A capela enc
ncantada de Braga É a Árvore da Vida. A madeira contorce-se, mostra as suas feridas, “como uma pessoa”. Esta capela pode ser um jardim, um bosque ou uma avalanche de metáforas. Desde logo, uma metáfora de luz. E um jogo de sombras, alusivo à criação do mundo. Vinte toneladas de madeira, sem pregos. Texto António Marujo Fotografia Daniel Rocha
arquitectura
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erá uma cabana? Um barco? Um favo de mel? Talvez um abrigo? Uma caixa de luz? Um bosque? Há uma capela encantada no meio do Seminário Conciliar de Braga. São 20 toneladas de madeira que escrevem todo um tratado de teologia e beleza. E que permitem uma experiência estética de espanto. Esta capela também se transforma numa grande estante, onde se podem abrigar livros de canto, de oração ou de liturgia, colocando-os no intervalo das lamelas. Ela é, ainda, um jogo de luz permanente, tricotando rendas, traços, sombras, redes, puzzles, desenhos inesperados… E, sim, pode visitar-se. “Quando começámos a pensar no trabalho, sabíamos o que não queríamos: que o espaço fosse reconhecido como capela apenas por ter um altar e um ambão”, diz à Pública o arquitecto António Jorge Fontes, que, com o irmão André Fontes, é autor do projecto. Claro que nada há mais fácil do que projectar uma igreja: uma nave central, um altar para a mesa da celebração, um ambão para a leitura dos textos, algumas peças mais que fazem o conjunto. Diga-se de outro modo: nada há mais difícil do que projectar uma igreja, que conceber um espaço que remeta para o sagrado. E que o faça a partir de elementos singelos como uma mesa de altar, uma estante de leitura e pouco mais. No caso da capela Árvore da Vida — iremos depois às razões do nome — do Seminário de Braga, o que constrói a ideia de capela é mesmo o espaço, diz António Jorge Fontes. Não há um adro, mas ele existe. Não há portas, mas estão lá duas. Não há uma cúpula, mas insinua-se uma. Entra-se assim: podemos vir de baixo, da igreja de S. Paulo (que foi renovada com uma colecção de telas de Ilda David’ sobre a vida do apóstolo) e, um piso acima, da capela São Pedro e São Paulo, o grande espaço litúrgico do seminário, que também já foi objecto de reforma espacial. Subimos em direcção ao primeiro piso. Duas janelas de vidro, grandes, a meio da escada, permitem ver o jardim que mais tarde será também trabalhado. E possibilita a entrada de luz que irá brincar com claridades e sombras no interior da capela. Uma porta pesada, sem verniz, para deixar a madeira respirar, dá acesso a um corredor do seminário. Ou será um átrio? É uma caixa que envolve outra, a da capela propriamente dita. É um lugar de passagem, para o qual convergem mais duas portas que permitem idas e vindas para os quartos dos seminaristas. Aqui se faz um adro, com chão e paredes em microcimento, com relevos insinuados. Como lava informe, um caos. Baptizada “Árvore da Vida”, a capela começa por falar, nesta antecâmara, dos seis dias da criação do mundo, numa leitura do texto bíblico do Génesis. “Quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia.” Envolvida por este adro está a capela de
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madeira. É o lugar do cosmos ou da luz, como refere o padre Joaquim Félix de Carvalho, 39 anos. “Deus disse: faça-se a luz”, recorda o vice-reitor do seminário (desde 2007, o mesmo ano em que se doutorou em Roma, na área de Liturgia). Há largos anos ligado à formação de jovens padres, coordenador no pólo de Braga da Faculdade de Teologia, Joaquim Félix é o arquitecto teológico desta capela. “Nas aulas, procurava sensibilizar os alunos para cuidar os espaços litúrgicos. Falava-lhes de capelas e igrejas de grandes arquitectos contemporâneos e isso aumentava o nosso desconforto em relação às capelas do seminário, construídas na década de 1990.” Passou-se do desconforto a um desafio: primeiro, reorganizar espacialmente a capela de São Pedro e São Paulo, já existente. Esse pequeno passo preparou o seguinte: a construção/ instalação da capela Árvore da Vida, em Dezembro último (e que só terminou segundafeira passada, quando foi instalado o órgão de tubos). “O projecto foi crescendo no útero da nossa comunidade”, diz a propósito Rui Sousa, de Barcelos, a frequentar o 5.º ano de Teologia. E envolveu, além da comunidade de padres e 30 seminaristas que ali vive, os dois arquitectos, os escultores Asbjörn Andresen e Manuel Rosa, a pintora Ilda David’, o organeiro Pedro Guimarães, o fotógrafo italiano Eduardo di Micceli, o engenheiro civil Joaquim Carvalho, os próprios carpinteiros que trabalharam a madeira e os técnicos de iluminação. O número de estudantes, das dioceses de Braga e Viana, tem vindo a crescer, e hoje inclui pessoas que vêm já de outras áreas de estudo — como arquitectura, farmácia, biologia, medicina, letras. Andresen fala de um trabalho colectivo. Joaquim Félix caracteriza a obra como sendo “maior que qualquer individualidade”. E António Jorge Fontes diz: “Toda a gente estava ao serviço, queríamos reduzir o espaço à sua essência. Todos nos despimos também de aditivos.”
Não há fora, não há dentro Pode-se estar dentro da capela e ver as pessoas a passar. Ou ver de fora, por entre as frinchas da madeira, quem reze no seu interior. Pode subir-se ao corredor suspenso e ver a caixa, por baixo, como uma cabana, um abrigo, um barco virado do avesso. Pode olhar-se também para cima e ver a cúpula rasgada no tecto, por onde se faz mais um jogo de luz — uma solução ditada já em pleno processo construtivo. Não há um limite rigoroso do que é fora ou dentro. A circulação e o diálogo que se estabelecem entre sítios, materiais, pessoas, são permanentes. “Olhámos para o espaço sagrado como espaço da vida. Toda a gente aqui passa, por este lugar”, indica o arquitecto. A ligação criada entre a capela propriamente dita e o espaço que a envolve criou dois novos corredores de circulação. E novas relações: vários quartos,
por exemplo, têm saída e vista directa para a capela. “Não podíamos estar dentro de casa a pensar que estávamos longe da cidade”, diz Joaquim Félix. Um espaço assim “promove a relação natural com Deus, acompanha a vida de quem cá vive, nessa relação”, comenta ainda António Jorge Fontes. “A dificuldade maior foi fazer a separação física” de algo que nasceu dentro de um átrio de passagem. Ainda por cima, sem porta. “Não é necessária uma porta para fazer a separação entre espaços.” A solução foi uma abertura na estrutura de madeira entrelaçada. Uma porta que não precisa de ser aberta, convite permanente a que se entre — mesmo se porta estreita, à imagem da simbologia bíblica, “porta aberta pelo crucificado na manhã da Páscoa”, diz Joaquim Félix. “Diante de ti será aberta uma porta que jamais alguém fechará”, lê-se no livro do Apocalipse, o último texto da Bíblia. Sim: não há pregos nem ferragens nem quaisquer outros artifícios para fazer a estrutura ou ligar as traves — que podem ir dos cinco centímetros aos dois metros de espessura. Apenas encaixes. Já na igreja do Convento de São Domingos, em Lisboa, outro exemplo de arquitectura maior, também não há parafusos nem ferragens, só encaixes e cola. A madeira nunca é lisa. Contorce-se aqui, enovela-se ali, distende-se mais à frente, mostra as suas feridas, além. “Como qualquer pessoa”, comenta Joaquim Félix. Sempre a opção de evitar intervir sobre os materiais. Uma nudez que lhes dá plenitude. “A arquitectura tem de ser capaz de fazer transpirar Deus sem recurso a sobreposições nem aditivos”, diz António Jorge Fontes. Joaquim Félix diz que se deixou falar a transparência das matérias: a madeira, o metal, o cimento, a luz. “Não houve intervenção excessiva” sobre os materiais. A madeira levou apenas um banho de essência de terebintina e óleo de linhaça, para o tratamento. “É o espaço, o objectivo da arte, não os objectos”, diz o escultor norueguês Asbjörn Andresen. Professor em várias escolas da Noruega e da Suécia, ex-reitor da Bergen School of Architecture, a sua contribuição foi decisiva em questões como o tratamento das madeiras e a instalação da capela, que veio da carpintaria em peças. Estávamos ainda na antecâmara da capela.
As frestas do travejamento guardam uma “biblioteca espiritual”; a clareira permite a entrada da luz, verdadeira metáfora desta capela
Baptizada “Árvore da Vida”, a capela começa por falar dos seis dias da criação do mundo, numa leitura do texto bíblico do Génesis
O espaço do caos e da lava. Um banco corre ao longo da parede, convidando a descansar o espírito antes de entrar no lugar mais íntimo. A luz rasga, já aqui, intensa, o negro do microcimento. Um políptico da pintora Ilda David’ fala dos seis dias da criação, de novo segundo a inspiração bíblica: a luz, os animais, a separação das águas. Embutido na parede, tal como todos os elementos do espaço, o painel é antecipatório da própria capela. Na coluna do centro, uma gravação em grafito, como os usados nas catacumbas de Roma: “No princípio, criou Deus os céus e a terra.” E a mão do escultor Andresen, como sinal da humanidade que constrói o sagrado. No pórtico, ainda, a referência aos relatos bíblicos de Génesis: “Depois de ter expulsado o homem, [Deus] colocou, a oriente do jardim do Éden, os querubins com a espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da Vida.” Duas miniaturas de Ilda David’, de novo embutidas na madeira, mostram os querubins de espada flamejante colocados à porta do jardim. Um jardim, então. Ou um bosque encantado. “O sétimo dia, o do repouso, é a capela propriamente dita”, aponta o padre Joaquim Félix. “Ela surge como um relato sintético dos sete dias da criação, como um bosque intrincado, o túmulo aberto da manhã de Páscoa. E como lugar do
descanso para o louvor de Deus.” É uma síntese da história da salvação na perspectiva cristã, centrada na morte e ressurreição de Jesus, diz ainda o vice-reitor do seminário. Quando se entra, fazemo-lo em diagonal. É esse o eixo da capela, marcado pela entrada principal e pela pequena porta no canto oposto — uma abertura, entenda-se, perto do altar e que dá acesso à parte de trás. “É uma forma de dizer que o caminho interior é o mais longo. A aproximação ao altar faz-se não em linha recta, mas em passo de dança, como quem busca o mistério”, diz Joaquim Félix. “É como nas catedrais medievais, quando se implantavam pavimentos em labirinto ou como nas capelas e basílicas romanas, com trabalhos de incrustação ao estilo cosmatesco.” O tríptico da Árvore da Vida — que acabou por dar o nome à capela — domina a perspectiva, no centro e por trás do altar. Também da autoria de Ilda David’, esteve, juntamente com outras pinturas, nas salas nobres dos teatros nacionais S. João (Porto) e D. Maria II (Lisboa), por ocasião da representação do Breve Sumário da História de Deus, de Gil Vicente. Símbolo bíblico, a árvore da vida abre-se aqui numa árvore da cruz de Cristo, representando os motivos da Páscoa — paixão, sortes sobre a túnica e crucificação de Jesus.
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altar abre, deixando ouvir o rumor da madeira. O “rumor das matérias”, como dizia Vittorio Gregotti, um dos arquitectos do Centro Cultural de Belém, citado por Joaquim Félix.
A biblioteca espiritual
A luz do poente, que ainda tardará, já desenha rectângulos na parede. Há outro elemento que se destaca: a pedra do altar. Veio da pedreira de Amares. Quer a do altar, quer a do degrau da entrada ou da pequena taça de água benta, são pedras rejeitadas, não seriam aproveitadas. “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular”, diz um episódio dos evangelhos. No caso da pedra do altar, a esquina partida dá-lhe um dramatismo intenso. A sua verticalidade quer remeter para a doação de Cristo na sua morte e ressurreição. Contrastando com a horizontalidade da mesa em carvalho nacional, a imitar as mesas masseiras onde se cozia o pão, onde ele crescia, onde se comia. Um laço, de novo em madeira, entra na pedra e no tampo, sublinhando a unidade das duas dimensões da eucaristia católica. A tampa do
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O padre Joaquim Félix e o arquitecto António Jorge Fontes: o projecto cresceu “no útero da comunidade” do Seminário Conciliar de Braga
Um estudante da escola de Bergen escreveu: “Esta capela abraça-me e faz-me sentir salvo na luz”
Há outras metáforas. Desde logo, a luz, significação maior desta capela. Em cima, a clareira aberta no travejamento da capela permite pensar na capela de Heinz Tesar em Viena (Áustria) ou na Igreja da Luz, do japonês Tadao Ando. A luz do sol entra abundante, mas concentrada, permitindo o jogo de sombras. A luz artificial está estudada para não se sobrepor. Para “evitar o pleonasmo”, diz Joaquim Félix. E a sombra das mãos a celebrar a missa projecta-se sobre o pão e o vinho. No fundo, do lado esquerdo da porta, descobre-se a pequena câmara onde foi colocado o sacrário, caixa minúscula em madeira de freixo, como que escondida no canto esquerdo da entrada da capela. E na qual todos os lados, menos dois, podem ser abertos. Diante dela, um pequeno banco permite que uma pessoa se sente. Vista deste ângulo, a capela mostra o sacrário suspenso. E manifesta-se numa malha de luz, que vem coada pelas frechas, filtrada da tarde exterior, expandindo-se a partir das janelas. Ao lado, uma escultura de Manuel Rosa, com o perfil em bronze do Cura d’Ars, padroeiro dos padres. “O metal oxidará, sim”, diz Joaquim Félix. “Mas esse é o processo natural do tempo” e o tempo, esse grande escultor, é também pretexto simbólico. E ainda o ambão, para a leitura dos textos bíblicos, que simboliza o túmulo aberto de Cristo na manhã de Páscoa. Está colocado a sul, lugar simbólico da luz de onde se proclamava o evangelho para norte, lugar das trevas. Ou as galhetas e o jarro para a missa, que resultam da obra conjunta da barrista barcelense Júlia Ramalho e do norueguês Asbjörn Andresen. Mesmo os cacifos criados por baixo do banco e pelos intervalos das pranchas de madeira são uma “biblioteca espiritual”. Que se vai alterando, mudando, consoante os livros ali colocados pelos estudantes ou pelos formadores. O órgão de tubos, em carvalho francês, com as teclas em buxo, ébano e faia branca, foi a última peça colocada. Construído pelo organeiro Pedro Guimarães, de Esmoriz, os tubos são em metal e madeira. Bordão e Flautado Principal, um registo e meio, apenas. Como nas origens, o som que fascina e entrega ao caminho os passos dos peregrinos. A capela está finalmente completa e será dedicada oficialmente dia 20 de Outubro. Vittorio Gregotti já definiu esta capela como uma “metáfora de eternidade”. Um estudante da escola norueguesa de Bergen deixou escrito no livro de visitas: “Esta capela abraça-me e faz-me sentir salvo na luz.” Um colega resumiu: “Um lugar que silencia as dúvidas.” a amarujo@publico.pt