Contos Mágicos de Dublin, por Fausto Muniz

Page 1

Contos Mágicos de Dublin FOR THE ADVENTUROUS SOUL

Era uma vez uma bruxa presa em um castelo, à espera do seu sapo encantado. Quem apareceu foi o príncipe. A bruxa se jogou do castelo.

20 BEST ISLANDS TO LIVE ON

VOYAGE TO THE CARRIBEAN

WHERE TO GO THIS SUMMER

Breathtaking view away from the city | p. 14

Top secret hideaways and exotic escapes | p. 35

Surprising retreats & local favorites | p. 112

Fausto Muniz


Hey! What’s the story? : ) 1


Em agosto de 2017, eu cheguei em Dublin, capital da Irlanda, conhecida como ilha verde-esmeralda. Era outono e lembro até hoje do cheiro da cidade, do vento frio e das folhas secas espalhadas pelo chão. O céu era uma coisa absurda, com cores se misturando o tempo todo. Uma delas, a mais charmosa e surrealista, era a cor lilás, ou roxa, ou púrpura, whatever. Uma explosão de estímulos para meus sentidos e o início de uma grande transformação na minha personalidade. Vivi lá até setembro de 2019. Um país acolhedor, pacífico, que respira cultura, música e História. Fui como qualquer rapaz latino-americano sem família influente e rica: juntei uma grana à custa de muito trabalho, renúncias de consumo, e paguei um intercâmbio. Antes de viajar, trabalhava como jornalista. Nesse contexto, a crise econômica e política do Brasil, somada a alguns projetos que não andavam bem das pernas e a minha própria vontade de voar, de sair do meu quadrado e conhecer o desconhecido, foram determinantes para decidir migrar. Fui como um simples estudante de inglês, com direito a visto de 8 meses, renovável por duas vezes, sem passaporte ou cidadania europeia. Sempre tive o sonho de morar um tempo fora do Brasil e a Irlanda me apareceu como o caminho mais viável. Ainda que tivesse a chance de ter escolhido outro país, a Irlanda já me pertencia, com sua tradição celta, a cantora Enya (sou fã!), suas cores e sua energia pulsante. Desembarquei por lá e vivi a experiência mais incrível e transformadora da minha vida. Vivi entre estudantes, a maioria brasileiros, passei por diversas casas, sofri bons perrengues. Dormia em beliches, dividia tudo: privacidade, sonhos, dificuldades e alegrias. Trabalhei em diversos empregos: garçom, motorista de carroça, cuidador de idosos, vendedor, barista, bartender, catador de copos, figurante de filmes e comerciais, até ator e humorista... a lista se perde. E é essa Irlanda, abrasileirada, marcada pela latinidade, que devolveu minha inspiração e energia para escrever e, principalmente, criar, criar e criar. A criatividade e as artes ressurgiram em mim, antes adormecidas por medos, inseguranças, pressões mercadológicas, econômicas e psicológicas. Lá eu descobri o prazer da mudança, antes um monstro horroroso, depois um horizonte mágico, cheio de aventuras e possibilidades. As artes cênicas e literárias encontraram um terreno fértil na minha cabeça e eu decidi investir meu tempo e minha energia nelas. Fiz teatro e apresentações de stand up comedy, além de fotografia, poesia e contos; aprendi a escrever roteiros, li muito, vi muita ficção e vivi na pele histórias e situações engraçadas e absurdas.

2


Ganhei também olheiras, rugas, longos fios brancos e uma cabeleira de espadachim (ou de Pepeu Gomes). Mergulhei no artesanato da palavra ficcional. Tudo veio junto. Quando meu período de intercambista já estava a caminho do fim, eu queria escrever algo relativo à Irlanda, como uma forma de deixar uma marca no país através da literatura e rememorar todo esse percurso caminhado. Não sabia o que, exatamente. Comecei dois romances, mas a complexidade das histórias requeria muito mais tempo para sua conclusão. Eu já lia contos há um bom tempo. Eu me apaixonei por uma coletânea de contos de escritores africanos que encontrei na biblioteca pública da cidade, dentro de um shopping center (e quase sempre lotada!). Foi aí que surgiu a ideia de escrever os contos. Narrativas simples, mas diversificadas, que tivessem como pano de fundo a Dublin que me acolheu tão bem e me devolveu o fogo criativo para ser contador de histórias. Busquei nos contos o máximo de simplicidade e leveza que tornaria o projeto algo saboroso de ser executado. As histórias me divertiram do início ao fim e nelas pude perceber a clara influência dos roteiros cinematográficos nos quais me especializei ao longo dos meses. Nasceram então os Contos Mágicos de Dublin - tão e simplesmente uma homenagem à Irlanda, à minha primeira experiência morando fora da minha zona de conforto, em terras além do Pacífico. Os contos trazem um pouco do que é viver no país como estudante latino no centro de Dublin. Trazem também fantasia, paradoxos, humor, sonhos e impossibilidades. Desejo a você uma boa leitura, com muitas dúvidas, questionamentos e interrogações. É desse jeitinho que a mágica acontece. PS: Os contos também estão na internet, com fotos de minha autoria. =)

Fausto Muniz, Dublin, 2019

3


Até hoje eu me lembro do céu lilás e das folhas secas espalhadas pelo chão durante o outono em Dublin. Montei em uma dessas folhas e velejei, para longe, com o vento.

4


Os Contos A corredora da Grafton Street Chegar ao trabalho atrasado não pega bem. E é por isso que Alice corre, feito louca, por uma das ruas mais caras e musicais de Dublin. Até que as coisas não saem como ela esperava.

As cores secretas do monumento Spire O que fazer quando a chuva não chove apenas por fora, mas por dentro de você também? A chuva não parava de cair na alma de Clara e ela deixou de ver as cores do mundo ao seu redor. O empurrãozinho para sair dessa deprê veio de onde ela menos esperava.

O rickshaw do Temple Bar O jovem irlandês Craig adora tomar todas com os amigos, mas decidiu sair de seu bando e trabalhar como motorista. Ele tem apenas um dia sem álcool no corpo, mas muita ansiedade para controlar.

O prometido do trem Luas Um presente inesperado. Uma viagem dos sonhos à Irlanda. E uma promessa a ser cumprida. Na Irlanda, será que o jovem e inexperiente Rodrigo vai ser capaz de resistir à tentação? Conto proibido para menores (e para alguns maiores também).

O duelo entre Nazaré Tedesco e Paola Bratcho na Diceys As duas maiores vilãs das novelas latino-americanas retornam à vida para um acerto de contas na Diceys, o pub favorito dos intercambistas na Irlanda. Vai ser um recorde de audiência.

A apaixonada pelo homeless da OConnell Street 5


Ela se apaixonou por um sem teto em pleno centro de Dublin e precisa de conselhos amorosos com urgência. O que você diria?

Os pássaros de Malahide Os moradores de Malahide não esperavam que os pássaros voltariam tão cedo ao vilarejo. Apenas Sean, um misterioso pescador, parece entender o que eles pretendem.

A quadrilha da praia de Dun Laouguire Inspirado no poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, esse conto narra as aventuras de um grupo de amigos brasileiros, das mais diversas regiões, em um raro dia quente em Dublin.

O Leprechaun do Stephens Green O duende Patrick adora a solidão, odeia conversar, e não pensa duas vezes em usar sua mágica para desaparecer de perto dos humanos. No único dia do ano em que fica em casa, ele decide quebrar o jejum e soltar o verbo. Mas como e com quem?

Os sinais de Portobello Julia finalmente conseguiu marcar um “date” com um “crush” irlandês em um dos lugares mais charmosos de Dublin, Portobello. Ela só havia esquecido de um detalhe muito importante.

O tamborzinho da cantora alérgica da Mary Street Depois de tentar ser advogada no Brasil, Vivi embarcou para a Irlanda para realizar seu grande sonho: ser cantora. O grande dia chegou, mas ela vai precisar lidar com um inimigo que a acompanhou a vida inteira: seu nariz.

O Senhor de Dublin Os quatro cantos da capital irlandesa são dominados e aterrorizados por James e seu exército de gaivotas treinado ao longo dos séculos. Seu império é posto em 6


xeque quando um antigo rival volta à tona e ameaça roubar seu território. Livremente inspirado em Game of Thrones (que eu nunca assisti).

Fenômeno raro desperta insegurança em Dublin. Confira as últimas notícias sobre as estranhas mudanças que andam amedrontando os moradores da maior cidade da Irlanda.

7


A corredora da Grafton Street

A

lice corria. Corria para chegar ao trabalho, estava em cima da hora. Teria pouco mais de 20 minutos para estar no “trampo” no tempo certo. No peito, aquela adrenalina e angústia de quem está fazendo alguma coisa errada. De quem está com algo incerto, algo que denuncia sua irresponsabilidade. “Você nunca vai crescer, viu? Olha só, você, uma já formada, pós-graduada, com 30 anos em cima das costas e ainda se prestando a correr para chegar a tempo no trabalho, sem uma razão importante?” Responderia sim a todas essas perguntas, para ela mesma. Alice estava na Grafton Street, o boulevard mais caro de Dublin, com grifes mundiais explodindo tendências, ditando elegâncias. Algumas vezes, Alice parou para entrar em algumas lojas daquela avenida lotada de músicos de todos os lugares do mundo, ainda que a maioria deles cantassem apenas melancólicas canções dos Estados Unidos. Essas canções geravam mais receita, mais moedinhas caindo em seus bolsos. A Grafton Street era harmoniosa e caótica. O caos funcionava direitinho naquele lugar, que comportava não apenas músicos, mas outros artistas. Lojas de conveniência e fast food também disputavam os cartões de estudantes e de turistas que subiam e desciam por seus valiosos metros quadrados. Alice já havia deixado de ser uma simples intercambista estudante de inglês naquela Dublin cosmopolita, com infinitos idiomas e formas de falar um simples Oi. Alice já era uma estudante de mestrado. Um mestrado que estava sendo pago a custo de um empréstimo que ela se desdobrava para conseguir arcar. Fugia como uma doida dos atrasos financeiros. Trabalhava como assistente administrativa. Área burocrática. Estudava business e sentia-se um pouco mais útil. Sentia que poderia aplicar alguma coisa da sala de aula no novo emprego, longe dos aspiradores e esfregões quando ainda era uma simples aluna de Inglês. Naquele dia, o salto alto não ajudava. O toc-toc-toc do bico fino estava ainda mais irritante. Ela queria correr, mas a agulha no seu tornozelo a impedia. Como ela sentia falta do simples tênis com o qual ela poderia correr livremente para chegar 8


à sala de aula sem maiores problemas e ainda com um sorriso no rosto. Ela cansou do curso de inglês, queria dar um salto maior. Correu muito para isso. Trabalhou como faxineira por longos e intermináveis meses. Quis mudar de emprego, mas ficou apenas no querer mesmo. E foi o sorrisinho do aspirador de pó que lhe possibilitou pagar o aluguel de seu flat, dividido com mais 7 mulheres. Nesse metro quadrado, lágrimas, fofocas e intrigas se revezavam, acendiam e se apagavam. No final, tudo mais ou menos passava, e elas ficavam de bem. E assim foi levando, por longos dois anos, até chegar ali, na Grafton Street, com o toc-toc de seu sapato, comprado em uma loja específica, não mais na Penneys, a C&A da Irlanda. “Toc-toc-toc…” Tinha que correr, tinha que correr. Foi quando ouviu um “croc”. A agulha elegante quebrou. Na brusca virada do pé, seu tornozelo também entortou. O relógio era impiedoso e em momento algum parou. Alice teve que parar. Parou porque sentiu uma dor imensa no tornozelo. Uma voz lhe falou perto, em tom prestativo: “Você está bem?” Era uma senhorinha muito simpática, com uma armação vermelha que chegava à ponta do nariz, mas não lhe deixava com ares de ultrapassada. Alice respondeu que sim, agradeceu, e foi cambaleando até chegar à parada para o Luas, o trem que cortava a cidade. No primeiro segundo que ela se sentou, já foi abrir a tela de celular. Correu para conseguir escrever a mensagem. Correu para conseguir explicar o que havia acontecido. Seus dedos tremiam e ela mal conseguia digitar. “Estou a caminho, aconteceu um acidente”. Ela decidiu ligar, com a voz embargada, assustada e, ainda, angustiada. Tentou se explicar. Tentou se fazer entendida, mas o nervosismo agia em sua garganta como se houvesse areia na glote e qualquer inglês que ela havia aprendido na vida ficou entalado. Ouviu apenas um OK. “Ok?”, Alice respondeu. “Ok”. A chamada encerrou.

Apenas um Ok? Depois de tudo o que eu passei? A gerente era uma chata mesmo. 9


Alice se levantou e foi cambaleando, descalça, fazendo o caminho de volta. Recebeu alguns olhares de apoio. Respondeu com um leve aceno na cabeça. Não conseguia correr. Não tinha forças para correr e continuava se sentindo irresponsável. Ainda teria que chegar em casa e colocar gelo naquele tornozelo para evitar que aquela enorme bola na sua articulação crescesse. Até que ela parou em frente a um fast food. Tinha fome. Decidiu entrar descalça mesmo. Pediu um sanduíche de frango empanado, o popular “chicken filé”. E comeu o sanduíche, em pé. À sua frente, tocava um guitarrista. Ela sorriu, jogou uma moeda, e seguiu cambaleando, desengonçada, lambendo os dedos melados de molho apimentado, pela chique e popular Grafton Street.

10


As cores secretas do monumento Spire

As

cores do tempo mudavam as cores da alma de Clara. Tudo o que havia cor lhe tocava. Tudo lhe tocava, especialmente as cores e o clima do mundo. Clara tinha o que as pessoas diziam ser uma espécie de sensibilidade ao clima. O tempo mudava, ela mudava. Dias de sol, dias de alegria e energia, de força de vontade para trabalhar, estudar, ver as pessoas e os amigos. Dias de chuva, o total oposto. Ligava o laptop e só sairia da cama para comer e ir ao banheiro. Trabalhar então, era uma tortura. O céu fechava, seus olhos também se fechavam, sua vida se fechava e ela não queria fazer nada mais. A saudade apertava o peito. Saudade era por dia, independente de sol ou de chuva. Saudade era algo que lhe sugava a energia e lhe mantinha na cama, longe de tudo, longe do contato com os outros. Clara faltava as aulas, sumia dos locais, não queria saber de ninguém. Há poucos meses em Dublin, uma sementezinha de arrependimento germinava dentro dela. Uma voz a impedia de tomar decisões. Vivia numa paralisia constante. Cada passo dado era antecedido por essa vozinha implicante… “não faça, não faça, não faça”. Era mais um dia de aula. Clara havia passado pelo monumento do Spire, no eixo central de Dublin: uma agulha gigante de aço erguida entre dezembro de 2002 e janeiro 2003 e cuja construção foi rodeada de controvérsia e euforia. Clara cruzava aquela agulha diariamente e sempre se perguntava o porquê de aquilo existir. Não achava bonito, mas também não achava feio, embora sentisse que alguma coisa se escondesse por lá. Não achava nada, assim como outras coisas da sua vida. Aos poucos, tudo era nada e vazio, e ela não sabia ao certo a razão. Nada lhe tocava em nada. Ao chegar à aula, Clara seguiu calada, do início até o fim. Não era muito diferente dos outros estudantes, que se viam obrigados a frequentar os cursos de 11


inglês apenas para seguir uma obrigação imposta pelo governo irlandês. Caso não mantivessem uma frequência adequada, a chamada attendance, poderiam enfrentar problemas com o serviço de imigração do país e até perder o direito de permanência. Naquele dia, Clara estava ainda mais quieta. Algo trancava sua voz. Sentia uma indisposição tremenda de fazer qualquer coisa. Entregou-se ao silêncio e à inércia. Encostou-se num canto e ali ficou, durante as horas que viriam. Sabia que seriam quase quatro horas apenas sentada em uma cadeira, com o livro aberto. Susan era sua professora, nos seus trinta e poucos anos, com cabelos curtos e coloridos e um visual descolado. Era alegre e bem-disposta e fazia de tudo para tornar aquelas quatro horas algo que fizesse diferença naquelas vidas. Existia, no entanto, uma espécie de barreira invisível que dificultava a conexão entre ela e Clara. Um tipo de barreira difícil de ser resolvida. Os olhos de Clara estavam perdidos no horizonte. Até sua audição estava patinando ao longe, como num vácuo. No meio desse vácuo, um barulho insistente e repetitivo começou a assoprar, a catucar seu ouvido. O barulho permaneceu, continuou, bateu sem parar. Até que… - CLARA!!! Ela se sacudiu, como se acabasse de sair de um túnel. - Ah, desculpe Susan. - Você… você está bem? - Saí um pouco daqui… - Nós vimos. Seguiu-se um silêncio, algumas risadinhas, e Susan continuou. - Tem dias que a gente não quer falar nada, né? Eu entendo vocês. Sei do cansaço que é vir do trabalho e ter que estar aqui na sala de aula todos os dias. É barra, é difícil, mas… enfim… é isso… vamos seguir com o livro? - Seguir com o livro? – Clara respondeu. - Sim, Clara. - Eu não sei se eu quero seguir com o livro. Eu não quero seguir com o livro. Clara calou-se. Os colegas que dormiam, acordaram. - Mas nós precisamos continuar… 12


- Precisamos, mesmo? Hoje? Igual a ontem e ontem e anteontem? Susan respirou fundo. - Querida, eu entendo… O burburinho tomou conta. - São cinco horas aqui, dentro desse prédio, fazendo praticamente as mesmas coisas todos os dias. São cinco horas falando de gramática, tentando corrigir nosso jeito de falar quando nem mesmo os nativos o fazem. Não, não é fácil, é barra mesmo estar aqui fazendo isso todos os dias. É barra ter que se sujeitar a isso, mas eu acredito que é possível fazer diferente. É possível fazer melhor. Eu sei que não é fácil, mas, me desculpe, é o mínimo. A gente paga caro para estudar aqui e vemos o nosso dinheiro indo para o ralo. Estou cansada… estou cansada. O silêncio tomou conta da sala e foi ainda mais pesado até o seu término. Clara esperou os alunos saírem da sala e se dirigiu a Susan. - Susan, me desculpe por hoje… - Tudo bem, querida. Você não tem que pedir desculpa por nada. - Eu tenho sim… - Está passado. Relaxe a cuca. Take it easy. Susan deu as costas e caminhou para a porta da sala. E então parou e tornou para Clara. - Clara, posso te fazer uma pergunta? Ela assentiu. - Por que você usa apenas preto? Clara não entendeu. - Eu… uso preto? Nossa, eu não havia percebido isso. Eu não havia percebido que usava preto todos os dias. Bem, acho que eu gosto de preto. - Tem certeza? Susan deu uma risadinha e saiu da sala. Clara ficou pensativa, como se soubesse a resposta para aquela pergunta. No caminho de casa, as palavras da professora continuaram ressoando em sua cabeça, como se o discurso que ela havia dito para Susan fosse uma verdade para ela mesma. 13


É possível fazer melhor. Chegando à OConnell Street, viu ao longe o monumento Spire. Num segundo piscar de olhos, percebeu que havia algo diferente nele. Não era mais o mesmo, ainda que de modo sutil. Clara se aproximou aos poucos, com um misto de excitação e medo. E viu: o Spire já não era tão cinza. O clima da cidade era o mesmo de todos os dias, mas o monumento de aço havia mudado um pouco. Novas cores, com tons diferentes, haviam se revelado e ela era capaz de enxergá-las. Aos poucos, as coisas não eram tão monocromáticas quanto antes. Um calor subiu pelo seu pescoço, ainda que o vento frio soprasse por todos os lados. E um leve sorriso começou a se desenhar nos lábios de Clara.

14


O “rickshaw” do Temple Bar

C

raig era irlandês e havia acabado de completar 18 anos. Sabia que as coisas não seriam como antes. Não poderia mais ficar à toa, nas ruas, com seu bando, fumando baseado e saindo por aí, fazendo arruaça. Poder até que ele podia. Mas sua mãe chegou um dia e o jogou contra a parede: “ou trabalha, ou não bebe mais”! A bebida falou mais alto e ele até queria ganhar uns trocados, seria bacana. Mas Craig não sabia fazer nada. Mal sabia lavar pratos. Cresceu mais na rua do que em casa ou na escola. Conhecia Dublin na palma da mão. E com a palma da mão aprontava coisa que sua mãe não fazia ideia. Sua mammy foi esperta: em vez de oferecer a casa em troca de trabalho, porque sabia que o filho poderia ficar nas ruas sem problema, ofereceu a bebida. Tiro e queda. Numas dessas noites incontáveis, ele, com os seus mates, sentado em pleno Temple Bar, o cartão-postal da cidade, parou por alguns instantes e teve um troço que o pessoal costuma chamar de epifania. Teve isso quando olhou para uns colegas que dirigiam uma espécie de carroça motorizada, os rickshaws. O motorista pedalava uma bicicleta enquanto conduzia os passageiros sentados numa carroceria, a maioria era a garotada baladeira e os turistas. Craig chegou para um dos ciclistas e perguntou: “E aí mano? Como faz pra dirigir isso aí?” “Sorry?” “Como é que eu faço pra dirigir? Trabalhar?” “Sorry?” “Ah, desculpa aí, foi mal aí…”

15


“Sorry? I can’t understand. ‘Espike Englishi véri lôu, bâti ai uiu cóu mai frendi to talki to iú!’ Ei Aldemir, olha o mano aqui é “Irish”. Troca umas ideias com ele que eu não entendo nada”. O outro rapaz falou. “Qual a história, mano?” “Ei man, quero dirigir esse bagulho aí. Como eu faço?” “Ah, de boas. Eu alugo os rickshaw, mas sabe da Garda né?” “‘Qualé’ mano, sou daqui!” Trato feito, no dia seguinte, Craig já estava com o rickshaw pelas ruas do Temple Bar e outras. No Temple Bar, ele conseguia mais trocados, mas outras regiões também rendiam algumas gorjetas, como a rua da Diceys e as imediações da George Street. Todo dia tinha fuzuê nos pubs de Dublin, mas quinta, sexta, sábado e dias de jogo e de show, a bagunça era ainda maior. E o dim-dim, as chamadas “tips”, era maior também. Quanto mais bêbados, mais cash no bolso. Tinha também chance de levar calote e não ter com quem reclamar. O trabalho era meio doido e tinha que ficar de olho nos policiais, que poderiam encher o saco, fazer revista em busca de drogas. Ao menor sinal da Garda, a ordem era pegar o beco, sair de cena, pra evitar furadas. No primeiro dia de trabalho, Craig chegou ao Temple Bar e esperou. - Hey guys, lift!!! Lift era o nome da “carona”. Craig gritava para um lado, para o outro. Tinha que disputar com a concorrência, com gente na praça há mais tempo e dentro das manhas do negócio. As horas passavam, nenhum centavo no bolso. Craig parou num canto, relaxou, deu um break no trampo, fumou. Por trás, ele ouviu: “Olha ele aê! Olha o Craig aê!” Sua turma estava lá, com seus cabelos raspados no mesmo barbeiro, corte de soldado, mostrando o cocuruto. Vestiam as mesmas roupas, moletons e calças cinzas com um selo ADIDAS brilhando em suas laterais e sapatos da Nike. Andavam bem vestidos para mais uma noite vivendo a vida adoidado. Um deles mostrou uma garrafa de Whisky Jameson dentro de um casaco e logo escondeu. 16


Eles apenas trocaram acenos, algumas palavras soltas, e seguiram pela rua. Sentado, Craig permaneceu olhando seus “parças” indo cada vez mais longe, enquanto a fumaça saía pela sua boca e pelas narinas. Sua garganta estava seca. O tédio de não fazer nada, de não ter nada de emocionante para preencher suas horas naquela noite de sexta. Tinha que fazer grana o quanto antes, ou não pagaria o aluguel da bicicleta. Sabia que poderia não apenas oferecer caronas: as drogas circulavam e ele poderia faturar alto, bem alto, contanto que fosse discreto e esperto. Queria sair dali. Os garotos ainda estavam à vista… seria fácil alcançá-los em instantes. Sem grana chegando, o jeito era curtir a noite, aproveitar a vida, beber, beber, beber… Sentia a boca seca. Olhou para o celular: estava há mais de 24 horas sem uma gota de álcool na língua. Era estranho, tedioso. O mundo já não girava como antes, sóbrio por tanto tempo. Um dia sem beber seria um dia preto e branco, sem graça. Era seu primeiro dia como trabalhador. Sentia-se deslocado do mundo. Pensava que aquilo não era pra ele. Craig jogou a bituca do cigarro no chão, saiu da carroça e voltou para o assento da bicicleta. Ligou o motor e acelerou. Saiu do Temple Bar e foi em direção a tumultuada Dame Street, uma artéria no centro de Dublin que conectava a região turística da cidade ao Trinity College, a mais tradicional universidade da Irlanda. Craig acelerou o rickshaw em meio a um caótico trânsito infestado de taxistas e bêbados, loucos para chegar em casa, depois de horas regadas a infindáveis litros de chopes, as “pints”. Craig acelerou mais. O vento forte no rosto e a alta velocidade agiam como um orgasmo. Não poderia correr muito mais que aquilo ali. Já estava tão veloz que não teria mais tempo para frear com calma. Quando o veículo se aproximou do semáforo do cruzamento da Dame Street com a tumultuada George Street, o sinal fechou e não deu tempo de parar. O rickshaw furou a luz vermelha. Da Georges St saiu uma viatura da Garda que disparou atrás dele. Craig foi desviando dos pedestres que corriam loucos pela rua, enquanto desacelerava o motor. Os gardas pediram sua identidade. Ele entregou, escondendo os olhos vermelhos do baseado. Sua voz estava meio lerda. Sua postura estava firme. Seus dedos, firmes ao volante. Levou uma advertência. Sentiu vontade de reagir, provocar, soltar uma graça em cima dos caras, sair correndo, como sempre fez. Sem a tontura do álcool, sentia-se calmo.

17


O tĂŠdio havia voltado. NĂŁo queria estar calmo, mas estava.

18


O prometido do trem Luas

R

odrigo tinha quer fazer a promessa três vezes, ajoelhado, com a presença dos outros integrantes da sociedade. Ele seguiu todas as regras, passo a passo. Por fim, jurou:

“Eu prometo. Eu prometo. Eu prometo.” Três também era o número de vezes necessárias para Rodrigo memorizar várias coisas na vida, como nomes de pessoas, de lugares, além de ser o número típico de São Longuinho, o santo dos objetos perdidos. “São Longuinho, São Longuinho, se eu achar minha chave eu dou três pulinhos!”. Ele seguia o costume de muitos brasileiros. Rodrigo frequentava as reuniões de sua religião quase todos os dias e tinha laços firmes com os outros associados. Ao mesmo tempo, ele também desejava passar um tempo fora do Brasil. Sentia que alguma coisa o esperava para além da terrinha. Uma vez, ele comentou com alguém sobre esse desejo. Falou sem pretensão nenhuma, como se pensando em voz alta. Algum tempo depois, esse mesmo alguém chegou a ele e comunicou: “parabéns, você vai para fora do país, com tudo pago”. Ele não acreditou. Ajoelhou-se e agradeceu em lágrimas. Iria para Dublin, capital da Irlanda, estudar inglês. Em troca, teria que fazer um relatório do universo religioso da cidade. Visitaria templos, igrejas de todas as religiões, conversaria com pessoas de todas as segmentações e filosofias. Seria uma experiência e tanto para um jovem de 19 anos, com pouca bagagem nas costas. Seus companheiros entendiam sua ansiedade, fizeram um esforço, e entregaram o presente. No penúltimo dia antes de viajar, Rodrigo teve de participar de uma cerimônia, realizada secretamente nos arredores do núcleo e que, segundo os participantes, “teria o objetivo de manter a fidelidade do jovem perante as convicções originais 19


do núcleo”. Rodrigo, sem pestanejar, participou da cerimônia, cuja segunda condição para que ele pudesse receber o benefício da viagem seria a seguinte: total afastamento do sexo. Sem o apoio do núcleo, Rodrigo jamais teria condições de arcar com as despesas de uma viagem como essa. Passagens, hospedagens, escola de inglês, custos de vida e manutenção. Não era fácil para ele, filho de uma diarista e um comerciante ambulante. Era a oportunidade da sua vida. Já o sexo… bem, o sexo não era grande coisa, ainda. Ele jurou de pé junto que ainda era virgem. No grande dia, Rodrigo chegou ao núcleo para a cerimônia de sua “fidelização aos princípios da comunidade”, e repetiu, ardorosamente: “Eu prometo, eu prometo, eu prometo”. Três meses depois de sua chegada às terras da ilha verde-esmeralda, Rodrigo arrumou trabalho como Kitchen Porter, um auxiliar de cozinha responsável, dentre outras coisas, em lavar e guardar os pratos, manter o ambiente limpo e organizado. Sem esses auxiliares, qualquer restaurante fecharia as portas. Rodrigo trabalhava vinte horas por semana, como mandava a cartilha das exigências da imigração. Era pontual na escola. O Núcleo havia providenciado, ainda no Brasil, uma acomodação. Era um pouco distante da escola e do trabalho e, por isso, ele tinha que usar o transporte público todos os dias. Rodrigo usava o LUAS, um dos trens urbanos de Dublin, que cruzava longas distâncias. Era geralmente bem pontual e evitava engarrafamentos nas áreas mais tumultuadas. Todos os dias, o jovem se sentava na mesma cadeira. Gostava de padrões, estabilidades, rotinas. Gostava de saber que tinha uma hora de sair e outra de chegar. A vida religiosa lhe permitia isso. As restrições às quais se submetia permitiam manter um grau de previsibilidade, conforto, segurança. Era um dia como qualquer outro. Um dia que mais parecia uma vida inteira, sem atribulações. Rodrigo esperava o Luas, olhando distraído o mundo organizado e civilizado do qual faria parte durante alguns meses. Ele então percebeu uma coisa. Olhou para outro lado, não queria dar vacilo. Assoviou e colocou os fones de ouvido. Concentrou-se na música – a mesma playlist, como sempre. E olhando para o nada, percebeu de novo. Seus olhos teimavam em manter-se no lugar. Era um rapaz, bonito, alto, com cara de estrangeiro, calça colada, pernas fortes. Rodrigo não podia acreditar, mas, sim, parecia que ele o estava olhando. Levou a mão ao ouvido, como sempre fazia quando estava nervoso. Olhou para o outro lado. Sua respiração começou a acelerar. Mordeu os lábios. Engoliu o cuspe, a

20


garganta já estava seca. Mexeu na bolsa que carregava nas costas e pegou sua garrafinha com água. Bebeu o resto do líquido de um gole só. O trem Luas foi se aproximando da estação Jervis, nome de uma rua central, com a loja Penneys, centros de conveniência, cafés e mais. O coletivo chegou e Rodrigo esperou para alcançar o mesmo vagão de todos os dias. Quando já estava há poucos passos da cadeira, o rapaz sentou-se no lugar que ele sempre se sentava. Seu lugar. Como ele poderia! Rodrigo procurou outro lugar, mas não havia mais tempo. Sentou-se bem em frente ao rapaz, num espaço com apenas duas cadeiras, uma encarando a outra. De imediato, tirou o celular do bolso e rolou o dedo pela tela, seus dedos, gelados. Sempre ouviu histórias de que os europeus eram fechados e tímidos. E certamente aquele rapaz que o encarava era um europeu, com seus traços saxões, sua altura acima da média do típico latino-americano. Ao passar de cada estação, Museum, Four Courts, Smithfield, entre outras, o trem foi esvaziando. Menos gente entrava e Rodrigo continuava compenetrado na tela de seu celular, com os olhos em estado de guerra para não se desviarem daquele refúgio. Num dado instante, seus olhos se levantaram, nervosamente. E voltaram, piscando tresloucados. A tentação falou mais alto. Ele voltou a levantar os olhos, sem mexer a cabeça. Então viu uma das mãos do belo rapaz apertando o volume da calça com discrição, mas firmeza. Na terceira vez que Rodrigo levantou os olhos, o volume já havia dobrado. Respirou fundo. Sua boca estava seca. Nem cuspe tinha para engolir e aliviar a tensão. Na quarta vez que levantou os olhos, viu os pelos pubianos do rapaz. Pelinhos um pouco claros, puxando para ruivo. A mão dele segurou o elástico de sua calça sem zíper e começou a descer bem devagar, mostrando algo mais do que simples pelos escuros. Rodrigo baixou o olhar, voltou para o celular. Não via mais nada. A tela estava vazia. Tudo estava vazio e ele se mexia de um canto para o outro, embaraçado, nervoso, o coração tremendo na garganta. Levantou, vagarosamente, os olhos, com as pupilas já há muito tempo dilatadas. Viu um pênis ereto, que balançava de um canto para o outro junto aos movimentos do trem. Sua visão periférica se esvaiu e todos os lugares que ele admirava em observar, rotineiramente, perderam a cor. Durante segundos que mais pareciam uma eternidade, Rodrigo apenas ficou a admirar a imagem daquele pau ereto em sua frente, sem conseguir respirar.

21


Em instantes, o trem passaria por um túnel. Tudo ficaria, quase, às escuras, por alguns instantes. O momento perfeito. Outros passageiros não viriam. E se vissem? E se os outros vissem? E se, e se, e se… Faltavam três segundos para que as luzes apagassem. 3… “Eu prometo…” 2… “Eu prometo…” 1… “Eu prometo…” E tudo se apagou.

22


O duelo entre Nazaré Tedesco e Paola Bracho na Diceys

U

ma bolha de ar flutuava das profundezas do Rio Liffey até alcançar a superfície, nas imediações da Parnell Street, próximo ao Temple Bar. Em outro ponto, também no Rio Liffey, mais uma bolha estourava quando chegava à superfície de suas águas. As águas do Liffey são frias, gélidas, ainda que nos poucos dias de sol da velha Dublin. Naquele dia, os patos que nadavam de um lado para o outro estranharam um aquecimento. Havia uma agitação fora do comum naquelas aves. E à medida que mais uma bolha, e outra bolha, e outra bolha, se alastravam pelas águas do rio, as aves ficavam cada vez mais inquietas, saltando de um canto para o outro. Em cima, a Parnell Street seguia seu fluxo como em qualquer outro dia. Estudantes e turistas de vários cantos do mundo caminhavam no coração da parte central da capital irlandesa. Em um desses grupos, uma pequena oriental, sentada em um dos bancos que avistam o canal do LIffey, percebeu o bate-bate incessante das asas daqueles bichos. Ela se levantou e seguiu para o parapeito, tentando ver o rio. Os olhos da pequena se esbugalharam. Em choque, ela começou a caminhar para trás, a boca aberta e o coração latejando, horrorizada. Sua mãe, que conversava com outras pessoas e se lambuzava com um cone de sorvete branco, percebeu a mudança e correu para abraçá-la. “Meu amor, o que aconteceu?” A pequena levantou a mão e lentamente apontou o dedo indicador para o canal. Os outros seguiram a direção do dedo e correram para ver o rio. O que se ouviu em seguida foram gritos e exclamações a Deus e a todos os santos. Alguma coisa estava saindo das águas do Liffey. Duas coisas saíam por aquelas águas, em dois pontos distintos. As águas ferviam. Um calor insuportável expulsou gaivotas, pombos, patos e gente, como se um vulcão estivesse prestes a explodir. Quanto mais aquelas duas

23


coisas emergiam, mais vapor quente era jogado para todos os lados, como se as portas do inferno estivessem se abrindo naquele exato instante. Primeiro, uma cabeça encharcada, com cabelos longos e ensopados que encobriam o rosto. Em seguida, ombros e seios encobertos por elegantes vestidos. Duas mulheres. Uma delas tinha longos cabelos loiros, levemente encaracolados, e vestia um vestido vermelho. A outra, cabelos morenos claros, lábios encobertos por um batom vermelho. As duas mulheres encharcadas permaneceram flutuando por cima do Liffey por alguns instantes, até seguirem levitando pelos céus de Dublin, acompanhados por uma plateia em pânico.

***

Enquanto isso, em pontos distintos nas imediações do parque Stephen’s Green, a brasileira Maria Paula Silva e a mexicana Dalia Alvarez se preparavam para mais uma farra no mais latino dos pubs de Dublin: Diceys. Era um dia de segundafeira e a boate receberia uma população esmagadora de estudantes internacionais, que juntavam seus salários em subempregos para convertê-los em generosas doses de cerveja, e outras cositas más. Maria Paula e Dalia Alvarez eram rivais até a morte. As duas haviam se conhecido durante um teste para faxina no Google. O cargo era disputado, especialmente porque o local fornecia refeições ao longo do dia e pagava cinquenta centavos a mais do que outras empresas. Era o sonho de muitas e muitos cleaners, nome chique e descolado para faxineiros. No dia do teste, assim que uma colocou os olhos na outra, foi ódio à primeira vista. Quando o resultado saiu, a brasileira conseguiu a vaga. Dália, chegada em Dublin há três meses, só havia conseguido trabalhos esporádicos e estava prestes a ser despejada do seu apartamento: um cubículo a 70 minutos do centro, com mais 15 pessoas. A mexicana viu sua raiva crescer ainda mais. Maria Paula saiu na frente, porém, dias depois, enquanto conversava com um “crush” irlandês com o qual mantinha um caso há alguns meses, foi surpreendida quando o viu aos amassos… com quem? Claro, Dália Alvarez, bem em frente ao supermercado Tesco da Rua Parnell, uma verdadeira praça latino-americana,

24


onde é possível praticar o espanhol e o português (este último, principalmente) de graça e sem horário marcado. As duas permaneceram trocando olhares por segundos que pareceram horas. E num gesto ameaçador, Maria Paula levou o dedo ao pescoço, jurando vingança. Ela abriu a boca e falou apenas pelos lábios: “Pego você na Diceys…”. *** Na tela da TV, a RTÉ, principal canal de televisão irlandês, exibia uma repórter com um boletim de emergência, no Breaking News. “Segundo testemunhas, as mulheres foram avistadas em pontos distintos do Rio LIffey: a primeira, loira, aparentava ter 70 anos e foi vista no cruzamento da Parnell Street com a O’Connell. A segunda, tinha uma aparência de 50 e os relatos contam que foi avistada ao lado da Happeny Bridge. O mais inacreditável é que elas estariam levitando por cima das águas e um calor insuportável expulsou pássaros do local, como se um vulcão acabasse de se abrir. Algumas pessoas reclamaram dizendo que era ‘um calor dos infernos’”. *** Dentro da Diceys, Maria Paula e Dália Alvarez começavam a tomar as primeiras bebidas em mais uma tarde barulhenta no local. As horas se passaram como em habitual até que duas sombras escurecessem o céu do jardim da boate. A música parou. Bêbados e drogados pararam. Maria Paula e Dália Alvarez deixaram seus “peguetes” e caminharam pelos corredores em câmera lenta. Parecia uma cena de faroeste em que dois cowboys chegam ao Saloon em busca do acerto de contas. Uma de frente para a outra, Maria Paula gritou primeiro: - NAZARÉ TEDESCO! Em seguida, Dália Alvarez: - PAOLA BRACHO! As duas vilãs de novelas latinas, Senhora do Destino e La Usurpadora, se contorceram ao ouvir os próprios nomes, como monstros sendo repelidos ao som de palavras-mágicas. As quatro mulheres sorriram ao mesmo tempo. Um sorriso que não foi acompanhando pelos olhos, que ferviam em chamas diabólicas. E então, o silêncio reinou. Até que um novo barulho retumbou, sacudindo paredes e balançando as estruturas do mais popular dos pubs: 25


- AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA……. O riso ecoou pela boate como um trovão. Seguranças, funcionários e clientes dispararam, aos gritos. As duas rivais, em posição de ataque, berraram àqueles espíritos das trevas: - AO ATAQUE!!! Nada aconteceu. As vilãs permaneceram inertes, olhando entre si. Lentamente, Nazaré Tedesco virou-se para Maria Paula, e Paola Bracho para Dália Alvarez. - Eu mandei você atacar essa vaca! – Maria berrou. - YO TAMBIÉN!...

AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA….. As vilãs soltaram mais uma risada, que trovejou pelos quatro cantos da já deserta Diceys. Em seguida, Nazaré e Paola abriram seus braços finos e envelhecidos, que pareciam dois gigantescos galhos mortos, e agarraram suas invocadoras. Maria e Dália se debatiam dentro dos braços dos dois espíritos, ao mesmo tempo em que pediam socorro. A força das monstrengas era infinitamente superior. As vilãs latinas permaneciam rindo, numa risada louca, ensandecida. Um terremoto começou a chacoalhar a boate e derrubar tudo ao chão: chopps, luzes. Tudo começava a ruir. Uma rachadura enorme se abriu no chão da boate, exalando um forte cheiro de enxofre. A rachadura cresceu, até formar um imenso buraco. Parecia uma cratera de vulcão, com fumaça saindo por todos os lados. Lentamente, Paola Bracho, que agarrava Dália Alvarez, e Nazaré Tedesco, que aprisionava Maria Paula Silva, foram sendo engolidas por uma nuvem de enxofre fervendo. Do lado de fora da Diceys, era possível ouvir as gargalhadas das vilãs latinoamericanas e os gritos ensandecidos das duas cleaners, rivais na vida e na morte.

FIM

26


A apaixonada pelo homeless da O’Connell Street

“Eu

não aguento mais essas espinhas! Ai… desculpa por logo ir falando desse jeito. Eu não sou chata, não... Quer dizer, só de vez em quando. Meu humor muda às vezes... Ai, eu sou insuportável mesmo! Queria ser mais doce, mais fofinha! As meninas dizem que eu sou doce e fofinha, mas eu não sei de onde elas tiraram essa ideia. Ok, vamos lá. Eu estou falando hoje aqui porque eu estava com vergonha de conversar com minhas amigas. Acho que elas não entenderiam. Elas começariam a me julgar e tal. Eu não estou a fim de ser julgada”. “Certo, minha querida. Aqui você não vai ser julgada. O seu problema são as espinhas? É a acne?” “Não, não exatamente. Não é bem um problema que eu tenho. É mais uma coisa que aconteceu comigo nesses últimos dias. Uma coisa que, na hora, foi muito bizarro, muito estranho, mas… foi incrível.” “Certo, pode falar. Sou toda ouvidos”. “Mas você…. Assim, tipo, vocês são psicólogos?” “Alguns daqui têm sim formação em psicologia, mas a maioria não. Os Ouvintes Solidários são pessoas que oferecem um tempo de sua vida para, apenas, ouvir outras, pelo telefone, sem julgamentos. Não temos preconceito com nada. Queremos apenas ajudar com um bom ouvido”. “Ah, que lindo. Nossa, e eu já pensei em ser psicóloga, mas depois eu desisti, sabia?” “Foi mesmo? E por que você desistiu?” “Sei lá, achei muito ruim o mercado e tal. Não tive garra pra seguir em frente. A vida inteira eu deixei muitos planos de lado, ou simplesmente eu começava e não continuava. Ou começava, continuava e depois parava. Que coisa irritante, isso!” “É normal isso acontecer. Quantos anos você tem?”

27


“26.” “Tudo isso faz parte. Faz parte da caminhada. Uma hora você se encontra.” “É o que eu espero, de coração. Chegar aqui em Dublin foi uma vitória. Acho que foi uma das poucas coisas na vida que eu mantive meu foco, continuei e fui até o final. Tive que dizer não para várias coisas, várias tentações na vida, até chegar aqui.” “Veja só, que maravilha.” “Sim, sim, mas eu acho que estou voltando a andar em círculos.” “Por quê?” “Não sei” “Você no início disse que alguma coisa havia acontecido com você nesses dias. Quer falar sobre isso?” “Sim… foi uma coisa muito doida… Não somente foi, é e está sendo…” “Sei…” “Eu… me apaixonei por um homeless.” “Sei.” “Eu estava caminhando pela O’Connel Street um dia desses, aí parei para olhar alguma coisa no celular, foi quando escutei alguém me chamando. Quando me dei conta de onde, vi que era um homeless, porque ele estava sentado no chão, segurando um copo de papel em uma das mãos. Ele era lindo… tinha uns olhos azuis, uma pele limpa, sem nenhuma marca de nada na vida. Parecia nunca ter tido uma espinha na vida. Seus cabelos caíam no rosto, meio desleixado e charmoso. Mesmo sentado, parecia ser bem alto. Seu olhar… um olhar tão lindo, mas tão cheio de sofrimento… parecia que estava sofrendo mesmo. Ele estava apontando para o chão, com muita, muita educação mesmo. Eu não consegui entender de cara o que ele estava dizendo, de tão encantada que eu fiquei, mas depois eu acordei e vi que ele estava apontando para um papel que tinha caído do meu bolso quando eu tirei o celular de dentro. Eu sorri, toda boba. Ele sorriu de volta. Deu pra ver que ele tinha uns dentes feiiinhos…. Amarelados, maltratados, alguns pretos… mas… eu não fiquei com nojo… eu não conseguia parar de olhar para aquele homeless lindo, no meio da O’Connel Street, gente passando pra lá, passando pra cá, ônibus, táxi, bicicleta, pessoal cantando na calçada…” “E por que você acha que se apaixonou por ele?” 28


“Ai, não sei… Eu não conseguia parar de olhar pra ele. Fiquei perdida, quase que me batem, porque eu parei bem no meio do alvoroço do centro, num horário de muito movimento” “E o que aconteceu depois?” “Depois que trocamos sorrisos, eu caminhei pra pertinho dele, sem desgrudar o olhar dele um minuto só. E depois eu peguei algumas moedas. Comecei com uma de 20 centavos, mas daí eu pensei: ‘ah, deixa de ser mão de vaca, mulher! Pega feio com o bofe!’. Então peguei algumas moedas de 50. Aí eu pensei: ‘meu deus, foi essa a educação que Dona Onice lhe deu? Hellooou??’ Então eu tirei uma nota de 50 euros… e dei pra ele!” “Meu deus…” “Fiz errado?” “Claro que… não, não, eu que pensei aqui errado. É… enfim, você deu a um homeless uma nota de 50 euros…” “Ah, mas ele não era um homeless qualquer… ele era liiiiindo! Parecia o Ed Sheeran! E eu adoro Ed Sheeran! Ainda por cima, o filé me ajudou!” “e então…” “Ah, depois conversamos! Ele me disse o nome dele, eu disse meu nome” “Sim, certo. Mas… ah, deixa pra lá, estou aqui para lhe ouvir, apenas” “Deixa pra lá o quê?” “Eu não deveria me meter, mas eu sou mãe, e não consigo deixar de ser, mesmo que eu não esteja com meus filhos. Veja: você é nova aqui e parece ter pouca experiência de vida. Provavelmente sabe que muitas dessas pessoas estão na rua por razões adversas, entre elas, drogas, às vezes crimes. Muitos são simplesmente pessoas que não conseguem pagar os aluguéis em Dublin. Eu só quero alertar para você tomar cuidado, certo, minha querida?” “Sim, claro. Entendo o que você quer dizer, mas, e agora, o que eu faço?” “Não entendi.” “Eu… bem… NÓS trocamos WhatsApp. Nós temos o contato um do outro. Eu estou apaixonada por ele e vamos ter nosso primeiro encontro. O que é que eu faço?” “Mas onde você vai se encontrar com ele, se ele mora na rua?” “Chamei ele para vir aqui em casa!” 29


“Meu deus…” “Eu sei que minhas flatmates não vão gostar, mas eu não quero nem saber. Já está tudo combinado. Ele vem aqui amanhã!” “Você… você tem certeza, minha querida?” “Claro que sim!” “Tem certeza mesmo?” “Claaaaro que sim! E não há nada que vá mudar minha cabeça... Por quê? Você acha que pode me dizer o que eu faço ou deixo de fazer?” “Não, minha querida…” “Então me deixe em paz! Eu quero aquele homeless lindo dos olhos azuis e de pele lisa na minha vida! Sou adulta, sei o que estou fazendo e ninguém vai me aconselhar do contrário!” “Meu deus…” “Foi ótimo conversar com você, mas eu sei muito bem o que eu quero, e depois de lhe ouvir, fiquei ainda mais certa. Obrigado pelo conselho. Bye, bye!” “Tenha uma boa noite, querida… Bye, bye…”

* Em Dublin, pessoa moradora de rua.

30


Os pássaros de Malahide

A

bola de fogo de um sol inabalável explodia no céu de Malahide, um pedaço de Dublin que pertencia a família dos Talbot desde os anos de 1185. Esse imenso círculo de luz mantinha a paz nos arredores do castelo medieval de Malahide. Por fora desse monumento, o verde-vivo do seu gramado bem nutrido harmonizava com o azul puro de um céu sem nuvens, orgânico, virgem. Próximo a essas propriedades, um litoral lotado de gaivotas. O vento frio soprava em toda ilha esmeralda da Irlanda, hora com doçura, hora com fúria e arrogância. O vento era uma espécie de mensageiro dos tempos ensolarados ou chuvosos. Naquele dia, um grupo de pescadores caminhava para mais um dia de trabalho, no mar lento e preguiçoso de Malahide. Entre eles, o ruivo, barbudo, sisudo, baixinho e cinquentão Sean, que segurava sua vara de pescar pela areia fofa e fria da praia. Ele olhava seus pés, que pisavam naquele solo acinzentado e úmido. Uma nuvem sobrevoava seu espírito. Uma nuvem também cinzenta. Enquanto os outros cantarolavam ou faziam graça, ele seguia calado, um pouco fora de seu habitual. “Que é que foi, Sean? Problema em casa?” “Tá com doença?” Ele não respondia, apenas balançava a cabeça negativamente. Caminhava, seguindo o fluxo do grupo, como uma sombra, emudecido, com a boca trancada. Até que algo chamou sua atenção. “Qual é, Sean? Qual é o problema?”, um de seus companheiros gritou, ao vê-lo parar. O pescador ergueu suas grossas sobrancelhas, em formato de circunflexo, até que elas formassem uma montanha na testa. Sua boca ficou entreaberta, como se ele houvesse parado de respirar. Seus olhos fitavam algum ponto ao longe, no horizonte, vagos.

31


“Que é que houve, man? Vai ficar aí parado?” “Esse aí deve estar com algum problema na cabeça…” “Família ele já não tem. Acho que o problema é esse…” “Sei não… Man, vamos ter uma pint mais tarde…” “O vento”, Sean interrompeu. “O que é que tem com o vento?” “É hoje”. “É hoje que vamos sair e trabalhar como sempre, man…” “Não… é hoje. Eles voltam hoje…” Ele levantou o braço, apontando o dedo indicador. Os outros pescadores seguiram a direção daquele dedo maltratado pelo serviço braçal da pesca. Na linha fina do horizonte, um grupo de pássaros crescia. Aos poucos, esse grupo foi se avolumando, até formar uma nuvem escura, densa. Uma nuvem de pássaros brancos que se debatiam, mas mantinham a posição de voo, pouco acima da linha do mar. Os outros pescadores paralisaram. Ninguém movia um dedo. A nuvem se adensava. E então, um barulho seco de algo caindo no chão tirou o grupo da inércia. Eles olharam para de onde veio aquele som: a vara de Sean, estatelada em um rochedo. Ao longe, o pescador já corria. O grupo abandonou os equipamentos de pesca e seguiu o pescador sisudo, que nesse momento fugia da praia e se aproximava das imediações do castelo de Malahide. “Mas o que é que esse doido vai fazer?” “Ele não pode entrar ali!” “Mas ele vai entrar!!” A nuvem de pássaros cresceu ainda mais, até encobrir a vila de pescadores, o comércio e as imediações do povoado de Malahide. O povo saiu de casa e logo voltou. Todos fecharam as portas. A cidade entrou em caos. Crianças, adultos e velhos correram em busca de abrigo. Na Igreja do Sagrado Coração, muitos se refugiaram e começaram a rezar compulsivamente. Padre, freiras, beatas e fiéis acenderam velas em desespero. Terços foram distribuídos para que todos se reunissem em uma imensa corrente de oração e súplicas. “LIVRAI-NOS DO MAL! LIVRAI-NOS DO MAL! LIVRAI-NOS DO MAL!” 32


“SÃO SILVESTRE… ROGAI POR NÓS!” “SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS… ROGAI POR NÓS!” O vento começou a soprar com mais força, derrubando o que vinha pela frente. Em questão de segundos, as ruas de Malahide viraram ruas de uma cidade fantasma, sem única alma viva pelas suas calçadas. O grupo de pescadores se espalhou pelos quatro cantos. Alguns conseguiram voltar para suas casas. Alguns encontraram refúgio nos últimos estabelecimentos de portas abertas. Sean continuou correndo para as imediações do castelo de Malahide, o único espaço nas redondezas que não se encobriu pela densa nuvem de pássaros. O local permaneceu iluminado, com a mesma vida e cor de todos os dias, intocado. De frente para o portão do castelo, Sean parou, ofegante, o coração saindo pela boca. Ele podia ouvir as asas dos pássaros batendo enlouquecidamente atrás dele. Eram milhares de asas, numa sonoridade parecida com a de um galinheiro sendo invadido por um bando de raposas famintas. A porta se abriu, sem que o pescador movesse um dedo. Sean entrou no castelo. Entrou devagar, um passo de cada vez. No alto, a nuvem de pássaros esvaziou. Os bichos desceram dos céus, em fileira, e adentraram, frenéticos, no castelo de Malahide. Ao som de um barulho de ferrugem velha, o portão se fechou.

33


A quadrilha da praia de Dun Laouguire

L

aura gostava de Tiago, que gostava de Nara, que gostava de Tati, que gostava de Diego, que gostava de Lucas, que gostava de Laura. A história era basicamente essa, uma explícita imitação do clássico poema de Drummond, e ninguém sabia disso. Nenhum deles sabia que fulano gostava de cicrano, que curtia beltrana, que era caidinha por cicrana. E ainda assim, continuavam amigos, que dividiam algumas coisas da vida entre si, como o mesmo flat, o mesmo trabalho ou a mesma escola. Em Dublin, era muito fácil compartilhar espaços pequenos para um pedacinho da vida, e ainda mais porque a vida “normal” eles haviam colocado em banho-maria por um tempo. A vida com mamãe, papai, mercado de trabalho, trânsito caótico, ou ainda filhos e casamento. No Brasil, eles e outros intercambistas eram administradores, jornalistas, advogados, engenheiros, publicitários, contadores, analistas de RH, de RP. Analistas de alguma coisa, que deixou de significar alguma coisa em algum momento da vida. Na Irlanda, eles eram porteiros, seguranças, faxineiros, zeladores, sanduicheiros. Para alguns, os sonhos viraram poeira com a recessão econômica no país de origem, a explosão do desemprego, a saturação do mercado de trabalho para recém-formados, o cenário político controverso, instável, hostil e desacreditado. O Brasil, que havia vivido anos de euforia, de otimismo, virou um país desgovernado, com cidadãos descompensados, que confundiam o significado do termo “discussão” com o verbete “briga”. Por alguns meses, eles viveriam como se nada disso fizesse mais sentido. Gostavam de chamar a si mesmos como “os da fora da reta; os que estavam na curva”. Laura era formada em filosofia, mas trabalhava no Brasil como professora de português. Tiago era barbeiro, mas como tinha pouca prática, cortava cabelos gratuitamente e nunca teve coragem de cobrar nada.

34


Nara, psicóloga, passava o dia analisando formulários de Recursos Humanos. Tati tocava os negócios da família, sendo que um deles havia fechado e outro prestes a encerrar. Diego era economista e trabalhava como contador. Lucas era jornalista: nunca havia conseguido emprego na área. Vendia carros usados. Esse grupinho nos seus vinte, trinta e poucos, todos solteiros, em que um gostava do outro sem saber que o outro gostava de um, conheceu-se em Dublin nos cursos de inglês, entrevistas para vagas residenciais, baladas e outras esquinas da vida. Rapidamente, o grupo entrou no whatsapp e criou um vínculo de amizade. Na verdade, um queria “nhanhar” com o outro, mas a linha tênue da amizade funcionava como um “dedo moral” que dizia tipo assim: “Não! Ele é seu amigo!”. Tomados pelo desejo latente de fazer sexo entre eles espírito de aventura, o grupo saiu numa caminhada para Dún Laouguire (esse palavrão é lido como “don líure”, eu acho), litoral próximo ao centro de Dublin, num dos raríssimos dias de sol da cidade e de folga simultânea entre eles. Na lista: 1 - Comidinhas: OK. 2 - Roupinhas: OK. 3 – Celulares-devidamente-carregados-para-as-extensas-e-intermináveis-sessõesde-fotos-que-comprovassem-para-os-familiares,-amigos,-inimigos-ou-porranenhuma-no-Brasil-o-quanto-eles-estavam-bem,-felizes-e-saudáveis: OK. O Instagram teria um colapso naquele raríssimo dia de sol. No meio do caminho, um céu de um azul puro fez a felicidade do grupo em questão de instantes. E no meio do caminho veio uma nuvem branquinha, mais parecia um chumaço de algodão. E depois outra. E mais outra. E mais outra. E esse grupinho de nuvens fofinhas ganhou volume e se escureceu. O sol, que já não era lá essas coisas, foi ficando cada vez mais preguiçoso. A qualquer momento, o astro-rei se deitaria em uma daquelas nuvens e ligaria o laptop para zapear o Netflix. Trabalhar que era bom, nem um pouco. O sol era artigo de luxo na Irlanda. “Vaaaamos voltar pra casa. É capaz! Olha só! Cabou-se o sol!” Laura soltou. “Mas esse trem ‘aintá’ quente, uai” Tiago respondeu. “Ôxe ôxe, cadê esse sol, hein? Vai é cair um toró daqui a pouco, visse?” Nara disse “Por mim, nóis ‘vorta’ pra casa é agora”, Diego falou. 35


“Mano… por mim, a gente procura alguma coisa pra fazer aqui. Tá quente”, Lucas sugeriu. “Mas tá QuenTE onDE? Tá com a cabeça no Brasil, é, Lucas?”, Tati comentou. “Bah, vamos para seu flat, Tiago”, Laura sugeriu. “Sim. ‘Sajeitudo’ lá e pronto”, ele respondeu. “Fechou! Arretado!” “A gente passa antes no Tesco compra mais umas cerrrveja lá, umas Tesco Beerrr.” “Compra ‘umas carne’ também” “ExatamenTE” O grupo pediu pra descer e saiu do busão duas paradas depois que o impasse se resolveu. Aos poucos, uma chuvinha fininha começava a cair. “Ô Tiago, mas eu sei preparar uma caipirinha que vai derrubar você na primeira!” “Êeee Laura, trem bão! Acho que Nara vai querer também” “Sei se vai sobrar pra ela, não!” “Mai mai mai meniiino! Vai sobrar sim e Tati vai ficar bebinha que eu sei que vai!” “Olha, mas não vem com tua conversa de me embebedar, guria! Diego é que vai provar essa marvada!” “A marvada pinga! Essa marvada vai fazer um estrago é no Lucas!” “Nem vem, mano, nem vem! Laura é que inventa essas fita”. Um ficou jogando a bola para o outro, num caleidoscópio de sotaques e expressões dos vários Brasis reunidos em poucos metros quadrados. A chuvinha foi ficando mais grossa e o jeito foi correr da parada e procurar um abrigo por ali. Quando o grupo correu, o ônibus amarelão do “Dublin Bus” passou direto. Parar que é bom, nada. O próximo viria em 45 minutos. O silêncio pairou entre esses Friends por alguns minutos até ser quebrado pelo som refrescante e festeiro de uma lata de cerveja sendo aberta. - Por mim, a festa é aqui merrmo! Uma onda de risadas ecoou longe na estradinha, que ficava a poucos minutos da praia de Dun Laouguire. Cada um abriu sua lata e assim o grupo saiu cantoria 36


afora, até alcançar o litoral chuvoso e frio do novo país que havia aberto as portas para eles. Laura continuou gostando de Tiago, que gostava de Nara, que gostava de Tati, que gostava de Diego, que gostava de Lucas, que gostava Laura. No auge da beberrança, ninguém ficou com ninguém, ninguém pegou ninguém, porque, se ali alguém gostava de alguém, ninguém era correspondido por ninguém, e eles preferiram ficar somente no nhém-nhém-nhém. A vida fora da curva era meio incerta. Ainda assim, apesar disso, daquilo e daquilo outro, a vida, para esses brasileiros, era uma grande festa.

37


O “Leprechaun” do Parque Stephen`s Green

P

atrick queria conversar com alguma coisa. Ao longo da sua vida, Patrick somente havia conhecido outra criatura igual a ele uma única vez. Ela era linda e ele se apaixonou instantaneamente, paixonite à primeira vista. Só que ela era assim como os outros. Era travada e adorava solidão. Assim que ela o percebeu, jogou o pó no ar e desapareceu em segundos. Ela era uma leprechaun como qualquer outro. Patrick, não. Patrick, aos pouquinhos e pouquinhos, estava começando a cansar de ser como qualquer um leprechaun. Patrick andarilhava pelos quatro cantos da Irlanda, dos lugares mais remotos, mais solitários, mais ermos, aos mais barulhentos. Foi quando conheceu Dublin e a escolheu como sua “casa”. Casa, para ele, era um lugar onde poderia ficar dois dias em um ano inteiro. Nos outros locais, ficava algumas horas, às vezes alguns segundos, e depois zapava, corria. Patrick era um mestre na arte de aparecer e desaparecer como ninguém. Pelo menos, para ele mesmo, afinal, ele não conhecia mais ninguém a não ser ele mesmo. Assim, ele mesmo era referência em tudo para ele mesmo. Em Dublin, nos únicos dois dias que ficaria ao longo dos 365 de um ano inteiro, ele se aquietava no St. Stephen’s Green Park. E tinha um cantinho que ele amava: bem ao lado do lago dos cisnes, um local inacessível por qualquer grandalhão, seja pato, cisne, pombo, gaivota, e, principalmente, aquelas coisas grandes com duas patas, dois braços e uma cabeça, que ele uma vez soube que se chamavam “gente”. Ele corria como um doido dessas criaturas. Elas causavam medo, com seus sorrisos e brincadeiras, principalmente quando abriam a boca, mostravam os dentes e emitiam um grasnado irritante e assustador e pareciam felizes. Algumas vezes essas criaturas colocavam a mão na boca para disfarçar o barulho ensurdecedor de que elas pareciam gostar tanto. Patrick, que conseguia prever quando elas emitiam esses sons apocalípticos, já andava com um saco imenso de pó para desaparecer no exato instante da bizarrice. No Stephen’s Green, Patrick queria um pouco de sossego. Olhar os 38


patos e irritar as gaivotas eram as coisas que ele amava. Jogava grãos de milho no olho das gaivotas e então desaparecia. Elas enlouqueciam. Quando o sol dava o ar da graça, as criaturas, as tais de “gente”, se amontoavam nos quatro cantos do parque e a paz acabava. Por isso, Patrick tentava fazer de tudo para aparecer no parque apenas em dias de chuva, frios, enevoados. Naquele dia, o leprechaun apareceu, de repente, no parque, para ficar seu tradicional tempo de quarenta e oito horas do ano em casa. O clima estava perfeito e ele se sentia orgulhoso de ter acertado em cheio no calendário: muita chuva, frio, nenhum sinal de gente por perto. Sentou-se e ali ficou por algumas horas, exatamente na mesma posição. E sentiu o que já havia sentindo há um bom tempo: precisava abrir a boca para conversar com algo. Podia ser qualquer coisa. Aliás, para ele, tudo era apenas uma coisa. Não existia em seu vocabulário um significado para aquilo que seria “alguém”. Então ele, ali, sentado na grama úmida, vendo a chuvinha fina cair sem parar, olhou para a água e fez um gesto com a mão, uma coisa meio doida e desengonçada, sem muito jeito (imagine você como quiser). Não teve resposta da chuva. Insistiu. Queria porque queria ter uma resposta da chuva. Ela apenas caía, nem “tchum” pra ele. Só caía e molhava. Patrick fez o mesmo com um rochedo imenso a sua frente. Para ele era imenso, porque Patrick era miúdo, pouco maior que o gramado. A pedra foi ainda pior que a chuva e permaneceu estática, na dela, sem fazer nada para responder ao seu chamado. Já irritado, Patrick, pegou uma pedra menor e jogou numa pedrona à sua frente. E fez de novo. E de novo. E de novo. Na quinta vez, nervos à flor da pele, a pedrinha ricocheteou e voou para longe. Um barulho ecoou logo em seguida. “Finalmente, alguma resposta”, ele pensou. Foi quando uma sombra imensa começou a encobrir o leprechaun. A sombra se agigantou e a chuva parou de cair. Ele olhou para cima, já preparado para fazer algum sinal e, quem sabe, começar uma conversa. Seu coração saiu pela garganta quando percebeu que, na verdade, era uma “gente”, daquelas com aparência menor que as outras. Esse tipo de gente não tinha riscos na cara, nem cabelos brancos, corria de um lado para outro, emitindo ruídos terríveis. E o pior: esse tipo de gente constantemente mostrava os dentes, fazia piruetas e soltava aqueles barulhos horrorosos, que imediatamente assustavam o pobre duende. Patrick ficou tão apavorado que não conseguia mover um músculo de seu corpo. Ficou paralisado, como nunca em sua vida, com os olhos estatelados para aquela 39


espécie olhando para ele. Eles ficaram se encarando por um longo tempo. De repente, a criatura piscou os olhos. Patrick, embora paralisado, piscou também. A criatura voltou a piscar os olhos. Patrick fez o mesmo. “Então é assim que eles fazem… interessante”, pensou, agora, pouquinho mais calmo. A criatura começou a abrir sua boca, como se se preparando para falar. Patrick entrou em desespero… “socooorro!!” O leprechaun pegou o saco com pó de sumiço e de dentro retirou o suficiente para desaparecer em milésimos de segundo. Quando colocou na palma da mão o feitiço, o pó estava completamente encharcado da chuva. Patrick jogou o feitiço no chão. Nada mudou. E o que ele mais temia, aconteceu… “Oi!” “NÃAAAAAAAOOO!!!” O leprechaun disparou para dentro de uma trilha de árvores altas. Sumiu da vista da criatura. Ele olhou para trás: a jovem criatura já estava longe. Patrick respirou aliviado e correu para um abrigo da chuva. Teria que esperar mais algumas horas para que o pó de sumiço secasse e voltasse a funcionar. Uma gaivota se aproximou. Patrick caminhou devagar e olhou para um dos olhos do bicho. E então, piscou. A gaivota estranhou, balançou a cabeça, deu um passo para trás. Patrick piscou de novo. E a gaivota piscou. Ele piscou outra vez. Mas a gaivota não piscou… Ela abriu o bico e soltou um esguicho em tom de ameaça. O primeiro impulso de Patrick foi correr. Ele então encheu os pulmões e: “OOOOOOI!!!!””” A gaivota bateu as asas e saiu voando. Patrick então olhou para a chuva e piscou. Olhou para a pedra e piscou. E começou a dizer Oi para tudo ao seu redor. Conseguia conversar com qualquer coisa. Na moral, ele era “O cara”.

40


Os sinais de Portobello 10%. Era apenas isso que Julia dispunha na bateria de seu celular para as próximas horas. E não haveria tempo suficiente para carregar o aparelho. Nem local. Ela até que tinha uma bateria extra, um power battery, vazia. Ela nunca se lembrava de carregar, e um power battery sem estar carregado valeria o mesmo que uma moeda de um centavo. A aula de inglês havia acabado e o “date” estava próximo. Não daria tempo de ir em casa carregar o celular um pouco. Teria que confiar que tinha bateria suficiente para uma hora a mais de espera. O crush chegaria em pouco mais de 45 minutos. O lugar era perfeito para mais uma tentativa romântica de aprendizado linguístico: Portobello. Ela uniria a possibilidade de começar, do zero, mais uma história de amor e ainda treinar seu inglês, meio capenga ainda. Ela estava no nível pré-intermediário, dentro de uma sala de aula abarrotada de brasileiros que esperavam ansiosamente o professor virar as costas para, enfim, poder falar em português. A ansiedade era grande. Estava em Dublin há dois meses e não havia marcado nada com ninguém pelo app ainda. Passeou, farrou, quase gastou metade dos três mil euros de que dispunha em conta. Quando um dia olhou a conta do banco no celular, quase teve um treco, e teve que segurar a onda para ainda ter dinheiro para pagar o aluguel do flat. Dividia o doce lar com mais 11 brasileiros. Foi fazer cleaner, pra lá e pra cá com esfregão, “hoovando”, “mopando”, como diziam os brasileiros, que aportuguesavam tudo. Sentia-se orgulhosa de ter o vocabulário estrangeiro ampliado apenas com o trabalho de faxineira. Fez muitas amizades no serviço. 98% delas, brasileiras. Estava craque, se não no inglês, pelo menos nos sotaques variados do país que se misturavam naquelas longas horas de faxina e curtíssimos minutos de intervalo. “Baixa o Tinder, Julia! Marca com Irish! Assim tu falas inglês e ainda fazes sexo!”

41


Esse foi o conselho que ela ouviu uma vez e assim seguiu à risca, depois de alguma resistência moral. Essa resistência foi por água abaixo quando ela, na sexta-feira, dia de teste na escola de inglês, recebeu a notícia da professora de que ela teria de permanecer no mesmo nível por mais um bom tempo. Foi um choque. Mal sabendo o verbo To Be, baixou o Tinder na mesma hora e curtiu metade de Dublin em questão de minutos. Conversou com deus e o mundo no aplicativo, até que, finalmente, conseguiu marcar um date com um irlandês. Ele era a síntese do que encantava muitas brasileiras: loiro, olhos azuis, inglês nativo. “Bingo! É meu! E fazendo as contas de sua data e hora de nascimento, ainda é meu paraíso astral!” Ela havia consultado sua melhor amiga, uma quase-astróloga, que vivia fuçando sites de signos e dizia-se esclarecida no conhecimento astrológico. A amiga fez o mapa astral de Julia e contou, com toda riqueza e precisão de detalhes, que “havia uma grande chance de os dois darem certo, mas ela deveria estar atenta aos sinais”. “Miiigaaa… você é demais! Como você adivinhou?” “Fique atenta aos sinais, no dia do date. Você é de aquários. Tem que prestar atenção aos símbolos pra evitar furadas”. “Certo!” No grande dia, Ju chegou para a professora, da Índia, e perguntou como ela falava o nome dele. A indiana, meio com sotaque esquisito, soltou um esguicho que Julia não entendeu direito, mas confiou firme de que seria o jeito correto de falar o nome de seu futuro affair. Julia então ficou repetindo mentalmente aquele nome. Sabia que estava treinando o inglês e, ao mesmo tempo, memorizando o nome bizarro daquele que poderia ser o homem da sua vida e, melhor ainda, o dono do passaporte europeu. Sua cabeça voava longe. Já via a si mesma falando inglês fluentemente, com dois filhos, cada um em uma das pernas, um marido três vezes mais alto que ela, cabelo loiro caindo nos olhos, pinto rosado, e um passaporte europeu com o qual poderia trabalhar 60 horas por semana, sem precisar ir para escola. Daria banana para a imigração! Ao voltar de seu mundo cor-de-rosa-choque, Julia ligou a tela do celular de novo e viu: 6%. Ainda faltavam 20 minutos para que o ansiosíssimo encontro acontecesse. Tinha que se controlar: estava no local certo, Portobello, uma região de sonhos, cercada de patos, cisnes que pareciam sair de um quadro de algum artista famoso, pontes encantadas. 42


Jovens bebiam e conversavam civilizadamente, à beira do canal. Alguns tocavam violão, outros apenas comiam, num silêncio que poucas vezes Julia havia percebido na sua vida. “Como eles podem conversar e não fazer barulho?”. Pois é, a conversa daqueles que, ao menos, pareciam europeus, era quieta, não emitiam ruídos de sua boca, não mexiam as sobrancelhas, não mexiam os braços e permaneciam na mesma posição por longas horas. Eram muito civilizados! “Meu deus, que saudade do pagode na praia! Socorro! ‘Calma Julia, você está a fim de um intercâmbio cultural. Veja! Esse é o lugar mais lindo e charmoso que você já viu na vida! Intercâmbio cultural, ok? Brasil, Brasil. Irlanda, Irlanda. Comporte-se!’” Ela pensava, tentando acalmar os nervos para não olhar o celular mais uma vez para ver quantos minutos faltavam. “Como eu fui irresponsável, meu deus! O date que vai mudar a minha vida prestes a chegar e eu com 5% de bateria! Eu não estou pronta para viver a maior história de amor de toda a minha existência! Socorro!” E uma fatídica notificação apareceu na tela do celular. Era ele. “Sorry, I’ll b l8 a fw min. St8 in Pbello ok?”* “Que fofinho!!!” Bem ao lado da mensagem, o aviso da bateria: 3%. Seu coração apertou ainda mais e uma interrogação sobrevoou sua cabeça quando o display escureceu. Sobrancelha tensa, Julia ligou a tela novamente. “Ué, o que danado é isso? Um código secreto? Símbolos… A gente mal começou e ele já tá querendo jogar comigo?” O que eram aquelas letras misturadas com números que não faziam sentido nenhum? Julia olhou para um lado, olhou para o outro. A voz da amiga quase formada em astrologia soou em sua cabeça como o Mestre dos Magos enviando um áudio pelo WhatsApp direto da Caverna do Dragão. “Fique atenta aos sinais…”. Começou a chover. Julia correu para a parada de ônibus. No letreiro eletrônico de um dos coletivos, viu o número da linha que a deixaria na frente de casa. “Sinais!!!” Tirou do bolso o Student Leap Card, o cartão de estudante da Irlanda, e se enfiou no ônibus. Subiu para as cadeiras de cima e se sentou. Foi logo arrancando o celular do bolso. Mexeu nele: nada, tela escura, aqui jaz a bateria. “Era o sinal”.

43


Na outra parada, um grupo de quatro brasileiros subiu pela escadaria e se sentou nas últimas cadeiras do ônibus. Dois deles começaram a batucar, de levinho. Os outros dois cantavam, bem baixinho. Julia, lá na frente, escutava a batucada. Quietinha, na dela, batia os dedinhos em uma das pernas enquanto balançava a cabeça de um canto para o outro. Depois, começou a assoviar.

44


O tamborzinho da cantora alérgica da Mary Street “Bem que ‘binha bãe bandou’ eu trazer ‘bais’ antialérgico. Eu ‘debia’ ter ‘oubido’ ela, ‘bas’ eu fui ‘teibóda’”.

V

ivi já não sabia mais o que fazer. O nariz havia entupido de vez no grande dia de sua primeira apresentação. Tinha 24 anos. O intercâmbio havia sido pago pelos pais, que finalmente haviam desistido de fazê-la seguir em frente na carreira de advogada. Prestou o exame da Ordem dos Advogados e ficou lá no fundão da lista. Chegou nem perto de ser aprovada, ainda na primeira fase. Foi uma estudante medíocre do primeiro ao décimo período, com sofridos 6,5 e 7 em suas médias em praticamente todas as disciplinas. Cansou-se de ir para as finais a cada semestre. Conseguiu finalizar o TCC depois que pagou para alguém terminar. O trabalho precisou ser refeito, do início ao fim. Diploma na mão, Vivi foi atrás de emprego na área, ainda que sem estar filiada ao órgão oficial de sua classe. Conseguiu um estágio numa firma para fazer clipagem do Diário Oficial. Não era nem emprego, apenas um estágio para uma recém-formada desesperada por algum trabalho. Vivi passava horas apenas lendo o Diário Oficial. Lia os enunciados, os comunicados. Foi demitida após quatro meses de trabalho, por ficar ouvindo Spotify durante o serviço. Pesquisava os assuntos errados, que não tinham nada a ver com o serviço. Pelo menos conversava bem sobre música. Seu chefe gostava de ouvir suas conversas sobre MPB e outros estilos musicais internacionais. E foi numa dessas conversas que ele abriu o YouTube e mostrou um amigo que estava tocando e cantando nas ruas da capital irlandesa. Ele fazia um tal de “busking”, que era se apresentar e ainda ganhar uns trocados por isso. Não era bem um show, mas quase isso: o artista ficava em um local cantando e as pessoas jogando moedas. Vivi ficou gamada à ideia de cantar nas ruas da Europa. “Que chique. Imagina isso na minha biografia!”. O então chefe de Vivi disse que vários artistas de 45


prestígio haviam começado dessa forma, como Damien Rice, de “The Blower`s Daughter”. “Vou seguir os passos de outros artistas famosos! EU AMO CANTAR! E odeio advogar!”. Advogar foi uma coisa que ela nunca havia feito na vida. E já odiava. E já sabia que havia escolhido a profissão errada, depois de longos seis anos de faculdade. Foram seis anos porque ela havia perdido um, com algumas reprovações. O problema é que ela não tinha dinheiro para isso. Não tinha dinheiro pra quase nada, na verdade. Gostava de cantar, mas não sabia tocar violão. “o principal eu tenho, minha voz!”. Assim, sem violão mesmo, Vivi cantarolava pelos quatro cantos da casa. Ela já fazia isso, mas depois que descobriu que ‘tinha o dom de cantar’, começou a praticar o tempo todo, até ficar rouca. Quando ficava rouca, cantava mesmo assim, até perder a voz. “no pain, no gain. Se tá doendo é porque tá bom, estou no caminho certo, o coach do YouTube disse”. Ela dizia aos pais que estava em sua “Prática Musical Diária para Profissionalização”, que durava o dia inteiro, acompanhada de inúmeras maçãs vermelhas e trocentos litros de água. Nos dias de frio, usava antialérgicos para controlar os espirros de sua incessante rinite alérgica crônica. Como ficava lerda, cantava bossa-nova. Um dia sua mãe chegou com um panfleto da rua. Era sobre intercâmbio cultural. “Que massa! Onde, nos Estados Unidos? Na Austrália? No Canadá? Eu AMO Nova Iorque! Mesmo sem nunca ter ido lá! Minha intuição sempre teve uma conexão muito forte com os Estados Unidos”, respondeu à mãe, cujo sorriso amarelava a cada novo país que a filha citava. “Não, meu amor, é na Irlanda! Você conhece? A terra da Enya”. “Ah… sei… - pausa para uma leve murchada - aquela cantora que você escuta enquanto tá na sala do dentista?” “Essa mesma.”. “Hum, sei… O U2 veio de lá”. Não precisou de muita coisa para convencer Vivi e ela embarcou para a Irlanda dois meses depois, para alívio dos ouvidos dos pais. Em Dublin, o primeiro local que conseguiu ficar foi no Mountjoy Square, uma praça que, com o grande fluxo migratório para o país, tornou-se uma espécie de vila de brasileiros. Depois, em menos de oito meses, mudou-se para Smithfield, Summerville, Cabra, Dorset Street… até, finalmente, ficar de vez na Jervis Street. Nesse vaivém, pra lá e pra cá, nunca conseguiu tempo suficiente para cantar. Depois de correr

46


atrás da burocracia necessária para se apresentar nas ruas e pagar as devidas taxas, havia chegado o grande dia. Seu espaço seria em frente ao Ilac, o shopping center, próximo à rua da feira, local lotado de gaivotas berrantes e loucas pelos lanches de transeuntes. O problema é que, no grande dia da apresentação, a chamada “hay fever”, a alergia gerada pela forte presença de pólens no ar, havia atacado em cheio o nariz da pobre Vivi. Atacou e atacou feio: deixou tudo entupido, não havia molécula de ar que entrasse naquelas fossas nasais completamente congestionadas. “Não tenho conditões de cantar atim”. Ela então foi ao armário da cozinha, em busca de algum remédio que aliviasse sua condição, e viu uma caixa de comprimidos anestésicos e antitérmicos. Já estavam com o prazo de validade vencido havia poucos meses. “Já ‘cobi’ tanta ‘coida’ fora da validade. Acho que não vai ‘fader bal’”. Tomou dois comprimidos, para reforçar. Foi no banheiro, deu aquela assoada forte no nariz, capaz de botar o cérebro pra fora. Seus olhos, cheios de lágrimas da crise alérgica, ficaram cheios também de esperança quando ela conseguiu respirar profundamente pelo nariz. Sorriu. Pegou o tamborzinho, já que não sabia tocar violão. Pegou também o microfone e saiu para a rua. Chegou ao local, ligou o aparelho e deu uma olhada na playlist que havia preparado. Muito pop internacional e algumas brasileiras. Deu aquela limpada na garganta, “ahã ahã ahã”, e começou.

“And so it is just like you said it would be…” O nariz continuava entupido. Sua voz parecia com a de Aguinaldo Timóteo. Vivi continuou performando, misturando as letras românticas e melancólicas daquele Pop com a batida brasileira e quente de seu tamborzinho. Ninguém mais naquela rua usava um tamborzinho para cantar músicas românticas internacionais e era o único instrumento que a cantora do nariz entupido sabia tocar. Dois turistas pararam e levantaram seus Ipods modernos. Vivi não acreditava que sua voz anasalada pela rinite alérgica já lhe trazia dois fãs e era apenas a sua primeira apresentação. Vivi abriu um sorrisão brilhante e molhado de coriza naquele instante. “Eu gostei dela”. O turista comentou para o outro, ao pé do ouvido. “Sim… ela é exótica!”. “Não consigo identificar esse sotaque.” 47


“Deve ser uma mistura de América Latina com a Índia”. “Uau”.

48


O Senhor de Dublin

C

omeçava com verde, depois azul, alguns tons de roxo, puxando para vermelho. Então ficava amarelão, forte, vivo. Branqueava e ficava rosado, até misturar tudo e que cada um enxergasse a cor que quisesse ver. Esse era o céu de Dublin. Um céu, nos meses de outono, que se aquarelava numa explosão de cores muitas vezes sem coerência. E era nesse céu que dois olhinhos voavam de um lado para o outro. Olhos ágeis, astutos, verdadeiras armas em busca de sua presa. Eram os olhos de James, com suas asas brancas e vigorosas que atravessavam os quatro cantos da cidade com a velocidade que colocava as gaivotas em uma posição muito superior à dos pombos. A O`Connell Bridge, ponte no centro de Dublin, era seu território. James mantinha aquele pedaço da Irlanda debaixo de suas asas, 24 horas por dia, incansavelmente. A gaivota mantinha controle sob o centro do município e a entrada ali somente seria possível com uma condição: a autorização do Primeiro Comando de Gaivotas da Capital. Em caso contrário, era guerra na certa. James detinha o domínio daquelas pontes. Pombos e outras gaivotas deviam obediência a ele e precisavam seguir as regras do Comando. Pombos, aliás, eram uma espécie de subalternos. Suas asas fracas, seu corpo pesado, seu voo limitado e caminhar lento eram ridicularizados pelas gaivotas, que apenas deixavam os restos dos alimentos para eles. Quem desobedecesse às ordens de James e seus companheiros estava comprando briga com um exército. A tropa de James era a mais bem treinada e qualificada de toda Irlanda, capaz de destroçar qualquer saco de lixo que estivesse à sua frente. Seus futuros integrantes eram educados com as mais avançadas técnicas que o país conhecia, com foco na caça dos lanches das criaturas que andavam distraídas por entre as ruas da cidade. A caça a esses alimentos consistia em três fases: observação da vítima, distração (por meio de guinchos estridentes) e, por fim, a aquisição. Às vezes, a caça trazia objetos estranhos, um pouco mais pesados, com formato quadrado.

49


Os animais humanos carregavam esses troços algumas vezes ao lado das orelhas, enquanto emitiam seus sons inaudíveis, mas geralmente traziam esses objetos nas mãos e deslizavam suas patas neles. Muitas vezes, os animais esbarravam uns nos outros porque não prestavam atenção no caminho ao redor enquanto mexiam nos objetos. O mais insuportável era quando os bichos direcionavam essas pedras coloridas para James e seus companheiros enquanto caminhavam pelos seus territórios. Por isso, James emitiu uma ordem para que seus soldados tivessem cuidado ao ver as criaturas segurando essas pedras. O exército de James permanecia mantendo a ordem e os bons costumes pelas ruas e pontes de Dublin. Acordavam cedo: nos dias de primavera e verão, o expediente começava às quatro da manhã, com uma megaoperação que cobriria as principais ruas, revirando os sacos de lixo deixados generosamente pelos bichos na frente de seus gigantescos ninhos de madeira e tijolos. James emitia a ordem de controle com a experiência adquirida com seus antepassados: uma linhagem repleta de talentos seculares, nascidos no tempo em que Dublin era uma cidade chamada pelo nome de “Água Escura”. James orgulhava-se de seu sangue real. Naquele dia, a operação percorria as ruas tranquilamente, até que um sinal subiu nas imediações da Ha’penny Bridge. James e o grupo, que cobria a Capel Street, disparou do local, cruzando a Jervis Street, até alcançar a região do Temple Bar, próxima ao quartel central do Conselho. E então ele viu, ao longe, com seu inconfundível bico preto, bem no coração da O`Connell Bridge: Conor Kavanagh. Conor era o único ser vivo naquele planeta com a audácia suficiente para invadir o território de James e instaurar uma guerra civil. Desde sempre, James treinou seus soldados para lidar com possíveis ameaças e invasões de inimigos, mas os cuidados eram redobrados quando o assunto era Conor, seu ex-braço-direito, que se rebelou contra ele numa disputa de poder para além das pontes de Dublin. O clima de paz durou anos, com o exílio de Conor na região de Bray. Até aquele dia. Um dia que havia começado como qualquer outro. A guerra estava instalada nas pontes seculares e históricas de Dublin. Bicos e penas voariam para todos os cantos e não sobraria pedra sobre pedra, nem ponte sobre ponte. As águas do rio Liffey seriam as testemunhas de um conflito sem data para terminar. A mente de James fervilhava. Seu primeiro impulso foi de convocar a tropa inteira e partir para o enfrentamento em plena ponte da O`Connell. James pensou duas vezes. Preferiu manter a retaguarda e observar os movimentos do 50


seu pior inimigo. Conor invadia o território central de James e avançava sobre a O`Connell Street com o poder de seu exército de gaivotas. “Senhor, a O`Connell está sendo invadida!” “Precisamos agir!” “Senhor…” “CALEM-SE! Chegou o momento… chegou o momento que parecia que nunca iria chegar, mas chegou. Sem mais rodeios. Com coragem, determinação e sangue frio. Engulam seu orgulho e pensem no futuro deste país, de nossos territórios e das latas de lixo e lanches dos animais que alimentam nossas famílias. É chegada a hora de ativar a Operação… CONOR.” Silêncio no exército. A Operação Conor consistia naquilo que as gaivotas consideravam o maior golpe no orgulho e vaidade de sua raça. “A Operação CONOR é um ultraje ao nosso exército e à nossa espécie! Há de haver alguma alternativa, senhor!” “Não há alternativa! Muitos de vocês não sabem, mas Conor foi o principal soldado deste grupo. Tudo o que vocês aprenderam, ele também aprendeu. Ele sabe cada passo, cada estratégia, cada esguicho que iremos dar. Ele sabe de cada asa batendo aqui, nesta cidade. Ele sabe de tudo… Exceto… a operação com seu nome.” “Nunca fizemos isso!” “Vão ter que fazer agora!” Ele respirou fundo e bradou: “Em nome dos nossos filhos, do futuro de nossa nação, nosso sustento… Vamos ser fortes e, não orgulhosos. Vamos ser corajosos, e não vaidosos! Esqueçam sua honra e pensem na sobrevivência de nossos herdeiros e de nosso país. É hora de erguer nossa voz. É hora de ativar… OPERAÇÃO CONOR!” Silêncio. “Eu… falei… ATIVAR: OPERAÇÃO CONOR!!!” Uma onda de esguichos ressoou. E dentro de poucos minutos, o exército de James sobrevoava o céu de Dublin, acompanhados, no chão, pelo ritmo dos passos de um pesado batalhão de pombos. Uma guerra de penas e asas tomaria conta da O`Connell Street, enquanto turistas se avolumavam para ver o céu acinzentado pela enxurrada de penas de aves. 51


“Você não tem poder para me enfrentar, James! Essa é a minha ponte. A ponte de onde você me expulsou. Agora ela volta a ser minha. What’s the story, man?” “Existe uma história que você não sabe. Você sabe qual é essa história, Conor? Eu vou contar agora…” E os olhos de Conor se arregalaram quando ele viu no horizonte, por cima das pontes Ha`penny, Samuel Becket, e muitas outras, uma volumosa bolha sendo carregada pelo exército de asas de James. Uma bolha gigante. Uma bolha de pombos. “FOOOOOGOOOO!!!” O exército de James alcançou a ponte onde Conor estava e rompeu a bolha de aves em cima do bando inimigo. Uma chuva de pombos pesados e histéricos começou a cair por cima dos invasores. As gaivotas se debatiam e dispararam da O`Connell Bridge, ao mesmo tempo em que recebiam os golpes do exército de James. À medida que Conor e seu bando sumiam das pontes de Dublin, o céu da capital irlandesa voltava a clarear, com as cores mistas e indecifráveis de seu outono. O domínio do centro estava de volta ao exército de James. Sob a ponte da rua O`Connell, o Senhor de Dublin retornava a seu posto, garantindo a segurança da capital irlandesa até o romper de uma nova guerra. E as asas de James voltaram a cruzar os céus e pontes por onde as águas do Liffey corriam.

52


Fenômeno raro desperta insegurança em Dublin Com informações da Agência de Notícias REUTERS - Os ânimos andam exaltados na capital irlandesa. Um estranho fenômeno foi avistado na manhã da última quinta-feira, entre 10h e 11h. O fenômeno se caracteriza por uma luminosidade amarelada que aparece entre nuvens durante alguns dias do ano e é capaz de provocar um aquecimento significativo na pele. Especialistas apontam que essa anormalidade, bastante comum em países de clima tropical, atende pelo nome de 'Sol'. Eles alegam que a localização e o clima da Irlanda são alguns dos fatores que impedem a permanência desse fenômeno por mais tempo ao longo do ano. Mrs Sinéad O'Connor, 75, estava em casa fritando ovos com bacon, salsichas, feijões adocicados, e amassando batatas para o café da manhã de seus oito filhos na faixa dos 45 anos quando viu o bizarro objeto entre as nuvens. Ela relata que correu para se proteger de imediato. ''Minha primeira reação foi de pânico. Acordei todos em casa, desesperada, não sabia o que fazer. Fechei as janelas e acendi uma vela para St Patrick's. Já pensei até em mudar para outro país. É o fim dos tempos!'', conta a pobre senhora. Especialistas em segurança pública aconselham a evitar sair de casa e esperar a chuva e o céu cinzento voltarem, o que deve acontecer no máximo em dois dias. “Entendemos o desespero da população, mas todos precisam manter a calma. Estamos nos preparando para três dias de sol, o que é algo atípico para nosso país. Os hospitais já estão com equipes reforçadas e o atendimento emergencial foi ampliado para atender a alta demanda”, conta Sean O'Callaghan, especialista em questões extraordinárias do Instituto Irlandês de Meteorologia. “Sua incidência acontece a cada 364 dias do ano. Ou seja, 99,9% dos dias no país são chuvosos e frios, mas pode acontecer a raridade de este fenômeno, o chamado Sol, aparecer durante 1 ou 2 dias. O problema é que, neste ano, sua duração foi ampliada para 3 dias. Amanhã, o Comitê Nacional de Defesa Pública estará reunido em reunião emergencial para as providências cabíveis a fim de se evitar uma catástrofe”, anuncia.

53


ECONOMIA Em algumas farmácias já é possível adquirir cremes protetores para evitar riscos graves à saúde em caso de exposição por mais de 1 hora a essa luminosidade. Com a alta demanda, o preço dos produtos aumentou significativamente: preços variam a partir de 50 euros. Estudantes com o Leap Card encontram produtos com desconto especial: 48 euros. A recomendação dos dermatologistas é o uso de filtros solares com fator de proteção 75, além de moletons que protejam áreas expostas.

54


55


56


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.