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A MODA COMO ELA É E A MODA COMO ELA PRECISA SER
Isabella Karim Morais Ferreira de Vasconcelos; UNIFAVIP; isabellakarim@gmail.com
Resumo: Com ponderações acerca do modelo vigente produtivo de moda, relacionando-as à formação acadêmica no design de moda que, consequentemente, vem a formar os novos criadores e produtores dessa indústria, este ensaio traz uma revisão bibliográfica e alguns questionamentos; propondo ao final que se revolucione a teoria e a prática, os livros, a docência e as instituições de ensino.
Palavras-chave: Design de moda – Educação – Formação
Chama-se “A moda como ela é: bastidores, criação e profissionalização”, um livro publicado em 2006, de autoria das jornalistas Marcia Disitzer e Silvia Vieira. E é essa publicação que nos enseja para a escrita desse artigo, que tem como premissa pensar numa moda renovada, a partir do paradigma de uma moda ultrapassada, mas que não deixa de ser “repassada” às novas gerações, dificultando, de certa forma, a compreensão da urgência por mudanças.
É preciso salientar que aqui não se estabelece uma crítica ao livro em si. Pelo contrário, sua contribuição naquele contexto é fundamental inclusive para se entender a abrangência da cadeia produtiva da moda:
De acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT), existem mais de 30 mil empresas em toda a cadeira produtiva do setor, com 1,5 milhão de trabalhadores em empregos formais e informais. Cerca de 70% deles estão nas confecções e o restante na indústria têxtil. O Brasil tem hoje o sétimo parque têxtil do mundo, e o faturamento total do setor já ultrapassa a casa dos US$ 25 bilhões. (DISITZER, VIEIRA, 2006, p. 11)
Quando as autoras trazem esses dados, lá em 2006, fica evidente a amplitude desse mercado. Além de ser possível entender, a partir de então, que se trata de uma indústria segmentada em pelo menos outras duas: a indústria de confecções do vestuário e a indústria têxtil. Essa distinção é importante porque tendemos a compreender a moda e sua indústria de forma muito homogênea, desconsiderando particularidades e até categorizações que são oportunas para seu amplo entendimento.
De acordo com dados atualizados da ABIT1, o Brasil chegou a quarta posição como maior produtor de vestuário do mundo, gerando 8 milhões de empregos diretos e indiretos em ambos os setores: têxtil e de confecção. À medida que o tempo passa e esses números avançam, preocupa que se fale ainda muito pouco sobre o impacto dessa potência e predominância dessas indústrias, sobretudo nos ambientes onde se estuda a moda, onde se formam os futuros trabalhadores-produtores desses setores que carece de transformação e não é de hoje. Como se mudam as práticas, se a teoria ensinada é a mesma há trocentos anos?
O sistema de moda vigente compromete o meio ambiente natural e dificulta o consumo ético (preocupação com o mal causado ao meio ambiente aos humanos ao se consumir um produto), pois esse modelo não consegue ser universalizado sem provocar danos aos pacientes morais (trabalhadores, animais, natureza), destinatários diretos ou indiretos da ação dos agentes morais (empresários, consumidores). (SCHULTE, 2015, p. 20-21)
Por outro lado, muito se fala, oportunamente, sobre boas práticas para uma moda mais sustentável. Mas essa fala parece carecer de ações alinhadas com o próprio discurso, afinal falar de uma “tendência importante, como a moda ecológica” (Svendsen, 2010, p.184) não é a mesma coisa que propor um plano de ação efetivo em relação à prática de uma moda verdadeiramente ética, mais responsável.
São muitos os impactos negativos do atual sistema de moda. Entre os principais danos causados à natureza [...] está o uso de agrotóxicos nos cultivos de algodão e a utilização de produtos químicos durante todo o processo de fabricação de uma roupa, além de outros problemas com o uso da mão-de-obra infantil, escrava e semi-escrava. (SCHULTE, 2015, p. 52)
No campo acadêmico, quantas instituições de ensino superior tem disciplinas voltadas à essa temática? Como esperar que o sistema mude se as formações ainda são as mesmas que fomentaram, com seus profissionais formados e atuantes, esse mesmo sistema problemático que aí está?
As instituições de ensino superior têm um papel relevante na preservação do meio ambiente e na qualidade de vida da comunidade, dadas as características de suas atividades. A criação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental (Resolução nº 2, de 15 de junho de 2012) e a política de
ensino deram espaços para a educação sustentável, presente nos diversos níveis do processo educativo de caráter multidisciplinar (Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999), ou seja, o conteúdo pode ser diluído ao longo de toda a matriz curricular. A responsabilidade de utilizar artifícios refletindo no processo têxtil é dos designers de moda. (TROIANI et al, 2022, p. 63)
Ao estudar a moda, no campo do design de moda, um ou uma estudante que tem como uma de suas bases o livro “Fundamentos de Design de moda” do autor Richard Sorger, encontra-se diante de uma metodologia cujo resultado do processo são os mesmos produtos têxteis fabricados desde sempre, pouco levando em consideração o seu uso e o seu pós-uso. Passam-se pelas etapas da pesquisa e do design, do desenvolvimento de coleção, dos tecidos e suas técnicas de produção, da confecção, até chegar no lançamento da coleção e sua promoção. Ponto. Só nesse pequeno percurso, por assim dizer, já encontramos a linearidade tão questionada quando se fala em uma moda sustentável.
Vale ressaltar que não se trata de uma vilanização da obra e do que está posto nela. Inclusive porque, por exemplo, na parte onde se fala em tecidos, os autores elencam da seguinte forma os critérios da escolha para um projeto: primeiro, observa-se o seu peso e caimento; segundo, essa escolha se dará “pelo seu desempenho em relação à sua função” (Sorger, 2009) e só por último é que há de se considerar seu valor estético.
Com essa menção não queremos dizer que a estética é menos importante em detrimento de outros fatores. Mas sim que outros fatores, sobretudo os mais técnicos, podem ser primordiais para o design de moda. O que por sua vez, nos leva a relação com o reaproveitamento de materiais: seja do tecido em si, já produzido e ignorado por não ser esteticamente uma novidade, ou de uma peça já confeccionada e descartada por aparentemente não ter mais utilidade. Coincide com esse último exemplo, o conceito do upcycling2
Talvez em uma nova edição, revista e ampliada, o livro possa contemplar de maneira mais direcionada as premissas do que se chama “moda ética” e/ou “design circular”, podendo surgir quem sabe algum título como “Fundamentos de Design de moda sustentável”.
2 De acordo com Arruda (2017, p. 225) é um “conceito ligado ao universo da moda [...] que consiste em direcionamentos para a otimização do uso e a reutilização de materiais e tecidos, por exemplo, pensados de forma conexa a projetos dedicados a conceitos específicos que representam coleções de peças de vestuário ou acessórios.”
O fato é que é insustentável se prosseguir, principalmente no campo da educação, mais ainda no da educação formal, com ensinamentos obsoletos e inadequados à realidade problemática que se apresenta. “Esse modelo de produção, recepção e distribuição” (Schulte, 2015) que resulta num descarte rápido e inconsequente, não se sustenta mais ambientalmente falando. Quanto a isso, Troiani (2022) ressalta que a procura por procedimentos mais sustentáveis é uma atribuição do designer, tendo ele ou ela “papel fundamental” nessa busca.
Também não é justo, e nem resolve o problema, que só os indivíduos consumidores paguem essa conta. Ainda que estes sejam ou devam ser mais conscientes no que diz respeito a sua forma de consumo e descarte, há de se reeducar todos os agentes dessa cadeia.
Para Fletcher e Grose (2011) é papel também do designer comunicar e ampliar novas visões de moda e sustentabilidade, fornecendo ferramentas para ‘amplificar voz coletiva’, para que a mudança chegue mais rápido ao setor têxtil. O designer no papel de comunicador capta informações abstratas e promove ações, tornando-as palpáveis e desencadeando novos comportamentos. (SCHULTE, 2015, p. 53)
E não é que designers em formação ou mesmo designers já atuantes devam reinventar a roda ou salvar o mundo; mas algumas mudanças de postura: percepção, criação e produção já fazem tamanha diferença. Como indica Schulte (2015) optar pelo “uso de materiais orgânicos, reciclados, reaproveitados, menos poluentes, o não uso de pele de animais, entre outros” já traz para a indústria da moda uma “reorientação” para sua produção, seus serviços e o consumo dos seus produtos.
Nesse sentido, existem projetos que são grandes exemplos no exercício de uma moda mais ética e responsável. São na verdade iniciativas que surgem dessa ambiência, ou seja, criam, projetam e produzem baseadas fundamentalmente nos preceitos do design circular3 e da moda sustentável.
A Roda exemplifica bem esse processo: um projeto pernambucano com múltiplas frentes de ação, que vão desde a transformação de peças de roupas já em desuso, passando pela capacitação de pessoas e empresas, reeducação de consumidores e, finalmente reaproveitamento de todo e qualquer resíduo – para além do têxtil – em colaboração com uma série de profissionais e empreendimentos, trazendo ao mundo reinvenções daquilo que já existia nele, sem lhe extrair nenhum recurso
3 Design circular é uma expressão que tenta sintetizar a relação entre design e a economia circular, entendendo que o design precisa contemplar fatores de circularidade para a sustentação de seja qual for o negócio e o seu impacto no meio ambiente.
natural. Sendo assim, um excelente modelo para uma indústria de moda que regenera ao invés de degradar, que faz circular rompendo com o raciocínio linear, e colocando em prática uma logística reversa4
A partir de projetos como o da Roda, em parcerias com outras organizações, se estabelecem diferentes práticas de produção e, por conseguinte, outro modelo de profissionalização dentro da indústria de moda e seus segmentos. E a educação antecede essa profissionalização. Logo, tão urgente quanto a mudança desses modelos insustentáveis de produção, é a transformação dos padrões de ensino na área.
Quantas instituições estão à serviço dessa mudança? Onde estão as disciplinas que tratam especificamente do tema? E se todos ou a maioria dos componentes curriculares contemplassem algum aspecto para o desenvolvimento sustentável da indústria da moda? E se todo projeto acadêmico tivesse como pré-requisito a responsabilidade sobre o impacto socioambiental daquela ação?
No estudo “Moda sustentável: uma análise sob a perspectiva do ensino de boas práticas de sustentabilidade e economia circular”5 podemos encontrar alguns indicativos de respostas para essas questões. Quando os pesquisadores se debruçam sobre documentos do projeto pedagógico de curso – PPC – e ouvem coordenadores, docentes e discentes dos cursos de moda no Brasil, mesmo com suas variações de nomenclatura, tem-se um levantamento que muito interessa à discussão do nosso artigo.
Dentre os 54 cursos levantados, apenas cerca de 3 disciplinas, em média, têm práticas sustentáveis, de acordo com grande parte dos discentes ouvidos. Com uma porcentagem parecida, quase 34% dos docentes concordam que os alunos são incentivados a adotar na sua profissão práticas de sustentabilidade. Nota-se através dessas respostas que, apesar de algum apontamento em direção à mudança de paradigmas educacionais, ainda há muito a ser feito. Os autores trazem em suas considerações finais:
As implicações gerenciais deste estudo sugerem a necessidade de atualização das matrizes curriculares dos cursos de design de moda no Brasil. Sobretudo, para tornar a perspectiva de pesquisa, design, planejamento, prototipagem, criação, produção, disponibilização dos produtos no mercado e retorno dos produtos após o uso. (TROIANI et al, 2022, p. 73)
4 No “final” da cadeia produtiva, há uma “inversão do fluxo dos materiais, passando pela seleção dos componentes de um produto acabado após sua utilização por parte do consumidor final e envolve todas as etapas do processo produtivo, desde as suas etapas finais até as iniciais: expedição, embalagem, acabamento, fabricação.” De acordo com Neto (2021. P. 14) é a aplicação dos 4R’s: reprocessar, recondicionar, reciclar e revender, “minimizando, dessa forma, o volume do descarte e, consequentemente, a quantidade de lixo gerado.” 5 Vide as Referências Bibliográficas.
Por fim, se todo “lixo é um erro de design”6 seria preciso – e urgente – repensar também o design de moda considerando que a indústria dessa mesma moda é uma das mais poluentes do mundo7. E, a priori, o design de moda é, por assim dizer, uma competência adquirida por meio do ensino formal. Há, assim, de se revolucionar os livros, a docência, as instituições, o design de moda, sua teoria e sua prática.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRUDA, Amilton. Design e inovação social. Organização de Amilton J.V. Arruda. - São Paulo: Editora Blucher, 2017. (Larissa Fernanda de Barros Mota, Tamires Maria de Lima Silva, José Adilson da Silva Júnior) NETO, João, A. et al. Economia Circular, Sistemas Locais de Produção e Ecoparques Industriais: princípios, modelos e casos (aplicação). São Paulo: Editora Blucher, 2021.
SCHULTE, Neide Köhler. Reflexões sobre moda ética: contribuições do biocentrismo e do veganismo. Florianópolis: Ed. da UDESC, 2015. SORGER. Richard. Fundamentos do design de moda. Porto Alegre: Bookman, 2009.
SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
TROIANI, L.; SEHNEM, S.; CARVALHO, L. Moda sustentável: uma análise sob a perspectiva do ensino de boas práticas de sustentabilidade e economia circular. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, RJ, v. 20, n. 1, p. 62–76, 2022. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/85310. Acesso em: 6 set. 2022.
6 “Para Luísa Santiago, que lidera no Brasil a rede de Economia Circular da Ellen MacArthur Foundation, o “lixo é um erro de design”. Por isso, o desenho do produto, incluindo a escolha dos materiais e suas propriedades de reciclagem e biodegradação, é fundamental para que a circularidade seja viável e faça sentido, dando origem a novos produtos ou retornando ao ciclo natural da biosfera de forma segura.” SAFATLE, Amália. Contra os modismos, vamos aos fundamentos. P22_ON, 2017. 7 “Se continuarmos produzindo como sempre o fizemos, estima-se que o impacto climático da moda aumente 49% até 2030” Disponível em: https://quantis.com/wp-content/uploads/2018/03/ measuringfashion_globalimpactstudy_full-report_quantis_cwf_2018a.pdf Acesso em 03/07/2022