos não na Alemanha. Assim, sugestiona-se como alternativa ao enfraquecimento da cadeia de falsificações, a punição do próprio consumidor, que embora seja o elo mais vulnerável do caminho das contrafações, certamente é o responsável por sua retroalimentação, já que a sua demanda incita a oferta. Em um mundo em que a informação é instantânea, parece utopia partir do pressuposto que o consumidor é figura alienada aos vícios da cadeia produtiva que subsidia com suas compras.
CONCLUSÃO
A elaboração do presente ensaio teórico colocou sob lume os verdadeiros custos da cadeia industrial de falsificações, que vão muito além da violação de propriedade imaterial convertida em prejuízos financeiros ao setor privado. Ao evidenciar que o Brasil é um país que consome e produz contrafações, foi possível delinear a quem custa o caminho dessa indústria nefasta. Ambientalmente, a fabricação desassistida, que opera às sombras da legalidade, não produz em con-
sonância com as regulações aplicáveis ao setor formalmente constituído. Socialmente, o trabalhador tem suas condições de labor substancialmente prejudicadas, enquanto o consumidor convive com o desencorajamento à inovação, que é usualmente pulverizada pela falsificação antes mesmo de revelar sua rentabilidade. Economicamente, deslocam-se empregos legítimos e deixa-se de recolher impostos, ao passo que, em uma análise ainda mais densa, robustece-se o crime organizado.
A questão é urgente: há uma afetação sistêmica que não resta evidenciada por indicadores. Seus impactos, contudo, precisam ser mitigados com vistas à neutralização e, para tanto, sugere-se a responsabilização do consumidor. Muito embora seja o elo mais vulnerável, o acesso instantâneo à informação já não nos permite a presunção de que seja alienado quanto aos vícios da cadeia produtiva que financia com suas compras. Consumir moda precisa ser um ato de responsabilidade e, portanto, responsabilizável.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL. Portaria MF n. 282, 2011. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 13 de junho de 2011, p. 24. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=26101. Acesso em: 30 de junho de 2022. BRASIL. Portaria RFB n. 3.010, 2011. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 29 de junho de 2011, p. 67. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=30643&visao=original. Acesso em: 30 de junho de 2022.
FECOMÉRCIO RJ. Pesquisa do IFec RJ revela que 2,9 milhões de consumidores compraram produtos falsificados em 2021. Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, 2021. Disponível em: https://www.portaldocomercio.org.br/entidade/fecomercio-rj/noticias/pesquisa-do-ifec-rj-revela-que-29-milhoes-de-consumidores-compraram-produtos-falsificados-em-2021/399844. Acesso em: 30 de junho de 2022.
FERREIRA, Regina Cirino Alves. Criminal Fashion Law: reputação corporativa e compliance na indústria da moda. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. HARDY, Jeff. Estimating the global economic and social impacts of counterfeiting and piracy. World Trademark Review, 2017. Disponível em: https://www.worldtrademarkreview. com/global-guide/anti-counterfeiting-and-online-brand-enforcement/2017/article/estimating-the-global-economic-and-social-impacts-of-counterfeiting-and-piracy. Acesso em: 30 de junho de 2022.
ILO. Globalization of the footwear, textiles and clothing industries. Geneve: International Labour Office, 1996. Disponível em: https://www.ilo.org/global/about-the-ilo/newsroom/news/WCMS_008075/lang--en/index.htm. Acesso em: 30 de junho de 2022. KRUSTY, Ricardo. Brasileira é multada na Alemanha por compra de bolsa falsificada. Juristas, 2022. Disponível em: https://juristas.com.br/2022/05/07/brasileira-e-multada-na-alemanha-por-compra-de-bolsa-falsificada/. Acesso em 30 de junho de 2022.
OECD/EUIPO. Dangerous Fakes: Trade in Counterfeit Goods that Pose Health, Safety and Environmental Risks. Paris: OECD/EUIPO, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1787/117e352b-en. Acesso em: 30 de junho de 2022.
OECD/EUIPO. Trends in Trade in Counterfeit and Pirated Goods. Paris: OECD/EUIPO, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1787/g2g9f533-en. Acesso em: 30 de junho de 2022.