10 minute read

DESIGN FEMINISTA: UM MODO ATIVISTA DE FAZER MODA

Karine Freire*; Universidade do Vale do Rio dos Sinos*; kmfreire@unisinos.br*

Resumo: O presente ensaio apresenta algumas reflexões sobre um modo ativista de design, que produz conhecimento capaz de iniciar mudanças culturais na indústria da moda. As pesquisas foram realizadas no período de 2018 a 2022, num processo de busca por produzir conhecimento a partir das lentes do feminismo.

Palavras-chave: design ativista; feminismo; cuidado.

ABERTURA

Este texto foi escrito em um momento em que ainda vivemos uma pandemia global, causada pelo COVID19, que trouxe um alerta sobre os nossos modos de vida em sociedade. Uma das questões mais óbvias que emergiu é o quanto a desigualdade social é a maior pandemia que precisamos combater. Na esteira dela, o racismo, a misoginia e todas as formas de violência e opressão. O ensaio apresenta a produção de conhecimento como um modo de ativismo na direção da mudança para uma moda mais sustentável. Apresento aqui um conhecimento situado, a partir de epistemologias feministas, que tem a preocupação de questionar as parcialidades que reforçam os sistemas de dominação (como o racismo, o sexismo, o etarismo) presentes na indústria da moda. Como aponta bell hooks (2021; p.58)

“a revolução do vestuário e do corpo criada pelas intervenções feministas fez com que mulheres aprendessem que nossa carne merecia amor e adoração em seu estado natural [...] mulheres envolvidas com os movimentos feministas tinham todas as formas e tamanhos. Éramos totalmente diversas. E era sensacional ser livre para apreciar nossas diferenças sem julgamento ou competição”.

Precisamos de uma revolução para romper com as estéticas patriarcais que inspiram a indústria da moda. Precisamos resgatar a moda como uma expressão cultural, mais do que uma indústria de vestuário, um modo de expressar a diversidade de corpos e sua beleza.

Me apresento aqui como pesquisadora que produz conhecimentos a partir de uma perspectiva epistemológica feminista, ainda em construção, porém transformado-

ra. Começo apresentando minha posicionalidade1: sou uma mulher cis, bissexual, branca, da geração X, de classe média, sem filhos. Todas essas camadas formam as lentes que direcionam o meu olhar para o mundo e para a necessidade de transformação social. A inovação cultural para mim é o único modo possível de alcançarmos a justiça socioambiental e o direito de uma vida saudável e de qualidade, para a nossa velhice e para as futuras gerações, diante da emergência climática e da grotesca desigualdade social produzida pelo sistema capitalista ao redor do mundo globalizado. Enquanto projetista-pesquisadora me transformei pela diversidade de pessoas e projetos que me atravessaram. Dentro da minha vida privilegiada, sofro pouquíssimas opressões, e a única delas, me fez chegar nas epistemologias feministas, que é a lente que usarei agora para apresentar os projetos que orientei.

DESIGN PARA MUDANÇA: ATIVISMO NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO

Fletcher e Grose (2011) propuseram o design como um agente de mudanças para aproximar a moda da discussão da sustentabilidade, por estarem mais expostos a uma amplitude maior de informações, estarem envolvidos com a cultura, a sociedade e suas instituições. As autoras clamam aos designers a colocarem suas habilidades profissionais em benefício da sociedade e da ecologia. Mas que habilidades são essas, que fazem a economia criativa girar e que ao mesmo tempo podem beneficiar a sociedade e o planeta? Designers tem desenvolvidas: a criatividade; a sensibilidade perceptiva e estética; a capacidade de escuta, de imaginação, de pesquisa da inovação e de recusa pela solução óbvia; a habilidade de tornar o pensamento visível; leitura e interpretação dos sinais de mudanças que a sociedade emite; a tradução dos sinais representativos da contemporaneidade em cenários de intervenção projetual; a capacidade de tornar visíveis e compartilháveis essas visões de mundo; e a capacidade de eliminar a inércia cultural, a partir de uma visão crítica da realidade, vislumbrando o novo e o conveniente (para a empresa, sociedade e ambiente) de diferentes horizontes (Freire, 2014). Fletcher e Grose (2011) apontam quatro caminhos para a atuação dos profissionais de design no âmbito da indústria da moda para promover uma transição em direção à sustentabilidade: comunicadores/educadores, facilitadores, ativistas e empreendedores.

Designers enquanto comunicadores/educadores podem promover a transformação social por meio de novos modos de fazer moda seja com novos produtos e serviços que rompem com os padrões atuais, seja por meio de oficinas práticas que mostrem outros caminhos para os cidadãos expressarem sua cultura pelo ato político de vestir-se. Aqui podemos resgatar a revolução pacífica iniciada por Gandhi, com sua roca de fiar, produzindo suas próprias roupas, para a independência da Índia da colonização britânica. A ruptura com padrões colonizadores de produzir

moda pode ser a de estimular a criação de novos modelos de negócios ou de novos produtos e serviços. Nesta direção de comunicação/educação, orientei a pesquisa da Carolina Anchieta em sua dissertação de mestrado intitulada “Design estratégico e Afrofuturismo na busca por uma moda decolonial sustentável” (Anchieta, 2021). A autora propõe que uma transformação necessária para o cenário de moda sustentável é a discussão das realidades desiguais e a potencialização de todos os agentes envolvidos nessa cadeia. A autora pontua que, onde mais da metade da população é negra, a sustentabilidade precisa considerar o recorte de raça e todas as consequências sociais herdadas da escravização e, assim, contribuir para as descontinuidades sistêmicas no racismo estrutural. E reconhece no Afrofuturismo - movimento multicultural que propõe um retorno ao passado como forma de reinventar a história e recontá-la sob uma ótica decolonial – um caminho projetar cenários de inovação social capazes de imaginar futuros negros potentes para ressignificar a moda sustentável. Designers enquanto facilitadores são provocadores práticos e criativos com o objetivo de orquestrar a mudança, criando oportunidades para que as pessoas trabalhem de maneira completamente nova. Esses visam transformar consumidores em cidadãos ativos, que buscam pela sustentabilidade social e cultural. A pesquisa de mestrado da Liege da Silveira na dissertação intitulada “Inovação social e Sustentabilidade na moda: proposta de solução habilitante para reaproveitamento de resíduos têxteis” mostra este caminho de designers enquanto facilitadores, criando uma solução para que as pessoas possam produzir suas próprias roupas a partir de matéria-prima existente, estimulando uma economia circular. A solução habilitante visa contribuir para a capacitação das pessoas, ao mesmo tempo em que estimula a criação de novos negócios, o desenvolvimento social e o fechamento do ciclo de produção da cadeia de moda (Silveira, 2019).

Designers enquanto ativistas no processo da sustentabilidade defendem — e praticam — ações vigorosas para alcançar fins sociais ou políticos, atentos aos objetivos econômicos, ecológicos e sociais, para fomentar a mudança. Manzini (2017) aponta que ativistas de design atuam em iniciativas cujos propósitos não são apenas oferecer soluções imediatas para os problemas, mas mostrar de maneira provocativa que existem maneiras diferentes de olhar para essas questões e respondê-las. Isadora Bergoli, na sua pesquisa de iniciação científica intitulada “Ativismo Delicado: comunidades autônomas sendo escutadas com-paixão” estudou práticas e economias voltadas à regeneração, por meio dos valores do cuidado e do afeto, como modo de gerar a inovação social e a transformação cultural, utilizando-se de soluções habilitantes. Essas são ações que incentivam o desenvolvimento de capacidades dos próprios membros da comunidade para alcançar resultados de forma cooperativa. Sua proposta de solução habilitante gerou um processo projetual sentipensante, que consiste em ouvir, sentir, definir, desenvolver e agir a partir de

cenários projetuais, que foi experimentado na produção de uma coleção de moda Artivista – na expressão do ativismo pela arte de vestir e ser vestível, usando o bordado como linguagem de intervenção ativista e de comunicação (Bergoli, 2022).

Designers enquanto empreendedores utilizam a capacidade de imaginação para criar novos modelos de práticas comerciais, reconhecendo as limitações do mercado em acolher ideias mais progressistas em favor da sustentabilidade. Aqui Fletcher e Grose (2021) propõem que os designers questionam como e em que aspectos diferentes dos existentes os novos negócios podem ser construídos, principalmente, que nova estética surgirá quando produtos e serviços forem construídos com base em valores fundamentalmente distintos. Duas pesquisas de mestrado abordam o design enquanto empreendedor. A dissertação de mestrado da Juliana Terra intitulada “Design estratégico para o empoderamento de empreendedoras femininas: um olhar para processo empreendedor, colaboração e sustentabilidade” explora a temática do empreendedorismo feminino no âmbito da moda sustentável local, alicerçada em uma visão de design estratégico com uma abordagem de inovação social e cultural. Como resultado propõe um processo empreendedor feminino para a sustentabilidade de modo que empreendedoras possam criar modelos de negócios a partir de outras lentes. O processo e as ferramentas criadas buscam empoderar mulheres, incentivando-as a assumirem o papel de potenciais agentes de mudança nos sistemas sociais, econômicos e culturais através de seus valores pessoais e seus negócios (Terra, 2021). A dissertação de mestrado da Liz Unikowski intitulada “Projeto de uma solução habilitante para organizações colaborativas: uma análise da Cós - costura consciente por meio do design estratégico” propôs princípios e valores para despertar, viabilizar e preservar uma organização colaborativa a partir do estudo de caso da Cós, reconhecida como uma organização colaborativa que pretende gerar inovação social com praticas sustentáveis no setor da moda. O modelo de solução habilitante proposto é composto por três momentos que se sustentam com base nos valores: cuidado e inovação social e sustentabilidade e nos princípios de uma organização colaborativa: acolhimento, pertencimento, transparência, responsabilidade social, compartilhamento, colaboração, interdependência e autonomia (Unikowski, 2021).

REFLEXÕES FINAIS

As pesquisas apresentam um design feminista como uma estratégia para mudança rumo a sustentabilidade. Uma estratégia que cria rupturas, descontinuidades nas opressões patriarcais presentes na indústria da moda, mostrando caminhos alternativos possíveis, produzindo outros produtos, serviços e modelos de negócio que valorizem a beleza da diversidade de corpos e modos de existência. As pesquisas com lentes feministas apresentadas são modos ativistas de design, que estimulam

outras possibilidades para a moda enquanto uma expressão de cultura e o vestir-se como um posicionamento político. As pesquisadoras ativistas de design foram capazes de criar contra narrativas que podem penetrar no tecido social através de soluções que habilitam os cidadãos a transformarem produtos e negócios de moda de modo que corpos de mulheres trans, mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres atípicas, mulheres de todas as idades e, também, mulheres brancas possam encontrar alternativas não sexistas, racistas, etaristas e capacitistas nas suas escolhas de moda. Percebo as lentes feministas como uma mudança na minha cultura, enquanto pessoa-pesquisadora-projetista, que abraçou a diversidade de modos de existência e a sua importância nos processos projetuais para a mudança cultural necessária para uma sociedade sustentável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANCHIETA, Carolina. Design estratégico e afrofuturismo na busca por uma moda decolonial sustentável. Dissertação (Mestrado em Design) - Programa de Pós-Graduação em Design, Unisinos. Porto Alegre, 2021. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org. br/handle/UNISINOS/10578. Acesso em: 25 ago. 2022.

BERGOLI, Isadora. Ativismo Delicado: comunidades autônomas sendo escutadas com-paixão. In: XXIX Mostra Unisinos de Iniciação Científica e Tecnológica. Anais eletrônicos... São Leopoldo: Casa Leira, 2022. Disponível em: <http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/unisinos/eventos/mostra2022/5/index.html> Acesso em: 25 ago. 2022.

FLETCHER, Kate; GROSE, LYNDA. Moda &Sustentabilidade: design para mudança. São Paulo: SENAC, 2011

FREIRE, Karine. Design estratégico: origens e desdobramentos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO EM DESIGN, 11., 2014, Gramado. Anais eletrônicos... São Paulo: Edgard Blücher, 2014. p. 1187-1196. Disponível em: <https://www. proceedings.blucher.com.br/article-details/design-estratgico-origens-e-desdobramentos-12868>. Acesso em: 25 ago. 2022. HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2021.

MANZINI, Ezio. Design quanto todos fazem design: uma introdução ao design para a inovação social. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2017.

UNIKOWSKI, Liz. Projeto de uma solução habilitante para organizações colaborativas: uma análise da cós - costura consciente por meio do design estratégico. Dissertação (Mestrado em Design) - Programa de Pós-Graduação em Design, Unisinos. Porto Alegre, 2021. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/10047 . Acesso em: 25 ago. 2022.

SILVEIRA, Liege M. Inovação social e Sustentabilidade na moda: proposta de solução habilitante para reaproveitamento de resíduos têxteis. Dissertação (Mestrado em

Design) - Programa de Pós-Graduação em Design, Unisinos. Porto Alegre, 2019. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/9067 Acesso em: 25 ago. 2022.

TERRA, Juliana S. Inovação social e Sustentabilidade na moda: proposta de solução habilitante para reaproveitamento de resíduos têxteis. Dissertação (Mestrado em Design) - Programa de Pós-Graduação em Design, Unisinos. Porto Alegre, 2020. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/9228 Acesso em: 25 ago. 2022.

This article is from: