Revista Brasileira de Ciências Policias VOL. 3 N.1

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REVISTA BRASILEIRA DE

CIÊNCIAS POLICIAIS VOL. 3, N. 1, JAN-Jun/2012 IISSN SSN 22178-0013 178-00013

Publicação da Coordena Coordenação nação Escola Superio Superior or de P Polícia olícia Acad Ac cad ademia d aN acionaal de Polícia / Políciaa Feder ral Academia Nacional Federal


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Revista Brasileira de Ciências Policiais Revista da Academia Nacional de Polícia (ANP) Brasília, v. 3, n. 1, p. 1 - 127 p., jan/jun 2012. ISSN 2178-0013 Editor Responsável Guilherme Henrique Braga de Miranda Comissão Editorial Guilherme Henrique Braga de Miranda (Presidente); Sandro Lúcio Dezan; Célio Jacinto dos Santos; Ivon Jorge da Silva; Eliomar da Silva Pereira; Emerson Silva Barbosa; Gilson Matilde Diana. Conselho Editorial Adriano Mendes Barbosa (DPF - Brasil); Alexandre Bernardino (UnB - Brasil); Aili Malm (California State University - EUA); Carlos Roberto Bacila (UFPR e DPF - Brasil); Denilson Feitoza (MPMG - Brasil); Elenice de Souza (Rutgers University - EUA); Guilherme Cunha Werner (DPF - Brasil); Jairo Enrique Suárez Alvarez (CEPEP - Colômbia); José Pedro Zaccariotto (PCSP - Brasil); Luiz Henrique de A. Dutra (UFSC - Brasil); Manuel Monteiro Guedes Valente (ISCPSI e UAL - Portugal); Michael Towsley (Griffith University - Austrália); Patrício Tudela Poblete (ASEPIC e Universidade do Chile - Chile); Paulo Rangel (TJRJ e UERJ - Brasil), Spencer Chainey (UCL - Inglaterra).

Ministério da Justiça Ministro: José Eduardo Cardozo Departamento de Polícia Federal Diretor-Geral: Leandro Daiello Coimbra Diretoria de Gestão de Pessoal Diretor: Marcos Aurélio Moura Academia Nacional de Polícia Diretor: Marco Antonio Ribeiro Coura Coordenação Escola Superior de Polícia Coordenador: Sandro Lúcio Dezan


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Revista Brasileira de CiĂŞncias Policiais, v. 3, n. 1, jan/jun 2012.


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Revista Brasileira de Ciências Policiais Publicação semestral de doutrina em assuntos policiais, visando a difundir a produção acadêmica dos cursos de pós-graduação da Academia Nacional de Polícia (ANP), a cargo da Coordenação Escola Superior de Polícia (CESP), bem como do programa de pesquisa e outras produções congêneres de origem nacional e estrangeira.

Os conceitos e idéias emitidos em artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores, não representando, necessariamente, a opinião da revista ou da Academia Nacional de Polícia. Todos os direitos reservados Nos termos da Lei que resguarda os direitos autorais (de acordo com a Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 - Lei dos Direitos Autorais), será permitida a reprodução parcial dos artigos da revista, sempre que for citada a fonte.

Artigos para análise e publicação: Normas ABNT (NBR 6022:2002)

Correspondência Editorial Revista Brasileira de Ciência Policial Rodovia DF 001 - Estrada Parque do Contorno, Km 2 - Setor Habitacional Taquari, Lago Norte-DF CEP - 71559-900 - Brasília-DF E-mail: revista.caesp@dpf.gov.br Publicação Semestral Tiragem: 1000 exemplares Projeto Gráfico e Capa: Eliomar da Silva Pereira, Gilson Matilde Diana e Gleydiston Rocha Editoração: Gilson Maltilde Diana e Guilherme Henrique Braga de Miranda

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Biblioteca da Academia Nacional de Polícia

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Revista Brasileira de Ciências Policiais / Academia Nacional de Polícia. – v. 3, n. 1 (jul./dez. 2010 ) – Brasília: Academia Nacional de Polícia, 2012. 127p. ISSN 2178-0013 Semestral 1. Ciência policial – Periódico. 2. Investigação criminal. 3. Investigação policial. Polícia Federal. I. Brasil. Ministério da Justiça. Departamento de Polícia Federal. Academia Nacional de Polícia.


Sumário Artigos Interceptação Telefônica e Linguagem ........................................................................................11 Phone-tapping and Language Interceptación Telefónica y Linguaje Daniel Fábio Fantini

O Princípio do Delegado Natural como Efetivação do Estado Democrático de Direito ..............27 The Principle of Natural Investigation as Effective Democratic State Law El Principio del Investigación Natural como Concretización del Estado Democrático de Derecho Moacir Martini de Araujo

Apoderamento Ilícito de Aeronaves e Terrorismo .......................................................................43 Unlawful Seizure of Aircraft and Terrorism Apoderamiento Ilicito de Aeronaves y Terrorismo Sidney Bueno Silva

Processos de Mentoring e Shadowing como Ferramentas de Gestão do Conhecimento para a Socialização de Novos Servidores no Departamento de Polícia Federal .....................................75 Mentoring and Shadowing Processes as a Knowledge Management Tool Oriented for Socialization of New Servers on the Brazilian Federal Police Processos de Mentoring y Shadowing como Herramientas de Gestión del Conocimiento para la Socialización de Nuevos Servidores en la Policia Federal de Brasil Luciano D´Escragnolle Cardoso

A Polícia no Pensamento Criminológico: as origens dos saberes policiais investigativos...........103 The Police in the Criminological Thought: the origins of the investigative police knowledge La Policía en el Pensamiento Criminológico: los orígenes de los saberes policiales investigativos Célio Jacinto dos Santos



Editorial

Dando continuidade ao esforço para difusão das Ciências Policiais, a Escola Superior de Polícia (CESP) da Academia Nacional de Polícia apresenta à comunidade policial e afins, o primeiro número do terceiro volume da Revista Brasileira de Ciências Policiais. Reunimos cinco artigos que abordam alguns dos principais aspectos vinculados à proposta da revista e da Escola Superior de Polícia da Academia Nacional de Polícia, como investigação criminal, terrorismo, criminologia, gestão do conhecimento, gestão da informação e aprendizagem organizacional. Os artigos selecionados retratam algumas das facetas que se apresentam no universo das ciências policiais, como a questão da interceptação telefônica, o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, a sombra do terrorismo e a gestão do conhecimento na administração pública. No primeiro artigo, Interceptação Telefônica e Linguagem, Daniel Fábio Fantini, numa abordagem conceitual inovadora, analisa aspectos linguísticos de destaque sobre o uso diferenciado da linguagem por grupos criminosos. Com base em dados obtidos em escutas telefônicas autorizadas, Fantini demonstra como a Teoria dos Atos de Fala, de John Austin e a Teoria dos Atos de Fala Indiretos, elaborada por John Searle, facilitam a compreensão de diálogos interceptados, mesmo que estes estejam tipicamente repletos de jargões, cifras e gírias. Moacir Martini de Araújo, em seu O Princípio do Delegado Natural como Efetivação do Estado Democrático de Direito, inicialmente, analisa a natureza da investigação criminal brasileira e suas relações com a legislação processual penal. O autor realiza uma análise epistemológica do inquérito policial como elemento preliminar no processo

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criminal. A seguir, o autor aborda e interpreta o alcance do conhecido princípio constitucional do juiz natural, defendendo sua extensão ao delegado de polícia e discutindo argumentos contrários e favoráveis à posição defendida. Martini de Araújo finaliza seu artigo tecendo alguns comentários sobre o posicionamento administrativo e penal do Estado brasileiro na defesa do interesse público. Neste momento em que o Brasil se prepara para hospedar grandes eventos internacionais e o transporte aéreo de passageiros cresce em ritmo acelerado, a discussão sobre o terrorismo volta à tona no terceiro artigo deste número da Revista Brasileira de Ciências Policiais. No texto intitulado Apoderamento Ilícito de Aeronaves e Terrorismo, Sydney Bueno Silva expõe interessantes ponderações sobre a segurança na aviação civil, com base num amplo apanhado normativo que inclui tratados e convenções internacionais. O autor examina também a forma como a legislação penal brasileira trata o assunto. Em sua parte final, são feitas considerações a respeito dos efeitos da globalização sobre o direito penal e a legislação internacional, bem como, sobre as ações conjuntas de combate à criminalidade de caráter transnacional, como a lavagem de dinheiro, o tráfico de entorpecentes e o terrorismo. No quarto artigo, Processos de Mentoring e Shadowing como Ferramentas de Gestão do Conhecimento para a Socialização de Novos Servidores no Departamento de Polícia Federal, Luciano D´Escragnolle Cardoso apresenta em detalhes os resultados de uma pesquisa baseada em entrevistas aplicadas aos servidores policiais sobre as dificuldades e barreiras encontradas no ambiente de trabalho. A conclusão do trabalho aponta a aplicação promissora e premente desses dois mecanismos de disseminação da cultura institucional recentemente estudados ("mentoria" e "sombra"). O artigo destaca a importância dos processos de socialização organizacional para a atração, retenção e direcionamento estratégico dos novos servidores, contribuindo para o fortalecimento da identidade coletiva, troca de experiências e criação de conhecimento. Finalizando a presente edição da revista, apresentamos ao leitor A Polícia no Pensamento Criminológico: as origens dos saberes policiais investigativos, de Célio Jacinto dos Santos. O artigo discorre sobre a 8

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investigação criminal como conhecimento especializado. O autor traça um panorama histórico e geográfico da evolução do pensamento criminológico, numa abordagem conceitual complexa e transdisciplinar sobre a Ciência Policial. Como de costume, desejo uma leitura agradável e proveitosa, lembrando que esta publicação está sempre aberta a apoiar a divulgação de trabalhos científicos relacionados ao mundo das ciências policiais!

Guilherme Henrique Braga de Miranda Editor

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Interceptação Telefônica e Linguagem Daniel Fabio Fantini Departamento de Polícia Federal - Brasil

RESUMO O presente trabalho discorre sobre os aspectos linguísticos inerentes ao conteúdo das interceptações telefônicas. Neste prisma, tendo em vista os estudos sobre a linguagem, aborda-se o assunto pela dimensão pragmática, considerando a sua aplicação empírica. Em que pese as dificuldades de sistematização de uma abordagem teórica sobre o uso da linguagem, as teorias dos atos de fala e dos atos de fala indiretos, elaboradas por John L. Austin e John Searle, respectivamente, oferecem soluções adequadas para explicar os fenômenos linguísticos relativos às conversas mantidas entre possíveis autores de crime, interceptadas no bojo da investigação criminal. As teorias mencionadas fornecem instrumental teórico aos investigadores para que possam interpretar, apropriadamente, quais os significados das palavras captadas nas conversas interceptadas conforme o seu uso. No caso, ao destacarem que o “dizer algo” é, ao mesmo tempo, “fazer algo”, revelam que a linguagem captada pode ser melhor compreendida quando se analisam as forças ilocucionárias que regem os atos de fala da comunicação. Por fim, a teoria dos atos de fala indiretos fornece alguns elementos que possibilitam a compreensão de atos de fala que possuem mais de uma força ilocucionária, um explícito e outro implícito, facilitando o entendimento das conversas captadas, mesmo que estas se utilizem de expressões codificadas, gírias ou mensagens cifradas, como corriqueiramente são utilizadas pelos autores de crimes. PALAVRAS-CHAVE: Interceptação telefônica. Investigação criminal. Linguagem. Pragmática. Jogo de Linguagem. Wittgenstein. Atos de fala. Austin. Searle.

1 Introdução A interceptação das comunicações telefônicas com o fim de servir à investigação criminal tem assento na Constituição da República de 1988, especificamente no artigo 5º, inciso XII, tratando-se de medida excepcional a ser autorizada com base nas prescrições do próprio texto constitucional e da Lei n.º 9.296 de 24 de julho de 1996.

Revista Brasileira de Ciências Policiais Recebido em 22 de junho de 2012. Aceito em 1º de abril de 2013.

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Uma profusão de artigos já foi publicada sobre o tema, versando sempre sobre um único aspecto do assunto: os limites constitucionais e legais da medida investigativa no sistema jurídico pátrio. Evidentemente que o tema possui especial interesse para o Direito posto que envolve a mitigação de direitos fundamentais do homem, mormente a privacidade, intimidade e a liberdade. Não obstante, ultrapassadas as discussões sobre os aspectos formais e legais que autorizam a implementação da medida excepcional da interceptação das comunicações telefônicas, percebe-se que existem poucos estudos que enfoquem como devem ser analisados os resultados obtidos por meio dessa técnica investigativa. Ou seja, há muitos textos que tratam das hipóteses em que o uso da interceptação das comunicações telefônicas é autorizado, mas poucos estudam a linguagem contida nas conversas interceptadas e como elas devem ser interpretadas. Este estudo deve servir de reflexão para todos os operadores do Direito, incluindo defensores, acusadores e o próprio julgador, quando lidam com os procedimentos que envolvem a interceptação das comunicações telefônicas, mesmo porque as provas colhidas, consistentes nas gravações das conversas, serão apreciadas e servirão de lastro para ações, argumentações e decisões. Contudo, entendo que os maiores interessados no assunto são os próprios investigadores, por excelência, aqueles que integram a Polícia Judiciária, instituição que possui respaldo legal para conduzir a diligência (art. 6.º, caput, da Lei no 9.296/96) e apresentar os resultados obtidos. Na falta de maiores reflexões sobre o agir policial é comum atribuirmos ao sucesso, obtido no improviso, o título de tirocínio policial. Já quando não se atinge o resultado esperado, não há meios de se apontar as razões do fracasso. Desta forma, o estudo pretende apontar minimamente, dentro de uma concepção pragmática, conceitos teóricos que justifiquem as interpretações e conclusões corriqueiramente feitas pelos investigadores quando realizam uma apuração utilizando a interceptação das comunicações telefônicas como uma das técnicas disponíveis. 12

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2 A Interceptação das comunicações telefônicas A interceptação das comunicações telefônicas é medida extremamente eficaz no combate à criminalidade, uma vez que proporciona uma forma de conhecer, profundamente, os métodos utilizados na prática do crime, a participação efetiva de cada indivíduo nas condutas investigadas e a possibilidade de se prever e prevenir a prática de outros eventuais ilícitos. Além disso, é fonte inequívoca de prova perante o Poder Judiciário, quando executada dentro dos ditames do devido processo legal. Juridicamente não há definição sobre o conceito de telefonia, embora o antigo Código Brasileiro de Telecomunicações, Lei n.º 4.117 de 27 de agosto de 1962, estabelecesse no artigo 4º, que “telefonia é o processo de telecomunicação destinado à transmissão da palavra falada ou de sons”. Contudo, a Lei n.º 9.472 de 16 de julho de 1997, revogou expressamente esse diploma legal, conforme dispôs o artigo 215, inciso I. Não obstante, por ocasião da Lei n.º 9.296/96, Grinover (1997) define o conceito jurídico de interceptação das comunicações telefônicas, atribuindo-o essencialmente à existência de uma terceira pessoa que escuta ou grava a conversa telefônica: Por mais amplitude que se pretenda atribuir ao conceito, permanece ele limitado à escuta e eventual gravação da conversa telefônica, quando praticada por terceira pessoa, diversa dos interlocutores. Somente a "terzietà", referida pela doutrina italiana, é capaz de caracterizar a interceptação.

Rangel (2000) restringe ainda mais este conceito, afirmando que somente se caracteriza a interceptação quando a captação é feita por terceira pessoa sem o conhecimento dos interlocutores. De qualquer forma, o que interessa para o presente artigo é que a interceptação das comunicações telefônicas cuida da captação de sons e palavras mantidas por possíveis autores de crimes por uma terceira pessoa, no caso, os investigadores. No curso da realização da interceptação, os investigadores desenvolvem e executam diversas ações para que o resultado da medida seja mais um elemento esclarecedor da verdade, finalidade última da investigação criminal.

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Por tal motivo, embora escutem e gravem as conversas captadas sem causar interferências, sob pena de inviabilizar a medida, os diálogos interceptados devem ser interpretados e analisados, à medida que aconteçam, para que indiquem o melhor caminho a ser percorrido na apuração dos fatos e das condutas supostamente delituosas. Os investigadores não são meros espectadores que registram as conversas interceptadas. A atividade exige acompanhamento constante para que ela se adapte ao comportamento dos investigados e para que seja complementada com outras diligências indispensáveis. Em ambos os casos, o sucesso da investigação dependerá da capacidade de análise dos investigadores a respeito das conversas captadas. E para que os diálogos sejam analisados de forma coerente e verdadeira, o estudo da linguagem certamente fornecerá instrumentos valiosos para a correta compreensão dos acontecimentos. Nos dizeres de Dutra (2001, p.13): “não há investigação sobre o mundo que não se faça mediante instrumentos linguísticos e por meio de práticas e procedimentos socialmente estabelecidos”.

3 As Dimensões da Linguagem O investigador que ouve os diálogos interceptados analisa as três dimensões da linguagem presentes na conversação: pragmática, sintática e semântica. E, a partir dessa análise, formula suas hipóteses, dirige suas ações e conclui seus resultados. Os estudos sobre a filosofia da linguagem, hoje amplamente utilizados pela epistemologia e pela filosofia da ciência, abordam cada uma destas dimensões (DUTRA, 2008) e podem ser aplicados para explicar como devem ser analisadas as conversas captadas pela interceptação das comunicações telefônicas. De forma resumida, podemos compreender a dimensão semântica da linguagem como sendo a relação entre as palavras e os objetos a que se referem (significado). Já a dimensão sintática é a relação das palavras entre si, dentro de uma organização pré-estabelecida (regra). Por fim, a dimensão pragmática relaciona o uso das palavras com o falante, o ouvinte e os demais elementos que contextualizam a comunicação (uso).

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Evidentemente que todas as dimensões da linguagem estão inter-relacionadas e o completo entendimento do processo comunicativo depende do conhecimento sobre as três dimensões acima apontadas. Portanto, não é apropriado, por exemplo, que um investigador analise um diálogo captado em língua estrangeira se ele não domina o referido idioma, embora possa compreender boa parte do significado de algumas palavras utilizadas. Da mesma forma, não será relevante a interpretação que desconsidera por completo o modo como são usadas determinadas palavras, pretendendo impor aos termos captados sentidos que o falante não lhes atribuiu. Por exemplo, se interceptássemos: “O ovo é verde. Mas posso fazer o pato latir.” A princípio, não se poderia concluir muita coisa sobre o sentido deste proferimento, caso se considerasse, tão somente, o significado semântico das palavras, pois a cor dos ovos não é verde, e também porque os patos não podem latir. Embora a sintática colabore para a compreensão mínima desta sentença, uma vez que as palavras foram corretamente empregadas segundo as funções que exercem dentro das regras da linguagem corrente, a pragmática possibilitaria uma redução nas possibilidades interpretativas, quando se compreende em quais contextos e para quais objetos o falante utiliza tais expressões. Nos tópicos seguintes, a dimensão pragmática da linguagem será tratada de forma mais detalhada.

3.1 A Dimensão Pragmática As lições de Ludwig Wittgenstein presentes nas suas Investigações Filosóficas (1999) esclarecem por meio da ideia do “jogo de linguagem” como os signos, as palavras e expressões podem ter significados diferentes de acordo com o uso dado a eles (pragmática), conforme expõe Danilo Marcondes (2006, p. 221): Segundo Wittgenstein, o significado não deve ser entendido como algo de fixo e determinado, como uma propriedade inerente à palavra, mas sim como a função que as expressões linguísticas exercem em um contexto específico e com objetivos específicos. O significado pode, por conseguinte, variar dependendo do contexto em que a palavra é utilizada e do propósito deste uso.

Neste primeiro momento, esta concepção pragmática relaciona as expressões utilizadas aos contextos em que elas se inserem, de modo a dotar de sentido os proferimentos realizados. Assim, o mesmo termo poderá ser Revista Brasileira de Ciências Policiais Brasília, v. 3, n. 1, p. 11-25, jan/jun 2012.

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usado para designar situações e pessoas totalmente distintas, seja se valendo do seu significado semântico mais comum e abrangente, ou significando coisas e objetos de modos inicialmente inimagináveis. Cite-se, por exemplo, o uso da palavra “alemão”. Se inicialmente se referia apenas àquela pessoa originária da Alemanha (significado semântico), hoje pode representar também, para alguns grupos, qualquer pessoa de origem estrangeira, ou até mesmo designar um inimigo, um intruso, e para outras comunidades, a polícia. Semanticamente é impossível explicar a relação entre “alemão” e “polícia”, mas é bem provável que crianças em favelas cariocas (portanto contextualizadas) possam fazer tal conexão sem maiores dificuldades quando utilizam este termo na sua linguagem cotidiana. Os diálogos interceptados pela medida investigativa deverão ser cuidadosamente interpretados conforme o contexto em que foram proferidos, devendo ser observadas todas as circunstâncias que envolvem o falante, o ouvinte, o assunto discutido, as gírias e o regionalismo linguístico. Considerando os aspectos que envolvem o crime, a investigação criminal e a própria interceptação das comunicações, a abordagem pragmática da linguagem fornece respostas mais adequadas para explicar estes fenômenos, quando empiricamente considerados. O crime é, por definição, sinônimo de conduta ilegal, ilícita e reprovável. Evidentemente que seus autores, via de regra, utilizam-se de artifícios que procuram escondê-lo ou disfarçá-lo, de modo a impedir a ação repressora do Estado. Estes artifícios também se refletem na linguagem travada por eles, com a utilização de gírias, senhas, códigos, metáforas e codinomes, na tentativa de se manterem inteligíveis tão somente para os integrantes do grupo envolvido na prática das infrações. Assim, quando interceptados os diálogos mantidos entre os possíveis autores destes crimes, far-se-á perceber o uso desta linguagem cifrada, cujo sentido não é facilmente compreendido. Embora em algumas situações as conversas interceptadas possam ser analisadas conforme os significados semânticos das expressões captadas, não há dúvidas de que, na imensa maioria das investigações, é o uso da linguagem que determina o sentido dos diálogos relevantes, e consequentemente estabelece a forma como devem ser interpretadas as conversas interceptadas.

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A fim de exemplificar os parágrafos anteriores, é praticamente impossível interceptar diálogo mantido entre traficantes de drogas nos quais sejam usadas, literalmente, as palavras “drogas”, “cloridrato de cocaína”, “cocaína”, “tetrahidrocanabinol”, “maconha”, “quilos”, “transporte”, “estoque”, “depósito”, etc. Na maior parte dos casos são utilizadas figuras de linguagem para simbolizar tanto o produto que comercializam como a forma utilizada para realizar suas transações. Eles podem ser chamados por qualquer outro termo, de variadas formas, cujo sentido é conhecido somente pelos possíveis criminosos. Sob a perspectiva da investigação criminal, as conclusões obtidas por meio da análise feita sobre o uso das expressões podem esclarecer melhor os fatos em apuração, em contraposição àquelas que se baseiam, primordialmente, na interpretação semântica dos diálogos. Evidentemente que será muito mais trabalhoso e por vezes infrutífero, em razão dos limites temporais e legais da medida, concluir estudos com base, unicamente, no uso de palavras proferidas em escassas oportunidades. Contudo, é certo que ao investigador não deve interessar qual o significado semântico, por exemplo, das palavras: “flor”, “viagem”, “cerveja”, “tênis”, “bilhetes”, “plantas”, “bola”, “drogas”, “dinheiro”, “esquema”, etc., quando eventualmente captadas no bojo dos diálogos. No caso deve se ater, primordialmente, ao uso dado a estas palavras pelas pessoas investigadas, no contexto da investigação. Ocasionalmente, o sentido dado pelo uso pode ser equivalente ao significado semântico, e por outras vezes, o investigador deverá presumir que o sentido semântico seja, de fato, o pretendido pelos interlocutores, quando não houver motivo que indique outra possibilidade. Porém, Marcondes (2006) afirma que Carnap problematizou a construção de uma concepção pragmática, como proposta por Wittgenstein, pois em que pese corroborar tal pensamento no que tange à diversidade de sentidos proporcionada pelo uso da linguagem, entende que seria impossível criar uma sistematização teórica sobre ele (o uso), uma vez que estaria sujeito a situações extremamente complexas e variadas (como exemplificado acima) que impediriam a abstração e generalização de um estudo filosófico ou científico. Neste sentido, somente quando a linguagem atinge níveis maiores de abstração, como se percebe na sintática e na semântica, seria possível estruturar concepções teóricas sobre ela.

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De qualquer forma, todas as dimensões da linguagem possuem certo grau de abstração, embora a semântica acumule maior grau, pois “distante das situações ordinárias de fala e comunicação” (DUTRA, 2008, p. 55). Não obstante, o uso também deve ser considerado uma abstração, seja ele mais restrito, relativo a uma classe de proferimentos, seja de modo mais amplo, referente a “uma classe de relações entre proferimentos e contextos” (Op. cit., p. 59).

4 Teoria dos Atos de Fala Uma das tentativas de sistematizar uma análise pragmática da linguagem foi proposta por John Langshaw Austin (1990), resultante na Teoria dos Atos de Fala - TAF. Em síntese apertada, dentro da teoria mencionada, a unidade básica de significação da linguagem é o “ato de fala”, que se desdobra em “três dimensões integradas ou articuladas”, quais sejam: “os atos locucionário, ilocucionário e perlocucionário” (MARCONDES, 2006, p. 224). Visando esclarecer os conceitos trazidos por Austin, nos dizeres de Ottoni (2002): Para Austin o ato de fala é composto de três partes, três atos simultâneos: um ato locucionário, que produz tanto os sons pertencentes a um vocabulário quanto a articulação entre a sintaxe e a semântica, lugar em que se dá a significação no sentido tradicional; um ato ilocucionário, que é o ato de realização de uma ação através de um enunciado, por exemplo, o ato de promessa, que pode ser realizado por um enunciado que se inicie por eu prometo..., ou por outra realização; por último, um ato perlocucionário, que é o ato que produz efeito sobre o interlocutor.

Conforme Austin (1990), o ato de falar não se resume na transmissão de uma mensagem. Assim, quando alguém fala, além de comunicar algo (ato locucionário), ele realiza uma ação (ato ilocucionário) e gera efeitos no ouvinte (ato perlocucionário). Se captarmos o seguinte proferimento: “ofereço-te um prêmio”, poderemos perceber a mensagem transmitida, relativa aos dizeres do enunciado “ofereço-te um prêmio”, mas também a realização do ato de oferecer, por intermédio de um verbo perfomativo (ofereço), de onde decorre a força ilocucionária da sentença. A força ilocucionária deste ato de fala poderia ser realizada de outras variadas maneiras, por proferimentos 18

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diversos, conforme as circunstâncias do contexto, como por exemplo: “dar-te-ei uma gratificação” ou “prometo te pagar uma quantia”. Em todas estas frases o falante se compromete a fazer algo, no caso, entregar dinheiro ou bens. De modo geral, o ouvinte deve apresentar reações (ato perlocucionário) quando recebe a mensagem, seja aceitando, recusando, indignando-se, satisfazendo-se, etc. Para Austin (1990), dizer é fazer! Não há como negar que os diálogos interceptados poderão fazer a prova material de crime, como por exemplo, naqueles em que o interceptado oferece o pagamento de vantagem indevida a funcionário em razão da função. Por exemplo, o crime de corrupção ativa estará devidamente consumado e provado, se além da mensagem contida nas palavras emitidas, ficar demonstrado que por meio de seus dizeres, o interlocutor prometeu (ato de prometer) tal vantagem. Austin (1990) apresenta uma classificação provisória contendo as cinco categorias básicas de atos ilocucionários: vereditivos, expositivos, exercitivos, comportativos e compromissivos. No exemplo acima citado, a força ilocucionária presente nos proferimentos indicam que eles devem ser incluídos entre os atos ilocucionários compromissivos, pois o falante se compromete a fazer algo. Embora John Searle (2002) não faça objeção à classificação dos atos ilocucionários compromissivos, na forma proposta por Austin, ele cria uma nova taxionomia, em que poderão ser assim classificados: assertivos, diretivos, expressivos, declarativos, além dos já mencionados compromissivos. Para criar a sua taxionomia dos atos de fala, Searle (2002, p. 3) se vale de doze “dimensões significativas” como critérios de classificação, frisando, contudo que uma delas, qual seja: o propósito do ato, chamado por ele de “propósito ilocucionário”, seja a mais importante (SEARLE, 2002, p. 4). Searle (2002) fornece alguns exemplos para tentar esclarecer o que pretende que com o termo “propósito ilocucionário”: Exemplo n.º 1 – o propósito de uma descrição é ser uma representação; Exemplo n.º 2 – o propósito de uma promessa é obrigar o falante a fazer algo; Exemplo n.º 3 – o propósito dos pedidos e dos comandos é a tentativa de levar o ouvinte a fazer algo. Com o último exemplo (3), ele pretende dizer que o propósito ilocucionário é o mesmo entre pedidos e comandos, mas os atos possuem forças ilocucionárias distintas em razão de outros elementos que a integram.

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Assim, Searle (2002, p. 46) conclui, após sistematizar sua classificação dos atos de fala, e por conseguinte, analisar as formas como a linguagem pode ser utilizada: Se adotamos o propósito ilocucionário como a noção básica para a classificação dos usos da linguagem, há então um número bem limitado de coisas básicas que fazemos com a linguagem: dizemos às pessoas como as coisas são, tentamos levá-las a fazer coisas, comprometendo-nos a fazer coisas, expressamos nossos sentimentos e atitudes, e produzimos mudanças por meio de nossas emissões.

Da mesma forma, por mais incompreensível que sejam alguns dos termos utilizados nos diálogos captados, tais como gírias, códigos ou senhas, seria possível, em muitos proferimentos, inferir a força ilocucionária dos atos de fala, por intermédio do propósito ilocucionário e a partir daí, como um instrumento de análise, reduzir as possibilidades interpretativas destes mesmos diálogos. Ciente das possibilidades ilocucionárias de um ato de fala, em conjunto com os demais elementos do contexto e com a frequência de utilização destes termos, poderá o investigador interpretar e concluir com o maior grau de acerto o significado das mensagens interceptadas. Em síntese, elucidar ou reduzir as ações contidas nos atos de fala é apontar quais os significados atribuídos pelos falantes às palavras usadas nos diálogos. E estas ações, via de regra, são o reflexo da vontade do falante, elemento de suma importância para o direito penal.

4.1 Atos de fala indiretos Com base na teoria proposta por Austin, Searle (2002) acrescenta que em diversos casos a significação dos proferimentos não se revela de maneira simples, isto é, como correspondência exata e única entre a literalidade dos termos e o sentido da sentença. Assim, propõe a existência de atos que possuam mais de uma força ilocucionária, chamando-os de atos de fala indiretos, quando “um ato ilocucionário é realizado indiretamente através da realização de um outro.” (Op. cit., p. 49). A fim de ilustrar o ato de fala indireto, Searle (2002) nos dá o seguinte exemplo: “Você pode alcançar o sal?” Neste exemplo, a força ilocucionária não se resume à pergunta explicitada, mas também evoca um pedido implícito para que o ouvinte passe o sal, caso isso lhe seja possível (condição preparatória). 20

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Em resumo, Searle (2002, p. 50) diz que “em atos de fala indiretos, o falante comunica ao ouvinte mais do que realmente diz”. E para que a significação indiretamente contida neles possa ser compreendida é necessário, teoricamente, o seguinte aparato: […] uma teoria dos atos de fala, alguns princípios gerais de conversação cooperativa (alguns dos quais foram discutidos por Grice (1975) e a informação fatual prévia compartilhada pelo falante e pelo ouvinte, além da habilidade do ouvinte para fazer inferências. (SEARLE, 2002, p. 50).

Na teoria formulada por Grice (1989), referente às implicaturas conversacionais, os diálogos são produzidos por esforços cooperativos dos falantes, em que eles reconhecem um propósito e um direcionamento comum para o encaminhamento dos assuntos. Assim, os participantes de um diálogo, ao contribuírem no desenvolvimento da conversa, seguem, via de regra, um “princípio de cooperação”. Assim, quando se intercepta possível autor de crime, presume-se que o falante e o ouvinte interceptados, ao conversarem pelo telefone, possuam interesses comuns, mesmo que sejam aqueles mínimos que possibilitem uma conversa inteligível. Nas interceptações das comunicações telefônicas, a imensa maioria dos diálogos captados, que possuem relevância para investigação criminal, caracteriza-se como atos de fala indiretos. Cite-se, por exemplo: Falante X: “Preciso falar com você.” Falante Y: “Estou indo agora para aí.” Falante X: “Quinze horas, onde W está.” Falante Y: “Certo. Tchau.” Evidentemente que X não pretende, tão somente, falar com Y, mesmo porque eles já estão se falando através do telefone. Com toda a certeza, X, além da necessidade de falar (significação literal – ato ilocucionário secundário declarativo), convida Y para um encontro (ato ilocucionário primário diretivo). Utiliza-se, portanto, a teoria dos atos de fala.

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Na sequência, demonstrando que inferiu a mensagem, Y se compromete a ir ao encontro de X (ato ilocucionário secundário – compromissivo), mas também propõe, ao mesmo tempo, o momento e o local do encontro (ato ilocucionário primário – diretivo). Em seguida, X recusa, por meio de uma declaração, as indicações de hora e local para o encontro proposto no ato de fala indireto de Y, e sugere, no mesmo ato de fala, o momento (trinta minutos depois) e o local (onde W está). Por fim, Y compreende, por compartilhar com X, informações fatuais prévias referentes ao momento e ao local do encontro (onde W está) e ao mesmo tempo se compromete com o encontro. Para uma investigação criminal bem sucedida, na ocasião em que seja interceptado o mencionado diálogo, a equipe policial deve ter a capacidade de entender as forças ilocucionárias existentes nas expressões captadas, mas também deve dispor da mesma capacidade de inferência e também da informação fatual prévia dos interceptados, tal como o horário em que se comunicam e o local onde irão se encontrar, especialmente para que possam registrar o possível encontro, de forma a contextualizar as comunicações interceptadas.

5 Conclusões A interceptação das comunicações telefônicas é uma das mais eficazes e eficientes técnicas de investigação criminal, pois possibilita um conhecimento profundo sobre o fato investigado, seus autores e partícipes. Objeto de inúmeros estudos sobre os limites constitucionais e legais de sua aplicação, pouco se escreveu a respeito da forma como é analisado o seu conteúdo. E considerando que a medida consiste na interceptação de palavras e sons transmitidos, tratar de seu conteúdo é se valer dos estudos sobre a linguagem. A linguagem pode ser analisada por meio de três dimensões inter-relacionadas, quais sejam: sintática, semântica ou pragmática. De fato, todas contribuem para proporcionar a compreensão do fenômeno comunicativo. Contudo, quando se trata dos aspectos relacionados ao crime e à forma de investigá-lo, a dimensão pragmática assume maior importância. No caso, os diálogos interceptados estarão repletos de metáforas, gírias, 22

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códigos, senhas, codinomes e os sentidos atribuídos pelos interlocutores aos termos captados, como proposto por Wittgenstein, é que vão gerar significados relevantes para a investigação criminal. É preciso descobrir o sentido dado pelos interlocutores para as palavras captadas para que se possam atingir resultados satisfatórios. Embora existam dificuldades para o enfrentamento teórico de uma abordagem pragmática da linguagem, em razão de sua abstração mínima, Austin propôs uma Teoria dos Atos de Fala na qual procura transpor tais obstáculos. No caso, Austin (1990) identifica três dimensões da unidade básica da linguagem (o ato de fala): o ato locucionário, o ilocucionário e o perlocucionário. Ou seja, a mensagem (ato locucionário) somente poderá ser compreendida pragmaticamente quando entendida a ação contida neste proferimento (ato ilocucionário) juntamente com os seus efeitos no interlocutor (ato perlocucionário). Do ponto de vista jurídico-criminal, não há dúvidas de que um ato de fala pode caracterizar uma ação delituosa e gerar reações igualmente criminosas. De fato, como propôs Austin, dizer é fazer. Aprofundando nos estudos sobre os atos de fala, Searle identifica um dos principais aspectos do ato ilocucionário: o propósito ilocucionário, quando discorre sobre a classificação desses. Conhecendo o propósito ou a finalidade da força ilocucionária do ato, diz Searle (2002), reduzimos muito as possibilidades de interpretação de um ato de fala. Neste aspecto, no bojo de uma investigação criminal, ao captar um diálogo, e identificar o propósito daqueles proferimentos diminuem-se muito as possibilidades interpretativas, muitas vezes confundidas por termos cujos sentidos são inicialmente desconhecidos dos investigadores. Searle também propõe a existência de atos de fala indiretos. Esses possuem mais de uma força ilocucionária e significados mais extensos do que os atos de fala diretos. Para sua adequada compreensão, o aparato teórico necessário depende de uma teoria de atos de fala, princípios conversacionais cooperativos, uma capacidade inferencial e um conhecimento fatual prévio.

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Na maioria dos diálogos interceptados, é possível aplicar as teorias pragmáticas da linguagem para reduzir as possibilidades de interpretação e proporcionar o acompanhamento adequado do fato investigado. Compete ao investigador entender os dizeres captados sob a perspectiva do investigado, especialmente interpretar os termos interceptados com os significados propostos pelos interlocutores para que a medida atinja resultados satisfatórios e suas conclusões sejam fidedignas. Daniel Fabio Fantini Delegado de Polícia Federal, Chefe Substituto da Delegacia de Polícia Federal em Divinópolis/MG, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e Especialista em Ciência Policial e Investigação Criminal pela Escola Superior de Polícia da ANP/DPF. No Departamento de Polícia Federal já ocupou as Chefias da Delegacia de Repressão ao Tráfico de Armas, de Imigração e de Defesa Institucional. E-mail: fantini.dff@dpf.gov.br

Abstract Phone-tapping and Language This paper presents the linguistic aspects inherent to the content of intercepted telephone exchanges. From this viewpoint, and in the light of linguistic studies, the subject has been broached from a pragmatic dimension while considering its empirical application. With regard to the difficulties in systematizing a theoretical approach to the use of language, the speech act and indirect speech act theories, respectively set forth by Austin and Searle, offer adequate solutions to explain the linguistic phenomena relating to conversations between possible perpetrators of crime, intercepted during criminal investigation. The theories mentioned provide theoretical tools for investigators whereby they are able to appropriately interpret the meanings of words recorded in a telephone tap according to their utilization. Namely, by emphasizing that utterance is equivalent to action, they reveal that the language recorded may be better understood when one analyzes the illocutionary forces driving communicative speech acts. Lastly, the speech act theory furnishes elements that enable investigators to make sense of speech acts with more than one illocutionary force, one explicit and the other implicit, facilitating understanding of the tapped conversations, even if they consist of the coded expressions, slang, or encrypted utterances frequently utilized amongst perpetrators.

KEYWORDS: Telephone tapping. Criminal investigation. Language. Pragmatics. Language games. Wittgenstein. Speech acts. Austin. Searle. 24

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O PRINCÍPIO DO DELEGADO NATURAL COMO EFETIVAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Moacir Martini de Araújo DELEPREV/DRCOR/SR/DPF/SP.

RESUMO O presente artigo analisa a natureza da investigação criminal e a forma de sua exteriorização nos termos da legislação processual penal brasileira. Após tal abordagem, passamos para a análise processual epistemológica da investigação criminal tal como processo ou procedimento, abordando as espécies de investigação criminal previstas no ordenamento pátrio, bem como as demais fases da persecutio criminis. Finalmente, é abordado o princípio do juiz natural e suas vertentes até a reflexão acerca de sua extensão ou não ao delegado de polícia na condução da investigação criminal. PALAVRAS-CHAVE: investigação criminal. Processo preparatório. Delegado de polícia- juiz natural. Procedimento.

1 Introdução O presente trabalho é fruto de diversas pesquisas e originário de outros artigos científicos, trabalhos monográficos e de nossa tese de doutoramento, posteriormente transformada em livro onde se discute acerca do inquérito policial como instrumento de efetivação constitucional. Posposto por grande parte da doutrina, adrede ao fato de escassos estudos relacionados às ciências policiais, mais precisamente sobre a teoria da investigação criminal, o presente abordará sobre a legitimidade e legitimação da autoridade policial presidente dos procedimentos que implementam o processo investigatório pátrio. Destarte desmistificaremos o mantra que ecoa em grande parte do país acerca dos instrumentos investigatórios reduzindo-os a uma mera reu-

Revista Brasileira de Ciências Policiais Recebido em 22 de maio de 2012. Aceito em 1º de abril de 2013.

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nião de atos administrativos informativos, quando na verdade integram o processo administrativo de investigação eleito pelo Estado através do qual executa a primeira fase da persecução criminal por meio de diversos procedimentos investigatórios, sendo um deles o inquérito policial. A partir daí abordaremos apenas um dos princípios que norteiam a gama principiológica constitucional apta a ser aplicada aos procedimentos investigatórios supracitados, mais precisamente o princípio nomeado pela doutrina como “princípio do juiz natural”, fundamento constitucional explícito inscrito no artigo 5º, inciso LIII que reza que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

2 A Natureza Jurídica da Investigação Criminal no Âmbito do Ordenamento Jurídico Adjetivo Brasileiro O termo no vernáculo “investigação”, no espanhol “investigación”, em inglês “investigation” tem origem no latim “investigatione” que decorre da somatória dos fixos “in”, “vestigius” e “actio” que teria um significado aproximado de “em busca do rastro”, “em busca da pista”. Na doutrina alienígena, principalmente portuguesa e espanhola, encontramos diversas correntes acerca da conceituação de investigação criminal, sendo que para o presente trabalho ficaremos com a abordagem trazida à baila pelo criminólogo Garrido Vicente, que enxerga o instituto como “método para a reconstrução de fatos passados que pretende responder a quatro perguntas básicas: onde, quando e como ocorreu o fato, e quem o praticou” (GARRIDO; STANGELAND; REDONDO, 2006, p. 853 apud PEREIRA, 2010, p. 59). A partir daí resta límpido para os leitores a natureza científica da investigação criminal, haja vista que visa a solução de um problema como qualquer outro meio de pesquisa. Em nosso meio tudo o que visa inicialmente à solução de um problema pode ser encartado como ciência, daí o fato de termos ciências que são exatas, biológicas e humanas. Tal constatação é tão lógica e correta que o próprio dicionário pátrio põe como sinônimas as palavras “investigação” e “pesquisa”. 28

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Obviamente que os métodos a serem eleitos para a consecução de seus objetivos não serão idênticos face a natureza e peculiaridades de cada um dos ramos supracitados, porém não podemos concordar com o ilustre jurista Antônio Rizzatto Nunes quando nega tal condição ao Direito, reduzindo-o a mera forma de imposição de poder estatal em relação aos seus administrados 1. No caso da investigação criminal, sua natureza é de ciência que consiste no conjunto de pesquisas de naturezas diversas administradas estrategicamente a fim de obter-se as circunstâncias da infração penal praticada e a sua possível autoria. O enfoque a ser realizado nessa gama investigativa versará sobre criminologia, criminalística, política criminal e dogmática jurídica penal. Não podemos olvidar que nesta fase da persecução criminal não se busca um juízo de probabilidade senão de possibilidade, ficando o primeiro para a segunda fase da persecutio criminis. Materialmente falando, após essa breve análise epistemológica do significado do termo “investigação”, de sua abordagem, alcance etc. podemos concluir que se trata de um ramo científico dotado de regras, princípios e postulados próprios e que se infunde em outras ciências do saber jurídico face a natureza una do Direito. Mister se faz analisarmos a natureza jurídica desse ramo da ciência jurídica, agora sob os auspícios da lei adjetiva brasileira, em outras palavras, trata-se de processo ou procedimento? Antes de nos enveredarmos na discussão aqui proposta de rigor relembrarmos a distinção existente entre esses dois termos. Nesse sentido o professor Helly Lopes Meireles (MEIRELLES, 1997, p. 591), cujas lições perpetuam-se no tempo, explica: Processo é o conjunto de atos coordenados para a obtenção de decisão sobre uma controvérsia no âmbito judicial ou administrativo; procedimento é o modo de realização do processo, ou seja, o rito processual. O processo, portanto, pode realizar-se por diferentes procedimentos, consoante a natureza da questão a decidir e os objetivos da decisão. 1 Conforme interpretação exarada a partir da obra Manual de Introdução ao Estudo do Direito, Luiz Antonio Rizzatto Nunes, Saraiva: São Paulo, 1996, p. 15.

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No mesmo sentido ARAÚJO CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO (GRINOVER, 2008, p. 298) in verbis: Processo é conceito que transcende ao direito processual. Sendo instrumento para o legítimo exercício do poder, ele está presente em todas as atividades estatais (processo administrativo, legislativo) e mesmo não-estatais (processos disciplinares dos partidos políticos ou associações, processos das sociedades mercantis para aumento de capital, etc.). Terminologicamente é muito comum a confusão entre ‘processo’, ‘procedimento’ e ‘autos’. Mas, como se disse, procedimento é o mero aspecto formal do processo, não se confundindo conceitualmente com este; em um só processo pode haver mais de um procedimento (p. ex., procedimentos em primeiro e segundo graus). Autos, por sua vez, são a materialidade dos documentos nos quais se corporificam os atos do procedimento; não se deve falar, por exemplo, em fases do processo, mas do procedimento; nem em consultar o processo mas os autos.

Assim sendo, levando todo o exposto para a seara do direito criminal, em síntese, podemos entender o processo como a forma pela qual o Estado exercerá o seu poder-dever de garantir o direito difuso de segurança pública em uma ótica repressiva. À exteriorização deste processo atribuímos o nome de procedimento, que por sua vez pode aparecer com diversas roupagens, ou melhor, ritos. Finalmente, à versão material de todo arcabouço reunido, devidamente autuado e condicionado nos cartórios das delegacias e fóruns, atribuímos o nome de “autos”. O processo administrativo inerente à investigação criminal não é explicitado por nosso ordenamento jurídico, porém isso não significa que ele não exista, até mesmo porque a sua consecução é decorrência direta e explícita do piso vital mínimo inerente aos préstimos que o Estado tem o dever de efetivar diante da segurança pública de seus administrados (Constituição Federal, artigo 6º, caput, combinado com o artigo 1º, inciso III e 114, caput). Ademais, mesmo antes de nossa Lei Maior, é possível concluirmos isso a partir da simples interpretação lógica, gramatical e teleológica do item IV da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, publicada no DOU de 13/10/1941, que em seu primeiro parágrafo consigna, “foi mantido o inquérito policial como processo preliminar ou preparatório da ação penal, guardadas as suas características atuais” (grifos nossos). 30

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Assim, com o advento do Codex, o Estado passou a exercer a persecução criminal na fase administrativa através do procedimento preliminar investigatório que, por sua vez, poderia ser externado por meio de dois procedimentos, a saber: o inquérito policial e a verificação preliminar de informações, também conhecida na doutrina policial pela sigla VPI. O procedimento investigatório de inquérito policial está previsto nos artigos 4º usque 23 do Código de Processo Penal, sendo que o §3º do artigo 5º foi reservado ao VPI. Inicialmente, cumpre esclarecermos que tal procedimento consiste na constatação preliminar de informações repassadas por terceiros sobre fato criminoso, sendo que a partir do reforço das evidências haverá a necessidade de tal procedimento convolar-se no próprio inquérito policial. Em razão do crescimento demográfico e da consequente evolução garantista das normas criminais de cunho material e processual, adveio em 1995, através da Lei nº 9.099, outro procedimento investigatório - o termo circunstanciado - próprio para a tramitação administrativa-policial das infrações penais de menor potencial ofensivo, sendo entendidas como tal todas as contravenções penais e crimes cuja pena máxima não excede a dois anos 2. Importante asseverar que em caso de complexidade o feito também será convertido em inquérito policial eis que nesta hipótese estarão perdidos os princípios da simplicidade, celeridade e informalidade inerentes aos Juizados Especiais Criminais 3. Portanto temos, no processo preliminar investigatório ou preliminar, três procedimentos investigatórios distintos cuja polícia judiciária irá servir-se para a consecução de seu múnus constitucional que é a elucidação do fato a fim de que seja resguardada a dignidade da pessoa humana de todos, tanto sociedade quanto do possível autor da infração. Adrede aos fundamentos salientados alhures, salta aos olhos o caráter de processo da investigação criminal preliminar haja vista a possibilidade de tramitação de outros tipos de procedimentos dentro dele, o que é impossível de ocorrer em um procedimento, eis que possuem determinado rito e não comportam incidentes ou questões prejudiciais. O procedimento preliminar investigatório comporta a existência de incidentes e procedimentos incidentais 2 Lei nº 9.099/95, artigos 61 e 69. 3 Lei nº 9.099/95, artigo 2º.

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tais como as cautelares processuais criminais como monitoramento eletrônico (CPP, artigo 319), prisão temporária (Lei nº 7.960/89, artigo 1º), preventiva (CPP, artigo 311) e domiciliar (CPP, art. 317), incidente de insanidade mental (CPP, art. 149), fiança (CPP, art. 321), medidas assecuratórias (CPP, art. 125/144), restituição de coisa apreendida (CPP, art. 120), busca e apreensão (CPP, artigo 250), incidente de falsidade (CPP, art. 145) etc. Desta feita, apenas para que o leitor possa visualizar o quadro de processos, procedimentos e ritos existentes no ordenamento jurídico pátrio, partindo-se da premissa que a persecução criminal estatal é composta por uma fase administrativa e outra judicial, temos na primeira o processo preliminar ou preparatório investigatório que por sua vez é composto pelos procedimentos investigatórios, de verificação preliminar de informação, termo circunstanciado e inquérito policial. Em juízo, nosso processo judicial é composto pelos procedimentos especiais e comum, o primeiro com espeque no próprio Codex, como na hipótese do procedimento do tribunal do júri e crimes contra a honra, ou em norma extravagante, como por exemplo a Lei de Drogas e de Abuso de autoridade. O procedimento comum, por sua vez, apresenta-se com ritos diferenciados, podendo ser ordinário, sumário ou sumaríssimo de acordo com o quantum da pena máxima prevista in abstrato 4. Importante consignarmos que o fato do processo preliminar investigatório não gerar punição não o desqualifica por si só para procedimento, uma vez que em um processo disciplinar a comissão processante também apenas exara as suas percepções, que serão acompanhadas ou não pela autoridade administrativa que possui atribuição para punir o servidor processado, e nem por isso a doutrina, naquele caso, questiona a sua natureza de processo, em que pese as especificidades que os procedimentos investigatórios contidos no processo preliminar possuam, como por exemplo a desnecessidade de aplicação do princípio constitucional do contraditório em razão de não existirem partes antagônicas no feito.

4 Art. 394. O procedimento será comum ou especial. § 1o O procedimento comum será ordinário, sumário ou sumaríssimo: I - ordinário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; II - sumário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada seja inferior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade;III - sumaríssimo, para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei.

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3 O Princípio do Juiz Natural e o seu Alcance Finda a primeira etapa de nossa jornada acadêmica em tema tão inóspito na doutrina, abordaremos agora o conhecido princípio consagrado na Lei Magna, qual seja, o princípio do juiz natural. Conforme já inserido no início do presente artigo científico, vimos que o inciso LIII do artigo 5º da Constituição Federal dispõe que ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente. Não há dúvidas de que este princípio veio a reforçar a vedação ao tribunal de exceção e a perseguições políticas na égide do Estado Democrático de Direito, ou melhor, o referido princípio é a própria efetivação do fundamento constitucional mencionado! Em breve síntese (NERY JÚNIOR, 2006, p. 133): “a causa deve ser julgada por juiz imparcial, competente, preconstituído pela lei, isto é, constituído primeiro do que o fato a ser julgado. A garantia abrange o processo civil, penal e administrativo” (grifos nossos).

Tal princípio de significado tão singelo em palavras, tem uma magnitude estrondosa, eis que ecoa de forma cristalina o Brasil que a população anseia, que busca o equilíbrio das relações sociais, a não existência de perseguições a quem quer que seja e principalmente o tratamento isonômico, que por conseguinte preservará a dignidade humana de todos sem distinção. No início da década de noventa, como nosso texto constitucional era por deveras garantista e com muitos dispositivos ainda sendo desfragmentados pelos estudiosos do direito, parte da doutrina passou a interpretar que, como o princípio em comento utiliza os termos “processado” e “sentenciado”, a Lei Maior não só estaria dizendo que os administrados deveriam ser julgados por um juiz imparcial, competente e preconstituído pela lei, mas também que o perseguidor dessa sentença, ou seja, o acusador, também deveria ser atrelado a este princípio. Daí o advento do denominado princípio do promotor natural 5. 5 STF, Pleno, HC 67759, rel. Min. Celso de Mello, j. ..8.1992, DJU 1º.7.1993, p. 13143; RSTJ 39/461.

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Na mesma esteira (NERY JÚNIOR, 2006, p. 133), in verbis: Quando o texto constitucional diz que ninguém será “processado” senão pela autoridade competente, estabelece o princípio do promotor natural, pois, em regra, não o juiz mas o MP é quem pode processar (dar início à ação penal ou civil pública). No texto, o verbo “sentenciar” é que se refere ao juiz. Devem todos os promotores de justiça ocupar cargos determinados por lei, vedado ao chefe do MP fazer designações especiais, discricionárias, de promotor ‘ad hoc’ para determinado caso ou avocar autos administrativos ou judiciais afetos ao promotor natural.

O professor paulista Guilherme de Souza Nucci também reconhece tal princípio, entretanto equivocadamente o enquadra como princípio constitucional implícito, o que discordamos, pois o texto constitucional utiliza expressamente a variante “processado”, o que demonstra por si só a existência dessa diretriz constitucional. Dando continuidade ao desenvolvimento do alcance do princípio do juiz natural surge a pergunta que não quer calar: essa diretriz pode ser estendida ao delegado de polícia? Praticamente toda a doutrina e jurisprudência é contrária à extensão de tal princípio ao delegado de polícia, tendo diversos fundamentos para tanto. O primeiro, que o inquérito policial é um procedimento e, portanto, despido dos princípios constitucionais; o princípio em comento possui apenas viés judicial e não administrativo; o delegado de polícia não é parte da persecução criminal e por isso não necessita desse princípio; a Constituição Federal não trata da questão; tal princípio contrapõe-se ao sistema inquisitivo que norteia o inquérito policial; o próprio Código de Processo Penal afasta a suspeição na hipótese do delegado de polícia em seu artigo 107. Contudo, não entendemos dessa forma, senão vejamos: conforme discorremos nos primeiros itens do presente trabalho científico, o inquérito policial é um procedimento que integra o processo preliminar investigatório, que é dotado de todas as diretrizes e axiomas inerentes ao processo, daí porque não vemos óbice na adoção do princípio em questão. Como todo e qualquer processo administrativo, a investigação basicamente é composta por três fases distintas: a instauração, a instrução e a conclusão, cabendo ao delegado de polícia a execução das três partes do processo. 34

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Cumpre esclarecer que em consonância com os itens 16 e 17 da Instrução Normativa nº 11/2001-DG/DPF, o inquérito policial ou o termo circunstanciado (espécies de procedimentos investigatórios) serão instaurados por portaria da autoridade policial federal; já na polícia civil o processo pode iniciar-se por outra peça que não a portaria, porém sempre com o despacho determinante da autoridade policial. Assim sendo, a partir da ocorrência de uma infração penal, cremos que o feito será processado administrativamente pelo delegado de polícia, o que por si só já atrai ao princípio do delegado natural. O fato do processo investigatório preliminar ter natureza inquisitiva não desnatura a aplicação deste princípio, senão o contrário, haja vista a necessidade do Estado redobrar a atenção para qualquer abuso, excesso ou desvio de poder por parte da autoridade presidente da carta de investigação. Todavia, não podemos deixar de esclarecer um equívoco que grande parte da doutrina pratica, principalmente nos manuais de graduação, onde defende que a investigação criminal é inquisitiva e ponto final... na verdade ela é predominantemente inquisitiva, porém aceita a ampla defesa, conforme já sustentamos diversas vezes em outros trabalhos que envolvem o tema 6. Muito menos resiste o argumento da natureza administrativa do processo investigatório preliminar, eis que doutrina e jurisprudência, quando abordam o princípio constitucional em comento, chegam a prever como possível tal ocorrência. Argumentar a impossibilidade do delegado de polícia, pelo fato dele ser um ator estranho à persecução criminal, acaba soando como algo preconceituoso, uma vez que, na verdade, ele é o ator pertencente ao tripé da persecução criminal administrativa que em regra terá contato em primeiro lugar com os fatos, como por exemplo nos casos de flagrante. Somam-se a esse fundamento as considerações feitas acima, pois foi reconhecido pela própria exposição de motivos do CPP como ator essencial na primeira fase da persecução criminal, o que só foi legitimado pela Constituição Cidadã 7. 6 ARAÚJO, Moacir Martini de. Inquérito Policial como instrumento de efetivação constitucional. Perse: São Paulo, 2011. 7 Nome atribuído pelo Deputado Federal Ulysses Guimarães à atual Constituição Federal, quando de sua promulgação em 05/10/1988.

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O Princípio do Delegado Natural como Efetivação do Estado Democrático de Direito

Por derradeiro, deixamos para o final o principal argumento que nos convence de forma inconteste sobre a temática aqui enfrentada. Trata-se da impessoalidade do ato administrativo. Reza o artigo 37, caput da nossa Constituição Federal, ipsis litteris, que: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)” (grifo nosso).

Uma vez que a investigação criminal é um processo administrativo, ela é composta por atos administrativos e, como tal, deve conter todos os princípios basilares da administração pública, entre eles o princípio da impessoalidade. Por sua vez, os atos de investigação praticados devem visar o interesse público e jamais o particular, buscando o esclarecimento do fato e não a exposição desnecessária do investigado ou a omissão voluntária que redunda na impunidade do mesmo. Conforme o magistério de Meirelles (1997, p. 85), in verbis: O princípio da impessoalidade, referido na Constituição de 1988 (art. 37, ‘caput’), nada mais é que o clássico princípio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que só pratique o ato para o seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de Direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato, de forma impessoal.

Mais adiante o administrativista, quanto ao princípio da finalidade, explica, ipsis litteris: A finalidade terá sempre um objetivo certo e inafastável de qualquer ato administrativo: o interesse público (...). Desde que o princípio da finalidade exige que o ato seja praticado sempre com finalidade pública, o administrador fica impedido de buscar outro objetivo ou de praticá-lo no interesse próprio ou de terceiros.

Deste modo, ainda que tenhamos alguns estudiosos que não admitam a existência do delegado natural, ele é oriundo da mesma fonte, por tipificação indireta do artigo 37, caput da Constituição Federal. Tanto é verdade que as polícias judiciárias possuem normas internas com o fim de distribuir os feitos que por lá tra-

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mitarão, obedecendo assim o princípio do delegado natural, que por sua vez deve ser imparcial, com atribuição 8 para investigar o fato e preconstituído pela lei. Nesse diapasão, essencial observarmos que o artigo 107 do Código de Processo Penal não diz que não existe suspeição para o delegado de polícia, mas apenas que não se poderá opor tal vício nos autos do inquérito policial, em que pese que, na parte final, o próprio texto da década de quarenta reconheça que o delegado pode ser suspeito nos termos da lei, tendo a obrigação de manifestar-se quanto a isso 9. Além disso, podemos extrair diversas outras conclusões do dispositivo infraconstitucional em comento, dentre as quais que os impedimentos e demais vícios poderão ser destacados em sede de investigação criminal, eis que só há menção a suspeição. Por fim, que tal proibição não foi recepcionada pela Lei Maior, haja vista que os atos de investigação devem ser impessoais e é notório que um delegado de polícia suspeito não conduzirá a investigação criminal de maneira fidedigna.

4 Considerações Finais Após a breve análise feita neste trabalho científico, constatamos que o Estado brasileiro, na condução da res pública e na busca da efetivação do bem comum, também denominado interesse público, adotará políticas públicas para a consecução do piso vital mínimo que, entre diversos direitos constitucionalmente previstos, prevê o dever de gerenciamento da segurança pública. Tal manegement lhe atribui o poder e ao mesmo tempo dever de punir todo aquele administrativo que violar as normas impostas pelo mesmo e, por conseguinte, definidas por lei como infração penal. O Estado aplicará a sanção correspondente ao agente infrator submetendo-o ao devido processo legal, princípio basilar previsto no artigo 5º, inciso LIV, que por sua vez demanda que o ente estatal dê início à persecução criminal. 8 Eis que competência é a medida da jurisdição e portanto está afeta apenas ao juiz que é o único sujeito processual capaz de “dizer o Direito” nos termos da Constituição Federal de 1988. 9 Art. 107. Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal.

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A persecutio criminis será única na hipótese dos detentores do exercício da ação penal já possuírem justa causa para o oferecimento da queixa/denúncia, ou então será composta por uma fase administrativa preliminar, onde então o Estado irá buscar essa justa causa, consistente na prova da materialidade delitiva e indícios de autoria, em suma, a elucidação da infração penal praticada. Na primeira fase, o Estado-administração exercerá, por meio dos órgãos de polícia judiciária, o processo preliminar ou investigatório preparatório, que será exteriorizado por meio de um de seus procedimentos: o termo circunstanciado, a verificação preliminar de informações ou o inquérito policial. Em um segundo momento, agora judicial, o Estado-acusação exercerá o seu poder/dever de agir e levará o feito à análise do Estado-juiz para aferição de responsabilidade criminal do agente pelo fato que lhe é imputado. O processo judicial, por sua vez, possui duas espécies de procedimento, o comum e o especial, sendo o primeiro dotado de ritos distintos: ordinário, sumário e sumaríssimo. Por todo exposto, ainda que em sede administrativa e de investigação criminal, de rigor, a existência e aplicabilidade do princípio do delegado natural, que poderia até ser renomeado pela doutrina como princípio da autoridade natural, vez que abrangeria todos os agentes do tripé do sistema criminal atualmente existente no ordenamento jurídico pátrio. Analisados friamente os argumentos lançados à baila no item anterior, veremos que não há motivo para afastarmos da autoridade policial este princípio que, sem dúvida, preservará o investigado e protegerá o cidadão de dois tipos de vício. O primeiro, a figura do delegado-xerife que, no afã de perseguir um desafeto ou algo do tipo, leva às últimas consequências a investigação criminal e, não muito difícil, o resultado de meses de investigação, como podemos observar em algumas operações policiais supersensíveis, que acabaram sendo prejudicadas pelo fato de seu coordenador levá-las por circunstâncias pessoais. Por outro lado, a impunidade inerente ao agente que vive na política de “proteger os seus” também será fadada ao insucesso diante da prática de tal princípio à autoridade policial.

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Imperioso constatarmos que na prática, em que pese toda doutrina em sentido contrário, sob a nomenclatura solitária de “impessoalidade”, o princípio aqui sustentado vem sendo aplicado hodiernamente pelas polícias judiciárias de natureza civil, cabendo destacar que o próprio Departamento de Polícia Federal prevê que na hipótese de avocação de algum processo investigatório preliminar antes do chefe assumir o feito, haverá a necessidade de correição extraordinária com o fito de que terceiro descubra o “porquê” da prática de tal ato. Em que pese toda argumentação trazida à baila, somos cientes dos obstáculos que tramitam na doutrina e jurisprudência, além da própria vontade política que gira em torno do presente tema, porém, como estudiosos do Direito e, acima disso, cidadãos em busca de um país e um mundo cada vez melhor, não podemos deixar de sonhar. Nesse sentido, encerramos com as palavras do jornalista americano Jacob Riis: Quando nada parece dar certo, vou ver o cortador de pedras martelando sua rocha talvez 100 vezes, sem que uma única rachadura apareça. Mas na centésima primeira martelada a pedra se abre em duas, e eu sei que não foi aquela que conseguiu isso, mas todas as que vieram antes 10.

Moacir Martini de Araujo Delegado de Polícia Federal. Doutor, mestre e especialista em Direito. Conselheiro editorial das Revistas Artigo 5º e Revista Criminal - Ensaios sobre a atividade policial. Professor universitário em diversas instituições de ensino, inclusive na Academia Nacional de Polícia e Escola Superior de Polícia. Tutor e conteudista de cursos de ensino à distância promovidos pela SENASP/MJ e CESP/ANP. Autor e coautor de diversas obras e artigos jurídicos. E-mail: martini.mma@dpf.gov.br

Resumen El Principio del Investigación Natural como Concretización del Estado 10 Disponível em: <http://pensador.uol.com.br/autor/jacob_riis/>. Acesso em 1º/05/2012.

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Democrático de Derecho En este artículo se analiza la naturaleza de la investigación criminal y la forma de su expresión en el marco del Derecho Procesal Penal en Brasil. Siguiendo ese enfoque, el procedimiento para el análisis epistemológico de la investigación criminal como un proceso o procedimiento, frente a los tipos de investigación penal en la tierra paterna, así como las otras fases de la persecutio criminis. Por último nos acercamos al principio de juez natural y sus variaciones a reflexionar sobre su alcance o no al comisário de la policía judiciária en la realización de la investigación penal. PALABRAS CLAVE: Investigación criminal. Proceso de preparación. El jefe de la policía- juez natural. Procedimiento.

Abstract The Principle of Natural Investigation as Effective Democratic State Law This article analyzes the nature of criminal investigation and its expression under the criminal procedure law in Brazil. Following this approach we move to an epistemological procedure analysis of criminal investigation as process or procedure, addressing the kinds of criminal investigation under the country law organization, as well as the other phases of persecutio criminis. Finally we discuss from the principle of “natural judge” and its variations up to the reflection on how it affects or not the marshall / chief of police's criminal investigation procedures. KEYWORDS: Criminal investigation. The preparatory process . Police of chief – natural justice. Procedure.

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APODERAMENTO ILÍCITO DE AERONAVES E TERRORISMO Sidney Bueno Silva Departamento de Polícia Federal - Brasil

Resumo O presente trabalho objetiva efetuar um estudo sobre a aplicação prática dos Tratados e Convenções Internacionais sobre Segurança da Aviação Civil e sua relação com o sistema jurídico penal brasileiro, contextualizando o problema e analisando o seu tratamento pela legislação nacional, explorando, dessa forma, como o direito pátrio trata legalmente do assunto e sua eficácia como norma penal incriminadora, definindo a responsabilidade penal nos casos de apoderamento ilícito de aeronaves e sua relação com atos de terrorismo, conforme estabelecido pelos tratados e convenções de que o Brasil é signatário. PALAVRAS CHAVES: Apoderamento Ilícito de Aeronaves; Segurança da Aviação Civil; Terrorismo; Tratados e Convenções Internacionais; Lei de Segurança Nacional.

1 Introdução O transporte aéreo no Brasil vem crescendo a índices muito altos e deve continuar nesse ritmo. Depois de décadas em que viajar de avião era apenas uma opção para as classes privilegiadas, hoje vemos um número maior de pessoas terem acesso ao transporte aéreo, graças à valorização da moeda nacional e ao aumento do poder aquisitivo dos brasileiros. Tal desenvolvimento gerou uma maior competição entre as empresas aéreas, reduzindo o custo das passagens. Atento a esse desafio, o Governo se mobiliza no sentido de encontrar meios para que as necessidades de modernização do setor aéreo sejam supridas 1. O desafio de adequar a segurança da aviação civil no Brasil ao 1 Em 19 de maio de 2010, foi realizada uma audiência pública pela Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo (CDR) para debater a segurança nos voos e a aviação regional, a pedido de Roberto Cavalcanti. O debate enveredou por um diagnóstico dos principais problemas da aviação civil brasileira e a necessidade de aprimorar o marco regulatório do setor. Os dados demonstram que o desenvolvimento do setor de transporte aéreo no país é forte – tendência que deve ser mantida pelos próximos anos. Até bem pouco tempo atrás, as projeções davam conta de que o mercado interno para o transporte aéreo de passageiros cresceria cerca de 200% nos próximos 20 anos. No entanto, os

Revista Brasileira de Ciências Policiais Recebido em 6 de junho de 2012. Aceito em 1º de abril de 2013.

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ritmo de crescimento da demanda – potencializado pela realização da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 – caminha paralelamente à construção de uma nova legislação para regular o setor. Segundo especialistas, entre eles o ministro da Defesa, Nelson Jobim, garantir recursos para ampliar o sistema depende de segurança jurídica, que, por sua vez, depende do trabalho do Poder Legislativo. Atualmente, a Câmara dos Deputados analisa 31 projetos cujo principal objetivo é atualizar a Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica), que está em vigor há vinte e cinco anos - antes, portanto, da promulgação da Constituição de 1988 e da liberalização do setor aéreo, cujo principal marco é a lei de criação da Agencia Nacional de Aviação Civil - ANAC (Lei no 11.182/2005). Um dos projetos foi elaborado pelo Ministério da Defesa e apresentado ao Congresso em março de 2010 ( JOBIM, 2010). A aviação civil obedece a regras internacionais de controle e segurança estabelecidas em tratados e convenções internacionais, como a Convenção de Chicago sobre Aviação Civil Internacional, realizada nos Estados Unidos, em 1944. O documento trata de princípios, padrões e recomendações para que a aviação internacional se desenvolva de maneira segura e sistemática. No evento foi criada ainda a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), sendo ratificada pelo Brasil em 1946. Em 1948 ocorreram os primeiros casos de desvio de aeronaves mediante intervenção criminosa e violenta, em sua maioria nos países socialistas. Tais crimes de motivação política envolviam geralmente aeronaves de pequeno porte, utilizadas como meio de fuga para os países ocidentais, com intuito de escapar à Cortina de Ferro e ao clima de hostilidade internacional provocado pela guerra fria. Com o desenvolvimento do transporte aéreo e o fim da guerra fria e a globalização, a malha aeroviária internacional se multiplicou e com ela surgiu uma nova ameaça à segurança da aviação civil - o terrorismo internacional. Inicialmente motivado por questões ideológicas, religiosas e políticas, o terrorismo internacional alterou o panorama da aviação mundial percentuais de crescimento nos últimos cinco anos, período que coincide com o aprofundamento da desregulamentação do setor, já se encontram em patamares muito mais elevados. Entre 2004 e 2006, o crescimento médio do número de passageiros transportados por quilômetro foi de 18,8% ao ano e, nos últimos meses, a taxa por vezes subiu acima dos 40%. Disponível em: www.senado.gov.br/notícias - Revista em Discussão. Acesso em: 24.04.2011.

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dando início a uma nova modalidade criminosa erroneamente chamada de "sequestro", e atualmente tipificada como "apoderamento ilícito de aeronaves", que constitui um dos fatos mais impressionantes no quadro da criminalidade violenta contemporânea. Tal ação expõe ao perigo a vida de inumerável quantidade de pessoas, comprometendo, além da segurança da aviação civil, a credibilidade na tutela jurisdicional do Estado, que constitui, sem dúvida, um dos mais importantes valores da vida moderna (FRAGOSO, 1970). Quando se aborda o terrorismo, podemos observar, em termos de política criminal internacional, que o mesmo aparece intimamente ligado a aviação civil. Existe uma grande controvérsia entre os doutrinadores nacionais sobre a questão da tipificação da conduta relacionada ao terrorismo. Sempre que se faz referência à necessidade de prévia lei, alude-se à lei ordinária, via pela qual atualmente é editada a esmagadora maioria das normas penais incriminadoras (GOMES; CERVINI, 1997). No topo da pirâmide de normas situa-se a Constituição Federal. Não existem na Carta Magna vigente normas penais incriminadoras completas, que tipificam infrações e cominam penas, tão-somente disposições de Direito Penal que determinam o conteúdo de normas criminais. O máximo a que se dispôs o constituinte foi mencionar crimes, tais como o tráfico de entorpecentes e o terrorismo, de modo a impor a obrigatória tipificação pelo legislador ordinário, cuja concretização, no caso do terrorismo, ainda não ocorreu (VARGAS, 1997). Nem todos os Estados Democráticos de Direito possuem tipificação penal para o crime de terrorismo no âmbito de suas legislações internas. A Constituição Federal vigente considera o terrorismo crime inafiançável, insuscetível de graça ou anistia (artigo 5º, XLIII, da CF), e o equipara aos chamados crimes hediondos - estabelecidos pela Lei no 8.078/90 - mas perde eficácia à mercê da inércia do legislador ordinário, que não autonomizou esse delito mediante tipos penais próprios. O Direito interno brasileiro possui apenas o artigo 20 da Lei no 7.170, de 14 de dezembro de 1983 (Lei de Segurança Nacional), sancionada no final do período político autoritário vicejante no país pós revolução (1964). Esse dispositivo penal faz menção, em seu preceito primário, a "atos de terrorismo" em geral, mas não "define" ou "exemplifica", o que inspira insegurança jurídica. A Lei de Segurança Nacional, no entanto, parece não participar do espírito ideológico que informa a atual previsão cons-

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titucional da figura, mesmo porque antecede a Constituição de 1988 e a própria (re) fundação do Estado Democrático de Direito. Dessa forma, não atende ao programa penal da Constituição em vigor, merecendo, na melhor hipótese, reformulação legislativa (FELICIANO, 2005). Qualquer crime ou violação à Convenção das Nações Unidas para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil, assinada em Montreal em 23 de dezembro de 1971 e promulgada no Brasil pelo Decreto 72.383/73, determina em seu artigo 3º, que os Estados aderentes adotem “penas severas” para reprimir tais atos considerados como terroristas. Podemos observar que, segundo a Convenção de Montreal, atos de interferência ilícita contra a aviação civil são considerados atos terroristas. Por se constituírem em normas para o futuro, os tratados e convenções internacionais não têm a função de tipificar crimes, sendo comum determinarem, à legislação interna dos países aderentes, a tipificação de determinadas infrações. A contextualização do problema tem como objetivo abordar o tema, analisando o seu tratamento penal na legislação brasileira, explorando como o Direito pátrio trata legalmente o assunto.

2 O Papel dos Tratados e Convenções Internacionais como Normas Incriminadoras A Constituição de 1988 contém dispositivos que reproduzem fielmente enunciados constantes de tratados internacionais de direitos humanos (proibição da tortura, presunção de inocência etc.), mas outros tratados podem alargar o universo dos direitos nacionalmente garantidos. Não se trata, como é óbvio, de normas incriminadoras. Mas mesmo que as normas de tratados e convenções internacionais vigentes previssem crimes e penas, não ostentariam status constitucional (LAFER, 2003). Durante muito tempo, debateu-se qual seria o nível hierárquico das normas internacionais incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio. A doutrina costumava atribuir aos direitos contidos em tratados o status de norma constitucional. O Supremo Tribunal Federal manifestou o entendimento de que tratados e convenções internacionais equiparam-se às leis infraconstitucionais quando recepcionados pelo 46

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ordenamento jurídico. A situação ficou mais clara quando se julgou a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel, cuja previsão não estava contida no Pacto de São Jose da Costa Rica, a que aderira o Brasil (HC n o 72.131/RJ, Relator Min. Marco Aurélio, DJ de 1o. de agosto de 2003, p. 103), uma vez que a norma internacional somente admite prisão por dívida do devedor de alimentos. Concluiu-se que a convenção não tem índole constitucional, incorporando-se ao ordenamento pátrio como lei infraconstitucional. Agora, há regulamentação expressa, imperativa e obrigatória. A Emenda Constitucional no 45/04 introduziu o § 3º ao art. 5º da Constituição, de acordo com o qual os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Indicaram-se quais espécies de tratados e qual procedimento deve-se adotar para a aquisição de status constitucional. Independentemente da classificação hierárquica dos tratados e convenções internacionais em face do ordenamento pátrio, em regra, não desempenham o papel de normas incriminadoras. Observações similares àquelas extraídas em relação às disposições constitucionais são depreendidas da análise das normas internacionais a que aderiu o Brasil. Tratados e convenções internacionais representam normas de conduta internacional para o futuro, que só vinculam juridicamente as partes contratadas, sejam Estados ou entidades capazes de se obrigarem na ordem internacional, a fim de que conciliem vontades divergentes e alcancem solução jurídica comum. Usualmente, têm por objeto determinadas infrações penais, posto que não cuidem de tipificá-las criminalmente. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 26 de maio de 1969, é uma das mais importantes fontes do Direito Internacional Público, pois nela as regras costumeiras sobre a matéria foram devidamente codificadas em documento quase perfeito, cujo objetivo foi precisamente o de reconhecer o direito das organizações internacionais de firmar tratados e convenções. Referida Convenção não proíbe a previsão, em normas internacionais, de disposições tipificadoras de delitos, conquanto seja incomum a adoção dessa prática, tendo como inequívoco exemplo a questão do terrorismo.

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Atualmente, estão em vigor doze tratados internacionais e dois regionais relativos ao terrorismo internacional. O Brasil aderiu ou ratificou nove deles, nos quais se incluem a Convenção da OEA para a prevenção e repressão dos atos de terrorismo enquadrados como delito contra as pessoas e atos conexos de extorsão de alcance internacional, de 2 de fevereiro de 1971, aprovado pelo Decreto-legislativo no 087/98; a Convenção para a repressão do apoderamento ilícito de aeronaves, de 16 de dezembro de 1970; a Convenção sobre a proteção física de materiais nucleares, de 3 de março de 1980, entre outros. Não obstante, o delito de terrorismo carece de tipificação pela lei brasileira (LAFER, 2003). A tímida alusão ao terrorismo no art. 20 da Lei n o 7.170/83 não se presta à tipificação da conduta, porquanto a “prática de atos de terrorismo” não se traduz em norma de encerramento idônea a resumir as condutas especificadas no dispositivo (HADDAD, 2011). O art. 20 da Lei no 7.170/83 não cumpre os objetivos dos tratados internacionais firmados. Assinala Alberto da Silva Franco que a falta de um tipo penal que atenda, no momento presente, à denominação especial de “terrorismo” e que, ao invés de uma pura “cláusula geral”, exponha os elementos definidores que se abrigam nesse conceito, torna inócua, sob o enfoque de tal crime, a regra do art. 2º da Lei 8.072/90. Não apenas o dispositivo do art. 2º da Lei dos Crimes Hediondos resta inócuo; toda a legislação referente ao terrorismo permanece acéfala, porque o delito em torno do qual é erigida não tem existência concreta (FRANCO, 1994).

3 Segurança da Aviação Civil e as Garantias Individuais No tocante à Segurança da Aviação Civil não se pode deixar de abordar o terrorismo internacional como um tema de grande importância no panorama atual. O mundo vive uma nova forma de insegurança, em virtude da qual todo sistema de segurança coletiva, construído a partir de 1945, vê-se fragilizado. Essa insegurança é ocasionada por grupos criminosos de pessoas que adotam ideologias religiosas, políticas ou psicológicas de ataque aos Estados e seus cidadãos. Tal motivação criminosa nem sempre é financiada por um Estado contra outro, mas, 48

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pode se relacionar com a criminalidade organizada, hoje totalmente globalizada, que se pulveriza entre eles. Em termos de aviação civil, um indivíduo, ou organização criminosa, mediante ação específica, pode pôr em perigo toda uma sociedade e minar bases político-administrativas de um Estado. As garantias e os direitos individuais assegurados aos cidadãos de bem são desprezados e colocados abaixo dos ideais criminoso-terroristas com emprego sistemático da violência na imposição arrogante da vontade. Embora o terrorismo não seja um fenômeno novo na ordem mundial, sua atual forma de apresentação, desligado do Estado, financiado por pessoas ou organizações criminosas, ataca sistemas políticos, atravessando fronteiras e não encontrando, ainda, resistência eficaz no Direito Internacional. O sistema internacional de segurança foi desenvolvido para defender os Estados e não as pessoas. A tentativa de um grande passo evolutivo foi dada com a criação do Tribunal Penal Internacional em 1988, cujos antecedentes históricos são os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, criados para os crimes cometidos na II Grande Guerra, como genocídio, massacres e de limpezas étnicas, os quais são imprescritíveis. A criação desse Tribunal se deu pela vontade de 120 países e só entrou em vigência após a ratificação por, pelo menos, sessenta deles. O Tribunal Penal Internacional foi o primeiro passo para uma justiça internacional no julgamento dos crimes contra a humanidade, ressaltando a figura desse sujeito de Direito Internacional que é o homem. Não é um tribunal para os Estados, mas para os indivíduos. Observa-se então que se um homem pode ser julgado por crime cometido além das fronteiras do Estado, ou dentro delas, fora do Ordenamento Jurídico Nacional, é porque se tornou internacionalmente responsável. O mundo caminha para uma nova era no Direito Penal Internacional. O sistema ainda é incipiente para regrar a atividade humana, mas suas fundações já estão configuradas. A globalização pôs em crise o Estado-Nação e provocou o surgimento desses novos atores que desenham uma sociedade internacional in-

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corporadora do sistema interestatal, do sistema econômico e das instituições supranacionais; os chamados movimentos e grupos transnacionais. Os novos atores do cenário internacional – velhos, por vezes com roupagem nova - passam a ser interlocutores em temas antes limitados à competência dos Estados, como nas questões referentes às minorias, direitos humanos, tráfico de drogas, meio ambiente, comércio internacional, terrorismo, segurança da aviação civil etc. O conceito de segurança deve ser expandido para além da clássica ideia que envolve os campos militar, econômico e tecnológico. Novos conceitos, regras, fatos, sujeitos internacionais inspiram uma dimensão inusitada do Direito Internacional (AMORIN, 2008). Para entendimento da importância da matéria e sua relação com a segurança da aviação civil se faz necessária uma breve explanação sobre os temas abordados nos Tratados e Convenções Internacionais, sua ratificação e adesão. Os Tratados e Convenções são fontes principais do Direito Internacional Público, ao lado dos costumes e dos princípios gerais do Direito (HUSEK, 2008). Nas obras dos estudiosos do Direito Internacional Público, estudadas para elaboração da pesquisa, podemos observar que os Tratados e Convenções são acordos formais celebrados entre Estados (sujeitos de Direito Internacional Público), destinados a produzir efeitos jurídicos na órbita internacional. É a manifestação de vontades de tais entes, sendo um ato jurídico formal que envolve pelo menos duas vontades. Antigamente, somente o Estado soberano tinha capacidade de promover Tratados com os seus co-irmãos. Aos poucos, tal característica foi sendo desvinculada da exclusiva figura do Estado, abrangendo as entidades internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), Organização dos Estados Americanos (OEA) e outras que são dotadas de personalidade jurídica de direito internacional (HUSEK, 2008). De acordo com o disposto na Convenção de Viena, Tratado significa - acordo internacional celebrado por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica (MAZZUOLI, 2008).

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No texto da Convenção de Havana, Tratado é um acordo de vontades, já considerando a forma escrita condição essencial. Existe, entretanto, doutrina que acata a validez do Tratado não-escrito ou oral, mas sua validade é questionável e tal assunto não é tema direcionado a pesquisa ora realizada (MAZZUOLI, 2008). A Convenção de Viena enfatiza o papel dos Estados na celebração dos Tratados. Nada obsta que outros atores internacionais concluam tratados e a própria Convenção o admite em seu Artigo 3º, desta forma, tais acordos terão seu valor jurídico assegurado. A aplicação será válida de quaisquer regras enunciadas na própria Convenção, a despeito de estarem excluídos de seu âmbito. Para a maioria dos Doutrinadores os Tratados e as Convenções Internacionais podem ser considerados expressões sinônimas, pois são estruturalmente idênticos. Sob o ponto de vista clássico, quando se estudam as fontes do Direito Internacional Público pode-se classificá-las em fontes materiais e fontes formais. Entre as fontes materiais, aparece o Tratado-contrato e entre as fontes formais o Tratado-lei, podendo ser bilaterais e/ou multilaterais. No caso da Aviação Civil a fonte formal é o Tratado-Lei. A Ratificação é a confirmação do Tratado pelo Chefe de Estado. Haverá, antes, aprovação pelo Congresso ou Parlamento. Da aprovação emana a autorização ao Chefe de Estado para efetivar a Ratificação. No Brasil é exigida a aprovação do Poder Legislativo (Congresso Nacional, Senado Federal e Câmara dos Deputados), por meio de um Decreto Legislativo, com a consequente promulgação do Decreto pelo Poder Executivo, atos estes que devem ser publicados no Diário Oficial da União. Nos Estados Unidos da América o Tratado é submetido ao Senado (Órgão de representação dos estados) e não à câmara (Órgão de representação popular). A Ratificação é ato discricionário do Chefe de Estado, não tem efeito retroativo, não tem prazo para ser efetivada e deve ser sempre expressa. Em geral, ocorre por meio de Carta de Ratificação, assinada pelo Chefe de Estado e referendada pelo Ministro das Relações Exteriores. Como os Estados são soberanos, pode haver recusa à Ratificação, o que é pacificamente aceito pelo Direito Internacional Público, conforme prevê o Artigo 7º da Convenção de Havana. A troca e o depósito dos instrumentos de Ratificação são atos decorrentes da própria Ratificação. A troca é utilizada em acordos bilaterais e o depósito, nos acordos multilaterais, geralmente efetuados no Órgão burocrático das Organizações Internacionais ou junto ao Governo de uma das partes contratantes.

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A Convenção de Havana, em seu Artigo 8º, enfatiza a importância da troca ou depósito à vigência dos Tratados, e sua publicação produz efeitos na ordem interna após a troca ou depósito dos instrumentos de Ratificação. É uma obrigação internacional, porém a falta de publicação não prejudicará sua vigência nem a exigibilidade das obrigações nele contidas. A Adesão é outra forma de expressão definitiva do consentimento do Estado em relação ao Tratado Internacional. Sua natureza não difere daquela da Ratificação, que é também manifestação firme da vontade de ingressar no domínio jurídico do Tratado. O aderente é, em princípio, um Estado que não negociou nem assinou o pacto, e que assim não pode ratificá-lo, mas que, tomado de interesse por ele, decide tornar-se parte, certificando-se antes da possibilidade do ingresso por Adesão. A finalidade prática dessa abordagem inicial sobre o Direito dos Tratados Internacionais é facilitar o entendimento do aspecto principal deste estudo - a fundamentação das normas de segurança aplicadas à Aviação Civil Brasileira, que muitas vezes são desconhecidas ou equivocadamente interpretadas pelos usuários do sistema aeroviário nacional. As principais regras jurídicas estabelecidas pelos Tratados e Convenções Internacionais sobre Aviação Civil estão estabelecidas nas Convenções de Paris (1919), de Madri (1926) e de Havana (1928), sendo expressivas tanto no plano coletivo quanto no bilateral do Direito Internacional Público. A soberania das Nações estabelece em suas legislações internas que as aeronaves militares, de polícia e de alfândega podem sobrevoar normalmente o território dos seus países e os espaços livres de qualquer soberania, desde que compromissos indicativos de alguma aliança estratégica lhes permitam circular por espaço aéreo alheio, como é o caso dos convênios estabelecidos entre o Brasil e os Estados Unidos da América para a repressão ao narcotráfico internacional e ações antiterrorismo. O terrorismo internacional deu origem a ações de resposta contrária por parte dos países atingidos e, dentro desta questão, devemos estudar a diferença entre ações antiterrorismo e ações de contraterrorismo, por estarem diretamente ligadas à questão da aviação civil internacional. As ações de contraterrorismo são ofensivas e se referem à ameaça terrorista. Podem ser classificadas como um conjunto de práticas e técnicas de intervenção emergencial empregadas pelo Estado com o objetivo

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de neutralizar agentes terroristas em ação, utilizando a prática do enfrentamento direto por unidades especiais das forças de segurança estatais, especialmente criadas e treinadas para esse fim. As ações antiterrorismo possuem caráter preventivo, buscando antecipar medidas de segurança que dificultem a possibilidade de realização de atentados, como é o caso dos aeroportos internacionais - necessitam adotar as medidas de segurança preventivas estabelecidas nos Tratados e Convenções Internacionais sobre Aviação Civil 2. A Convenção de Chicago de 1944 engloba três convenções principais que regem em todos os aspectos o tema da Aviação Civil Internacional, substituindo a Convenção de Paris de 1919, cujos princípios maiores preservaram, trazendo um expressivo acréscimo quantitativo. Todo esse esforço tem por objetivo principal assegurar o cumprimento do estabelecido no Artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, que versa sobre a segurança pessoal do cidadão. O tema principal do estudo é o “apoderamento ilícito de aeronave”, cujo nomem juris do delito está hoje incorporado ao Direito Brasileiro. Segundo regras da Convenção de Chicago, toda aeronave utilizada em tráfego internacional deve possuir uma nacionalidade, determinada por seu registro e matrícula. Esse vínculo implica a responsabilidade de um Estado soberano pela fabricação, engenho e garantia, e autoriza a respectiva proteção, se necessária. De nenhum modo interfere no regime jurídico internacional das aeronaves a questão de saber se as companhias a que pertencem são controladas pelo Estado ou não, como era o caso da maioria, até o início dos anos noventa. O que importa é a matrícula, o pavilhão nacional arvorado pela aeronave. O pavilhão determina a responsabilidade estatal respectiva e os direitos vinculados ao sistema das cinco liberdades, adotado pelos Países-Partes na Convenção de Chicago e mantido em operação pela Organização de Aviação Civil Internacional (OACI) 3. 2 CONVENÇÃO DE MONTREAL, Firmada em 23 de setembro de 1971, para a Repressão aos Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil, aprovada pelo Brasil através do Decreto Legislativo nº 71 de 28 de setembro de 1971 e promulgada pelo Decreto nº. 72.201 de 24 de fevereiro de 1972. Farias, Hélio de Castro. Disponível em: www.sbda.org.br Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SDBA). 3 Vigentes desde 1947, as CONVENÇÕES DE CHICAGO instituíram a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI) com sede em Montreal, e cujo principal propósito é uniformizar as regras sobre tráfego aéreo. Organização Internacional autêntica, com personalidade jurídica de Direito das gentes. REZEK, Francisco. Curso de Direito Internacional Público. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.p.

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O sistema das cinco liberdades compreende a liberdade técnica ou elementar de sobrevoo do território, tendo o Estado subjacente o direito de proibir certas áreas de restrição e de escala técnica, quando o pouso se faça imperioso em nome da segurança. Essas duas liberdades elementares são concedidas por todo Estado-membro da OACI às aeronaves de todo e qualquer outro, pelo fato de se congregarem nos textos de Chicago, sem necessidade de compromissos especiais, ou sequer de bom relacionamento e trato diplomático. Cuba, ao tempo em que não se relacionava com o Brasil, poderia ter estabelecido linha aérea civil entre Havana e Buenos Aires ou Montevidéu, sobrevoando o território brasileiro, reservada à autoridade local unicamente a prerrogativa de proibir o sobrevoo de certas zonas de segurança desde que igualmente proibidas ao sobrevoo de aviões de qualquer bandeira, incluindo os aviões civis nacionais. A terceira liberdade, de natureza comercial, é a de desembarcarem passageiros e mercadorias provenientes do Estado-patrial da aeronave. A quarta liberdade é a exata contrapartida da terceira, sendo a de embarcar passageiros e mercadorias com destino ao Estado-patrial da aeronave. Essas duas liberdades normalmente vêm juntas, quase sempre como consequência de tratado bilateral, ou o que é mais raro, da adesão a uma “convenção de tráfego” da OACI. A quinta liberdade também depende de ajuste especial, reclama entrosamento maior entre dois países. Com ela, cada um deles permite que as aeronaves do outro embarquem e desembarquem em seu território, passageiros e mercadorias com destino a – ou provenientes de – outros países membros da OACI, ou seja, qualquer parte do mundo onde se possa ter interesse em circular com aeronave comercial. Como exemplo de aplicação do sistema das cinco liberdades, RESEK assim define: As relações entre Brasil e Marrocos estão circunscritas à terceira e à quarta liberdades. Tanto significa que aviões da Royal Air Maroc aqui só desembarcam e recolhem pessoas originárias do Marrocos e com destino àquele País. Em nossas relações com a Argentina, porém, alcançam o patamar da quinta liberdade. Por isso um avião da Aerolineas Argentinas está autorizado a recolher no Brasil passageiros com destino a Europa e um avião da TAM pode levar a Buenos Aires carga recolhida no Japão e passageiros embarcados no Chile. De todo modo, mesmo no domínio da quinta liberdade, 328.

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não se compreende a concessão a empresas estrangeiras das linhas domésticas. Reservam-se estas às aeronaves de pavilhão nacional, o que pode ser derrogado por acordos especiais, como hoje acontece na União Européia (RESEK, 2008).

A exemplo da Convenção de Chicago (1944), os textos mais recentes contam com a participação de toda a sociedade internacional. Também é o caso do Protocolo de Montreal, de 1984, concebido para proteger o tráfego aéreo contra abusos do próprio Estado na preservação de sua segurança territorial. No âmbito da aviação civil, três são os tratados multilaterais de notada importância que precederam as negociações de Chicago ao final da segunda guerra mundial: a Convenção de Paris, a Convenção de Havana e a Convenção de Varsóvia, que estabelece a responsabilidade do transportador em caso de acidente ou qualquer forma de descumprimento do contrato de transporte, a qual se encontra em vigência até os dias de hoje. A Convenção Internacional de Paris (1919) defendia o exercício de soberania absoluta do Estado subjacente e admitia o sobrevoo inocente dando início à criação da Comissão Internacional de Navegação Aérea (CINA), para estudos dos problemas vinculados à navegação aérea. Tal convenção foi modificada pelo Protocolo de Londres (1922 e 1923) e pelo Protocolo de Paris (junho e dezembro de 1929). A Convenção de Madri (1926) e de Havana (1928), também discutiram sobre o assunto. Suas principais regras jurídicas foram utilizadas pela Convenção sobre Aviação Civil Internacional de Chicago (1944). São documentos desta Convenção: um Acordo Provisório realizado nas Ilhas Bermudas em 1946, entre os Estados Unidos da América e a Inglaterra e; um Protocolo de Emenda de 1947. Assinada e ratificada por muitos países, inclusive pelo Brasil, tal Convenção reconheceu em seu Artigo 1º que todos os Estados exercem soberania exclusiva e absoluta sobre o espaço aéreo acima de seus territórios, compreendendo este tanto a extensão terrestre, como as águas territoriais adjacentes (águas internas e mar territorial). A Convenção admite o sobrevoo inocente, mas somente para aeronaves civis. Ratificou o sistema das cinco liberdades do ar, garantindo o direito de sobrevoo, o direito de escala técnica para reparações, o direito de desembarcar passageiros, malas postais e cargas, embarcados no território do

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Estado de nacionalidade da aeronave; direito de embarcar passageiros, malas postais e cargas, destinados ao território do Estado de nacionalidade da aeronave, o direito de embarcar passageiros, malas postais e cargas, destinados ao território de terceiros Estados e o direito de desembarcar passageiros, malas postais e cargas procedentes do território de qualquer deles. O direito de sobrevoo e o direito de pouso técnico são direitos fundamentais e outorgados às aeronaves comerciais de todas as partes signatárias, e os de embarque e desembarque de passageiros, malas postais e cargas são de natureza comercial, podendo ou não ser outorgados às aeronaves civis dos Estados signatários. A Convenção de Chicago (1944) estabeleceu em seu Artigo 43º a substituição da Comissão Internacional de Navegação Aérea (CINA) pela Organização de Aviação Civil Internacional (OACI ou ICAO), composta por uma Assembleia, um Conselho e outros órgãos secundários. Organismo especializado da Organização das Nações Unidas (ONU), tem como objetivos principais, elencados em seu Artigo 44º, desenvolver os princípios e a técnica da navegação aérea internacional e estimular o desenvolvimento dos transportes aéreos interestatais. A Assembleia será o fórum da organização e se reunirá anualmente, tendo cada Estado contratante direito a um voto. Entre suas atribuições, está a de baixar instruções sobre problemas vinculados à aviação civil internacional. Sequestros, terrorismo e outras formas de violência no quadro da Aviação Civil, na segunda metade do século XX, levaram os países atingidos à celebração de Tratados e Convenções atentos ao problema da segurança. A Convenção de Tóquio foi realizada em 14 de setembro de 1963, sob os auspícios da Conferência Internacional sobre Direito Aéreo, foi convocada pela Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), e não trouxe contribuição importante em termos de acordo internacional quanto aos problemas jurídicos suscitados. Seu objetivo limitou-se a estabelecer a jurisdição do Estado em que a aeronave está registrada, para os crimes cometidos a bordo, bem como a jurisdição de qualquer outro Estado, desde que a ação criminosa produza efeitos no território deste. Para fins de tipificação penal, segundo esta Convenção, considera-se em voo a aeronave desde que seus motores sejam acionados para levantar voo até que termine a aterrissagem. Segundo Heleno Fragoso (1970) o grave 56

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defeito da Convenção de Tóquio foi não prever a obrigação de incriminar o apoderamento ilícito de aeronaves, limitando-se a estabelecer as medidas a serem adotadas pelos Estados em que a aeronave desviada pousar. A ausência dos países a que as aeronaves em geral eram conduzidas tornava tais deliberações inúteis. Por outro lado, enquanto não se impõe aos diversos Estados a obrigação de incriminar o fato, não há crime internacional. A matéria ficou em segundo plano na conferência em face do entendimento geral de que as leis internas de todas as nações já puniam as ações praticadas no apoderamento e desvio de aeronaves. A Convenção de Haia foi celebrada durante a Conferência Internacional de Direito Aéreo que se realizou naquela cidade em 16 de dezembro de 1970, para repressão do apoderamento ilícito de aeronaves. De acordo com a Convenção, os Estados contratantes obrigam-se a punir, com severas penas, a ação de qualquer pessoa que, pela força ou ameaça, ou por qualquer outra forma de intimidação, comete, a bordo de aeronave em voo, ato ilícito para exercer o controle da mesma, ou apenas tenta praticar qualquer desses atos, ou é cúmplice de quem os pratica. Para a Convenção, considera-se em voo a aeronave desde o momento em que suas portas externas são fechadas, no embarque, até o momento em que qualquer das mencionadas portas são abertas para o desembarque. A Convenção fixa o princípio da justiça universal, onde o Estado contratante em cujo território o suposto criminoso for encontrado, se não o extraditar, obrigar-se-á, sem qualquer exceção, tenha ou não o crime sido cometido no seu território, a submeter o caso às suas autoridades competentes para o fim de ser o mesmo processado. Estabelece, ainda, a Convenção, que o crime deverá ser considerado extraditável em todo Tratado de extradição existente entre os Estados contratantes, tendo sido aprovada por Decreto do legislativo e promulgada por Decreto do Executivo. A Convenção de Haia vigora no Brasil com força de lei, sendo editada em consequência dela a Lei no 5.786 de 1972, punindo com penas de reclusão a ação de apoderamento ilícito de aeronaves e fixando competência de foro militar por qualquer que seja a motivação do crime.

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A Convenção de Haia representou um passo importante na repressão deste tipo de ilícito, com equacionamento de importantes questões jurídicas, apesar da ausência de certos países utilizados como refúgio (Iraque, Síria, Jordânia, Cuba), que exercem função de particular relevo na matéria. Outra Convenção importante para o estudo foi realizada em Montreal. Celebrada em 23 de setembro de 1971, a Convenção de Montreal para repressão dos atos ilícitos contra a aviação civil veio completar, sob vários aspectos, a Convenção de Haia. Além do apoderamento ilícito de aeronaves, outras figuras de delito são previstas no documento. Em seu Artigo 1º, declara a Convenção de Montreal que comete crime quem pratica ato de violência contra pessoa a bordo de aeronave em voo, desde que tal ato possa colocar em perigo a segurança da mesma. Também se enquadra na tipicidade penal quem destrói aeronave em serviço, ou causa dano a ela, ou que a torne incapaz de voar, ou ainda, coloque em perigo a segurança do voo pela utilização de dispositivos ou substâncias capazes de destruí-la. A Convenção declara também puníveis a tentativa e a participação, estabelecendo para os Estados contratantes a obrigação de tornar os crimes punidos com severas penas. A Convenção de Montreal, celebrada no curso de Conferência Internacional sobre Direito Aéreo, foi ratificada pelo Brasil, aprovada por Decreto legislativo e promulgada pelo Presidente da República, vigorando atualmente com força de lei. O XI Congresso Internacional de Direito Penal, reunido em Budapeste, em setembro de 1974, cuidou, em uma de suas sessões, especificamente, da matéria. As conclusões aprovadas no Congresso de Budapeste destacam que a aviação civil internacional adquiriu valor e importância consideráveis na vida moderna e na comunidade internacional de nossos dias, devendo ser particularmente protegida contra os atos de interferência ilícita e desvio de aeronaves. Proclamam que a aviação civil internacional deve ser neutra no conflito entre nações e grupos, não podendo ser utilizada como meio de ação violenta nem constituir alvo de agressão (HUSEK, 2008). Reconhecendo o significado excepcional das Convenções de Haia e de Montreal, o Congresso Internacional recomendou a todos os Estados Membros que as ratificassem e as introduzissem na legislação nacional, assegurando dessa forma sua eficácia, cabendo a cada Estado demonstrar a

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execução da conduta típica no âmbito do direito penal e as circunstâncias que demonstram o fato. No caso do terrorismo, que pode estar intimamente relacionado ao apoderamento ilícito de aeronaves, as normas devem reger a presunção de perigo, mesmo que seja abstrato. No Brasil, a falsa sensação de que o país é livre de atentados terroristas tem diminuído a atenção que a matéria merece, escapando à margem das discussões doutrinárias a problemática do terror – crime que detém caráter transnacional e pode ser fatalmente difundido em qualquer país. Tendo por este motivo sua relevância, o terrorismo é tema do Direito Penal que merece atenção e pesquisas, inclusive em consonância com o Direito Penal Internacional.

4 A Responsabilidade Penal no Apoderamento Ilícito de Aeronaves Embora encontre raízes na Revolução Francesa e no Terror jacobino, o terrorismo, como o conhecemos, pode ser considerado um fenômeno moderno, característico do século XX, onde a aviação civil iniciou seu desenvolvimento como meio de transporte internacional. Foi no século XXI, porém, que o mundo testemunhou o mais letal ataque terrorista de todos os tempos, a destruição das torres do World Trade Center, nos Estados Unidos, consumada no fatídico dia 11 de setembro de 2001. Os atentados ao World Trade Center em Nova Iorque e ao prédio do Pentágono em Washington tornaram-se ícones na história da aviação civil. Jamais houve atentados tão grandiosos em destruição, violência e ousadia. A impressão que daí sobreveio foi a de que, mesmo a maior potência bélica e econômica do mundo, com seus mais sofisticados instrumentos de segurança, controle e vigilância, não pode impedir a ocorrência de ataques dessa natureza (CRETELLA NETO, 2008). Com isso, a política criminal antiterrorista ganhou um marco negativo na História da Humanidade - a ponto de se difundir, desde então, o emprego da expressão "pós-Onze de Setembro" para designar fenômenos muito recentes da pós-modernidade (FELICIANO, 2005). Vemos aqui, então, um panorama onde se misturam dois crimes, o apoderamento ilícito de aeronave e o terrorismo, sendo o objetivo de nosso estudo analisar o crime de apoderamento ilícito de aeronaves, fazendo alusão ao crime de terrorismo pelo fato dos dois crimes estarem interligados pela política criminal internacional.

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O terrorismo, como infração penal no Brasil, em virtude do preceito constitucional brasileiro que o enuncia como crime, não teve adequação à ordem jurídica do país, não havendo um aparato normativo infraconstitucional sobre o terror, o mesmo ocorrendo com o apoderamento ilícito de aeronaves. Acerca do tema, tem-se apenas a Lei de Segurança Nacional, onde se punem em seus artigos 19 e 20 as práticas de "apoderamento ilícito de aeronaves" e “atos de terrorismo”, não sendo definido o que constitui tais atos. Quando se fala em crime contra a Segurança Nacional, pretende-se punir as ações que se dirigem contra os interesses do Estado. Por este motivo, uma lei de segurança nacional visa proteger a segurança do Estado. No caso da Lei nº 7.170/83, seu art. 1º arrola os bens jurídicos a que visa proteger: I – a integridade territorial e a soberania nacional; II – o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; III – a pessoa dos chefes dos Poderes da União. Essa norma legal surgiu num momento de crise institucional, como expressão de um suposto direito penal revolucionário, inspirada por militares, que pretenderam incorporar na lei uma doutrina profundamente antidemocrática e totalitária. Para o saudoso Jurista e Professor Heleno Fragoso, há quase trinta anos já existia uma consciência nacional da necessidade urgente de reelaborar a lei de segurança nacional, porque ela aparece como “uma excrescência, um corpo morto e fétido no ambiente democrático que o Brasil respira, devendo ser submetida às exigências fundamentais da defesa do Estado num regime de liberdade”.

5 A Lei de Segurança Nacional Enquanto uma nova legislação para os crimes de apoderamento ilícito de aeronaves e terrorismo não é elaborada, é a Lei nº 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional) quem define tais crimes no Brasil. Tais condutas são elencadas nos artigos 19 e 20, utilizando a expressão "apoderar-se" e "atos de terrorismo", sendo os únicos dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro que tratam diretamente do assunto: Art. 19. Apoderar-se ou exercer o controle de aeronave, embarcação ou veículo de transporte coletivo, com emprego de violência ou grave ameaça à tripulação ou a passageiros. Pena: reclusão, de 2 a 10 anos.

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Art. 20. Devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas. Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.

Alberto Franco (1994) já defendia a inconstitucionalidade desse dispositivo, no que tange ao terrorismo, argumentando que o tipo penal, ao referir-se, de forma genérica, a “atos de terrorismo”, sem defini-los e sem apresentar seu significado, fere o princípio constitucional da reserva legal (CP, art. 1º. Não há crime sem lei anterior que o defina; não há pena sem prévia cominação legal), já que não há delimitação de sua incidência. Diz o autor: Embora a figura criminosa em questão corresponda a um tipo misto alternativo, ao encerrar a descrição de várias condutas que equivalem à concretização de um mesmo delito, força é convir que a prática de atos de terrorismo não se traduz numa norma de encerramento idônea a resumir as condutas anteriormente especificadas (FRANCO, 1994).

Mesmo tendo sido mencionado expressamente e com destaque na Constituição Federal, até mesmo em meio às cláusulas pétreas, o terrorismo em si nunca ostentou tipo penal próprio na legislação penal brasileira. Assim ocorreu nas Ordenações Filipinas, no Código Criminal do Império e nos Códigos Penais da República. Dessa forma, passou-se a indagar se já existia delito de terrorismo definido na legislação em vigor, ou se havia necessidade da aprovação de lei que o definisse, pois é mencionado na Lei dos Crimes Hediondos e previsto na Lei de Segurança Nacional. O Promotor de Justiça e Professor Vitor Eduardo Rio Gonçalves (2002) se posiciona pela constitucionalidade do artigo 20 da Lei de Segurança Nacional. O mesmo assevera que tal artigo contém um tipo misto alternativo, em que as várias condutas típicas se equivalem pela mesma finalidade, ou seja, o inconformismo político ou a obtenção de fundos para manter organização política clandestina ou subversiva. O autor diz ainda que todas as condutas do art. 20, pressupondo emprego de violência, constituem atitudes terroristas, não se devendo exigir que a lei defina expressamente a palavra terrorismo (GONÇALVES, 2002).

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No âmbito internacional podem-se observar as implicações do direito penal do inimigo através da figura do terrorista, que se encontra difundida no cenário global. Segundo o Mestre Heleno Fragoso; O termo terrorismo possui conotação pejorativa, sugerindo temor e hostilidade, sendo um dos fenômenos mais inquietantes do nosso tempo, gerando um estado permanente de alarma, através de meios capazes de produzir um perigo geral. O termo terrorismo é de difícil definição, não sendo abrangido pelo Tribunal Penal Internacional, em razão da pressão exercida pelos países hostis a sua criação (COMPARATO, 2003).

Jimenez de Asúa (1950) ensinava que "o terrorismo é um crime, ou uma série de crimes que se tipificam pelo alarma produzido, ordinariamente motivado pelos meios de estrago que o terrorista costuma usar ". No Brasil, a Lei nº 7.170/83 tentou vislumbrar o enquadramento do terrorismo no ordenamento jurídico penal, referindo-se aos crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social. Na doutrina nacional, há quem entenda que o artigo 20 da LSN faz menção a "comportamentos" que podem vir a ser enquadrados como terrorismo, ou seja, o inconformismo político e a obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações clandestinas subversivas (MORAES, 2001). Tal tipo penal, contudo, verifica-se impreciso, pois falta clareza, é vago, inexistindo o nomem juris terrorismo (ALMEIDA, 2002). Para o Ministro do STF Celso de Mello; Valores consagrados na Constituição permitem qualificar o terrorismo como crime inafiançável e insuscetível de clemência, não é crime político, tipo de delito que afasta a obrigação do país de extraditar acusados, conforme o artigo 5º, inciso LII da Constituição. O repúdio ao crime está entre os princípios essenciais que devem reger as relações internacionais do Estado brasileiro, de acordo com o artigo 4º, inciso VIII, da Constituição. Essas diretrizes constitucionais — que põem em evidência a posição explícita do Estado brasileiro, de frontal repúdio ao terrorismo — têm o condão de desautorizar qualquer inferência que busque atribuir, às práticas terroristas, um tratamento benigno de que resulte o estabelecimento, em torno do terrorista, de um inadmissível círculo de proteção que o torne imune ao poder extradicional do Estado brasileiro (MELLO, 2011).

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A falta de uma definição clara quanto ao tipo penal não é um problema brasileiro, lembra Celso de Mello. “Foram elaborados, no âmbito da Organização das Nações Unidas, pelo menos 13 instrumentos internacionais sobre a matéria, sem que se chegasse, contudo, a um consenso universal sobre quais elementos essenciais deveriam compor a definição típica do crime de terrorismo.” A Convenção Interamericana Contra o Terrorismo, assinada pelo Brasil em 2002, limitou-se a caracterizar a prática como “uma grave ameaça para os valores democráticos e para a paz e a segurança internacionais”, o que afasta a cláusula de proteção a criminosos políticos refugiados no Brasil Quanto ao artigo 19 da Lei de Segurança Nacional, o mesmo define como tipo penal a ação do agente em "apoderar-se" ou "exercer controle" por meio de violência ou grave ameaça a aeronave, embarcação ou veículo de transporte coletivo, ou seja, que transporte em seu interior vidas humanas, sendo portanto crime contra a pessoa. O referido dispositivo tem o objetivo de cumprir o que estabelece as Convenções de Haia (1970) e de Montreal (1971), ou seja, atos de interferência ilícita contra a aviação civil. Vale salientar, considerando a política criminal internacional, que em junho de 2002 foi promulgada a Convenção Interamericana contra o terrorismo, assinada em Barbados, no Caribe, considerando que o terrorismo constitui uma grave ameaça para os valores democráticos, para a paz e a segurança internacionais e é causa de profunda preocupação para todos os Estados membros da OEA. A Convenção Interamericana salienta: O terrorismo em todas as suas formas e manifestações, qualquer que seja sua origem ou motivação, não tem justificação alguma, afeta o pleno gozo e exercício dos direitos humanos e constitui uma grave ameaça à paz e à segurança internacionais, às instituições e aos valores democráticos consagrados na Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), na Carta Democrática Interamericana (RELATÓRIO ANUAL DO COMITÊ INTERAMERICANO CONTRA O TERRORISMO).

Tal Convenção entrou em vigor internacional em 10 de julho de 2003 e no Brasil em 26 de dezembro de 2005, através do Decreto 5.639. A referida Convenção reafirma a necessidade de adotar no Sistema Jurídico Interamericano medidas eficazes para prevenir, punir e eliminar o terrorismo Revista Brasileira de Ciências Policiais Brasília, v. 3, n. 1, p. 43-73, jan/jun 2012.

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mediante a mais ampla cooperação, reconhecendo que os graves danos econômicos aos Estados que podem resultar de atos terroristas são fatores que reforçam a necessidade da cooperação internacional. De acordo com o artigo segundo da referida Convenção, entende-se por "delito" aqueles estabelecidos nos instrumentos internacionais a seguir indicados: a. Convenção para a Repressão do Apoderamento Ilícito de Aeronaves, assinada na Haia em 16 de dezembro de 1970. b. Convenção para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil, assinada em Montreal em 23 de dezembro de 1971. c. Convenção sobre a Prevenção e Punição de Crimes contra Pessoas que Gozam de Proteção Internacional, Inclusive Agentes Diplomáticos, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 14 de dezembro de 1973. d. Convenção Internacional contra a Tomada de Reféns, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 17 de dezembro de 1979. e. Convenção sobre a Proteção Física dos Materiais Nucleares, assinada em Viena em 3 de dezembro de 1980. f. Protocolo para a Repressão de Atos Ilícitos de Violência nos Aeroportos que Prestem Serviços à Aviação Civil Internacional, complementar à Convenção para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil, assinado em Montreal em 24 de dezembro de 1988. g. Convenção para a Supressão de Atos Ilegais contra a Segurança da Navegação Marítima, feita em Roma em 10 de dezembro de 1988. h. Protocolo para a Supressão de Atos Ilícitos contra a Segurança das Plataformas Fixas Situadas na Plataforma Continental, feito em Roma em 10 de dezembro de 1988. i. Convenção Internacional para a Supressão de Atentados Terroristas a Bomba, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 15 de dezembro de 1997. j. Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1999.

Podemos observar em nosso estudo que após o ano de 2002 os crimes de terrorismo e apoderamento ilícito de aeronaves aparecem interligados em um só delito.

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6 Conclusão No âmbito do direito internacional podemos observar as implicações do direito penal do inimigo na figura do terrorista, que se encontra difundida em todo cenário mundial. O termo terrorismo é de difícil definição, não sendo abrangido pelo Tribunal Penal Internacional, em razão da pressão exercida pelos países hostis a sua Criação. A Lei de Segurança Nacional tentou vislumbrar o terrorismo no ordenamento jurídico penal como uma resposta às Convenções de que o Brasil é signatário, mas devido à época em que foi criada, falava-se em crime contra a Segurança Nacional, pretendendo-se punir as ações que se dirigiam contra os interesses do Estado. Como se observa, o próprio legislador considera tal definição de difícil delimitação conceitual, uma vez que “segurança nacional” ou “ordem e paz social” são bens jurídicos que em nada delimitam a intervenção estatal, perdendo o bem jurídico sua principal razão de ser. Nesse sentido é que surge o art. 1º da Lei, trazendo aquilo que deve ser considerado – mais delimitadamente – como objeto jurídico de proteção da Lei 7.170/83. Além disso, e desde as antigas exigências do princípio da legalidade (lex scripta, lex stricta, lex certa, lex praevia) e do bem jurídico-penal como limitador da intervenção do Estado, não se poderia admitir uma interpretação tão ampla e indeterminada do tipo, verificando-se impreciso, inexistindo o nomem juris terrorismo no artigo 20 da referida Lei, sendo perceptível a falta de clareza e objetividade. Isto atenta ferozmente contra o princípio da legalidade e contra o garantismo penal. Aliás, não é de forma alguma desprezível explicar que o sistema garantista quer exprimir a mesma ideia. Podemos citar como exemplo as leis infladas pelo espírito da guerra na Alemanha Nazista, que falavam em "rompimento da força defensiva do Estado, ou ainda, "o comportamento danoso ao povo", para estar consoantes ao regime totalitário. Tal legislação de conteúdo indeterminado serviu como uma luva nas mãos do governo nazista, uma vez que se podia dar legitimidade à sua arbitrariedade. A atual Constituição da República Federativa da Alemanha, em seu artigo 103, expressamente proibiu o legislador penal de estabelecer leis penais imprecisas, cuja descrição típica seja de tal forma indeterminada que possa dar lugar a dúvidas intoleráveis sobre o que seja ou não permitido ou proibido.

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Já vemos alguns países em que a legislação penal vem consagrando um conceito mais amplo de terrorismo, sem expressão política, desvencilhando o tipo penal do fim de agir político. A exemplo, temos o Código Penal da Espanha de 1995, que dedica seu capítulo VII aos crimes praticados por organizações e grupos terroristas, tipificando dos artigos 571 a 578 os delitos de terrorismo. Neste mesmo sentido seguem-se o Código Penal Alemão, Francês, Norte Americano e Argentino. Ao Estado cabe demonstrar a execução da conduta típica no Direito Penal e as circunstâncias que demonstram o fato e, no caso do terrorismo, as normas devem reger a presunção de perigo, mesmo que seja abstrato. Ocorre que, nos tipos de perigo abstrato, não é permitida a prova de inocência do réu, sendo defendida sua inconstitucionalidade por algumas correntes doutrinárias. Dessa forma, o tipo penal não pode ser elástico ou flexível, a ponto de ser impossível se saber os limites entre o permitido e o proibido. Se assim o for, qualquer pessoa pode utilizar a lei e o tipo da forma que melhor lhe aprouver, indo de encontro aos princípios do Estado Democrático de Direito. Tal situação já não é observada no crime de apoderamento ilícito de aeronaves, previsto no artigo 19 da referida lei, pois o tipo penal "apoderar-se" utilizando-se de "violência ou grave ameaça" tem sua conduta bem definida, faltando, no entanto, estabelecer em que nível tal conduta poderia ser caracterizada como terrorismo. Essa mesma situação se verifica no artigo 616 do Código Penal Espanhol, onde o crime de apoderamento ilícito de aeronaves é tipificado como delito de pirataria, pelo seu menor potencial ofensivo. Por certo, a ideia de globalização traduz uma internacionalização das relações entre os povos e os Estados Nacionais de modo a identificarmos, ao lado destas micro realidades, uma só região, um só mundo, refletindo-se na economia, na política e também no direito. É evidente que o direito como um fenômeno histórico-cultural, não poderia passar longe deste fenômeno mundial. Com efeito, as transformações provocadas pela globalização também atingiram o Direito Penal na sua totalidade, forçando inclusive o surgimento de legislações específicas de combate ao crime transnacional. Com a Globalização, o poder punitivo do Estado precisou assumir novas formas, mudando to-

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talmente sua fisionomia. Exemplo disso é a preocupação mundial com o terrorismo internacional, atualmente ligado aos delitos de lavagem de dinheiro e tráfico de entorpecentes. O Brasil, ao sediar os jogos da copa do mundo e das olimpíadas, deve encarar com muita seriedade o projeto de reformulação do Código Penal, incluindo em seu texto os crimes previstos nos artigos 19 e 20 da Lei de Segurança Nacional, pois, de nada adianta ter uma legislação que assegure conduta criminosa e penas severas, sem a existência de um tipo penal específico que defina o limite entre o permitido e o proibido, pois isso se traduz em insegurança jurídica. Em matéria de normas de tratados e convenções internacionais, apesar da promulgação por Decreto Presidencial ser suficiente para torná-los normas de direito interno, no caso de crimes não se admite a aplicação direta de seus enunciados em face do princípio constitucional da legalidade estrita. Assim sendo, os crimes necessitam tipificação com todas as suas circunstâncias através de lei interna promulgada de acordo com o processo legislativo. Desta forma, além dos delitos de genocídio, tortura e racismo, não há previsão legal para a tipificação do terrorismo. Com um fato típico tão aberto, a criminalização do terrorismo no Brasil dá margem para acaloradas discussões entre os pesquisadores do tema, onde muitos o consideram inconstitucional, e até mesmo não recepcionado pela CF/88, por afrontar o princípio da reserva legal, já que a Lei de Segurança Nacional é de 1983. O Brasil tem trabalhado muito no sentido de se estabelecer medidas preventivas de combate à interferência ilícita na aviação civil e consequentemente evitar atos de natureza terrorista, porém deve igualmente trabalhar com o mesmo empenho e seriedade no sentido de desenvolver mecanismos jurídicos adequados a este tipo de conduta criminosa. O projeto de Lei nº 6.764, proposto pelo Poder Executivo no ano de 2002, define os crimes contra o Estado Democrático de Direito, prevendo no capítulo 3, artigos 371 e 372, as figuras típicas do crime de terrorismo e apoderamento ilícito de aeronaves, descrevendo sua conduta e as penalidades da seguinte forma:

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Terrorismo Art. 371. Praticar, por motivo de facciosismo político ou religioso, com o fim de infundir terror, ato de: I - devastar, saquear, explodir bombas, sequestrar, incendiar, depredar ou praticar atentado pessoal ou sabotagem, causando perigo efetivo ou dano a pessoas ou bens; ou II - apoderar-se ou exercer o controle, total ou parcialmente, definitiva ou temporariamente, de meios de comunicação ao público ou de transporte, portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, instalações públicas ou estabelecimentos destinados ao abastecimento de água, luz, combustíveis ou alimentos, ou à satisfação de necessidades gerais e impreteríveis da população: Pena – reclusão, de dois a dez anos. § 1o Na mesma pena incorre quem pratica as condutas previstas neste artigo, mediante acréscimo, supressão ou modificação de dados, ou por qualquer outro meio interfere em sistemas de informação ou programas de informática. § 2o Se resulta lesão corporal grave: Pena – reclusão de quatro a doze anos. § 3o Se resulta morte: Pena – reclusão, de oito a quatorze anos. § 4o Aumenta-se a pena de um terço, se o agente é funcionário público ou, de qualquer forma, exerce funções de autoridade pública. Apoderamento ilícito de meios de transporte Art. 372. Apoderar-se ou exercer o controle, ilicitamente, de aeronave, embarcação ou outros meios de transporte coletivo, por motivo de facciosismo político, religioso ou com o objetivo de coagir autoridade: Pena – reclusão, de dois a dez anos. § 1o Se resulta lesão corporal grave: Pena – reclusão de quatro a doze anos. § 2o Se resulta morte: Pena – reclusão, de oito a quatorze anos.

Como podemos observar o Projeto de Lei objetiva Acrescentar o Título XII, que trata dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, à Parte Especial do Código Penal, que é de 1940, onde o elemento subjetivo do tipo é o dolo e os crimes se consumam com a realização de qualquer dos núcleos previstos no tipo penal. 68

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Os artigos 371 e 372 do Projeto de Lei referenciado poderiam, no entanto, adequar-se à Convenção de Barbados, incluindo os casos em que o apoderamento ilícito de aeronaves ou de transporte coletivo fosse classificado como terrorismo, figurando na seguinte proposta: Atos de Terrorismo: Art. 371. Praticar, com o objetivo de infundir terror, atos de: I - devastar, saquear, explodir bombas, sequestrar, incendiar, depredar ou praticar atentado pessoal ou sabotagem, causando perigo efetivo ou dano a pessoas ou bens; ou II - apoderar-se ou exercer o controle, total ou parcialmente, definitiva ou temporariamente, de meios de comunicação ao público, de aeronaves ou de transporte coletivo, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, instalações públicas ou estabelecimentos destinados ao abastecimento de água, luz, combustíveis ou alimentos, ou à satisfação de necessidades gerais e impreteríveis da população: Pena – reclusão, de cinco a quinze anos. § 1o Na mesma pena incorre quem pratica as condutas previstas neste artigo, mediante acréscimo, supressão ou modificação de dados, ou por qualquer outro meio interfere em sistemas de informação ou programas de informática relacionados à manutenção da ordem pública e da paz social. § 2o Se resulta lesão corporal grave: Pena – reclusão de dois a dez anos. § 3o Se resulta morte: Pena – reclusão, de cinco a quinze anos. § 4o Aumenta-se a pena de um terço, se o agente é funcionário público ou, de qualquer forma, exerce funções de autoridade pública.

Nesta proposta, o crime de apoderamento ilícito de aeronaves é classificado como terrorismo quando praticado com objetivo de "infundir o terror", contra o Estado Democrático de Direito e seus cidadãos, deixando a conduta menos violenta com menor potencial ofensivo tipificada no artigo 372 da seguinte forma: Apoderamento ilícito de meios de transporte: Art. 372. Apoderar-se ou exercer o controle, ilicitamente, de aeronave, embarcação ou outros meios de transporte coletivo, por motivos pessoais, de facciosismo político, religioso ou com o objetivo de coagir autoridades:

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Pena – reclusão, de três a sete anos. § 1o Se resulta lesão corporal grave: Pena – reclusão de quatro a dez anos. § 2o Se resulta morte: Pena – reclusão, de seis a doze anos.

Importante salientar que o referido projeto foi rejeitado em análise de mérito no ano de 2009, sendo considerado um atentado aos direitos das pessoas. Infelizmente, no Brasil, nos acostumamos a efetuar debates e nos debruçarmos sobre questões controvertidas na área penal somente após a ocorrência de tragédias que expõem publicamente a fragilidade de nosso sistema. A proposta deste estudo foi uma tentativa de se trazer o tema para a discussão acadêmica, buscando um discernimento legal para a imputação penal objetiva nos crimes de apoderamento ilícito de aeronaves e terrorismo. Para tanto, efetuamos uma breve comparação entre a legislação em vigor no Brasil e a de outros países diante dos avanços da política criminal internacional estabelecida nos Tratados e Convenções sobre o tema, pois se trata de uma parte de nossa história que ainda não conhecemos. Sidney Bueno Silva Agente de Polícia Federal, Bacharel em Direito e Especialista em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá. Possui mais de dez anos de atuação na Área de Segurança Aeroportuária. E-mail: sidney.sbs@dpf.gov.br

Abstract Unlawful Seizure of Aircraft and Terrorism This essay aims to make a study on the practical application of the International Treaties and Conventions on the Civil Aviation Safety and its relationship with the criminal justice system in Brazil, contextualizing the problem and analyzing their treatment in the Brazilian Law, exploring this way how the Brazilian Legislation approaches the criminal standard and your effectiveness, defining the criminal liability in cases of Unlawful Seizure of Aircraft and their relation to acts of terrorism, as established by international treaties and conventions whose Brazil is signatory.

KEYWORDS: Unlawful Seizure of Aircraft; Civil Aviation Safety; Terrorism; International Treaties and Convention; Standard Security Law. 70

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Processos de Mentoring e Shadowing como Ferramentas de Gestão do Conhecimento para a Socialização de Novos Servidores no Departamento de Polícia Federal Luciano D´Escragnolle Cardoso DEPARTAMENTO DE POLÍCIA FEDERAL.

RESUMO O propósito deste artigo é investigar as principais dificuldades de socialização organizacional enfrentadas por servidores recém-empossados no Departamento de Polícia Federal, com o objetivo de apontar a possibilidade de utilização dos processos de mentoring e shadowing como ferramentas de gestão do conhecimento orientadas à aprendizagem organizacional, atuando através do compartilhamento sistematizado de experiências e do incentivo à socialização de conhecimentos entre antigos e novos servidores. Para tanto, apresenta o resultado de uma pesquisa qualitativa introdutória ao tema realizada através de entrevistas com servidores policiais empossados no órgão a partir do concurso público realizado no ano de 2004, visando apontar as dificuldades mais comuns de socialização (ambientação) por estes vivenciadas, e como os processos de mentoring e shadowing podem contribuir para a redução das barreiras enfrentadas pelos servidores entrantes no órgão, bem como atuar na disseminação da cultura interna de aprendizagem e gestão de conhecimento, agregando os conhecimentos produzidos como um incremento à memória organizacional.

Palavras-Chave: Shadowing. Mentoring. Gestão do conhecimento. Aprendizagem organizacional. Memória organizacional. Socialização organizacional.

1 Introdução No amplo universo das ciências sociais, muito se discute atualmente sobre os temas da gestão do conhecimento e gestão de pessoas, suas ferramentas e aplicações, onde cada vez mais se percebe que o conhecimento ganha importância como um recurso organizacional, frente à ampla competitividade empresarial e à busca contínua de vantagem competitiva. Neste contexto, po-

Revista Brasileira de Ciências Policiais Recebido em 14 de junho de 2012. Aceito em 1º de abril de 2013.

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demos assumir o fato de que vivemos em um período singular na história, traduzido por inúmeros autores contemporâneos pelo termo “pós-modernidade”. Ao buscar as características preponderantes desta “pós-modernidade” contemporânea, alguns conceitos fundamentais certamente serão apontados, tais como a globalização econômica e cultural; a presença de um ambiente conjuntural pautado pela incerteza; a grande competição entre organizações em busca de mercados; as modificações qualitativas das forças de produção, ressaltadas através do surgimento do “trabalhador do conhecimento” e, consequentemente, de sua influência na transformação das relações de trabalho. Em uma economia onde a única certeza é a incerteza, a fonte certa de vantagem competitiva duradoura é o conhecimento. Quando os mercados transformam-se, as tecnologias proliferam, os competidores multiplicam-se e os produtos tornam-se obsoletos quase do dia para a noite, as empresas bem sucedidas são as que criam novos conhecimentos, disseminam-no amplamente pela organização e o incorporam rapidamente em novas tecnologias e produtos (NONAKA; TAKEUSHI, 2008, p. 39).

Partindo-se desta premissa, a busca pelo entendimento das características de nossa sociedade atual, palco de tantas e abruptas mudanças, passa, necessariamente, pela busca dos momentos históricos iniciais destas transformações. Decerto, o progresso científico, impulsionado pelas mudanças sistemáticas do significado e emprego do conhecimento, é parte integrante de todas as revoluções sociais que se passaram nos últimos séculos, cujas consequências refletem o objeto do presente estudo. Estas mudanças históricas, representadas principalmente pela Revolução Científica do século XVII, traduziram a ruptura entre a idade média e a modernidade a partir de um novo entendimento da Ciência, formado pela unidade entre o conhecimento científico da tradição grega (episteme) e a técnica (techne), impondo um sentido de utilidade prática, preponderante para o surgimento da tecnologia. “(...) então, começando depois de 1700, e em um período incrivelmente breve de cinquenta anos – a tecnologia foi inventada” (DRUCKER, 2001, p. 20). A própria palavra tecnologia, como aponta Drucker em outro trecho de seu trabalho (2001, p. 20), trata-se de um manifesto, ao combinar os termos “techne”, ou o mistério de uma arte, ao sufixo grego “logia”, o estudo sistemático e intencional. Desta forma, a partir da expansão da tecnologia, 76

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formou-se o ambiente de mudanças que, em um contexto de ampla complexidade, contribuiu para a formação de nossa sociedade contemporânea. Assim, nesta denominada “sociedade pós-moderna”, caracterizada pelo elevado grau de incerteza, de grande velocidade de mudanças e, consequentemente, de ampla instabilidade, a sobrevivência das organizações advém principalmente da forma pela qual estas exercem o poder de adaptação aos novos padrões de realidade postulados, baseados na quebra de paradigmas, na mudança das relações de trabalho e na convivência e compreensão de paradoxos (como micro e macro, autonomia e controle), onde, de acordo com Nonaka e Takeushi (2008, p. 18), “uma das principais razões pelas quais as empresas fracassam, atualmente, é sua tendência de eliminar os paradoxos, prendendo-se a antigas rotinas criadas pelo seu sucesso anterior”. Neste contexto, aplicando um grau comparativo entre os sistemas privado e público, neste último a necessidade adaptativa é igualmente relevante, não pela questão de sobrevivência organizacional, uma vez que não permanece incorporado sob um modelo Biológico-Darwinista, mas sim para a manutenção ou melhoria da eficiência em sua prestação de serviços, sob pena de conservação de uma estrutura inapropriada, burocrática, pouco competitiva, com alto índice de turnover de servidores e baixa inovação, inibidores de um sistema de gestão eficiente. Para tanto, possuir uma visão holística destes fatores é condição sine qua non para compreensão da sociedade contemporânea e seus efeitos, formados sobretudo pelas interconexões entre atores, variáveis e demais componentes do universo social. Neste contexto, “(...) pensamento sistêmico e prática sistêmica são competências-chave no processo de aprendizagem de como lidar com situações de complexidade do “mundo real” (SCHLINDWEIN, 2005). Embora estes parágrafos introdutórios possam parecer aparentemente fora do escopo proposto, são de fundamental importância para o entendimento do ponto-chave deste estudo, o qual surge como uma das consequências deste conjunto de mudanças tecnológicas e sociais: as mudanças qualitativas das forças de trabalho e de sua relação com a organização, como fatos que justificam a evidência em que os temas da “gestão do conhecimento” e “gestão de pessoas” são abordados nas teorias atuais da administração.

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Esta mudança qualitativa das forças de trabalho, traduzida pela paulatina migração de um trabalho manual para um exercício tipicamente intelectual (principalmente no século XX, onde pela primeira vez utilizou-se o termo “trabalhador do conhecimento”), pode ser considerada uma das mudanças sociais mais importantes do último século, uma vez que induz as organizações a adotar novas estratégias de gestão para a manutenção do potencial competitivo (da organização mecanicista para a organicista; do gerente-capataz ao líder; da verticalização para a estrutura horizontal e transversal, da decisão centralizada para a compartilhada etc.). Segundo Drucker (2001, p. 13), “a única vantagem competitiva significativa é a produtividade do trabalhador de conhecimento. E essa está em grande parte nas mãos desse trabalhador, e não nas mãos da administração”. Desta forma, ao perceber a relevância deste ativo intangível, modificam-se os modelos de gestão organizacional no tocante à valorização do conhecimento, de criação de uma memória coletiva e de processos de aprendizagem. Para Fleury e Oliveira Jr. (2002, p. 133), os “temas como capital humano, capital intelectual, inteligência competitiva e gestão do conhecimento vêm se tornando palavras de ordem nas organizações, com diferentes significados e aplicações”. Assim, o trabalhador que outrora dependia dos meios de produção disponibilizados pela organização para seu exercício laboral, hoje os carrega consigo, em um fenômeno que justifica o atual índice de mobilidade de funcionários que apresentam diversas empresas, e traz à tona os temas da gestão do conhecimento e gestão de pessoas, uma vez que as organizações precisam tanto atrair e reter seus funcionários (onde se insere a ambientação – ou socialização), quanto produzir continuamente e disseminar conhecimentos para a perpetuação de sua existência (onde se integra a aprendizagem e memória organizacional). Conforme assinalam Fleury e Oliveira Junior (2002, p. 133), “organizações que enfrentam condições de incerteza, ambientes em mudança e intensa competição devem ser capazes de aprender e, ao fazê-lo, desenvolver novos conhecimentos”, onde “já se tornou lugar-comum afirmar que o recurso mais valioso em um cenário de mudança e crescente complexidade são as pessoas” (FLEURY; OLIVEIRA JR., 2002, p. 133).

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No caso da questão-tema deste estudo, cuja organização pesquisada atua diretamente na prestação dos serviços de segurança pública, o fator de efetividade na condução de suas políticas se torna ainda mais fundamental, uma vez que, embora assumindo toda a complexidade envolvida (onde se integram amplas questões de natureza social, política e econômica), permanece conectada à manutenção dos direitos mais fundamentais do homem, quais sejam, os direitos pétreos à vida, à liberdade e à segurança. Findos os conceitos introdutórios – entendidos os fatores históricos que contribuíram para o desenvolvimento da sociedade contemporânea –, e percebendo as mudanças qualitativas das forças produtivas, cuja demanda conduz paulatinamente as organizações para a modificação dos processos de gestão que envolvem estes ativos intangíveis, passamos a buscar alternativas para o “como melhorar” a eficácia das políticas implementadas, neste caso, através da adoção de ferramentas de gestão do conhecimento orientadas à aprendizagem organizacional. Diante desta perspectiva, percebe-se a relevância do tema em questão, cujo escopo baseia-se na proposta de utilização de ferramentas de gestão do conhecimento orientadas à aprendizagem e memória organizacionais para diminuição das barreiras de ambientação (socialização) vivenciadas por novos colaboradores da organização pesquisada. Desta forma, o presente estudo busca responder à seguinte questão-chave de pesquisa: como melhorar os processos de socialização organizacional dos servidores policiais entrantes (recém-empossados) no Departamento de Polícia Federal, de maneira a reduzir os problemas enfrentados pelos servidores e maximizar os processos de aprendizagem organizacional? Neste contexto, a hipótese que sustenta o estudo se baseia na possibilidade de utilização dos processos de mentoring e shadowing como ferramentas de gestão do conhecimento orientadas à aprendizagem individual, coletiva e organizacional, com o objetivo principal de diminuir as barreiras de ambientação enfrentadas pelos novos servidores entrantes no órgão, favorecendo a disseminação de uma cultura de aprendizagem e incrementando a memória organizacional. Secundariamente, visa mapear as principais dificuldades diretamente relacionadas à socialização organizacional dos novos servidores policiais en-

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trantes no órgão e verificar, a partir da pesquisa realizada, a necessidade de adoção de programas de socialização pela organização pesquisada, onde estariam inseridos os processos de mentoria ou assessoramento para a melhoria do processo de ambientação e compartilhamento de conhecimentos entre servidores. Para tanto, longe de querer esgotar o tema, apresenta o resultado de uma pesquisa qualitativa inicial efetuada por meio de entrevistas com servidores do órgão empossados a partir do concurso público realizado no ano de 2004, submetidos a perguntas relacionadas a três temas fundamentais, quais sejam: ambientação de servidores recém-empossados; imagem e cultura organizacional; e, por fim, supervisão e assistência ao novo servidor.

2 Organização Pesquisada: Departamento de Polícia Federal O Departamento de Polícia Federal, instituído por lei como um órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, possui abrangência nacional e internacional, sendo composto por unidades centrais – através de 06 (seis) diretorias e correspondentes subestruturas, e por unidades descentralizadas – estas compostas por 27 (vinte e sete) superintendências regionais localizadas em todas as capitais brasileiras e no Distrito Federal, 88 (oitenta e oito) delegacias regionais situadas em outras localidades do país, e postos avançados em regiões de fronteira. Além das estruturas citadas, administra 13 (treze) adidâncias policiais e 10 (dez) escritórios de ligação internacionais. Possui como atribuições, conforme o disposto no artigo 144, § 1º da Constituição Federal, a apuração de infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas; a prevenção e repressão do tráfico de entorpecentes, do contrabando e descaminho; o exercício das funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; a função exclusiva de polícia judiciária da União; e da apuração de outras infrações penais cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, conforme se dispuser em lei. De acordo com o regimento interno do órgão, às diretorias centrais, quais sejam: diretoria executiva; de investigação e combate ao crime organi-

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zado; de logística; de pessoal; técnico-científica; e de inteligência; bem como suas estruturas subsequentes, sejam coordenações, divisões, serviços ou unidades, atribuem-se as tarefas de planejamento, normatização, controle, coordenação e suporte das atividades de natureza técnica ou policial. Às unidades descentralizadas, compostas pelas superintendências regionais, delegacias regionais e postos avançados de fronteira, cabem as tarefas de natureza executiva, relativas à atividade-fim de polícia judiciária e administrativa, conforme atribuições definidas em lei. Por fim, às adidâncias policiais e escritórios de ligação internacionais, de acordo com a Instrução-Normativa nº 01/2005-DG/DPF, compete, dentre outras, as atribuições de assessorar o chefe da missão diplomática em assuntos de natureza policial; promover o intercâmbio de informações visando ao interesse comum de prevenção e repressão a ilícitos penais; e atuar como oficial de ligação com as organizações policiais do país de destino. O quadro de recursos humanos do órgão se divide em cargos administrativos e cargos de natureza policial, como os de Agente de Polícia Federal, Escrivão de Polícia Federal, Delegado de Polícia Federal, Perito Criminal Federal e Papiloscopista Policial Federal, cujos processos de ingresso e formação são descritos a seguir.

2.1 DO INGRESSO E FORMAÇÃO DO POLICIAL FEDERAL A Instrução Normativa nº 22/2010-DG/DPF, que regula as atividades de ensino e aprendizagem no âmbito do Departamento de Polícia Federal, estabelece em seu artigo 11º que “as atividades de ensino promovidas pela Academia Nacional de Polícia são aquelas destinadas à formação, ao treinamento, à especialização e ao aperfeiçoamento de pessoal integrante ou não dos quadros da Polícia Federal”. Neste contexto, o ingresso de servidores policiais no órgão – delegados, peritos, agentes, escrivães e papiloscopistas –, é realizado por meio de concurso público composto por duas etapas de seleção, quais sejam: 1ª etapa composta por a) prova objetiva, de caráter eliminatório e classificatório; b) prova discursiva, eliminatória e classificatória; c) exame de aptidão física; d) exame médico; e) avaliação psicológica, todas de caráter eliminatório. Revista Brasileira de Ciências Policiais Brasília, v. 3, n. 1, p. 75-101, jan/jun 2012.

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Em seguida, os candidatos aprovados nesta primeira etapa são convocados para a segunda fase do concurso, que consiste na realização do Curso de Formação Profissional com duração de cerca de 800 horas-aula e realizado na Academia Nacional de Polícia – sediada em Brasília/DF –, onde os futuros policiais, entre aulas teóricas e práticas, recebem o treinamento necessário para o início de suas funções. Ao final do curso, os candidatos aprovados escolhem suas futuras lotações – em delegacias ou superintendências regionais de todas as regiões do país – de acordo com as vagas disponibilizadas no período e sua classificação final no curso de formação profissional. Por fim, com a posse e exercício no cargo, os novos servidores são iniciados na organização, onde, conforme aponta Chiavenato (2010, p. 180), integram-se os processos de socialização. Após vencer os obstáculos do processo seletivo, os candidatos são admitidos na organização e se tornam novos membros dela e ocupantes de cargos. Contudo, antes que iniciem suas atividades, as organizações procuram integrá-los em seu contexto, condicioná-los às suas práticas e filosofias predominantes através de cerimônias de iniciação e de aculturamento social (CHIAVENATO, 2010, p. 180).

2.2 DA SOCIALIZAÇÃO ORGANIZACIONAL DOS NOVOS SERVIDORES O estudo do conceito de socialização organizacional (atribuído na literatura como um sinônimo de socialização corporativa ou ambientação de funcionários) corresponde a um universo de natureza multidisciplinar, uma vez que concentra aspectos relevantes às áreas da psicologia, da sociologia e da administração onde, nesta última, permanece intimamente ligada à disciplina da gestão do conhecimento. Segundo Almeida, Freitas e Souza (2011, p. 06), a gestão do conhecimento (GC) “refere-se à criação, explicitação e disseminação de conhecimentos no âmbito da organização”, onde de acordo com Moresi (apud ALMEIDA; FREITAS; SOUZA, 2011, p. 06), “pode ser vista como um conjunto de atividades que busca desenvolver e controlar todo tipo de conhecimento em uma organização, visando à utilização na consecução de seus objetivos”, justificando-se, nesta ótica, a importância do conceito de socialização organizacional para os processos de gestão do conhecimento.

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Van Maanen (apud SHINYASHIKI, 2002, p. 166), conceitua o processo de socialização organizacional como “o processo pelo qual uma pessoa aprende valores, normas e comportamentos exigidos, o que lhe permitirá participar como membro de uma organização”. Em caráter similar, Chiavenato (2010, p. 181) interpreta a socialização organizacional de novos funcionários como “o processo pelo qual a organização procura marcar no novo participante a maneira de ele pensar e agir de acordo com os ditames da organização”. De acordo com Chiavenato (2010, p. 180), “a missão, a visão, os objetivos organizacionais, os valores e a cultura constituem o complicado contexto dentro do qual as pessoas trabalham e se relacionam nas organizações”. Isto posto, evidencia-se a relevância dos processos de ambientação para a integração eficiente dos novos funcionários neste cenário onde, segundo Drucker (2001, p. 40), as organizações “precisam atrair e manter as pessoas, reconhecer e recompensá-las, motivá-las, atendê-las e deixá-las satisfeitas”. Sveiby (apud ROCHA NETO; ALONSO, 2011, p. 27), por sua vez, afirma que: A contratação de novos funcionários é talvez o investimento mais importante da alta direção das organizações. Além disso, essa mudança de perspectiva implica na reciclagem dos colaboradores, para que suas mentes e capacidades criativas sejam mais integradas e convergentes com os objetivos organizacionais.

O processo de socialização organizacional, conforme Shinyashiki (2002) identifica, é formado por diversos componentes, quais sejam: o agente (fonte do aprendizado); o processo (a aprendizagem em si); o alvo (o socializado); e o resultado (o resultado da aprendizagem), assim como por quatro tarefas em que o socializado é submetido durante o processo: Domínio da tarefa: aprender como desempenhar o trabalho; Classificação do papel: desenvolver a compreensão do seu papel na organização; Aculturação: aprender a cultura da organização e ajustar-se a ela; Integração social: desenvolver relacionamentos com os colegas (SHINYASHIKI, 2002, p. 168). Ressalta-se, ainda, como diz Van Maanen (apud SHINYASHIKI, 2002, p. 166), que o processo de socialização organizacional é um processo “contínuo durante toda a carreira do indivíduo na organização”. Isto significa que, embora a entrada de um funcionário em uma organização seja o momento mais evidente do processo de socialização (ambientação) – e, por consequência, de maior repercussão para o futuro profissional do socializado –,

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trata-se de um processo de natureza cíclica, ocorrendo sempre que o funcionário modificar seu papel dentro da empresa, seja assumindo um novo posto de trabalho a partir de promoções na carreira, seja a partir de transferências ou mudanças de setor de atuação. Neste conjunto, “a socialização pode ser compreendida como um processo de desenvolvimento de papéis, entendendo-se papel como o comportamento esperado de um indivíduo quando ocupa dada situação social” (SHINYASHIKI, 2002, p. 169). Ainda, segundo o autor (2002, p. 169): A socialização refere-se ao processo pelo qual o indivíduo aprende a desempenhar os vários papéis sociais necessários para sua participação efetiva na sociedade. Isto quer dizer o modo como ele adquire o conhecimento, as habilidades e as disposições que o capacitam a desempenhar seu papel de acordo com as expectativas dos outros enquanto muda de uma posição a outra na ordem social no decorrer do tempo.

2.3 DOS ELEMENTOS ASSOCIADOS À SOCIALIZAÇÃO ORGANIZACIONAL A partir da análise dos conceitos apresentados, atenta-se para a complexidade envolvida em um processo de socialização organizacional, a qual permanece enredada a inúmeros elementos do ambiente corporativo, como a cultura organizacional, os processos de aprendizagem e os fatores intrapessoais, os quais, conjuntamente, modelam o universo relativo à ambientação do novo integrante à organização, seus valores, comportamentos, bem como ao conjunto de habilidades ou conhecimentos necessários para seu exercício funcional. 2.3.1 Cultura Organizacional Maximiliano (2000, p. 105) comenta que “toda organização tem normas informais de conduta, que constituem uma legislação de usos e costumes que definem o comportamento correto” dos funcionários, influenciando fatores como a colaboração, qualidade dos serviços e a ética. Para o autor, cultura organizacional “compreende normas de cultura, valores, rituais e hábitos”, onde “o comportamento dos membros é influenciado por essas normas, tanto quanto pelos regulamentos burocráticos”. Para Schein (apud FLEURY; SAMPAIO, 2002, p. 287):

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Cultura organizacional é o conjunto de pressupostos básicos que um grupo inventou, descobriu ou desenvolveu ao aprender como lidar com os problemas de adaptação externa e integração interna e que funcionaram bem o suficiente para serem considerados válidos e ensinados a novos membros como a forma correta de perceber, pensar e sentir em relação a esses problemas.

Isto posto, verifica-se que a assimilação da cultura e a adaptação do funcionário às práticas nela implícitas decorrem de um processo bem sucedido de socialização organizacional, onde o novo colaborador, ora ambientado, passa a atuar de acordo com as normas de conduta, valores e hábitos exigidos, além de concorrer para sua perpetuação. Assumindo este contexto, torna-se fundamental a compreensão dos gestores acerca da importância e influência da cultura organizacional no cotidiano da organização (SHINYASHIKI, 2002), e como aquela pode se manifestar de modo positivo ou negativo no comportamento dos funcionários e, em mesma medida, interferir nos resultados estratégicos alcançados pela organização. Para tanto, “a inserção de processos sistemáticos de GC” (onde incluem-se os processos de mentoring e shadowing) “requer o desenvolvimento de uma cultura organizacional que reconheça, promova, valorize e recompense o compartilhamento de informações e conhecimentos” (ROCHA NETO; ALONSO, 2011, p. 10), a fim de que, conforme resume Xavier (2006, p. 13), a organização possa suprir as necessidades estratégicas oriundas de sua relação com os colaboradores, quais sejam: Adesão – Ela precisa que cada um compreenda o que está acontecendo e aceite as mudanças que ela precisa realizar, isto é, precisa que haja adesão às suas políticas e estratégias. Direção – Precisa ainda que as pessoas dirijam seus esforços e talentos para os alvos certos, ou seja, que todos visem os mesmos objetivos, haja um alinhamento estratégico adequado. Empenho – Maiores desafios demandam mais empenho das pessoas, que elas realmente “vistam a camisa” e ajudem a empresa a lidar com as dificuldades. Eficiência – As pessoas estão sendo chamadas a aprender coisas novas – de modo rápido – para manter níveis de eficiência.

Nesta ótica, Nickel (2001) aponta a necessidade de alinhamento entre a cultura organizacional, os objetivos e as estratégias corporativas, de maneira a tornar factível a busca efetiva dos objetivos da organização, onde,

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de acordo com Oliveira (apud NICKEL, 2001, p. 39), “se a cultura organizacional estiver consistente com a estratégia, poderá ser considerada uma grande força da empresa”. Para Nickel (2001, p. 39): Independentemente do enfoque dado para a estratégia organizacional, é importante ressaltar que em todo o processo de transformação de ideias estratégicas em ações estratégicas, além do processo intelectual individual ou coletivo de geração de propostas, existe o processo comportamental e social da obtenção de concordância e apoio de outros indivíduos às propostas, a fim de que sejam implementadas.

2.3.2 Processos de Aprendizagem Outro elemento relacionado à socialização organizacional – a aprendizagem – possui um caráter mais amplo do que o foco já citado do aprendizado da cultura corporativa pelo novo funcionário. Em verdade, versa sobre um extenso universo, podendo, de acordo com Fleury e Oliveira Jr. (2002), incidir em três níveis distintos, quais sejam: nível individual, do grupo e da organização. Neste primeiro nível, do aprendizado individual, opera desde o modo como o funcionário (além da cultura) aprende sobre a estrutura e demais rotinas da organização, quanto aos aspectos relativos às habilidades, conhecimentos e expertises necessárias para o pleno desempenho de suas funções. Neste sentido, Fleury e Oliveira Jr. (2002, p. 133) enfatizam que “todo processo de aprendizagem e criação de novo conhecimento começa no nível individual, isto é, nas pessoas. São as pessoas o ponto de partida e de sustentação para a ação estratégica da organização em seu dia-a-dia”, fato que enfatiza a importância dos colaboradores como um ativo organizacional. No segundo nível – da aprendizagem do grupo –, conceituada por Nonaka e Takeuchi (2008) pela característica da “externalização de conhecimentos”, o processo de aprendizagem é compartilhado entre os integrantes a partir da socialização de conhecimentos tácitos “através do diálogo e da reflexão” (2008, p. 23), cujo produto final é sua conversão “em conhecimento transmissível e articulado” (2008, p. 23) e assimilado pelo grupo de funcionários. Por fim, em nível organizacional, os conhecimentos compartilhados são absorvidos pela própria organização de forma implícita ou

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explícita, seja pela própria modificação da cultura corporativa (traduzida por hábitos, valores, normas ou comportamentos implícitos), seja através de elementos de natureza explícita, a partir da adoção de novas rotinas, procedimentos, normatizações, regulamentos etc. Neste contexto, Probst e Buchel (1997 apud NEVES; FORMOSO, 2004, p. 4907) conceituam a aprendizagem organizacional como “um processo através do qual o conhecimento e as mudanças nos valores melhoram a habilidade em resolver problemas e a capacidade para a ação”. Assim, embora o foco da socialização se baseie no aprendizado do funcionário entrante, cumpre ressaltar que tanto o socializado quanto o socializador são transformados pelo processo, como destaca (SHINYASHIKI, 2002, p. 168): “Assim que o socializado responde a um estímulo apresentado pelos outros, suas respostas constituem estímulos significantes para os responsáveis por sua socialização”. Em resumo, percebe-se que os variados fluxos de aprendizado – a) do aprendizado individual; b) do individual ao grupo; c) do grupo à organização; d) alimentação da memória corporativa – podem ser “geridos” pela administração ao mapear os conhecimentos mandatórios para o alinhamento estratégico entre objetivos e competências essenciais, bem como pela criação de mecanismos de gestão que possibilitem a produção, armazenamento e disseminação do conhecimento, potencializando a inteligência e a memória organizacional. 2.3.3 Fatores Intrapessoais Um terceiro elemento associado à socialização organizacional – os fatores intrapessoais – constitui o conjunto de experiências vivenciadas pelo indivíduo antes de seu ingresso na organização, seja a partir de sua formação, experiências e modelos mentais, seja através das expectativas e imagens que o indivíduo previamente possui sobre a organização. Os modelos mentais, conceituados por Senge (2000, p. 201) como “imagens internas profundamente arraigadas sobre o funcionamento do mundo, que nos limitam a formas bem conhecidas de pensar e agir”, constituem a dimensão cognitiva do conhecimento, onde “embora não possa ser articulada muito facilmente, essa dimensão do conhecimento dá forma ao modo como percebemos o mundo” (NONAKA; TAKEUSHI, 2008, p. 19). Revista Brasileira de Ciências Policiais Brasília, v. 3, n. 1, p. 75-101, jan/jun 2012.

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Nesta ótica, o próprio processo de aprendizagem se define pelo confronto dialético entre a nova informação recebida pelo indivíduo e os modelos mentais intrínsecos (experiências, ideais ou intuições), onde o produto final (como síntese) será o novo aprendizado, o qual, por sua vez, modificará o modelo mental anterior, em um ciclo de cognição contínuo. Este fato revela a importância dos modelos mentais nos processos de aprendizado e socialização, uma vez que, por causa e a partir daqueles, cada indivíduo interpreta e reage à informação recebida de maneira singular. Como aponta Senge (2000, p. 202), “duas pessoas com modelos mentais diferentes podem observar o mesmo evento de forma diferente, pois vêem detalhes diferentes”, onde “o mais importante é compreender que os modelos mentais são ativos – moldam nossa forma de agir”. Além dos modelos mentais, outros aspectos que antecedem a entrada do candidato na organização, como as expectativas e imagens que o candidato possui sobre a empresa, influenciam diretamente no posterior processo de ambientação, uma vez que estes podem coincidir ou diferir da realidade encontrada pelo entrante na organização. Estas dimensões (expectativas e imagens), segundo Shinyashiki (2002, p. 175), enfatizam “a importância da política de seleção quando descreve e explica ao candidato detalhes da organização, suas políticas e as características do novo papel organizacional que lhe caberá”, onde “desencadeiam o processo de socialização por antecipação, que pode levar o candidato a rever seus comportamentos e valores”. Ainda, esclarece o autor: A admissão do candidato e o choque de realidade, com a afirmação ou negação das expectativas, vão influenciar o processo de socialização ou determinar a saída do novato. Quando os novos empregados entram na organização, vivenciam um choque de realidade ou surpresa, em especial quando seus pressupostos existentes em relação aos eventos apresentados não combinam com os que vigoram no novo ambiente (SHINYASHIKI, 2002, p. 175).

2.3.4 Dos Objetivos e Problemas Relacionados à Socialização A partir deste “choque de realidade” apontado por Shinyashiki (2002), pode-se auferir uma gama de problemas derivados de um processo de socialização malsucedido, seja pela ausência de incentivos da própria orga-

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nização ou a partir da resistência de seus membros, seja pela não adequação do novo funcionário à cultura corporativa a ele apresentada, principalmente quando confrontada aos elementos intrapessoais, como os mapas mentais, valores, imagens ou expectativas. Ainda neste sentido: Esforços de recrutamento e seleção, palestras de integração de novos colaboradores, desenhos de sistemas de remuneração e implementação de mentores para acompanhar a vida de ocupantes de alguns cargos têm sido feitos isoladamente, muitas vezes sem o objetivo de organizar um processo sistemático de socialização do novo colaborador (SHINYASHIKI, 2002, p. 167).

Isto posto, questões envolvendo desmotivação, rotatividade de funcionários (turnover), ausência de sentido coletivo de identidade, ou ainda, a incompatibilidade entre as ações realizadas pelos colaboradores e os objetivos da empresa são problemas relacionados a organizações que não identificam a importância estratégica dos processos de socialização. Sobre este contexto, Schein e Wanous (apud SHINYASHIKI, 2002, p. 166) destacam que: Falhas na condução no processo de socialização dos empregados podem provocar: Rejeição, que pode levar o empregado a ser expelido da organização ou a canalizar suas energias contra os objetivos da empresa; Conformidade, que pode embotar sua criatividade e fazê-lo trabalhar de forma estéril e burocrática; Aumento do custo da rotatividade e absenteísmo de pessoal.

Desta forma, verifica-se que os processos de socialização organizacional, além de introduzir o novo colaborador à cultura da organização e facilitar a aprendizagem dos conhecimentos necessários para a sua função, objetiva reduzir os problemas relacionados à ambientação, diminuindo custos envolvidos no recrutamento e seleção de pessoal e buscando o desenvolvimento do potencial competitivo da organização. Diante do exposto, uma pergunta se torna fundamental: como as organizações devem lidar com este complexo ambiente que constitui o processo de socialização organizacional, uma vez que este se interliga a diversos elementos, como a cultura organizacional, os processos de aprendizagem (em seus três níveis – individual, do grupo e da organização) e os fatores intrapessoais (modelos mentais, expectativas e imagens)?

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Primeiramente, percebe-se como crucial a aceitação dos gestores acerca da imperiosa relevância dos processos de ambientação para a gestão estratégica da organização. Assim, torna-se possível, como resposta, a interferência da administração através da utilização de programas ou métodos de socialização organizacional (contidos nas políticas de gestão de pessoas), entre outras medidas de gestão, com o objetivo de buscar o alinhamento da cultura, aprendizagem e elementos intrapessoais, aos objetivos estratégicos da empresa. Chiavenato (2010, p. 184), neste contexto, aponta alguns métodos de socialização utilizados pelas organizações: o processo seletivo, que possibilita que o candidato “obtenha informações e veja com seus próprios olhos como funciona a organização e como se comportam as pessoas que nela convivem”; a tutoria, realizada a partir de processos como shadowing e mentoring, onde “o novo colaborador pode ligar-se a um tutor capaz de cuidar de sua integração na organização”; e os programas de ambientação, que constituem “o principal método de aculturamento dos novos participantes às práticas correntes da organização”, ao combinar métodos como palestras e treinamentos. Ainda sobre os programas de ambientação: É um programa formal e intensivo de treinamento inicial destinado aos novos membros da organização, para familiarizá-los com a linguagem usual da organização, com os usos e costumes internos (cultura organizacional), a estrutura da organização (as áreas ou departamentos existentes), os principais produtos ou serviços, a missão e os objetivos organizacionais (CHIAVENATO, 2010, p. 184).

Para apoio aos processos de socialização, podem ser utilizadas ferramentas de gestão do conhecimento orientadas à aprendizagem, tais como o treinamento de colaboradores; a utilização de processos de benchmarking, verificando programas de ambientação já implementados com sucesso por outras organizações; processos baseados na tutoria, como mentoring e shadowing, maximizando os esforços na integração do novo colaborador.

2.4 DOS PROCESSOS DE MENTORING E SHADOWING Conforme citado, os processos de mentoring e shadowing são ferramentas de gestão do conhecimento (GC) que podem ser utilizadas pelas organizações para o apoio aos processos de socialização (ambientação) de novos colaboradores, orientadas à aprendizagem individual (de forma direta) e organizacional (de maneira indireta). Na literatura acadêmica, diversos 90

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conceitos e definições destes processos são encontrados, bem como pesquisas de aplicação ou estudos de caso realizados, além do apontamento de suas similaridades e principais diferenças, propósitos e aplicações, conforme assinaladas a seguir: 2.4.1 Mentoring Para Garvey (apud KRAUS, 2007, p. 34), “o termo mentoring está associado com ‘iniciação’, carreira, desenvolvimento pessoal e mudança. Seu foco mais comum é o da carreira profissional dentro de uma organização”. De acordo com Kraus (2007, p. 34), “mentoring é entendido como a ‘transferência de sabedoria’. É o processo pelo qual um indivíduo aprende com alguém com mais experiência num determinado campo, metaforicamente mais velho e mais sábio”. Souza e Rigo (2004, p. 6) conceituam “mentoria organizacional como o processo de assistência, técnica e psicossocial, dado por uma pessoa, que pode ser um superior, um par ou um subordinado, a outra, guiando-a e apoiando-a em sua carreira profissional”, onde, de acordo com Bell (2005, p. 5), “alguém que ajuda outrem a aprender algo que seria, de outra maneira, aprendido não tão bem, mais lentamente ou de nenhuma maneira”. Assim, o processo de mentoring se baseia na assistência prestada pelo mentor ao mentorando, fundamentada nas práticas de ensino e aprendizagem, onde segundo Santos, Tractenberg e Pereira (2005, p. 3), “a condição fundamental para que um mentor exerça esse papel é a disposição para compartilhar conhecimento”. Em ótica inversa, “se uma organização incentiva a competição e a concorrência interna, os colaboradores serão vistos como concorrentes entre si, dificultando o compartilhamento de experiências e a realização de trabalhos em equipe” (ROCHA NETO; ALONSO, 2011, p. 55), desfavorecendo os processos de socialização organizacional e as iniciativas de gestão do conhecimento. Neste sentido, os autores apontam que, para o sucesso do processo de mentoring, são fundamentais a “confiança; comprometimento; interesse mútuo; comunicação para troca de experiências; autoconsciência” (ROCHA NETO; ALONSO, 2011, p. 27). Revista Brasileira de Ciências Policiais Brasília, v. 3, n. 1, p. 75-101, jan/jun 2012.

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Para Santos, Tractenberg e Pereira (2005, p. 3): A mentoria pode trazer benefícios tanto para o mentorando quanto para o mentor, uma vez que se constrói por meio de uma relação de (com)partilhamento de experiências. A diversidade de situações profissionais com as quais mentor e mentorando se deparam ao longo desse processo é capaz de mobilizar novas competências em ambos, que aprendem com esse relacionamento.

De maneira a maximizar estes benefícios, denota-se que os processos de mentoring podem ser instituídos formalmente pela organização, inseridos nos programas de ambientação, onde primeiramente deverão ser selecionadas quais as competências fundamentais para o desempenho de determinada função e, após, realizar o recrutamento dos funcionários que detêm tais competências e desejam exercer a função de mentor/tutor dos novos colaboradores. Zey (apud SOUZA; RIGO, 2004, p. 6), neste sentido, aponta diferentes níveis de colaboração do mentor neste processo: No primeiro, o mentor exerce o papel de professor, investindo seu tempo ao dar instruções e informações ao mentorado. No segundo nível, o mentor presta um suporte pessoal agindo como conselheiro e, portanto, influenciando também na vida pessoal do mentorado. O terceiro nível é o da intervenção organizacional, no qual o mentor pode usar inclusive de sua reputação para interceder pelo mentorado. No quarto e último nível, o mentor apoia e recomenda o mentorado para promoção aumentando a responsabilidade de ambos frente ao grupo social ou organizacional. Em resumo, a aplicação dos processos baseados em mentoring objetiva proporcionar diversos benefícios estratégicos à organização, relativos aos processos de aprendizagem individual e coletiva (fluxo de conhecimento), redução dos custos de seleção (ao minimizar a rotatividade de funcionários), disseminação da cultura organizacional (criando um sentido coletivo de foco e identidade) e a efetiva socialização organizacional dos novos colaboradores (integrando-os ao cotidiano da organização). Segundo Kraus (2007, p. 34): 1) “A potência do mentoring repousa no conhecimento específico e na sabedoria do mentor”; 2) “mentoring orienta e ensina”; 3) “mentores são uma espécie de mestre, pessoas com ampla experiência em determinada área, com mais anos de casa, e que demonstram interesse e disposição para colaborar no avanço da carreira de principiantes”; 92

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4) “mentoring focaliza a carreira, representa e transmite missão, visão e valores da empresa”; 5) “mentoring tende a reproduzir os padrões, valores e visão da organização”.

2.4.2 Shadowing Os processos de shadowing objetivam os mesmos resultados da mentoria, diferindo-se conceitualmente pela metodologia empregada. Para Balceiro e Ávila (2003, p. 13) “shadowing consiste em alocar um profissional para seguir de perto um outro que detenha grande quantidade de conhecimentos tácitos, de forma a permitir que parte deste conhecimento seja retida pelo seguidor”. Em mesmo sentido, Carvalho et al (2007, p. 21) aponta esta característica principal dos processos de shadowing – a observação direta – como o fator essencial que o diferencia dos processos de mentoring. Segundo os autores: Shadowing ou sombra é um meio de capturar o conhecimento tácito, através da observação diária das atividades de um empregado. Esta ferramenta auxilia no aprendizado de uma dinâmica organizacional, a partir da análise sistemática das funções e comportamentos explicitados pelos colaboradores dessa organização (CARVALHO et al., 2007, p. 21).

Desta forma, o processo de shadowing apresenta aos participantes inúmeros benefícios onde, por parte do socializador, “permite que a pessoa observada possa refletir sobre suas habilidades e competências, superando-as” (CARVALHO et al., 2007, p. 22), e na parte do socializado, proporcionando a oportunidade de observar alguém ‘em ação’; Oportunidade de captar o conhecimento tácito através da observação do dia-a-dia; Oportunidade de fazer perguntas para alguém enquanto esta pessoa realmente executa seu trabalho; Oportunidade de investigar alguma de suas suposições sobre esse campo particular de trabalho (CARVALHO et al., 2007, p. 22). Isto posto, a utilização de ambas as ferramentas – mentoring e shadowing – como ferramentas de apoio à ambientação de funcionários entrantes, objetivam oferecer à organização a assistência aos novos colaboradores durante o processo de socialização, bem como o estímulo à troca e, consequentemente, à perpetuação de conhecimentos tácitos dos servidores, favorecendo os demais processos de gestão do conhecimento e evitando o surgimento de problemas derivados de uma ambientação mal sucedida.

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3 Metodologia Utilizada Como metodologia de pesquisa, optou-se, como introdução ao tema, por realizar uma pesquisa inicial qualitativa, realizada por meio de entrevistas com dezesseis servidores (entre agentes, delegados, escrivães, peritos criminais e papiloscopistas) empossados no órgão a partir do concurso público realizado no ano de 2004, e lotados no edifício-sede do DPF em Brasília/DF. A escolha do universo pesquisado se justifica pelo grau de experiência dos pesquisados, uma vez que todos os servidores submetidos à entrevista vivenciaram sua primeira lotação em unidades descentralizadas (delegacias regionais ou superintendências de diversas regiões do país), o que enriquece a experiência dos mesmos no tema em questão (socialização organizacional) e os possíveis problemas decorrentes. Para tanto, a pesquisa foi construída através da realização de entrevistas com o universo pesquisado, formado por dez perguntas subdivididas em três temas fundamentais, quais sejam: I) Ambientação e integração de servidores; II) Imagem e cultura organizacional; III) Supervisão e assistência ao novo servidor. Tema I: ambientação e integração de servidores: • Como você considera a integração entre antigos e novos policiais? • Você já esteve envolvido, durante o início de sua carreira, em situações que não sabia como proceder? Em caso positivo, sentiu-se à vontade para pedir ajuda a colegas com maior experiência? • Quais dificuldades você vivenciou no início de sua carreira? Tema II: imagem e cultura organizacional: • A imagem que você tinha da instituição antes de sua posse se manteve igual após o início do seu trabalho? • Em caso negativo, quais os motivos da mudança? Tema III: supervisão e assistência ao novo servidor: • O que você pensa sobre a presença de um servidor mais experiente que atue como um “tutor” para os novos policiais? • Você sentiu necessidade de participar de um “programa de boas-vindas” no início de sua atuação como policial?

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• Você participou de alguma espécie de programa institucional para chegada de novos policiais? • Você enxerga alguma relação entre a qualidade do início da carreira e o futuro profissional do servidor? Comente. Neste contexto, o objetivo principal da pesquisa realizada é buscar respostas para a seguinte pergunta chave: como melhorar os processos de socialização organizacional dos servidores entrantes no Departamento de Polícia Federal, de maneira a maximizar os processos de aprendizagem organizacional? Em complemento, busca comprovar a hipótese de que a adoção dos processos de mentoring e shadowing como ferramentas de gestão do conhecimento orientadas à aprendizagem individual e organizacional pode influir de maneira positiva no processo de ambientação de novos servidores, minimizando os problemas dela decorrentes e estimulando a troca de informações entre antigos e novos policiais. Desta forma, através da realização de entrevistas com servidores, o presente trabalho visa mapear as principais dificuldades relacionadas à socialização organizacional vivenciadas pelos novos policiais entrantes no órgão e apontar, sob sua ótica, a possibilidade de adoção de programas institucionais de ambientação, com a utilização de processos de mentoring e shadowing para melhorias da socialização e troca de conhecimentos entre servidores.

4 Resultados da Pesquisa A pesquisa, através da realização de entrevistas, apresentou os seguintes resultados, relacionados a partir das perguntas realizadas sob as três subdivisões de temas apresentados, quais sejam: ambientação dos servidores, imagem e cultura organizacional, e, por fim, supervisão e assistência ao novo servidor. Tema I – Ambientação e integração de servidores: • Como você considera a integração entre antigos e novos policiais? Todos os servidores entrevistados consideraram como fundamental a integração entre policiais experientes e novatos, como forma de aprendizagem e acúmulo de experiência no serviço policial. Entretanto, 25% dos entrevistados relataram que, por vezes, existem dificuldades de integração entre colegas, onde foram apresentados os seRevista Brasileira de Ciências Policiais Brasília, v. 3, n. 1, p. 75-101, jan/jun 2012.

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guintes motivos: diferenças de percepção sobre o órgão; diferenças etárias; resistência por alguns servidores mais antigos. • Você já esteve envolvido, durante o início de sua carreira, em situações que não sabia como proceder? Em caso positivo, sentiu-se à vontade para pedir ajuda a colegas? A maior parte dos entrevistados (75%) afirmou ter se envolvido em situações de trabalho em que não sabia como proceder, afirmando como causa principal a falta de experiência no trabalho policial. A mesma quantidade de entrevistados relatou, igualmente, que se sentiu à vontade para perguntar aos policiais mais experientes a melhor forma de proceder frente a estas situações, aproveitando positivamente o conhecimento dos policiais mais antigos. • Quais dificuldades você vivenciou no início de sua carreira? Todos os servidores que relataram algum grau de dificuldade no início da carreira (mais de 75% dos entrevistados) pontuaram problemas como: desconhecimento das rotinas da atividade policial, desconhecimento das atividades desempenhadas pelos setores, insegurança para a tomada de decisão, medo de cometer erros por inexperiência, distância dos amigos e familiares, diferenças culturais e dificuldade de ambientação na nova cidade. Tema II – Imagem e cultura organizacional: • A imagem que você tinha da instituição antes de sua posse se manteve igual após o início do seu trabalho? Em caso negativo, quais os motivos da mudança? Todos os entrevistados afirmaram que a imagem que possuíam da organização antes da aprovação no concurso modificou-se após a entrada no órgão. Perguntados sobre os motivos, foram citados os seguintes fatores: baixo sentimento de valorização pelo desempenho das funções, complexidade no relacionamento entre as categorias funcionais, ausência de perspectivas de crescimento profissional. Tema III – Supervisão e assistência ao novo servidor: • O que você pensa sobre a presença de um servidor mais experiente que atue como um “tutor” para os novos policiais? Você sentiu necessidade de participar de um “programa de boas-vindas” no início de sua atuação como policial? Todos os entrevistados responderam de forma positiva, entendendo a possibilidade da presença de servidores experientes para apoio à iniciação dos novos policiais,

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bem como a necessidade de participação em programas oficiais de ambientação ou socialização, onde foram feitas as seguintes considerações: “ganho de experiência”, “maior aprendizagem”; “ganho de tempo na adaptação ao trabalho”, “conhecimento das rotinas e estrutura do órgão”, “conhecer os colegas de trabalho”. • Você participou de alguma espécie de programa institucional para chegada de novos policiais? Em relação a programas de ambientação, 75% dos entrevistados responderam não ter participado de nenhuma espécie de programa, apenas em “conversas informais”. Cerca de 25%, entretanto, afirmaram ter sido submetidos a um “estágio supervisionado”, onde realizaram tarefas em diversos setores, por um período que variou de um a dois meses. • Você enxerga alguma relação entre a qualidade do início da carreira e o futuro profissional do servidor? Comente. Cerca de 50% dos servidores entrevistados responderam positivamente, 25% responderam de forma negativa e 25% consideraram a questão como indiferente. Aos que responderam como positiva a afirmação, foram citados como possíveis consequências do início da carreira fatores como “possibilidade de motivação ou desmotivação”, “reflexos na qualidade nos serviços prestados”.

5 Considerações Finais A partir dos resultados da pesquisa, denota-se a presença de um ambiente propício para a adoção de programas institucionais de ambientação de novos servidores, bem como para utilização dos processos de mentoring e shadowing como ferramentas de gestão do conhecimento orientadas à aprendizagem e voltadas à socialização organizacional de novos funcionários. Alguns pontos fundamentais extraídos das entrevistas embasam esta conclusão, onde os pesquisados consideram como fundamental a integração entre novos e antigos servidores para a aprendizagem das rotinas e expertises necessárias para a prática policial, bem como pelo relato de problemas de ambientação vivenciados no início da carreira, como “falta de experiência”, “insegurança na tomada de decisão” e “desconhecimento de atividades”, os quais se coadunam com os objetivos de utilização das ferramentas de gestão do conhecimento disponíveis à organização.

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A maior parte dos pesquisados afirmou, igualmente, ter se envolvido no início da carreira em situações de trabalho em que não sabia como proceder, onde se percebeu um grau de abertura positivo para a solicitação de apoio aos policiais mais experientes, visando buscar a melhor forma de proceder frente a estas situações consideradas difíceis. Em mesma medida, foi relatada e sentida a necessidade (por parte dos entrevistados) de participar de programas institucionais de ambientação, visando minimizar os problemas vivenciados. Por fim, pela análise teórica realizada, quando analisado o ambiente conjuntural instável e competitivo em que atuam as organizações, bem como as mudanças do perfil das forças de trabalho nas últimas décadas, percebe-se que a posse deste ativo (conhecimento) vem alterando as relações entre a organização e o trabalhador, conduzindo a contínuas adaptações nos mecanismos de gestão aplicados e tornando cada vez mais relevante a aplicação da gestão do conhecimento e suas ferramentas para a manutenção do potencial competitivo das organizações. Como limitações da pesquisa, destaca-se o pequeno universo de pesquisa, formado por dezesseis servidores dos diversos cargos que compõem o quadro de servidores policiais do Departamento de Polícia Federal, o que, pelo número reduzido da amostra, prejudica a generalização dos resultados apresentados. Como sugestão de pesquisas futuras, aponta-se a possibilidade de refazer a presente pesquisa em um espectro amostral superior, assim como em realizar comparativos entre os diversos concursos públicos realizados ou por cada cargo pesquisado. Por fim, apontou-se a relevância dos processos de socialização organizacional para a atração, retenção e direcionamento estratégico dos novos funcionários, os quais evidenciam os inúmeros benefícios colhidos pela organização na utilização dos processos de mentoring e shadowing para disseminação da cultura organizacional entre os novos servidores, construindo um sentido coletivo de identidade e incentivo à troca de experiências e criação de conhecimento, buscando dirimir os problemas de ambientação derivados e auxiliando na construção da memória da organização. Luciano d`Escragnolle Cardoso Agente de Polícia Federal, Especialista em Inteligência Estratégica, Mestrando em Gestão do Conhecimento e da Tecnologia da informação . E-mail: cardoso.lec@dpf.gov.br

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Abstract Mentoring and Shadowing Processes as a Knowledge Management Tool Oriented for Socialization of New Servers on the Brazilian Federal Police The purpose of this paper is to investigate the main difficulties faced by organizational socialization employees recently inducted into the Federal Police Department, with the aim of pointing out the possibility of using the processes of mentoring and shadowing as tools for knowledge management-oriented learning organization, acting through the systematic sharing of experiences and promoting the socialization of knowledge between old and new servers. To do so, presents the results of a qualitative research through interviews with police officers sworn servers in the organ from the public tender conducted in 2004, aiming to identify the most common difficulties of socialization (setting) experienced by these, and how the processes of mentoring and shadowing can help reduce the barriers faced by the incoming server in the organ, as well as acting in the spread of the internal culture of learning and knowledge management, adding the knowledge produced as a increase for the organizational memory. KEYWORDS: Shadowing; Mentoring; Knowledge management; Organizational learning; Organizational memory; Organizational socialization.

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A POLÍCIA NO PENSAMENTO CRIMINOLÓGICO: AS ORIGENS DOS SABERES POLICIAIS INVESTIGATIVOS Célio Jacinto dos Santos Departamento de Polícia Federal - Brasil

Resumo O presente trabalho versa sobre a investigação criminal como saber especializado que acompanha a história dos pensamentos criminológicos ao longo dos tempos, para tal apresenta algumas concepções sobre polícia trazidas de outras áreas do conhecimento, e faz levantamento exploratório da Ciência Policial. Ao final analisa o surgimento da investigação criminal nos paradigmas médico e indiciário, como antecedentes históricos marcantes para estudo do tema, concluindo pela emergência do tema na atual sociedade complexa.

PALAVRAS-CHAVE: Criminologia. Acepções sobre Polícia. Investigação Criminal. Ciência Policial.

1 Introdução Ao longo da história do pensamento criminológico a polícia é retratada como órgão de controle social ao lado de outras instituições tal como a Justiça e o Ministério Público, derivando então várias concepções que buscam explicar suas funções no concerto das organizações sociais e estatais. No caso da polícia investigativa surgiram conhecimentos especializados sobre sua atuação - segundo este mesmo pensamento criminológico - ligados ao desenvolvimento do modelo etiológico que opera na lógica da redução do fenômeno à relação de causa e efeito. Com isso levanta-se a indagação: quais são os fundamentos epistemológicos da polícia e dos saberes policiais investigativos? Para tal há que se pesquisar também, quais esferas do pensamento podem colaborar na resposta desta indagação. A criminologia se ocupa dos estudos do criminoso, da vítima, das causas da criminalidade e do sistema de controle penal, embora haja algumas divergências entre os criminólogos acerca do objeto da crimino-

Revista Brasileira de Ciências Policiais Recebido em 8 de janeiro de 2013. Aceito em 9 de maio de 2013.

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logia, entretanto é induvidoso que o investigador criminal e o estudioso do tema devam ter domínio de saberes criminológicos para a compreensão e conhecimento dos fatos penais a ele submetidos. O contexto de investigação de um dado evento criminoso se insere no contexto dos fatos sociais, podendo o investigador criminal desenvolver sua investigação seguindo orientações de modelos ou teorias acerca daquele fato humano, já estudados por outros ramos das Ciências Sociais ou Humanas. O presente trabalho buscará apresentar levantamento sobre o surgimento da polícia e o consequente desenvolvimento de saberes especializados no processo cognitivo de fatos criminais, considerando os estudos acumulados pela criminologia e outros ramos do conhecimento. Nos estudos sobre a polícia, muitas acepções são apresentadas por pensadores das diversas áreas do conhecimento. Monet fornece abordagens histórica, sociológica (relacionada ao uso da força) e política (sob o enfoque da democracia) (MONET, 2002, p. 19-30). Jairo Suárez Alvarez elenca os seguintes significados para o ente polícia: político, jurídico, ético-deontológico, administrativo, gestão pública, cultural, teleológico, ecológico e prático, os quais são considerados significados multívocos, ao lado dos significados unívoco e equívoco (ALVAREZ, 2009, p. 21-26). Monjardet também fornece três dimensões para a polícia: 1) instrumento de poder, que recebe ordem da autoridade detentora de poder, cuja produção está caracterizada pela divisão e especialização das funções, das técnicas, dos procedimentos, saberes, com uma estrutura hierárquica e normas informais; 2) serviço público requisitado por todos incumbido de promover, realizar ou salvaguardar interesses coletivos identificáveis; 3) profissão que desenvolve seus próprios interesses, cujos profissionais possuem cultura e princípios próprios, e critérios de identificação internos (MONJARDET, 2002, p. 16-17). Orientaremos nossos estudos para os fundamentos históricos, políticos e jurídicos da polícia e suas implicações com o pensamento criminológico, buscando identificar os movimentos políticos que influenciaram ou que sofreram influência da organização policial, ao longo da história moderna. Para encontrar as respostas para nossa inquietude apresentaremos uma revisão histórica da concepção jurídica da polícia, seguiremos para estudos sobre concepções criminológicas, quando já estaremos em condi-

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ções de desenvolver digressões sobre a polícia no contexto de uma Ciência Policial, finalizando com os saberes policiais especializados investigativos abordados em seus fundamentos históricos e políticos. Para tal desenvolveremos pesquisa aplicada e teórica, trabalhando com metodologia dedutiva, inicialmente exploratória, mediante procedimento analítico, descritivo e discursivo, adotando as pesquisas consolidadas no livro Histórias dos Pensamentos Criminológicos do professor Ignácio Anitua, mas trazendo também a produção de outros autores, sobre o tema.

2 Antecedentes históricos da organização policial em sentido político-jurídico Para a compreensão do surgimento e desenvolvimento do saber policial é necessário analisarmos a origem histórico-social da polícia como ente político-jurídico, o que não coincide com a acepção moderna de polícia como corpo ou instituição. Neste momento já adiantamos que a doutrina mais ligada à criminologia e à sociologia, majoritariamente, apresenta a origem histórica da polícia com a estruturação dos estados nacionais, no século XVIII, e outra acepção mais ligada à ciência jurídica, ciência política e ciência policial coloca o surgimento da instituição policial em passado remoto da organização social dos povos antigos. Nota-se então que há duas acepções para o vocábulo polícia, um ligado aos corpos ou instituições policiais, e outro relacionado à regulação do comportamento humano e assuntos públicos através de sistemas normativos (ALVAREZ, 2009, p. 20). O magistrado brasileiro Enéas Galvão, em 1896, ao analisar a organização judicial brasileira através de estudo comparado, assinalou que a organização judiciária possui origem remota nas funções políticas e judiciárias acumuladas pelo soberano, tendo havido na Grécia e Roma antiga os conselhos e assembleias que cuidavam de questões políticas tal como iniciar uma guerra ou celebrar a paz, como também discutiam questões judiciais, passando assim a organização social a contar com a estrutura militar para lidar com questões de quebra da ordem social externa e convulsões internas, e também com outra estrutura judiciária para cuidar dos inimigos internos representados pelos violadores da lei criminal, chegando referido autor a constatar uma confusão entre as funções estatais de gestão política e judiciária (GALVÃO, 1896, p. 96).

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É nesta atividade militar conjugada com a questão criminal que também se nota uma confusão entre elas, confirmada atualmente por resquício de doutrina militar em algumas estruturas policiais que ainda insistem em adotar modelo onde atuam como segurança interna e como órgão de segurança externa, com controle e administração nas mãos de um poder centralizado. Em passado histórico mais remoto de diversas civilizações, já havia traços bem definidos sobre mecanismos de solução de conflitos e de imposição de castigos. Já nos albores da civilização os mesopotâmios criaram os primeiros códigos escritos, e no século XVIII A.C. o rei Hamurabi consolidou as leis existentes no Código de Hamurabi, onde prescrevia punição para determinados crimes por intermédio de procedimento ainda arcaico. Francisco José Díaz Casillas, ao estudar o Arthasastra hindu do século IV A.C., assinala que Dandanati era considerada a lei do castigo ou ciência do governo, quando já se desenvolveram fórmulas avançadas de controle social, político, econômico e religioso para aquela época, inclusive mediante emprego de espionagem e torturas nas práticas forenses (CASILLAS, 2009, p. 62). O Código de Manu apareceu por volta do II A.C, apresentou influência religiosa na organização social vigente naquela época entre os hindus, mas trazia em seus Livros VIII e IX a regulação do sistema punitivo e da organização judiciária. Almeida Junior em seu Processo Criminal Brazileiro desenvolveu levantamento histórico sobre o processo criminal nos sistemas antigos (ALMEIDA JUNIOR, 1920, vol. I), constituindo rica fonte para estudo dos procedimentos da polícia, os quais são apontados como a exteriorização do poder político em dado momento histórico, entretanto fixaremos nossas investigações nos modelos de procedimentos e estruturas que manejavam a prevenção e o conhecimento dos fatos criminais sem aprofundar nos institutos tipicamente processuais. Da mesma maneira são os estudos realizados por Julio Maier na obra Derecho procesal penal - fundamentos. Segundo Almeida Junior, no Egito antigo havia juízes provinciais que contavam com apoio de funcionários policiais na repressão dos crimes e no auxílio à instrução (Op. cit., p. 12-13).

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Na Palestina os tribunais eram corporações políticas e judiciárias e os procedimentos funcionavam com instruções e debates públicos, mas o julgamento era secreto (ALMEIDA JUNIOR, 1920, p. 14-17). Em Atenas o tribunal dos Heliastas era incumbido da jurisdição criminal, e nas acusações públicas atuavam os Thesmotetas como responsáveis pela vigilância e denúncia criminal (Op. cit., p. 19). No inicio do império Romano a Justiça criminal era exercida pelos reis, da mesma forma que todas as manifestações do poder público, com caráter militar derivado da própria dignidade real. Posteriormente, com a República estes poderes foram transferidos para o Senado e para o Povo, com grande participação dos cidadãos romanos, mas também havia delegação destes poderes aos cônsules e pretores que se consolidaram ao longo do tempo. Com as questiones perpetua, perante o pretor era apresentada a acusação, passando então o acusador a proceder à investigação e aos atos de instrução, podendo dirigir-se aos lugares, apreender documentos e inquirir testemunhas, sob a fiscalização e acompanhamento do acusado, conformando então a inquisitio, em seguida ocorria a audiência de julgamento (Op. cit., p. 25-30). As questiones perpetua que se baseavam na acusação popular, durante o império, começaram a cair em desuso e passaram a ser substituídas pela acusação ex-oficio dos proconsules, autoridades e funcionários do império. Isso se deveu às restrições impostas às acusações, pois se desejava evitar acusações temerárias e infundadas movidas por sentimentos de vingança, passando a surgir dificuldade para formar o jurado com cidadãos romanos, agravado pelo descompromisso dos mesmos, havendo ainda corrupção na escolha destes jurados, por outro lado as questiones perpetua se tornaram impróprias para os crimes atrozes cujas provas eram evidentes. Os conflitos gerados neste cenário desequilibrado colocaram o sistema em perigo e culminou na perda de direitos de cidadania dos romanos, ante o desaparecimento das virtudes republicanas, conclui Julio Maier (2004, p. 286), lembrando que a participação popular nas decisões públicas era até então uma característica marcante da cultura jurídico-político romana.

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As atribuições dos pretores foram absorvidas pelos praefectus urbis que constituíam superintendente geral da administração e da polícia de Roma, ficando o praefectus vigilum com a chefia da polícia preventiva e repressiva dos incêndios, escravos foragidos, furtos, roubos, vagabundos, ladrões habituais, em suma, das classes perigosas, recomendando-se-lhe a polícia noturna (ALMEIDA JUNIOR, 1920, p. 39), e ainda, vinculados aos praefectus urbis e vigilum existiam os agentes policiais denominados irenarcha, os curiosi e os stationari responsáveis pela investigação dos crimes e realização de diligências instrutórias, as quais constituíam os casos criminais julgados pelo praefectus ou juiz competente. Almeida Junior conclui que com o fim das questiones perpetua e da acusação popular, surgiram procedimentos ex-ofícios executados por funcionários do império, da mesma forma foi necessário o desenvolvimento de uma polícia oficial centralizada, que aos poucos foi acumulando funções judiciárias (Op. cit., p. 48). Na época do feudalismo o senhor feudal concentrava todos os poderes em suas mãos, inclusive o poder de polícia e o julgamento das infrações criminais. Neste período surgiram as primeiras universidades e, também, quando houve resgate do Código Justiniano, com fundamentos centralizadores e totalitários. Com o desenho institucional fornecido pelos romanos houve expansão desta estrutura jurídico-política para os demais territórios europeus e para suas colônias. No século XVII a polícia operava junto com a Justiça, na França. Na Alemanha preponderou a acepção de polícia como bom estado da coisa comum, conforme escreveu José Cretella Júnior (1999, p. 27), culminando no século XX na acepção administrativista sintetizada por Guido Zanobini, em 1950, como “atividade da Administração pública, dirigida a concretizar, na esfera administrativa e independentemente da sanção penal, as limitações que são impostas pela lei à liberdade dos particulares no interesse superior da conservação da ordem, da segurança geral, da paz social e de qualquer outro bem tutelado pelas disposições penais” (Op. cit., p. 33). Mais adiante aprofundaremos o estudo da acepção de polícia como bom governo da coisa pública. Max Weber influenciou a Ciência Política com suas ideias sobre o uso legítimo da violência em determinado território, entretanto preferimos trabalhar com o conceito de uso legítimo da força, já que a polícia também pode ser con108

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siderada fundamental para a qualidade da democracia, conforme defende Diego Palacios Cerezales, que vê a atuação policial como resposta a um “mandato legítimo emanado de la comunidad, a menudo problemática por el caráter complejo y fragmentado de las comunidades humanas”(CEREZALES, 2009, p. 138-140). Nesta pequena revisão podemos notar o caráter jurídico-político da atuação policial no período que antecede a formação dos Estados Nacionais. Ela estava sob o mandato de um soberano, rei, príncipe ou imperador, mas contemplava sua delegação para seus servidores, contudo, ao longo do tempo com o desenvolvimento da organização social, política e da forma de produção, as estruturas policiais vão se aperfeiçoando e constituindo corpos especializados, caminhando de uma estrutura inicialmente privada para outra pública inserida na estrutura estatal. No período anterior à tripartição dos poderes e ao constitucionalismo idealizado por Montesquieu, não era bem definida a dinâmica de enfrentamento às infrações penais, às vezes o soberano através de seus prepostos se incumbiam dos serviços policiais, judiciais e administrativos, em outros momentos as estruturas administrativas privadas ou públicas acumulavam as funções judiciais e policiais, contudo, nos séculos XVIII e XIX as atividades se especializaram na medida em que os conhecimentos científicos se expandiam e se especializavam.

3 Os Saberes Policiais Especializados na História dos Pensamentos Criminológicos Com as ideias do capitalismo liberal de Adam Smith, no século XVIII, postuladoras de um sistema de liberdade natural para o ambiente econômico, ao Estado cabia cuidar apenas da segurança e justiça, com isso houve impulso no sistema de produção econômica com a consequente acumulação de capitais, gerando então mudanças significativas no campo social daquela época. Este é o período da Revolução Industrial. O novo sistema de produção econômica operava com grande quantidade de trabalhadores nas fábricas. Eles eram reduzidos a condições subumanas e desprovidos de direitos e garantias. Para viabilizar esse ambiente eram empregadas técnicas de disciplinamento do corpo e da mente, as quais serviram de modelo para a criação de burocracias do recente Estado, incumbidas

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do controle social. As técnicas eram baseadas nas tecnologias sociais aperfeiçoadas pelo inglês Jeremy Bentham, lembrando que foi na Inglaterra que a Revolução Industrial se iniciou e desenvolveu bastante, e daí foi difundida para outros países europeus e para as colônias, chegando a ter forte impulso nos Estados Unidos com os pensamentos puritanos da dissidência inglesa e norte-americana devido à inserção da disciplina e do confinamento como necessários para o progresso espiritual (ANITUA, 2008, p. 202). Através do exame e da inspeção constante, inicialmente dos trabalhadores depois dos cidadãos de maneira geral, estava criado um sistema de controle social amplamente manejado pelas burocracias, onde as pessoas eram induzidas a se comportar com disciplina e desenvolver atividades fabris manuais, pois estavam sendo observadas constantemente ou poderiam vir a ser examinadas aleatoriamente, de maneira que a disciplina é internalizada mesmo sem o exercício efetivo do exame. Esta é a lógica que movia a construção das penitenciárias onde com poucos recursos humanos era possível ao observador/vigilante vigiar o apenado sem ser visto. Isso era possível com a inovação desenvolvida por Bentham em que de um ponto central o vigilante oculto vê a tudo em sua volta, em um modelo semelhante a uma colmeia. O desenvolvimento do modelo disciplinar de controle social originou ou propiciou o refinamento de estruturas burocráticas tal como a fábrica, o hospital, a escola, o quartel, a penitenciária, o manicômio e outras organizações totais para exame e disciplinamento de corpos, entretanto, a massificação deste modelo ocorreu com a criação da polícia como uma organização burocrática incumbida do controle e da prevenção de crimes, conforme as pesquisas oriundas dos pensamentos criminológicos e sociológicos, que se baseiam principalmente nos estudos de Michel Foucault. Logo após a Revolução Francesa, em 1798, surgiu na França a Gendarmerie com forte atuação repressiva, disciplinar e burocrática, além do emprego do sistema de delação e espionagem dos vagabundos e desordeiros, ou seja, aqueles que eram diferentes, o outro, mais particularmente “o novo proletário urbano e suas possibilidades de greves e sabotagens”, como escreve Anitua (2008, p. 213). Para este autor na Argentina estavam incluídos os índios, os vagos, os “malentretenidos” (2009, p. 51) e em toda América Latina os mestiços que ameaçavam a raça superior. Sob inspiração de Joseph Fouché a polícia francesa empregava sistema de coleta e processamento de dados, catalogando as pessoas sujeitas às suas ações de controle, 110

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com metodologia que remete à atual função exercida por órgãos de inteligência, vindo esta a se converter atualmente em uma palavra mágica para solução das mais variadas questões, tanto nas organizações privadas quanto nas organizações públicas de controle social. Na Inglaterra o modelo burocrático policial floresceu com o capitalismo privado, devido à necessidade de se proporcionar proteção às fábricas, aos grandes depósitos, aos armazéns nos dinâmicos portos que asseguravam o comércio das mercadorias produzidas, livrando-os dos saques e furtos, mas também dos desvios de mercadorias pelos empregados. O Lorde Byron em sua advertência ao parlamento inglês descreve a situação dos trabalhadores em 1812: “Chamais a esses homens de horda, desesperada, perigosa e ignorante... Estaremos conscientes de nossas obrigações para com essa horda? É a horda que trabalha nossos campos, serve em nossas casas - que constitui vossa marinha e vosso exército, que vos permitiu desafiar a todo o mundo e pode também desafiar-vos, quando a negligência e a calamidade a tiverem levado ao desespero” (HUBERMAN, 1986, p. 186). O corpo de segurança inglês foi inspirado no pensamento de Patrick Colquhoun, em suas obras Tratado sobre a polícia de Londres, em 1796, e Tratado sobre o comércio e a polícia do Tâmisa, chegando este escocês a redigir a lei que organizou a polícia de Londres, contando inclusive com a ajuda de Bentham, segundo apurou Anitua (2008, p. 215), até que em 1829 o ministro do Interior Robert Peel reuniu os corpos de polícias existentes e criou a Scotland Yard, proporcionando a consolidação deste sistema policial tipicamente inglês com caráter civil e de apoio ao cidadão. Este modelo também veio a influenciar a criação de corpos policiais em todos continentes, da mesma forma do modelo francês que adotou uma linha mais militarizada. O modelo policial burocrático também foi adotado na Irlanda em 1823, e em 1844, na Espanha criou-se a Guarda Civil Espanhola que perdura até hoje. No Brasil, com a vinda de D. João VI, em 1808, foi criada a Intendência Geral de Polícia na cidade do Rio de Janeiro, que contava com um Delegado em cada província, seguido de breve período democrático e descentralizado da gestão policial e judiciária, colocando o juiz de paz como figura pública eleita, responsável pelo conhecimento e julgamento de pequenos crimes e posturas municipais, mas em 1841 o sistema policial foi reorganizado através da definição e aparelhamento das Polícia Civil e Militar.

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Na Europa, concomitante à origem jurídico-política da polícia também foram surgindo organizações sociais relacionadas ao sistema criminal, as quais forneciam conhecimentos e tecnologias para sua otimização sistêmica, com destaque para a penologia, a estatística, a datiloscopia, a criminalística, a psicologia criminal, a medicina legal, política criminal etc. Desperta interesse para nossas reflexões a criminalística como saber policial, tida por seu fundador Hans Gross como o conjunto de teorias que se referem ao esclarecimento dos casos criminais, em seu Manual de Juiz de Instrução, de 1893, no mesmo sentido segue Antón Barberá e Turégano ao defender a criminalística como sinônimo de investigação criminal, em sentido amplo, chegando a colocá-la como “parte da criminologia que se ocupa de los métodos y modos prácticos de dilucidar las circunstancias de la perpetración de los delitos e individualizar a los culpados” (BARBERÁ E TUREGANO, 1998, p. 23). O francês Edmon Locard desenvolveu técnicas de investigação científica e chegou a criar o primeiro laboratório de polícia, em 1910, em Lyon. Com isso iniciaram-se pesquisas na área da datiloscopia, toxicologia, balística etc. A política criminal também é fruto da efervescência social e política da sociedade que teve sua origem na Revolução Industrial e nos movimentos revolucionários seguintes. Ela surgiu inicialmente nos escritos de Feuerbach, em 1803, quando era tomada como sinônimo de teoria e prática do sistema penal, chegando-se a uma concepção de “conjunto de procedimentos pelos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal” (DEMAS-MARTY, 2004, p. 03). O sistema de controle social e, consequentemente, a polícia, conforme a abordagem sociológica e criminológica, foi aperfeiçoado e estruturado com os movimentos sociais e políticos do final do século XVIII e início do século XIX, quando os estados centralizados necessitaram dos corpos policiais para manter o controle de setores da sociedade que reclamavam por liberdade e acesso aos bens econômicos. Em suma, conforme os estudos da criminologia crítica, a polícia surgiu da necessidade do soberano colocar e manter o poder, e com ela também foram desenvolvidas outras tecnologias sociais funcionais ao sistema de controle social. Estes estudos apresentam forte carga ideológica para a polícia como instituição, como se depreende também pela orientação política marxista destes pesquisadores.

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O pensamento criminológico crítico pode ser sintetizado nas colocações de Carlos Albert Elbert que considera a polícia um dos “mecanismos de producción social de la realidad del control” (.......) “que cumple funciones de acción directa fatalmente políticas en todas sus intervenciones y en cualquier sistema sociopolítico, protegiendo intereses hegemónicos”, não encampando a noção ideológica e justificativa da polícia como “instituición neutral, de servicios, subordinada al derecho y los reglamentos, que materializa su ejecución por la fuerza o la disuasión, bajo control judicial o político” (ELBERT, 1998, p. 63-65).

4 Os Saberes Policiais Especializados como Ciência Vimos até agora o desenvolvimento histórico da polícia e o surgimento dos saberes policiais especializados, os quais chegaram a constituir-se como uma ciência, como veremos a seguir. As atividades policial e judicial eram tratadas como interesse privado logo no início da cultura greco-romana e no sistema germano, quando a sociedade era rural e sem complexidade na sua organização. Posteriormente evoluíram para um interesse público a ser assegurado pelo soberano, de maneira centralizada, como instrumento de administração da vida social e dos assuntos públicos, conforme descrevemos anteriormente. O pesquisador colombiano Jairo Enrique Suárez Alvarez assinala que a polícia tinha como função proporcionar a felicidade geral dos súditos, o bom governo baseado na ordem social com observância das leis e o desenvolvimento das virtudes dos cidadãos, bem destacada na concepção de Sócrates sobre polícia, que “es el alma de la ciudad.... la que piensa en todo, la que regula todas las cosas, la que hace o procura todos los bienes necesarios a los ciudadanos, y la que aleja de la sociedad todos los males y todas las calamidades que son de temer” (ALVAREZ, 2009, p. 29). A concepção de polícia derivada da cultura greco-romana foi absorvida pela cultura europeia ao longo da história, até que nos séculos XVII e XVIII chegou a se confundir com administração pública, conjugando polícia e política, vez que os monarcas passaram a empregar todos os conhecimentos acumulados sobre a regulamentação da vida social buscando a manutenção do poder, abrangendo desde as questões de fazenda pública, até guerra, justiça e polícia, surgindo assim o cameralismo na Alemanha, com destaque para

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Johann Heinrich Gottlob von Justi e seu Princípios de Ciência da Polícia. Este autor desenvolveu conhecimentos sistematizados sobre a administração do Estado visando à construção de condições materiais, morais e intelectuais do mesmo, manejando uma concepção do Estado do bem-estar concebido inicialmente pelo trabalho de Lorenzo Stein, com sua Teoria da Administração, de 1865 (ALVAREZ, 2009, p. 37). Papel importante exerceram as ideias de Adam Smith sobre o liberalismo econômico e a livre concorrência retratada na obra A Riqueza das Nações, em 1776, mas também pelos ensinamentos ministrados na Universidade de Glasgow sobre controle social e econômico, os quais foram publicados em 1896, por um de seus alunos, com o título Aulas de Justiça, Polícia, Rendimento e Armas. Tal pensador empregou a estatística na compreensão do ambiente econômico da época, assim como outros ilustrados usavam os conhecimentos científicos para o controle social, denominados por Anitua como Ciência da Polícia (ANITUA, 2008, p. 239). Com a especialização policial investigativa desenhada inicialmente no paradigma médico - mas que ganhou impulso teórico jurídico no sistema inquisitorial - chegou-se a desenvolver um direito policial processual que opera com as medidas de polícia. Segundo Ferrajoli, elas correspondem “a uma série de poderes instrutórios autônomos, paralelos àqueles de competência da magistratura, que às vezes as forças policiais podem exercitar sem autorização prévia ou mandato da autoridade judiciária” (FERRAJOLI, 2002, p. 634). Monet, ao estudar o nascimento da polícia moderna na Europa, adverte que nos séculos XVII e XVIII a polícia não era especializada, ela se ocupava da boa ordem (2002:64), ainda com aquela acepção de bom governo dos primórdios da ciência de polícia e que foi depois captada e consolidada por Von Justi na Alemanha e Adam Smith na Inglaterra. Segundo Monet, os governantes passaram a se preocupar com a legitimação de sua dominação, no século XIX, apresentando uma postura severa com as classes perigosas, mas protegendo as classes laboriosas, com isso os aparelhos ou corpos policiais que até então estavam se ocupando da repressão ostensiva e política - derivada da efervescência política das ideias liberais do final do século XVIII e início do século XIX - migraram para a política criminal e passaram a centrar seus esforços no esclarecimento de crimes consumados. Assinala Monet que na Áustria o modelo militar 114

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foi substituído pelo modelo civil, na Dinamarca cria-se departamento de investigação criminal seguindo o modelo inglês, o mesmo sucedeu com a Espanha, Noruega, França e Bélgica, criando-se a Polícia Judiciária. No Brasil não foi diferente o processo de formação jurídico-política da polícia e de seu ramo investigativo. O país também se encontrava em turbulência política e social no início do século XVIII. Experimentava revoltas contra o governo central, motins, rebeliões e guerras civis, cenário de constantes lutas contra o poder central ou em busca da independência de Portugal. Mesmo assim foi criado um Código de Processo Penal, em 1832, quando já havia sido proclamada a independência em 1822. Este código apresentava ideais democráticos inspirados na Revolução Francesa, onde havia a figura do juiz de paz escolhido pelo povo, previa-se o habeas corpus etc., entretanto, em 1841, após várias rebeliões tais como a Cabanada, de 1832 a 1834, a Sabinada, de 1837 a 1838, a Balaiada, de 1838 a 1841, a Guerra dos Farrapos, de 1835 a 1845, sem considerar os conflitos entre militares, tal como a Rebelião da Ilha das Cobras e Sublevação do Batalhão 16, em 1831 no Rio de Janeiro; as convulsões políticas como o Motim de Ouro Preto, em 1833; as constantes insurreições de escravos por todo país, tal como a Rebelião dos Caldeireiros, em 1833 no Rio de Janeiro, e o Levante Malês de 1835, na Bahia; a disseminação de quadrilheiros, forasteiros e desordeiros por todas as províncias etc., o poder central reagiu e centralizou a administração policial com a organização da Polícia Militar e a formação da Polícia Civil, esta centralizada no Chefe de Polícia e seus Delegados, surgindo então a Polícia Judiciária incumbida de perseguir os criminosos e apurar os crimes. Anitua destaca que o modelo policial se tornou organicista, quando substituiu parcialmente o discurso jurídico sobre a base do contrato por outro baseado no organismo social, permitindo o controle social através da teoria da ciência ou ciência de polícia, esta entendida como técnica de governo própria do Estado, cuja função da polícia passa a ser o controle de riscos, manutenção da autoridade e racionalização dos recursos desta atividade (ANITUA, 2009, p. 51). Monjardet vê nos movimentos populares surgidos ao longo dos últimos dois séculos, com mudanças de regime políticos diretamente relacionados às explosões populares, o ambiente propulsor de uma polícia criminal eficaz e bem definida, já que o “príncipe vigiou de perto para dispor de uma polícia de ordem eficaz, os meios não lhe são poupados” (MONJARDET,

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2003, p. 272). Com isso o saber policial foi se especializando da mesma maneira que as estruturas policiais desenvolveram mecanismos de criação e mobilização de expertises para atendimento de demandas sociais. No cenário latino-americano, o colombiano Miguel Antonio Goméz Padilla, ex-diretor da Polícia Nacional da Colômbia, conceitua a Ciência Policial como o estudo sistemático, ordenado e crítico do ente polícia, em seu contexto histórico, cultural, sociológico, político, econômico e filosófico, e em sua dimensão universal e local. Seu objeto, segundo o argentino Enrique Fentanes, é o estudo sistemático e metódico da polícia como instituição e como estrutura. O Colégio Europeu de Polícia vem debatendo os temas de polícia como Ciência de Polícia, como retratam o relatório Perspectiva da Ciência de Polícia na Europa e os estudos produzidos por Hans-Gerd Jaschke. Para o CEPOL, Ciência Policial é o “estudo científico da polícia como instituição e a atividade de policiamento como processo”. Inclui tudo o que a Polícia faz e todos os aspectos externos que têm um impacto na atividade policial e na ordem pública. Atualmente, este é um conceito operativo que descreve os estudos policiais rumo a uma disciplina científica aceita e consagrada. As ciências policiais tentam explicar fatos e adquirir conhecimento sobre a realidade policial, tendo em vista generalizar e poder prever possíveis cenários ( JASCHKE, 2007, p. 04). Na Inglaterra, em 2006, Markus Dirk Dubber e Mariana Valverde publicaram o livro A Nova Ciência Policial, pela Universidade de Stantford. Em Portugal o tema é bastante difundido, destacando as obras de Manuel Monteiro Guedes Valente e João Raposo sobre direito de polícia.

5 Os Saberes Investigativos

Policiais

Especializados

Identificamos dois paradigmas que influenciaram a formação de conhecimentos típicos da investigação criminal, a inquisição com origem mais remota e o paradigma indiciário ligado à medicina, já no século XIX. Estes paradigmas são identificados quando estudamos apenas o conhecimento ou reconstrução do fato penal, sem abranger a fase de julgamento e solução do conflito. Iniciemos pela inquisição.

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O soberano, ao apoderar-se do conflito com a transformação da persecução criminal privada em persecução pública, e com a influência do Direito Canônico, que aperfeiçoou as técnicas persecutórias pela Igreja, propiciou o desenvolvimento de uma estrutura estatal incumbida do conhecimento e da punição dos crimes, gerando assim a figura do procurador como representante do soberano e do inquérito escrito e secreto para investigar os crimes, até que no século XII já se encontrava bastante desenvolvido, mas não se pode desconsiderar que já era praticado na Alta Idade Média pelos funcionários Carolíngios (FOUCAULT, 2002, p. 64; ANITUA, 2009, p. 15). Anitua sintetiza a nova ordem salientando que “o monopólio estatal do ius puniendi significa que não se substituía somente a sociedade em assembleias, mas também as vítimas de sua reclamação e em seus lugares apareceram funções estatais que deveriam ser respeitadas por aqueles” (2008:42). Zaffaroni destaca que a supressão da vítima no processo penal produziu a degradação do ser humano como objeto a ser dominado (2002:265), criando-se a relação sujeito/objeto. Este novo método de saber-poder podia se ocupar da prevenção criminal mediante indagações sobre possíveis crimes praticados em determinadas comunidades, mas que eram mantidos no anonimato, além daqueles que eram surpreendidos em estado de flagrância, ou seja, permitia tornar presente, sensível, imediato e verdadeiro, o que ocorreu no passado como se estivesse presenciando uma cognição presente de um fato do passado. Este cenário forneceu condições para florescimento de uma organização hierárquica e permanente, nos moldes religiosos, que se encarregou de averiguar os crimes, registrando-se as diligências por escrito e mediante segredo, sem participação do investigado e com amplo emprego de torturas para se obter a confissão de crimes, reunindo assim elementos desumanos e antidemocráticos que culminaram em uma verdadeira perversão da forma de se fazer Justiça, aliado ao maciço emprego contra camadas da sociedade consideradas indesejáveis, dissidentes políticos ou inimigas do soberano. O modelo inquisitório e suas técnicas de aquisição e produção do conhecimento produziram barbáries na perseguição de inimigos imaginários, inicialmente o crime de bruxaria, os hereges, depois a mulher, seguindo para grupos religiosos e étnicos, em suma, o outro, o diferente, chegando a produzir um corpo de conhecimento sistematizado na obra Malleus Maleficarum ou Martillo de las Brujas, em 1484, dos inquisidores Heinrich Kraemer e

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James Sprenger, pelo qual, segundo Zaffaroni, se constituía o primeiro modelo integrado de criminologia e criminalística com direito penal e processual (ZAFFARONI, 2000, p. 271). Zaffaroni alerta para o desenvolvimento de estruturas discursivas inquisitoriais com valores culturais próprios, tal como a inquisição na idade média, quando o modelo excepcional criado pela igreja se tornou normal, havendo uma tendência irrefreável do excepcional se tornar normal ao longo da história do sistema punitivo . O processo cognitivo fatual se baseava na reconstrução histórica através da indagação ou inquirição do suspeito, ou na “reatualização de fatos através do testemunho”, coloca Foucault (2002, p. 88). A concepção inquisitorial foi expandida para vários ramos do conhecimento, constituindo em um saber-poder segundo Foucault (2002, p. 75), possibilitando o nascimento de novas ciências: Economia Política, Estatística, Medicina, Botânica, Zoologia. Através da instituição judiciária desenvolveu-se uma forma de autenticar a verdade na cultura ocidental. Com o iluminismo se pretendeu superar o modelo inquisitório, mas ele se mantém até hoje em diversos sistemas penais. Chegou a ser reformado em 1808 com o Código de Instrução francês, e posteriormente foram desenvolvidos procedimentos e técnicas para imposição de limites ao processo de busca do conhecimento criminal, buscando-se respeitar a dignidade da pessoa humana numa concepção liberal, inclusive, mediante a criação de garantias aos cidadãos em documentos internacionais sobre direitos humanos. Da mesma maneira foram desenvolvidos princípios processuais e constitucionais protetivos, tal como o da legalidade, da presunção de inocência, da publicidade etc. Curiosamente, foi na medicina que a arte de investigar se desenvolveu e floresceu, como apurado por Carlos Ginzburg na obra Mitos, Emblemas, Sinais, onde apresenta magistral pesquisa intitulada Sinais: raízes de um paradigma indiciário (GINZBURG, 1989, p. 143-180), e faz levantamento histórico do paradigma indiciário, que remonta ao período do homem primitivo que sobrevivia como caçador, quando aprendeu as ler os sinais deixados pela presa. Neste período também o homem passou a narrar uma história, e com o passar do tempo chegou-se aos estudos de Giovani Morelli, em 1874 a 1876, quando surgiram artigos sobre o método para descobrir cópias de uma

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pintura, o qual se concentrava na observação dos detalhes que o artista desconsidera e são despercebidos pelo copista, tais como lóbulos das orelhas, unhas, formas dos dedos das mãos e dos pés etc., permitindo chegar a uma realidade complexa não experimentável diretamente, ou seja, um saber venatório assemelhado à fisiognomonia . O método Morelliano foi seguido por Freud na psicanálise, ao observar os dados pouco notados, os refugos de uma observação; e por Conan Doyle nas aventuras do personagem Sherlock Holmes, desenvolvendo-se riquíssima literatura sobre os métodos de investigação criminal; na medicina que trabalha com os fundamentos trazidos por Hipócrates baseados no sintoma, pelos quais permitiam elaborar o contexto da doença. Daquele saber com nuances divinatórias, inicialmente empregado pelos adivinhos, evoluiu-se para um saber que excluía a intervenção divina, e no caso da medicina surgiu o paradigma semiótico ou indiciário que influenciou outras disciplinas. Passou-se a trabalhar com os sintomas (semeion), com a observação, comparação, classificação e registro minucioso dos sintomas dos quais se chegava a um diagnóstico de uma moléstia do passado ou que eclodiria no futuro (GINZBURG, 1989, p. 143 ss). O saber médico é indiciário como vimos acima, é individual, qualitativo, conjectural já que a doença em si é inatingível, da mesma forma que outros saberes tal como o direito, a historiografia, a política, a psicanálise e todas as ciências humanas. Isso inevitavelmente lhe retira o caráter quantitativo e sua capacidade preditiva universal, então, lhe confere rigor científico sui generis diferente das ciências da natureza. A reconstrução do fato penal não é absoluta, conforme pensamento garantista de Luigi Ferrajoli alinhado à concepção semântica da verdade. Ela encontra limites na aquisição de conhecimentos vinculados ao crime, e por consequência admite-se apenas uma verdade aproximada ou processual de fatos investigados (FERRAJOLI, 2002, p. 40-42). Ferrajoli construiu seu programa garantista com cognitivismo processual que corresponde à estrita juridicionariedade, com a presença de verificabilidade e refutabilidade das hipóteses tanto no plano fático como jurídico, com um processo de cognição ou de comprovação mediante procedimento probatório indutivo, sem uso de elementos valorativos. Isto corresponde a um sistema de persecução criminal próprio de um Estado de Direito que prestigia a dignidade da pessoa humana (FERRAJOLI, 2002, p. 32).

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O estudo da investigação criminal pode ocorrer através de abordagens diversas, da mesma forma que o estudo da polícia, podendo ser político, jurídico, histórico e sociológico, como ressaltamos ao longo deste trabalho. Entretanto, não recebe atenção nas pesquisas acadêmicas tal como a fase processual e de julgamento, apesar de a investigação criminal ser considerada a fase com maior consumo de energia do que a fase de solução jurídica, compreendida pela denúncia, processamento e decisão do caso penal, como colocado por Döhring (1963, p. 01). A investigação compreende desde o conhecimento de um suposto fato penal, passando pelas buscas dos dados informativos sobre o crime, a explicação e determinação positiva ou negativa de uma conduta criminosa, com caráter preliminar e provisório, muitas vezes chegando a ser desenvolvidas investigações sigilosas e complexas para acesso a dados negados ou de difícil acesso, as quais mobilizam recursos logísticos e humanos de custeio caro aos cofres públicos, requerendo então estudos multidisciplinares para sua compreensão. Entretanto, a investigação não pode constituir um fim em si mesmo, uma categoria alheia à função política da organização estatal estritamente ligada à dignidade da pessoa humana, e instrumental à paz social e à convivência pacífica. Segundo o professor italiano Francesco Sidotti, é da combinação da ciência com a investigação que surge a figura pública e privada que se dedica à investigação profissionalmente (SIDOTTI, 2006, p. 169), chegando tal autor a destacar a diferença entre investigação criminal e criminalística. Esta se refere a quando e como se cometeu o delito, mas não define se o fato examinado é um delito. A criminalística, por sua base eminentemente científica e tecnológica, também difere da criminologia (Op. cit., p. 288).

6 Conclusões Nos séculos XIX e XX, com as teorias do bem-estar social, a Ciência de Polícia foi evoluindo para uma nova concepção de gestão da coisa pública, com abordagens da teoria da administração pública, do direito administrativo e da ciência política. Neste período houve desvio do sentido de polícia, com o aparecimento de ideologias totalitárias que marcaram a inquisição e genocídios nos períodos de guerra e nos estados totalitários que surgiram no início do século XX, associados às forças de defesa nacional, quando a polícia foi empregada maciçamente para a repressão política e o genocídio, levando 120

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os teóricos a realizarem profundos estudos sobre a polícia como instituição e seu papel nas sociedades pós-modernas, bem como desenvolver critérios para uso da força no Estado Democrático de Direito. Nos tempos atuais, novos desafios surgiram para o modelo político-jurídico de organização dos Estados, que se deparam com novas emergências no enfrentamento ao crime, cuja manifestação mais aguda é o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, em Nova York. Mas estas emergências estão associadas ao terrorismo, ao crime organizado transnacional e ao tráfico de drogas, colocando populações em estado de constante perigo, inserindo-se na sociedade do risco teorizada por Ulrich Beck, que visualiza no fenômeno da globalização a democratização dos riscos produzidos pelos avanços técnicos na indústria, na genética, ecologia, informática, comunicações, química, energia nuclear etc., com danos irreversíveis às gerações atuais e futuras, conjugada ainda a aplicação dos avanços tecnológicos na sociedade de massa que abre espaço para delinquência produtora de danos a um universo enorme de pessoas. O avanço oferecido pela técnica e pela ciência à sociedade em muitos setores conduz à eclosão de conflitos de valores não solucionados pelas formas de ação sedimentadas pela pragmática humana ou pela norma jurídica, que compreendem desde as ameaças às bases naturais da vida provocadas pela contaminação do meio ambiente, até mesmo as novas formas de geração e manutenção da vida, agravados nas últimas décadas pelo desenvolvimento desenfreado de postura mercantilista nas relações sociais, que se agrega também ao individualismo e desemboca em um utilitarismo distorcido. Este cenário poderá apontar para um movimento reacionário de aumento do aparelho de segurança estatal e a especialização de agências de enfrentamento, com aumento de poderes e afrouxamento de sistemas de controle do uso da força, podendo gerar arbitrariedade e mais violência, conforme adverte Anitua (2008, p. 779). Como opção para a questão da violência e criminalidade, Salo Carvalho aposta na abertura para a alteridade, no encontro com o outro, “que ocorre com a visage (‘olhar’), implica ambos, pois sempre é traumático, visto ser a tendência do Um resguardar(-se em) sua finitude e totalidade”, conclui que “a violência se manifesta, portanto, quando o um toma posse do outro, consumindo-o aos poucos, controlando-o em suas manifestações, contendo seus desejos e sua identidade” (CARVALHO, 2006, p. 34, sic). Da mesma

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forma Anitua desenvolve sua proposta de “aumentar os componentes solidários da vida em comum e reduzir, até eliminar, aqueles componentes punitivos e bélicos”, com a imprescindível ação comunicativa com os outros, os diferentes, os de fora, os impuros (ANITUA, 2008, p. 842-852). Outro modelo apontado para lidar com o desvio ou o fenômeno criminal é o dos sistemas complexos onde os opostos se confrontam, mas se completam, a ambiguidade é necessária no sistema social. Ele trabalha com a redução do direito penal e a implantação dos princípios dialógico e de recursão. Este se baseia em círculos ininterruptos em que os produtos e os efeitos são ao mesmo tempo causa e produtores daquilo que os produz, e o princípio dialógico está orientado pela associação de noções complementares, concorrentes e antagônicas, entretanto elas são indissociáveis e indispensáveis para o conhecimento e compreensão da realidade, possibilitando a dualidade no seio da unidade. O cenário atual da investigação criminal é de uma sociedade líquida, da instantaneidade e do individualismo, onde a incerteza e a insegurança se expandem no meio social, formando ambiente propício para criação de estranhos, estrangeiros e outros. A intransigência nas relações sociais é cada vez maior, e isso certamente reforçará o discurso reacionário com o aumento das estruturas policiais, principalmente de polícias que manejam técnicas científicas sofisticadas de controle e de conhecimento dos fatos sociais, com ênfase na atividade de inteligência, desviando o aparelho policial de sua função como promotor da convivência pacífica entre os cidadãos - que também exige estruturas e saberes especializados para tal. Em suma, o trabalho investigativo está sobrecarregado de tarefas e tensões, de grandes novidades tecnológicas e sociais, conforme conclui Francesco Sidoti (2006, p. 440), constituindo enorme desafio para os teóricos, governos e sociedade conseguir o ajustamento da função policial investigativa às demandas sociais, plasmado em ideais democráticos e solidários. Abstraindo as questões ideológicas ou os posicionamentos críticos, entendemos, com David Weisburd e Peter Neroud, que a polícia deve avançar no uso dos modelos científicos e colocar-se no centro do palco na pesquisa sobre criminalidade, inclusive se socorrendo de saberes das ciências sociais e humanas (WEISBURD; NEROUD, 2011, p. 02-03), sempre orientando sua ação para solução de problemas, apesar dos avanços já alcançados nas áreas de avaliação de práticas policiais, inovação tecnológica, gestão e liderança, caso contrário se estará colaborando com as ideias totalitárias e confirmando o discurso crítico da polícia apenas como mantenedora dos interesses hegemônicos. 122

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Caminhamos para uma investigação criminal ancorada em preceitos científicos trazidos da epistemologia e da teoria das ciências, atribuindo-lhe caráter de uma pesquisa científica conduzida pelo método indutivo, em um modelo cognitivista de definição do fato penal, orientado pela verdade (ABELLÁN, 2010, p. 49), onde a formulação de uma hipótese criminal deverá estar baseada em provas colhidas sobre o evento penal, sem elementos subjetivos tanto na coleta como na valoração destas provas, e sem se esquecer dos limites epistemológicos, políticos e ideológicos colmatados na Constituição Federal, nas normas que regulamentam a busca, coleta e processamento de fontes aptas a levarem a um meio de prova válido. A orientação científica da polícia deve estar associada à constante reflexão sobre sua intervenção prática, para com isso promover uma consciência crítica sobre as condições em que atua e os efeitos práticos produzidos. Célio Jacinto dos Santos Delegado de Polícia Federal. Mestre em Ciências Policiais pelo Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ISCPSI, Lisboa, Portugal). Doutorando em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires. Orientador de alunos do Curso de Especialização em Ciências Policiais e Investigação Criminal e tutor de diversas disciplinas dos cursos à distância da Escola Superior de Polícia da Academia nacional de Polícia, onde está lotado. E-mail: celio.cjs@dpf.gov.br

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Sobre a Revista Formato: 16x24cm Mancha: 37p9,543x54p3,969 Tipologia: Várias Papel: Offset 75g/m2 (miolo) Supremo 230g/m2 (capa) Vol. 3 n. 1, jan/jun de 2012. Equipe de Realização Projeto Editorial Coordenação Escola Superior de Polícia

Edição de Texto Guilherme Henrique Braga de Miranda

Projeto Gráfico, Editoração Gilson Matilde Diana Guilherme Henrique Braga de Miranda

Impressão e Encadernação Equipe SAVI/ SAE/ ANP

ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA Coordenação Escola Superior de Polícia


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