Quando o teatro questiona a fé | Público

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Cultura

Carlos Vargas na administração do D. Maria II Carlos Vargas, antigo administrador do OPART, é o novo administrador do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII). O anúncio surgiu ontem, uma semana depois da demissão do anterior

conselho de administração, em “solidariedade” com Diogo Infante, director do teatro nos últimos três anos. Depois de, em 2007, como administrador da CNB, ter sido acusado pelo Tribunal do Contas (a par

Polémica

Quando o teatro questiona a fé As recentes encenações de Romeo Castellucci e Rodrigo García têm suscitado um debate em França sobre os limites do teatro e a defesa dos valores cristãos. Depois dos confrontos em Toulouse, as peças têm estreia marcada para o próximo dia 8, em Paris REMY GABALDA/AFP

Tiago Bartolomeu Costa

a No dia da estreia da peça de teatro Gólgota Picnic, a 16 de Novembro, cerca de 100 manifestantes ligados ao grupo católico de direita Institut Civitas apresentaram-se à porta do Théâtre Garonne, em Toulouse. Estavam em protesto contra a “cristianofobia” do encenador, o polémico argentino Rodrigo García. Repetiram a acção nos restantes dias de apresentação da peça, juntando no último dia, um domingo – 20 –, quase 500 manifestantes. Entretanto, as atenções do grupo voltaram-se para a Internet, preparando a chegada da peça a Paris, onde estreia no próximo dia 8, no Théâtre du RondPoint, como parte da programação do emblemático Festival de Automne. Não foi a primeira vez este ano que o Civitas contestou a apresentação de peças dedicadas à problematização da fé. No fim de Outubro, durante as apresentações de Sur le concept du visage du fils de Dieu, do italiano Romeo Castellucci, vários manifestantes do grupo invadiram o palco do Théâtre de la Ville, em Paris, acusando também este encenador de “cristianofobia”. Dessa vez, atentaram contra os espectadores com facas e pedras e ameaçaram perseguir a equipa artística e todos os envolvidos no espectáculo. Relançaram assim o debate sobre o conflito entre religião e estética, que encheu as páginas dos jornais e dominou os debates públicos num país normalmente orgulhoso da sua laicidade. Desde então foram identificadas pela polícia 200 pessoas sob suspeita de perturbação da ordem pública e ameaça à integridade física e 15 delas foram ouvidas em tribunal. Da esquerda à direita foram vários os políticos, artistas e até mesmo membros da Igreja que condenaram a acção do grupo extremista. Este, por seu lado, não cessou as suas investidas durante toda a apresentação da peça. Os membros do grupo juravam defender os valores cristãos, em oposição a uma peça que punha no centro da discussão a abnegação cristã a partir do dilema de um filho perante um pai com incontinência urinária. Castellucci transforma o sacrifício de Jesus aos desígnios de Deus numa reflexão,

Manifestação à porta do Théâtre Garonne em 19 de Novembro

também, sobre a cropologia (estudo das fezes) e a escatologia (um “encontro entre a teologia e a filosofia que reflecte sobre o fim do mundo”, como dizia o encenador ao P2 em Julho, em Avignon).

Medo de Deus em criança O próprio ministro da Cultura, Frédéric Mitterrand, declarou que “sendo o teatro o lugar da liberdade de expressão”, o princípio da liberdade de expressão não pode “servir de desculpa nem justificar os métodos violentos usados por grupos [cujas ideias] vão contra a democracia”. Para Christophe Bourseiller, especialista em grupos religiosos extremistas, entrevistado para o portal Vents Contraires, a defesa da “cristianofobia” prende-se com “um sentimento de injustiça” sentido por alguns sectores da Igreja Católica, “muitos deles com o aval do Vaticano”. E explica:

A defesa da estética e do discurso artístico faz muito mais sentido quando, nem sempre concordando com os artistas, essa liberdade é posta em causa por pressões infundadas. Emmanuel Demarcy-Mota

“Estes grupos acreditam que se não se pode tocar na estrela de David [o símbolo do judaísmo], nem atacar Maomé, arriscando sermos assassinados, por que se considera que no caso de Jesus Cristo não há limites?”. Bourseiller diz mesmo que estes grupos consideram que “a justiça tem que ser reparada”. Sem ter visto nenhum dos dois espectáculos, num comunicado, Alain Escada, secretário-geral do Instituto Civitas descreve Gólgota Picnic como “uma ignóbil mistura de blasfémias e perversões”, pelas suas cenas “no limite da pornografia”, surpreendendo-se “por nada ser feito para interditar o acesso às crianças”, apesar de a peça ser interdita a menores de 18 anos. Escada insiste na “aproximação impúdica destinada a apresentar a iconografia cristã como a imagem do terror e da barbárie”. Emanuel DemmarcyMota, director do Théâtre de la

Ville e do Festival de Automne, que viu a peça na estreia em Toulouse, dizia nessa altura ao P2 estar do lado do encenador: “A defesa da estética e do discurso artístico faz muito mais sentido quando, nem sempre concordando com os artistas, essa liberdade é posta em causa por pressões infundadas”. García não recusou alimentar a polémica. Ao contrário de Castellucci, que havia escrito uma carta pública perdoando os manifestantes, abriu a peça afirmando-se “envergonhado por a apresentar rodeado de polícias”, sabendo, contudo, que se assim não fosse, se poderiam dar incidentes graves. Numa entrevista incluída no programa do espectáculo explicava que “a ideia de trabalhar a partir da Bíblia era já antiga”: “Quando cito frescos ou retábulos, faço desvios para não enfrentar o medo que tinha de Deus quando era criança, o meu


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com Ana Pereira Caldas) de irregularidades financeiras no valor de 3,2 milhões de euros, Vargas, de 45 anos, integrará agora como representante do TNDMII o Agrupamento Complementar de Empresas,

com representantes ainda do São Carlos, Teatro Nacional de São João, Companhia Nacional de Bailado (CNB) e Cinemateca Portuguesa. Em 2009, Vargas devolveu ao Estado 23.500 euros, evitando julgamento.

adeus a Deus e ao medo de Deus no qual deixei de acreditar quando tinha dezasseis anos (graças a um livro de Schopenhauer).” Explicava também que não pôde contar com a ajuda de teólogos, porque aquele que encontrou assustou-se com o título da peça (Gólgota significa calvário). García diz que revisitou “passagens da Bíblia como se lê banda desenhada”, construindo assim a sua própria leitura. “Claro que, comparada com o original, é pobre e tosca.” Diz que a Bíblia representa “o imaginário, a beleza da palavra, a utopia”, mas também “a violência extrema e, sobretudo, a injustiça”. E explica: “Toda a doutrina é reprovável, porque ela se constrói sob o princípio de nos salvar.” Será por isso que, numa das cenas da peça, um anjo caído de pára-quedas no palco diz aos espectadores que nada pode ensinar sobre guerras, violações e pedofilia porque os homens sabem mais do que é possível ser-lhes ensinado. Na mesma entrevista García diz que se tivesse que escolher entre os livros da Bíblia aquele que melhor exemplificasse as contradições da própria Bíblia escolheria o Livro do Eclesiastes, que, atribuído ao rei Salomão, reflecte sobre as vaidades humanas, sugerindo um desapego às riquezas e tentando fazer compreender a bemaventurança que existe na pobreza. “Está de tal forma emprenhado de contradições que não oferece saída. É, ao mesmo tempo, o fel e o mel.” É verdade que o teatro de García, fazendo-se magnânimo, se sustenta numa provocação muitas das vezes primária, fruto de uma encenação que procura construir uma iconografia plástica ao mesmo tempo que tenta a sua completude através das referências do espectador. O arcebispo de Toulouse disse, contudo, que García “brincava com a fé de muitos crentes” e que “se queria denunciar ferozmente todas as formas de fundamentalismo e rebelar-se contra um Deus todopoderoso que temia desde criança” errou o alvo: “Esses não eram os fundamentos proclamados pelos cristãos.”

Uma das imagens que mais polémica causaram implica um pianista, Marino Formenti que, nu, toca uma adaptação de As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz, de Haydn. Para o intérprete, esta “é uma declaração de amor passional a Cristo por um homem que não é crente no sentido dogmático do termo”. Formenti diz compreender que a imagem “possa ser perturbadora para certos católicos mas que a provocação não é o objectivo principal [da peça]”.

DR

Direito à indignação A reflexão teológica veio através de um texto enviado à comunidade eclesiástica francesa, difundido pelo jornal católico La Croix, onde Pascal Wintzer, administrador apostólico de Poitiers e responsável pelo Observatório da Fé e Cultura, escrevia: “Ao quererem exprimir a sua revolta com estes espectáculos, martirizam também as relações que a Igreja Católica sempre se esforçou por alimentar com as artes e os artistas”. E, reconhecendo o direito à indignação, mas alertando para as manipulações que pudessem estar a ser feitas por elementos extremistas, escrevia: “Não há cultura ‘pura’, nem uma cultura mais apta a exprimir a fé cristã. Admiti-lo, praticá-lo, seria ‘expurgar’ de cultura, por exemplo, as igrejas. Com que critérios? Que expressão artística poderia ser ‘pura’? E qual a ‘impura’? O diálogo entre ‘o Evangelho de Deus’ e as culturas não coloca uma realidade face a outra. Encontramo-nos frequentemente entre dois iconoclasmos. Os dos encenadores que recusam imagens suavizadas de Deus, imagens que escondem os dramas e os sofrimentos. E a iconoclastia dos que ‘protegem’ as únicas imagens idealizadas, preferindo destruir as outras. Não se pode negar que existe, de um e de outro lado, uma provocação voluntária. Mas a dos artistas não é da mesma natureza que a dos manifestantes.” E alertava: “Se chegarmos ao momento em que um já nada tem a dizer ao outro, ou onde o outro não aceita nada do que lhe é dito, poderá ter vencido o triunfo individual, mas a comunhão humana estará em perigo.” CORTESIA FESTIVAL AVIGNON

Sur le concept du visage du fils de Dieu, do italiano Romeo Castellucci

Prémio BES Revelação 2011 em Serralves

As “imagens pensativas” Ana de Almeida, Catarina de Oliveira e o colectivo [De Almeida e Silva, Giestas e Gonçalo Gonçalves] expõem os seus projectos no Porto, a partir de hoje Sérgio C. Andrade

a Uma espécie de cadáver-esquisito videográfico encenado sobre uma mesa; a história fantasiada de um navio-frigorífico que encalhou no Estoril; um filme num ecrã de dupla face sobre um templo em ruínas. Foi nisto que resultaram os três projectos vencedores, em Julho, da 7ª edição do prémio de fotografia BES Revelação. Trabalhos de Ana de Almeida, de Catarina de Oliveira e do colectivo [De Almeida e Silva, Giestas e Gonçalo Gonçalves], expostos, a partir de hoje, em Serralves, no Porto (até 4 de Março). O primeiro piso da casa-mãe da fundação é o cenário destes trabalhos, que têm em comum o descentramento da visão mais académica da fotografia. Arte que aqui “se expande em várias práticas de construção de imagens, desde a ampliação digital até ao vídeo”, fez notar João Fernandes, ontem, na apresentação da exposição. O director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves lembrou que a fundação está ligada à constituição deste prémio, desde o início. E sublinhou a importância que tem, para os jovens artistas portugueses, serem avaliados por um júri internacional – este ano, com Marianne Lanavère, directora do Centro Cultural La Galerie, em Paris, e Manuel Segade, curador

independente na mesma cidade. O terceiro membro do júri foi Ana Anacleto, curadora que acompanhou o desenvolvimento dos projectos vencedores até à sua apresentação em Serralves. Na apresentação que fez dos trabalhos, destacou, como “elemento comum”, as diferentes formas de “percepção da imagem” nos seus diversos suportes, mas também, e citando o filósofo Jacques Rancière, o facto de se apresentarem como “imagens pensativas”, que pressupõem “um pensamento não pensado”, mas que se intui. O trio [De Almeida e Silva, Giestas e Gonçalo Gonçalves] ocupa a primeira sala, com o projecto If it doesn’t bend, I’ll breack it. Sete ecrãs vídeo encadeiam imagens à procura de uma ligação. É o resultado de três meses e meio de trocas de “correspondência” (filmes, imagens e textos) entre os três artistas. “Às vezes foi difícil, e até penoso”, chegar a este resultado, explicou Giestas na apresentação do trabalho, que não quis classificar nem como uma peça, nem uma exposição colectiva. “É algo que está depois, ou no meio disso”, referiu o artista, que estuda em Hamburgo – todos os vencedores do BES Revelação 2001 trabalham no estrangeiro e formaram-se na Escola de Belas Artes de Lisboa.

O trabalho de Ana de Almeida, Al Wahda, divide-se por duas salas: é a reconstituição ficcionada do naufrágio do navio-frigorífico com aquele nome (União, em árabe), em 1989, ao largo do Estoril. “O encalhe não teve grande repercussão, porque não teve vítimas, nem grandes consequências materiais nem ambientais”, diz a artista, actualmente radicada em Viena. Depoimentos de três supostas testemunhas oculares e a projecção de slides com notícias da época e desenhos técnicos do navio constroem a memória desse quase “não-acontecimento”. “Quis fazer a minha própria fantasia sobre o naufrágio e levar o espectador a criar a sua própria imagem mental do facto”, justifica Ana de Almeida. Na quarta sala, um ecrã duplo exibe, de forma dessincronizada, um filme rodado por Catarina de Oliveira nas ruínas de um anfiteatro grego na Sicília. É uma sucessão de “imagens simbólicas que criam diferentes mapas”, diz, num texto, a autora – que não tinha ainda chegado a Serralves na altura da visita guiada para os jornalistas. Ana Anacleto “substituiu-a”, explicando que esta montagem de textos de Pirandello com performances de actores e imagens de ruínas é uma boa expressão da “imanência das imagens de carácter pensativo”, de que fala Rancière.


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