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O DECOLONIZANDO O DESIGN, A ARTE UTILITÁRIA COMO CAMINHO DE EXISTÊNCIA PARA ALÉM DA RESISTÊNCIA
Julia Vidal; Éwà Poranga e Istituto Europeo di Design; julia@juliavidal.com.br
Resumo: Este trabalho busca indicar propostas para a decolonização do conceito de design, apresentando a arte utilitária feita por povos originários, como uma referência do princípio do design brasileiro. São ressaltados os discursos universalizantes e apontados os caminhos de construção que estão imbricados com a desconstrução de um pensamento colonial que forma estudantes de diversas áreas do design no Brasil.
Palavras-chave: Desconstrução, Decolonial, Resistência, Design, Indígena.
INTRODUÇÃO
Nas escolas brasileiras nos contaram que o design nasceu junto com a Staatliches Bauhaus, escola de arte vanguardista conhecida como Bauhaus, na Alemanha. Esta história contada pelos livros nos traz uma narrativa que correlaciona possivelmente o design brasileiro a Alemanha de 1919. O princípio de integração total da arte à vida veio à tona nos ideais desta escola e buscava a união entre a criação livre e a arte aplicada. A arte utilitária defendida pela Bauhaus nos foi apresentada como o princípio formal do design.
Há muitas verdades e histórias para serem contatadas, porém o que devemos nos perguntar é se as histórias contadas fazem sentido de acordo com o nosso contexto. Tendo em vista que a palavra Design, não tem uma correspondência na língua portuguesa, podemos pensar que há um marco que relaciona o design que se faz aqui com o que nasceu na Alemanha, no início do séc. XX. Porém, se nós ampliarmos nossa visão sobre o conceito da palavra, de forma mais alargada no tempo, poderemos encontrar as práticas da arte utilitária sendo produzidas pelos povos originários muitos e muitos séculos antes da nascida escola alemã.
O FAZER DESIGN SOB PERSPECTIVA DECOLONIAL BRASILEIRA
Para os povos originários, a arte não estava vinculada à dimensão decorativa, as artes eram produzidas em uma perspectiva cultural e funcional, onde cada criação tinha uma aplicabilidade na vida cotidiana e ainda apresentava uma grande preocupação com a forma e a beleza. Podemos adentrar o universo criativo dos povos indígenas brasileiros, onde cada um dos objetos criados por eles, sejam cestos,
cuias, vestes, cocares, banquetas, todos tem um grande apuro estético, apresentando grafismos que designam o povo ao qual pertence, relações com a fauna e a flora local, compondo um conjunto complexo em forma de texto visual que aponta toda a identidade étnica e cultural de cada peça produzida. Por outro lado, todos eles têm uma função associada à vida cotidiana.
Adentrando este universo criativo, encontramos em cada peça produzida um processo, que é tradicionalmente passado de geração para geração. Ao longo de milênios, os métodos de produção de uma cestaria Guarani1, por exemplo, são passadas para cada uma das gerações seguintes, guardando seu conjunto de técnicas e características próprias em relação ao cesto Baniwa2, por exemplo. Este objeto importantíssimo na vida cotidiana desta etnia, permite transportar e guardar alimentos, artefatos, entre outros itens essenciais para a vida do povo. Em sua trama, veicula uma série de grafismos, um deles é o desenho de losango ou de zig zag que representam uma unidade mínima significante3 do animal cobra. Ou seja, o aspecto “decorativo” que é exibido na cestaria Guarani, faz parte de um complexo sistema de escrita, grafada em ideogramas que comunica a essência do que representa. A “decoração” do cesto nos conta que este é um recipiente que guarda as riquezas e por isso a cobra no seu entorno simboliza a proteção para o conteúdo interno desta cestaria. Compreendendo que em cada um dos objetos cotidianos produzidos por indígenas brasileiros, encontramos um sistema de escrita relacionada a estética, acompanhados pelos processos tecnológicos e metodológicos perpassados ao longo de gerações, somados a relação utilitária de cada peça relacionada ao contexto sócio cultural, entendemos que as características do fazer design entre os povos originários são muito antigas, podendo ser também notadas entre os mais diversos povos africanos, americanos, asiáticos, entre outros.
A dimensão decorativa é secundária para estas sociedades, o que não significa abdicar do primor estético de cada uma das produções que podemos chamar da arte utilitária. Desde este ponto de vista, podemos pensar na hipótese de que o design brasileiro, possa ter nascido na era pré-colombiana com os povos marajoaras e seus milenares utensílios em cerâmica encontrados pela antropologia, por exemplo.
CONSTRUINDO UM PENSAMENTO DECOLONIAL SOBRE O DESIGN E SEUS PROCES-
1 Povo indígena presente em ampla região da América do Sul, abrangendo os territórios nacionais da Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai e a porção centro-meridional do território brasileiro. 2 Povo indígena que habita a Colômbia e a Venezuela e o noroeste do estado brasileiro do Amazonas. 3 “Lux Vidal (2000, p.13) define grafismo como ´manifestações simbólicas e estéticas centrais para a compreensão da vida em sociedade`, que nos possibilita um entendimento social. O grafismo se compõe de significante e significado. Seu significado vai além da leitura de sua forma concreta, para alcançar a dimensão simbólica precisamos compartilhar dos valores culturais e sociais do grupo étnico (...) suas formas sintetizam um rede ampla de significados, que estão sintetizados em uma unidade mínima significante, este foi um conceito debatido por autores indígenistas, a partir da década de 80, que buscaram explicar que a unidade mínima é uma concepção essencial do referente.” (VIDAL, 2020, p.28-29)
SOS DE PRODUÇÃO
Buscarei enfatizar a forma como a construção dos pensamentos pode se dar para além da perspectiva eurocentrada. Podemos focar nossas construções epistemológicas a partir das nossas histórias que fazem sentido dentro de nosso contexto histórico e cultural, sem negar que em concomitância podem acontecer outras histórias que partem de novas lógicas quando em contexto e território diferente. Precisamos conhecer nossas cosmovisões para nos resguardar de recorrer às narrativas únicas, aos discursos universais, evidenciando os caminhos de construção, que podem ser tão importantes ou mais do que os caminhos de desconstrução.
Dussel, nos apresenta o conceito de exterioridade cultural, apontando os caminhos de existências das culturas que passaram por processos de colonização, na exterioridade das culturas hegemônicas. Ele evidencia uma identidade em processo de crescimento na exterioridade, que se mantém viva e preserva seus processos desde a era pré-moderna (anterior a modernidade), passam pela modernidade4 e se apresentam contemporâneas, assumindo o que ele vai chamar de “transmodernidade”5, estas culturas “... guardam uma alteridade em relação a modernidade européia, com a qual conviveram e aprenderam a responder a sua maneira aos desafios. Não estão mortas, mas vivas...” (DUSSEL, 2016, p.62). Penso que com a dedicação árdua e não menos necessária à crítica aos processos de colonização, nos dedicamos a estudar e nos apropriar das “armas” do colonizador. Os caminhos de desconstrução são tão dolorosos e fastidiosos para aqueles que cotidianamente passam pela violência colonial ainda em curso, que ao adentrar em espaços de pensamento e nos tornarmos exímios conhecedores dos discursos e das ferramentas de dominação, a fim de lutar contra elas podemos perder o contato com nossas próprias histórias, com nossa essência e nossos valores, podemos violar a nossa própria vida.
OS CAMINHOS DA DESCONSTRUÇÃO IMBRICADOS NA CONSTRUÇÃO
O caminho de construção deve abarcar o estudo, a valorização e a dedicação às nossas tecnologias ancestrais, nome que damos às estratégias de manutenção milenares usadas por nossos povos que mantiveram vivos e dinâmicos os conhecimentos tradicionais, as filosofias e visões de mundo, e as formas inovadoras de apresentá-las em diversos suportes trazendo à tona as inovações, passadas de geração para geração em contextos tradicionais e que tornam possíveis nossas existências. Ao longo do caminho, cabe a cada um em seu processo evolutivo, tirar a venda co-
4 A Modernidade teria cinco séculos – assim como o “sistema-mundo” – e também foi coextensiva com o domínio europeu sobre o planeta, da qual tornou-se o “centro” a partir de 1492. (DUSSEL 2016, p.59) 5 “Transmodernidade” indica todos os aspectos que se situam “além” (e também, cronologicamente, “anteriores”) das estruturas valorizadas pela cultura euro-americana moderna, e que atualmente estão em vigor nas grandes culturas universais não europeias e foram se movendo em direção a uma utopia pluriversal. (DUSSEL 2016, p.63)
lonial e se permitir adentrar um universo pluricultural, que sempre permanece vivo e sempre estará, porque ele tem grande capacidade de se atualizar e ao mesmo tempo se manter fiel aos seus propósitos e tradições. Ou seja, a arte utilitária indígena brasileira, sendo a moda indígena parte dela, é uma tecnologia ancestral. O que antes estava na exterioridade, se aproxima estrategicamente e usa as palavras da dita modernidade, para ser compreendida e dialogar com seu sistema mundo, porém compreendendo que sua premissa se conecta com passado, presente e futuro, sabendo que são pré-modernas e transmodernas ao mesmo tempo. Portanto, em caso de que a “moda” passe, ou a palavra mude, ela poderá se (re)atualizar no sistema mundo hegemônico e se apropriar de seus mecanismos para ajustar-se temporariamente à norma.
Estamos falando de nos (re)ligarmos e estabelecermos nossas próprias agências no jogo político e econômico imbricados em processos da economia criativa, como o design e moda, e estarmos conscientes destas articulações necessárias para nos desprender das vinculações de realidade estabelecidas pelo sistema mundo eurocentrado.
O artista indígena Jaider Esbell, falava da arte como uma possibilidade de “fissura entre mundos... caminhos que levam a aprender a desaprender” (ESBELL, 2021). O caminho de construção está imbricado com a desconstrução, porém não a tendo como foco e sim compreendendo que é necessário ir além dela. A dedicação ao conhecimento das tecnologias ancestrais, nos conecta aos valores socioculturais e as cosmovisões que nutrem nossas vivências e nos aglutina aos caminhos de existências. Manter os caminhos paralelos, que tangenciam e dialogam com as culturas hegemônicas, e que vão além delas é um caminho de construção possível.
Não busco trazer uma fala binária, onde pela escolha da construção, negamos a desconstrução, mas busco ampliar o conceito de construção rumo à experiência de pluriculturalidade, onde vivenciamos a diversidade de centros de poder, sem reforçar a desconstrução que em sua luta passa a assumir o sistema mundo opressor colocando o novamente no centro da discussão.
Proponho um mergulho profundo em nossas cosmovisões, como nos aponta Ailton Krenak devemos percorrer caminhos “... capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência.” (KRENAK, 2019). Podemos compartilhar senso de luta e de pertencimento através da riqueza da diversidade, caso contrário seguiremos estabelecendo o sistema mundo centralizado e cada qual em seu centro, não nos tornando sensíveis à luta do outro.
CONCLUSÃO
As práticas decoloniais e antirracistas propõe uma forma de vida a partir da luta contra os sistemas colonizadores, as dores e os traumas destes processos. No caminho da construção, passamos pela desconstrução e vamos além delas, construindo pontes para viabilizar a reconexão com valores e visões de mundo que fazem sentido para nossa existência. Lembro das metáforas de Ailton Krenak, quando fala de fazermos os paraquedas coloridos, para o momento do fim do mundo, porque existe a trilha pronta para o fim das sociedades desconectadas da natureza e de suas próprias essências, das que vivem para o acúmulo (KRENAK, 2019), para o projetar sem sentido, para o dito design da revolução industrial, que se contrapõe ao caminho da arte utilitária que cria sentido entre as coisas e as pessoas, daquela que faz parte da essência de quem a usa, daquela que conecta existência, corpo e território. Para esta arte há tempo, porque ela é regenerativa.
É preciso mantermos vivos os caminhos de construção e de existência que nos retroalimentam e preservam os saberes, processos e sentidos ancestrais para nos relacionarmos de outra forma com o que criamos e produzimos. Para a construção é preciso ir além da (des)construção e da (re)existência.
BIBLIOGRAFIA
DUSSEL, Enrique. Transmodernidade e interculturalidade: interpretação a partir da filosofia da libertação. Revista Sociedade e Estado, Brasília, Volume 31 Número 1. Janeiro/Abril 2016. D. MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, Rio de Janeiro, n° 34, p. 287-324, 2008. KRENAK, AÍLTON. Idéias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras 2019.
MBEMBE, Achille. As Formas Africanas de Auto-Inscrição. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, no 1, 2001, pp. 171-209.
SOARES, João Pedro. A “armadilha psicodélica” de Jaider Esbell. 2021. Disponível em: https://www.bol.uol.com.br/noticias/2021/11/04/a-armadilha-psicodelica-de-jaider-esbell. Acesso em 04 nov. 2021.
VIDAL, Julia; NASCIMENTO, Dilmar. Cosmovisões X Moda, qual é a sua tendência? Contribuições e proposições para uma moda étnica e ética. Rio de Janeiro: Editora Universidade Indígena, 2020.
VIDAL, Lux. Grafismo Indígena: Estudos de antropologia estética. São Paulo: Studio Nobel, FAPESP, Editora da Universidade de São Paulo, 2000.