2013 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CURSO DE GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE MATERIAIS
FELIPE MACHADO DA CUNHA LIMA
REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DA CIÊNCIA NA ENGENHARIA
FELIPE MACHADO DA CUNHA LIMA
TCC-UFSC
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CURSO DE GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE MATERIAIS
FELIPE MACHADO DA CUNHA LIMA
REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DA CIÊNCIA NA ENGENHARIA
FLORIANÓPOLIS 2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CURSO DE GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE MATERIAIS
FELIPE MACHADO DA CUNHA LIMA
REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DA CIÊNCIA NA ENGENHARIA
Trabalho apresentado ao Curso de Graduação em Engenharia de Materiais da Universidade Federal de Santa Catarina como parte dos requisitos para a obtenção do título de Engenheiro de Materiais. Orientador: Luiz Teixeira do Vale Pereira
FLORIANÓPOLIS 2013
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CURSO DE GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE MATERIAIS
FELIPE MACHADO DA CUNHA LIMA
REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DA CIÊNCIA NA ENGENHARIA
Este Trabalho de Graduação foi julgado adequado para a obtenção do título de Engenheiro de Materiais e aprovado em sua forma final pela Comissão examinadora e pelo Curso de Graduação em Engenharia de Materiais da Universidade Federal de Santa Catarina.
Professor Guilherme Mariz de Oliveira Barra
Professor Dylton do Vale Pereira Filho
Coordenador do Curso
Professor da Disciplina
Comissão Examinadora
Professor Luiz Teixeira do Vale Pereira Orientador
Tiago Menna Franckini Membro da Comissão Examinadora
Professor Dylton do Vale Pereira Filho Presidente da Comissão Examinadora
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Dedico este trabalho a todas as pessoas que receberam mĂŠritos que nĂŁo mereciam
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AGRADECIMENTOS Eu gostaria de agradecer ao meu orientador Prof. M. Eng. Luiz Teixeira do Vale Pereira, por todo auxílio e por ter viabilizado que este trabalho acontecesse. À Universidade Federal de Santa Catarina, à coordenadoria do curso de Engenharia de Materiais, à coordenadoria de estágios e ao coordenador de TCC do curso, Prof. Dylton do Vale Pereira por terem me permitido realizar a graduação da melhor forma possível. Gostaria de agradecer a Thaís Campolina, Kel Campos, Maika Milezzi, Raul Nunes, Caio Izaú, Malu e todas as demais pessoas que leram (parte do) trabalho e fizeram sugestões. Agradeço a Hailey Kass pelas constantes reflexões provocadas e pelas argumentações ricamente embasadas, e em especial por sempre nutrir a minha noção de autocrítica. Agradeço a Carol Marques, Thasio Sobral e Silas Cordeiro pelos diversos incentivos nos mais variados momentos. Agradeço também a todas as pessoas que estiveram ao meu lado e me ajudaram a descontrair nos momentos de tensões e dificuldades. Agradeço a todas as pessoas integrantes do grupo Transfeminismo, em todas as suas mídias, pelas diversas reflexões proporcionadas e pelas diversas mudanças de paradigma, sem as quais este trabalho nunca seria possível.
Meus sinceros agradecimentos
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“Todo mundo chama de violento a um rio turbulento, mas ninguĂŠm se lembra de chamar de violentas as margens que o aprisionam.â€? (Bertold Brecht)
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RESUMO O presente trabalho questiona o papel da ciência na sociedade ao buscar elementos que não sejam intrinsecamente científicos empregados na construção do corpo teórico da ciência. Uma análise de diversos fatores usualmente ignorados demonstra um papel mais humano, e social, desta área do conhecimento. Acredita-se que a desnaturalização da ciência, assim como do seu processo criativo, aproxima a informação de todas as esferas da sociedade. É urgente que as ciências tragam respostas para a população e seja desconstruída esta ciência focada em reprodução de preconceitos pessoais das pessoas produtoras de conhecimento. Parte-se do pressuposto de que a crença no mito da neutralidade científica prejudica a construção do conhecimento e sua aplicação prática, ao ignorar as peculiaridades de cada caso ao supor tanto metodologia e aplicabilidade universais. Apesar de transversal a diversas áreas, e, portanto com ampla literatura técnica sobre o assunto, o trabalho busca uma problematização, e posterior reflexão, destes conceitos dentro das ciências naturais, com ênfase nas áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática. O desenvolvimento cognitivo da ciência é abordado por Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas e traz luz para a questão da substituição de uma teoria por outra. A distribuição imerecida de méritos (o chamado efeito Mateus) e sua rede de efeitos auxiliares são desenvolvidas por Robert Merton. George Kneller aborda diversos aspectos humanos e suas influências na construção do pensamento científico em Ciência como atividade humana, assim como Derek de Solla Price em A ciência desde a Babilônia. Uma compreensão maior do próprio trabalho permite a cientistas se responsabilizarem mais pelo trabalho realizado por compreenderem melhor as implicações do seu papel perante a sociedade. A luta por uma ciência mais humanitária é um caminho, que apesar de árduo, permite a construção de um mundo que viabiliza a existência plena de cada vez mais grupos. Palavras-chaves: Ciência. Condicionante. Mérito.
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ABSTRACT This paper questions science role in society showing some elements which aren’t intrinsically scientific used in the construction of science body of knowledge. The analysis of many ignored factors brings a more humanistic, and social, role to this area. We believe that a denaturalized approach of science (and its creative process) approximates information to all spheres of society. All the sciences should aim to help people, so we must deconstruct this science focused on personal prejudices. It’s supposed the belief in the “neutrality of science” myth affects the build of knowledge and its practical applications because it ignores specific cases idiosyncrasies and supports a universal scientific point-of-view. Although transversal to many areas, and therefore there already is a huge technical literature about the issue, this paper intends to think these concepts inside nature sciences, emphasizing Science, Technology, Engineering and Mathematics (STEM fields). Thomas Kuhn’s The structure of scientific revolutions addresses science cognitive development and brings light to the reasons of theoretical changes. Giving undeserved rewards (the Matthew effect) and its adjunct effects network are developed by Robert Merton. George Kneller approaches many human aspects and their influences in scientific thinking in Science as a human endeavor, as well as Derek de Solla Price in Science since Babylon. Scientists may increase their accountability if they have a better understanding of their own work. The struggle for a humanitarian science may be a hard way yet it enables us to raise a more accepting world to many of us. Keywords: Science. Conditioning. Merit.
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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO
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2 OBJETIVOS
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3 CIÊNCIA
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4 COMUNIDADE CIENTÍFICA
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5 CIÊNCIA E SOCIEDADE
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5. 1 IMAGENS DA CIÊNCIA
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6 INFLUÊNCIAS POLÍTICAS, ECONÔMICAS E TECNOLÓGICAS
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6.1 POLÍTICA 6.2 ECONOMIA 6.3 TECNOLOGIA
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7 INFLUÊNCIAS SOCIAIS
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7.1 EFEITO MATEUS 7.2 EFEITO MATEUS MATILDA 7.3 PERCEPÇÃO
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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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1 INTRODUÇÃO O mito da neutralidade surge como forma de endossar o valor objetivo da verdade científica proveniente de pressupostos sobre a natureza e da tentativa de produzir culturas disciplinares fixas. A neutralidade seria uma dimensão importante da pesquisa por garantir a identidade específica da disciplina, em consonância com a independência e a imparcialidade de cientistas e da objetividade dos resultados (GONÇALVES, 2005). Aceitar de forma inquestionável este mito constitui um dogma de fé e permite usos não sociais para a ciência. Parte do problema surge em saber se a ciência reproduzida é reconhecida como representação da realidade, isto é, entender o papel das relações entre os cientistas e seus métodos, teorias, paradigmas, e em especial idiossincrasias e contingências na produção de conhecimento científico. Outro ponto importante é refletir sobre o papel social da pessoa cientista, em sua identidade como cientista e como ator que interfere na sociedade (GONÇALVES, 2005). O conhecimento é inseparável da concorrência entre abordagens científicas divergentes que tentam construir e reconstruir a sociedade e suas interpretações científicas. O que existe são procedimentos técnicos desenvolvidos pelas pessoas cientistas com o objetivo de neutralidade. Estes procedimentos apenas servem como partidas funcionais a partir de convenções e decisões anteriores, e por este motivo já estão impregnados de teorias desde o início. Algumas pessoas da área consideram que o contexto, a cultura e a sociedade atuam como condicionantes na produção do conhecimento científico. Não obstante, a ciência tem sempre um caráter político, ainda que apenas se consideradas suas relações inevitáveis com as políticas científicas nacionais e transnacionais (GONÇALVES, 2005). O cerne do problema está na demarcação geral entre o que é ciência e o que é exterior a esta e também nas demarcações entre ciência natural e social. A ilusão de neutralidade pode ser sustentada por uma forma de objetificação que é introduzida devido à ecologia das práticas, à demarcação de objetos e sujeitos da(s) ciência(s) e aos procedimentos aceitos para obtenção de dados. Estes, por sua vez, contribuem para reforçar as dualidades dos processos socioculturais estabelecidos entre natural e social, biológico e cultural, humano e não humano, sujeito e objeto. O paradigma da ciência moderna se baseia na obsessão com o método, e se pode dizer que nunca houve tanta evidência da ilusão de neutralidade como nas últimas décadas (GONÇALVES, 2005).
2 Esta ilusão não pode ser comportamento comum entre quaisquer pessoas graduandas como um todo, e, em especial, de cursos científicos, tecnológicos, de engenharia e medicina, por estes permitirem a reprodução de preconceitos. Ter noções claras dos mecanismos de funcionamento da ciência é imprescindível porque estes cursos permitem às pessoas formadas atuação imediata na sociedade, devendo sempre estar ciente da responsabilidade e culpabilidade das suas ações. Uma compreensão clara e desmistificada da formação do conhecimento científico também se faz indispensável para as pessoas que pretendem seguir carreira acadêmica, ao lidarem com outras gerações de estudantes e para poderem, efetivamente, utilizar ao máximo os avanços científicos já presentes. A problematização da ciência é imprescindível porque acreditamos que a desnaturalização da ciência, assim como do seu processo criativo, aproxima a informação de todas as esferas da sociedade. É urgente que desenvolvamos ciências que tragam respostas para a população e desconstruamos esta ciência focada em reprodução de preconceitos das pessoas produtoras de conhecimento.
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2 OBJETIVOS O objetivo do trabalho é fazer uma revisão bibliográfica que problematize a ideia de ciência neutra, imparcial e isenta ao explorar algumas características intrínsecas à produção e educação científica, assim como alguns processos não científicos envolvidos na criação do conhecimento científico. Parte-se do pressuposto segundo o qual esta falsa crença prejudica a construção do conhecimento e sua aplicação prática, ao ignorar as peculiaridades de cada caso ao supor que tanto metodologia quanto aplicabilidade são universais.
Objetivos específicos a) Buscar literatura que se proponha a: a. Identificar alguns condicionantes intrínsecos à ciência; b. Analisar parte do sistema de educação científica e como este interfere na rede de oportunidades da futura pessoa cientista; c. Considerar como a sociedade (científica ou não) interage com a ciência; d. Ponderar sobre alguns dos condicionantes políticos, econômicos e tecnológicos da produção científica; e, e. Avaliar os condicionantes sociais externos à ciência. b) Refletir sobre o papel da ciência na engenharia.
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3 CIÊNCIA “Math, science, history unraveling the mystery that all started with the Big Bang!” (The Barenaked Ladies) Desde os primórdios da humanidade o ser humano observa a natureza com alguns questionamentos. Uma tentativa de busca por respostas é o surgimento na Grécia antiga da filosofia pré-socrática ou da natureza. Estes filósofos se questionavam sobre uma realidade primeira, originária e fundamental (REALE, 1993, vol. I, p. 48 apud SILVA (org.), 2006, p.331). Uma das principais consequências desta noção básica de que o universo é inteligível, e que, portanto, pode ser decodificado, é a base do que chamamos de ciência natural. Acredita-se que a natureza nos passa uma mensagem codificada, que é um quebracabeça a ser resolvido (KUHN, 2005, p. 62). Porém não sabemos o código, não temos conhecimento de que espécie de mistério é preciso desvendar. Johannes Kepler acreditava que os planetas formavam um moteto e cantavam uma música (ALVES, 1989, p.73); Galileu Galilei nos trouxe a noção, até hoje aceita, de que tudo pode ser escrito em linguagem matemática (ALVES, 1989, p. 80). Em qualquer que seja a abordagem utilizada está implícito o pressuposto de que a própria natureza é simples e harmoniosa (KNELLER, 1980, p. 86). Na tentativa de entender a mensagem, cientistas precisam fazer uma escolha de valor e buscar apenas a verdade pública e objetiva, em detrimento de outras espécies de verdade. Isto porque o conhecimento objetivo pode ser obtido através do teste de hipóteses, e esta é uma das principais ferramentas disponível. Pode-se argumentar que, por tentar entender o mundo, ao invés de melhorá-lo, a ciência natural é moralmente neutra (KNELLER, 1980, 278). Entretanto, isto nunca é verdade, pois um maior conhecimento do mundo permite novas formas de poder (KNELLER, 1980, 240). Além disso, algumas pesquisas não aspiram pura e simplesmente à verdade, pois são financiadas por patrocínios externos que orientam a sua direção, ainda que não seu conteúdo. É importante reconhecer que uma ciência humanitária nunca poderia ser, afinal de contas, moralmente neutra (KNELLER, 1980, 278). Com base no resultado das hipóteses testadas experimentalmente se propõe um enunciado generalizando um caso específico, processo chamado de indução. Este raciocínio sempre envolve um ato de fé, e, portanto, nunca pode ser puramente lógico. Ironicamente, apesar de buscar o conhecimento lógico, a ciência per se nunca é puramente racional (KNELLER, 1980, p. 56-7). A estrutura de investigação científica é um melhoramento do senso comum, o comumente chamado método científico (KNELLER, 1980, p. 236).
5 Cada campo de estudo pode ser considerado um quebra-cabeça diferente do outro, e, portanto possui regras próprias, ou seja, um “ponto de vista estabelecido” ou uma “concepção prévia” (KUHN, 2005, p.62). Só depois de que se alcança consenso sobre estas regras é que uma área é científica, uma vez que a maior parte das pessoas envolvidas está trabalhando na mesma direção, ao invés de competindo por teorias opostas (KUHN, 2005, p.42). O desenvolvimento científico acontece na tentativa de compreender em que consiste a inteligibilidade da natureza. Para isso são criadas propostas para desenvolver teorias que articulem uma espécie de ordem que se presume existir no mundo. A escolha entre propostas equivalentes deve prezar a simplicidade e a inteligibilidade, para ser, então, desenvolvida em um modelo preciso e testável (KNELLER, 1980, p.87). Um modelo é tão mais bem sucedido quanto mais previsões ele faz com a ajuda do menor número possível de pressupostos. O progresso científico é aparentemente acumulativo na maior parte do tempo, impressão que desconsidera uma parte importante do processo. Os modelos vigentes nunca dão conta de explicar todos os fatos dentro do escopo da teoria, até que, eventualmente, um destes casos propicie a criação de teorias alternativas. Duas teorias diferentes que fazem predições diferentes para um mesmo fato não podem ser coerentes entre si; é por esta razão que para o avanço de uma teoria outras precisem ser eliminadas (KUHN, 2005, p. 130-1). A frase de Francis Bacon de que “saber é poder” resume a postura ocidental do progresso da sociedade em função do progresso científico. Isto quer dizer que se podemos entender o mundo como um sistema operacional, então temos liberdade de manipulá-lo e adaptá-lo às nossas necessidades. É o poder de conhecer a natureza que nos permite mudá-la, assim como entender a sociedade nos permite refazê-la (KNELLER, 1980, p. 240). Esta influência da tecnologia na vida em sociedade fica evidente se consideramos que a prosperidade e o poderio militar estão diretamente relacionados ao desenvolvimento tecnológico, ao invés de recursos naturais (PRICE, 1976, 9. 111). Portanto fica impossível ignorar que a ciência seja influenciada pelas visões de mundo e ideologias de cientistas e da sociedade na qual está inserida. Recortes como classe, gênero e etnia interferem na utilização dos pressupostos teóricos no processo de criação de hipóteses. Ao construir uma explicação de fenômenos naturais cada cientista se baseia em conceitos que são, ainda que indiretamente, reforçados pelo sucesso da teoria, o que impede a moralidade neutra do pensamento científico. Provar a teoria endossa a ideologia contida nela. A pressão das subjetividades na ciência é mais sutil e profunda do que suspeitamos (KNELLER, 1980, p. 279).
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4 COMUNIDADE CIENTÍFICA “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”. (William Shakespeare) Dentre os principais motivos apresentados por pessoas cientistas para a escolha da carreira estão a curiosidade natural, o prazer intelectual de resolver problemas e o reconhecimento por seus semelhantes, sendo o último o mais institucionalizado (KNELLER, 1980, p.198; PRICE, 1976, p.115). Espera-se que a primeira pessoa a publicar e divulgar receba os créditos, ao proclamar a propriedade intelectual. Acredita-se que isto deveria acontecer, pois os processos de generalização e criação de leis parecem estar submetidos a uma lógica de um só mundo a descobrir, o que pode ser exemplificado pela ocorrência de diversas descobertas aproximadamente simultâneas (PRICE, 1976, p.115). Em ciência o processo de atribuição de mérito acontece através do chamado mecanismo de recompensa, ou seja, o reconhecimento profissional surge quando a pessoa cientista disponibiliza seu trabalho para uso dos seus pares. A retribuição pode tomar diversas formas, entre as quais: aconselhamento, convites para falar em seminários, citações em trabalhos, filiação em sociedades honoríficas e premiações (como o Nobel). Um dos maiores tributos que uma pessoa cientista pode prestar é seguir a tradição de pesquisa criada por outra pessoa da área. Por fim, dentre as recompensas possíveis, a eponímia, ou seja, ter seu nome atribuído a sua realização, é uma forma de ter seu nome imortalizado em uma área maior que a da própria obra, e, portanto, bastante cobiçada (KNELLER, 1980, p. 197-8). Uma forma de declarar prioridade sobre uma descoberta é o uso da propaganda, utilizada para a inclusão dos trabalhos no arquivo eterno que parece caracterizar a ciência. Em termos gerais, pode-se conseguir fama e respeito por meio da publicação científica impessoal e objetiva (PRICE, 1976, p. 115-6). O caráter colaborativo é imprescindível para a ciência, tanto pela amplitude de informações disponíveis quanto pela validação social das descobertas realizadas. O fato de uma pessoa cientista não poder trabalhar isolada é indicativo do papel das comunidades científicas na geração de conhecimento. São estas que, visando o progresso do corpo de conhecimentos, definem padrões de pesquisa, conciliam os interesses individuais e os da empresa científica e promovem competição e cooperação (KNELLER, 1980, p. 182). Atualmente a principal forma de transmissão de uma tradição de pesquisa é por intermédio dos colégios invisíveis – “colégio” por ser exclusivo e “invisível” por não se restringir a um espaço físico. É um grupo internacional de pessoas que trabalha numa tradição
7 de pesquisa com cerca de dez a uma centena de cientistas, os quais evitam mecanismos de comunicação formal, dando preferência a uma troca de informações mais rápida, como por meios eletrônicos. A tradição de pesquisa do colégio invisível pode ser válida para várias áreas diferentes, pode estar em competição com outras tradições dentro de uma especialidade ou se propor a ser deliberadamente inovativa, indo contra a tradição estabelecida. Muitas vezes o colégio invisível é personificado em uma pessoa expoente da especialidade, sendo esta quem representa publicamente o grupo e avalia a evolução do trabalho empreendido (CHARLTON, 2009, p. 111-2; KNELLER, 1980, p. 183). A principal espécie de informação trocada em um colégio invisível é o conhecimento tácito, que inclui material não publicado, e possivelmente impublicável, habilidades e minúcias sobre a execução de tarefas, ou seja, são coisas que só podem ser aprendidas por ensinamento pessoal direto. O conhecimento tácito é aquele aprendido em conversas pessoais, visitas a laboratórios ou ao trabalhar junto a especialistas (CHARLTON, 2009, p. 112). Uma forma de aprendizado de conhecimento tácito e, indiretamente, de vir a participar de um colégio invisível é através do estudo de ciência. A educação científica é uma importante ferramenta para modelar os alunos em futuros cientistas. O estudante precisa investir tempo e energia para aprender e acatar o corpo sancionado de conhecimentos, motivo pelo qual é constantemente avaliado (KNELLER, 1980, p. 192). O aluno de ciência, ao contrário de uma pessoa leiga que aceita as aplicações de uma teoria como sua prova, é convencido pela autoridade do professor e do material didático (KUHN, 2005, p. 111). É treinado a resolver problemas com respostas precisas e fechadas, mas não tem suas criatividade e imaginação estimuladas (KNELLER, 1980, p. 192). O estudante de ciência ao aprender apenas a parte estabelecida do conhecimento se torna alheio ao lugar da ciência na vida humana como um todo. Isto porque esta forma de ensino ignora que a ciência é também um movimento histórico, um método de investigação e um repertório de conhecimentos; isso quer dizer, desconsidera a sua força cultural. Ao se omitir os fatores mais humanos da produção científica ignoram-se os caminhos trilhados até as descobertas e as interações interpessoais responsáveis pela realização destas (KNELLER, 1980, p. 222).
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5 CIÊNCIA E SOCIEDADE “O mundo recompensa com mais frequência as aparências do mérito do que o próprio mérito.” (François La Rochefoucauld) O conhecimento fruto da atividade científica pode ser utilizado para produção de novas tecnologias, assim como forma de exercício de poder, e é, portanto, bastante estimado. Este valor agregado ao produto final torna a ciência uma das atividades humanas mais transversais por interagir com aspectos políticos, econômicos, sociais, tecnológicos, ambientais e legais, assim como por ser área de interface com diversas entidades (academia, governo e iniciativa privada e forças armadas). Enquanto parte da sociedade o pensamento científico está impregnado com crenças sobre as características fundamentais da natureza, sobre a própria sociedade e sobre como a humanidade vive e atua no mundo. Esta influência sociocultural é tão intrínseca à ciência que não se pode isolar a comunidade científica da sociedade em que existe, mesmo que este efeito seja dificilmente observado pela maioria das pessoas (KNELLER, 1980, p. 206). Por estar inserida em uma sociedade que estimula a recompensação baseada em mérito a ciência é competitiva. Portanto os cientistas, a exemplo das demais profissões, competem entre si pela aquisição de posses e prestígio. A competição é uma forma de incentivarem as pessoas a realizar o melhor trabalho possível e, nessa medida, serem as mais humanas possíveis. Sendo todas as sociedades civilizadas competitivas, então devemos aprender a lidar com a competividade ao invés de podá-la (KNELLER, 1980, p. 202). Um cientista, assim como qualquer outra pessoa, precisa de recompensação financeira para sobreviver em sociedade, entretanto sua principal força motriz é o reconhecimento da comunidade científica na qual está estabelecido (CHARLTON, 2009, p. 112). Devido ao seu papel crucial no desenvolvimento científico seria plausível acreditar que o mecanismo de recompensa é, portanto, uma ferramenta justa. Entretanto, conforme ricamente ilustrado na história da ciência, em diversos casos esta não é uma suposição que se sustente.
5. 1 IMAGENS DA CIÊNCIA De acordo com o artigo publicado por Holton (1960) na The Saturday Evening Post, cada pessoa tem uma imagem da ciência, esta é formulada a partir de informação concreta,
9 informação errada, folclore, desejo e preconceito. Com base nestas imagens é determinado o grau do apoio de recursos financeiros, a quantidade e a qualidade das instruções oferecidas, e o desenvolvimento de novos cientistas. Por fim, estas imagens também afetam como o próprio cientista vê o seu trabalho. Certas ou erradas, ideias são poderosas, e, portanto merecem extrema atenção. Holton sugere que a imagem da ciência de cada um é composta por sete elementos principais. Holton define a primeira imagem da ciência como a do pensamento puro e poder prático. Esta imagem considera que a ciência pura nos permite entender o mundo físico e, portanto, o controlar, mas que ignora um terceiro aspecto vital da ciência: a mitopoese. A ciência gera parte do nosso vocabulário simbólico e fornece orientações metafísicas e filosóficas das nossas ideologias. O autor completa dizendo que uma imagem sólida da ciência deve englobar estas três funções, apesar de que, com maior frequência, apenas um dos três aspectos é reconhecido. A segunda imagem apontada no artigo é a da iconoclastia. Os grandes avanços científicos costumam ser interpretados como ataques contra a religião, porque alguns filósofos seguiram a tendência antiga, e perigosa, de provarem a existência de Deus em problemas que a ciência da época não poderia solucionar. O raciocínio foi aplicado à formação da Terra, ao surgimento da humanidade e à origem da nossa galáxia. Esta visão falha em reconhecer as influências na formação de uma pessoa, que incluem fatores psicológicos, fatores biológicos, oportunidades e acidentes. A terceira imagem é a da perversão ética, onde a ciência é a serpente nos seduzindo a comer do fruto proibido – isto é, nos condenando. Este é um medo real, pois a ciência permite uma mudança de ideias acelerada, muitas vezes concentrada nas mãos de uma minoria de especialistas, o que pode permitir exploração através da tecnologia. Um sintoma é a identificação da ciência com a tecnologia das superarmas. Entretanto a pessoa cientista tem pouca culpa pelas descobertas que faz ou pelo uso dado a estas – isso porque usualmente não tem permissão ou competência para tomar este tipo de decisão. O uso da ciência é controlado por considerações éticas, econômicas, ou políticas, ou seja, pelos valores, medos e circunstâncias históricas da sociedade. De forma similar, a quarta imagem, do aprendiz de feiticeiro, prega que apesar de a ciência ser eticamente neutra, não se pode confiar conhecimento científico à humanidade, pois esta é inerentemente má. Se a humanidade chegou tão longe foi apenas por não ter tido armas destrutivas o suficiente à disposição. A humanidade, em analogia ao aprendiz, não entende a
10 ciência e não a controla. O medo inspirado pela catástrofe iminente é representado pela demanda de moratória científica. Esta demanda ignora dois fatos: o de que a ciência é um processo tão criativo quanto às artes, e que, portanto, não pode ser parada de uma hora para outra e o de que nunca se pode saber demais sobre o seu próprio ambiente. O preço do conhecimento novo é a obrigação para que assumamos nossas responsabilidades por seu uso. No artigo, Holton nos apresenta a quinta imagem como a do desastre ecológico. A mudança de temperatura de um lago ou de salinidade no oceano pode matar diversas espécies, é um desiquilíbrio ecológico. Da mesma forma o avanço científico iniciou uma mudança que agora corrói a única base concebível para a sociedade: a verdade foi destruída e trocada por probabilidade e indeterminações. O argumento sustenta que sem absolutos não podemos ter valores éticos, destruindo as fundações da moral e da autoridade social. Em resumo, a ciência nos livrou de algumas crenças falaciosas e aumentou nosso conforto material, mas em troca nos deixa à deriva, longe de qualquer porto seguro. Esta imagem é baseada em ignorância científica, pois na verdade a ciência é uma das áreas mais conservadoras do saber – uma teoria nova só se estabelece se puder englobar os conhecimentos anteriores. Fazendo uma crítica mais severa, independente da influência da ciência na corrosão dos valores absolutos: estes são realmente uma âncora confiável? Grandes horrores foram realizados sob o uso de bandeiras de alguma filosofia absolutista, como o auto da fé da Inquisição Espanhola e o massacre dos Huguenotes. Crer que o conhecimento científico é o caminho para suicídio é se esquecer de que a ciência trabalha pela qualidade de vida humana. A sexta imagem, a do cientificismo, pode ser descrita como um vício na ciência. O cientificismo parte da crença de que o único conhecimento válido é proveniente da informação científica mais recente. Com a união satisfatória dos interesses da universidade, da indústria e do estabelecimento militar a ciência se tornou um sistema em grande escala, com poder de atuação global e imediato. Para Holton o perigo, e o cientificismo tem participação importante, é que a fascinação com a ciência pode construir uma nova sociedade e modificar a pessoa que faz ciência. Por fim, Holton diz que a sétima imagem é a da mágica. De acordo com esta imagem qualquer coisa é possível atualmente, a ciência não conhece limites. E podemos temê-la ou idolatrá-la dependendo de nossas orientações. Esta última imagem é o reflexo de que apesar de todo o tempo e dinheiro investidos a maioria de nós está contente em permanecer ignorante sobre ciência.
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6 INFLUÊNCIAS POLÍTICAS, ECONÔMICAS E TECNOLÓGICAS “Temos que colocar a tecnologia em uma posição em que ela serve nossos ideais, em vez de competir com eles.” (Philip Low) Especialistas de política da ciência questionam se, e em que extensão, é possível que interesses e motivações externos possam influenciar o desenvolvimento da ciência – isto é, o progresso incremental e as mudanças de paradigmas. Alguns argumentam que devido ao fato de a ciência ser altamente diferenciada em unidades especializadas e de conhecimento intensivo, as quais não permitem orientação efetiva por pessoas leigas, ela escapa de interferências externas. Apesar da pouca discordância, a resposta depende da definição de “influência” utilizada. De fato, é quase certeza que não se é possível intervir na hierarquia através de agências políticas e determinar ou comandar o progresso científico (BRAUN, 1998, p. 808). O desenvolvimento científico depende do conhecimento acumulado, do progresso tecnológico e, principalmente, das motivações das pessoas cientistas e do ambiente organizacional, financeiro e estrutural, e, portanto, não pode sofrer influência direta ou linear – a que dependente das vontades dos atores externos –, mas apenas mediada e indireta (BRAUN, 1998, p. 808). Entre as influências indiretas se encontram as visões de mundo e ideologias das sociedades em que é feita a pesquisa, que frequentemente expressam interesses setoriais que podem afetar os pressupostos teóricos da pesquisa (KNELLER, 1980, p. 279). As crenças podem ser tão poderosas a ponto de levar a pessoa cientista a se apoiar em ideias não científicas e as colocar no âmago de uma teoria. A disseminação da teoria faz com que estas ideias sejam, indiretamente, aceitas, mesmo quando há hostilidade inicial (KNELLER, 1980, p. 208). Entender melhor quais influências, e como elas funcionam, é imprescindível para um melhor entendimento da ciência. Serão apresentados casos que ilustram alguns mecanismos possíveis de influência no desenvolvimento científico.
6.1 POLÍTICA Dentre as diversas possibilidades de interferência política na ciência o caso do lysenkoísmo sob o governo da Rússia soviética é bastante representativo. Por interferência política direta do governo a genética estabelecida foi suprimida na metade do século XX para
12 o florescimento de uma nova genética que apesar de não confirmada estava alinhada com os valores da doutrina vigente (ROLL-HANSEN, 2005, p. 143). Isto aconteceu porque para o governo soviético a classe social de origem da pessoa cientista era mais importante que o trabalho realizado, e, portanto, estavam tentando criar uma nova ciência – feita pelos filhos e pelas filhas da classe trabalhadora, não pelos filhos da burguesia. Não importava se a ciência estava certa ou errada, contato que fosse, ou ao menos declarasse ser, condizente com a política do partido (MÜLLER-HILL, 2002, p. 592). O lysenkoísmo era o controle político centralizado sobre a genética e a agricultura exercido por Trofim Lysenko e pelas pessoas que seguiam suas teorias. Lysenko era filho de camponeses ucranianos, não aprendeu a ler antes dos 13 anos e nunca chegou a aprender outro idioma. “Era inteligente e diligente: em 1918 ingressou numa escola de jardinagem [school of gardening] prestigiada; em 1922 foi nomeado especialista sênior em uma estação de pesquisa agrícola; e em 1925 graduou como agrônomo no Instituo Agrícola de Kiev” (ROLL-HANSEN, 2005, p. 144, tradução nossa). Lysenko alegava poder “educar” as plantas, alterando hereditariamente suas características. Ele se dizia um salvador, pois se fosse verdade poderia ampliar bastante a produção agrária. Entretanto, tudo não passava de uma fraude (MÜLLER-HILL, 2002, p. 592). Em um teste preliminar, trigo de inverno foi levemente germinado e mantido em temperaturas pouco acima do congelamento por uma quinzena, sendo semeadas com sucesso na primavera. O método não era novo, já tendo sido testado na Europa e na América do Norte. O tratamento se mostrou impraticável, mas ainda assim o programa seguiu continuidade, sendo posteriormente ampliado (ROLL-HANSEN, 2005, p. 145). É verdade que Lysenko rejeitou ciência sólida, mas o que faz com que hoje achemos que a ciência feita por ele e muito da biologia soviética seja “pseudociência”? Para Richard Lewontin e Richard Levins o lysenkoísmo foi uma tentativa de revolução científica, uma forma legítima de melhorar a sociedade e seus ideais através da ciência. Parece correta a crença instintiva de que a ciência deva ser subordinada aos valores humanos e utilizada para o aumento do seu bem-estar, mas o conceito parece ter sido desastrosamente implementado no caso do lysenkoísmo (ROLL-HANSEN, 2005, p. 143). As teorias sustentadas por Lysenko foram amplamente contrariadas ao longo do tempo em que este esteve no poder. Para sustentar a nova ciência o partido trabalhava em conjunto com a polícia secreta, inclusive executando cientistas que não concordassem com os rumos da época. Diversas pessoas cientistas eminentes da época se posicionaram contra e foram
13 largamente penalizadas, sendo inclusive forçadas a largar a ciência (MÜLLER-HILL, 2002, p. 592). Eventualmente, depois de várias décadas no poder, Lysenko foi demitido em 1965 após a queda de Khrushchev. Nesta época uma comissão de cientistas eminentes denunciou seu trabalho como uma fraude (KNELLER, 1980, p. 232). O governo soviético permitiu a longa existência de uma tese não confirmada, pois esta se ajustava à doutrina comunista de perfectibilidade humana, apesar de esta ser um desastre para a ciência e a agricultura soviéticas (KNELLER, 1980, p. 232). Entretanto, existem outras formas mais indiretas e sutis de interferência da política no processo científico, as quais devem ser consideradas, pois se presentes em uma política científica de longo-prazo permitem intervenções mais diretas (ROLL-HANSEN, 2005, p. 143). Atualmente podemos analisar os fatos como pertencentes a uma história distante, mas é possível ver o lysenkoísmo como um sintoma nas ideologias e políticas da ciência moderna que continua sem resposta. Qual é o propósito da ciência? Produzir compreensão pura ou produzir resultados utilizáveis? Caso ambas as coisas sejam importantes, qual a relação que existe entre elas (ROLL-HANSEN, 2005, p. 143)?
6.2 ECONOMIA O capital econômico – salários, recursos financeiros e organizacionais e a infraestrutura necessária – é um pré-requisito para a pesquisa. A disponibilidade de recursos financeiros e de infraestrutura adequada influencia as chances de cientistas individuais, disciplinas ou instituições de pesquisa de realizarem as pesquisas que desejam e aumenta as chances de grupos de pesquisa atraírem cientistas jovens ou proeminentes para seus campos de pesquisa, isso quer dizer, repercute diretamente nas posições de poder dentro do sistema científico. A quantidade e a qualidade do capital econômico disponível contribuem para as relações intra e interdisciplinares de poder dentro do mundo social da ciência. A distribuição de recursos financeiros pode, indireta e parcialmente, influenciar o que, e por quem, será investigado, pois viabiliza os meios organizacionais e financeiros possíveis ao selecionar dentre as áreas cognitivas e cientistas (BRAUN, 1998, p. 809-10). Uma influência mais direta do capital econômico no desenvolvimento da ciência é estruturar a forma como a pesquisa é feita. As agências de financiamento, enquanto principais atores de distribuição dos recursos públicos, podem estipular as condições e os critérios das concessões de bolsas. Para participar do edital cada pessoa precisa concordar com os
14 requerimentos inerentes ao instrumento de financiamento: subdividir o processo de pesquisa de acordo com os períodos correspondentes à bolsa, conceituar a pesquisa em termos de problemas (científicos ou externos), convencer a agência de que a pesquisa é executável dentro do limite de tempo, e refletir sobre os resultados prováveis da pesquisa. Desta forma, uma pessoa interessada em pesquisa em uma determinada área pode, por exemplo, ser obrigada a consentir a trabalhar com um grupo de trabalho ou dentro de um centro de pesquisa. Cada cientista precisa estruturar sua prática de pesquisa de acordo com as exigências do edital (BRAUN, 1998, p. 810). As agências de financiamento também podem definir critérios que regulamentam a seleção das bolsas que vão ser concedidas. Estes critérios podem envolver os limites máximos de investimento destinados a projetos individuais, uma divisão de projetos por regiões ou considerações éticas sobre os projetos. Os critérios não restringem diretamente a escolha das pesquisas contempladas, mas tem um papel secundário na avaliação das propostas. Em menor escala, portanto, não é a qualidade científica que rege a distribuição de fundos, mas considerações externas (BRAUN, 1998, p. 810). A distribuição de capital econômico realizada pelas agências determina em algum grau – isso varia de acordo com o sistema de financiamento do país – quem recebe o quê, quando e como em relação às condições materiais da pesquisa. O impacto tem um efeito duplo no desenvolvimento cognitivo: indireto pelas implicações pela luta por poder entre cientistas, e, direto pelo seu poder de estruturar a prática científica. Dada a relevância da distribuição de verbas para a chance de realizar pesquisa, torna-se importante saber quem realmente decide a distribuição dos recursos e as prioridades das agências (BRAUN, 1998, p. 810). Quanto mais o governo investe em ciência, mais profundas as influências sobre os campos científicos a serem explorados, ainda que exista liberdade para empreender seus próprios programas dentre os campos (KNELLER, 1980, p. 228). Ravetz critica que a ciência está, portanto, “industrializada”. O financiamento é realizado, por governos e indústrias privadas, visando à obtenção de lucros industriais secundários a médio ou longo prazo. Para Ravetz a sociedade profissional está estratificada, baseada nos órgãos financiadores, alguns grupos de pesquisa chefiados por cientistas expoentes, um grupo menos privilegiado de cientistas trabalhando individualmente com pequenas bolsas e que deixa à margem cientistas que não possuem verbas ou pesquisas. Assim a ciência deixa de procurar entender a natureza per se para gerar resultados de descobertas aplicáveis. A ciência deixou de libertar o espírito de concepções inadequadas e se consolidou num dogma (KNELLER, 1980, p. 279).
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6.3 TECNOLOGIA A ciência tem uma relação de interdependência com a tecnologia. Para a confirmação experimental de hipóteses é preciso que se adapte a tecnologia de forma que esta preveja a teoria (KNELLER, 1980, p. 269). A pessoa que desenvolve um instrumento não deve se limitar a apenas atribuir números. O equipamento deve mostrar que os dados obtidos coincidem com os previstos pela teoria, desconsideradas todas as indeterminações e todos os ruídos. Os dados antes de se tornarem medidas de alguma coisa precisam ser relacionados a uma teoria que os preveja. Estabelecida a relação, então, o instrumento precisa ser reorganizado para permitir a correlação inequívoca com a teoria (KUHN, 2005, p. 62).
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7 INFLUÊNCIAS SOCIAIS O progresso científico está relacionado à forma como a pessoa cientista lida com o mundo ao seu redor, isto é, como interpreta o contexto em que está inserida. Desde um nível mais básico, sobre como interpreta as impressões sensoriais, passando pela imagem que faz de si e do seu trabalho, até a sua posição dentro da sociedade (científica ou não) e suas relações interpessoais. A principal motivação para a realização de pesquisa é o retorno social para a pessoa cientista, na forma de status social distribuído dentro do processo de pesquisa e dos resultados desta. A disputa por vantagens e posições de poder dentro do sistema científico é o principal incentivo para o desenvolvimento da ciência. O aumento na reputação científica influencia a posição de poder do cientista (BRAUN, 1998, p. 808-9). Reconhecimento profissional exerce um papel tão importante na produção de novas pesquisas, portanto, deveria funcionar de um modo justo, mas não é o que acontece. Diversas formas de efeito halo podem ocorrer no processo, ou seja, a avaliação de um item pode interferir no julgamento sobre outros fatores, e no resultado final como um todo. Um dos erros mais recorrentes é o excesso de mérito atribuído a cientistas famosos, nomeado por Robert K. Merton de “efeito Mateus” (KNELLER, 1980, p. 198-200). O efeito Mateus, entretanto, não é um evento isolado dentro do mundo social, ele está conectado a outros conceitos importantes em teoria social. Para Merton um fenômeno social pode ter consequências, ou funções, manifestas (intencionais e reconhecidas) ou latentes (não intencionais e não reconhecidas). Estas consequências podem ser positivas (funcionais) ou negativas (disfuncionais) para a sustentabilidade do sistema social como um todo (RIGNEY, 2010, p. 13-14). Outro conceito de Merton (apud Rigney) é a estrutura de oportunidades, definida como “a escala e a distribuição das condições que proveem várias probabilidades para ação individual e em grupo para alcançar resultados específicos.” Pessoas localizadas em diferentes lugares da estrutura social têm acessos variáveis às coisas que aspiram. As estruturas de oportunidades e o acesso a estas não são estáticas; podendo expandir ou contrair em diferentes época e lugares. O acesso a oportunidades aumenta as probabilidades de sucesso, mas uma parte importante continua atribuída à agência humana e à escolha. Não apenas as oportunidades são importantes, mas também como estas são utilizadas. A subjetividade das percepções, expectativas e motivações afetam como se adaptar e responder a oportunidades e barreiras encontradas (RIGNEY, 2010, p. 18).
17 A meritocracia da ciência pode ser criticada por uma ampla literatura que tenta desaparelhar a neutralidade e a objetividade que são atribuídas a estes sistemas, ressaltando iniquidades de gênero, etnia e classe que são inerentes ao sistema. Apesar disto, excelência é tida como referência ao redor de todo o mundo, e vem sendo equiparada ao desempenho máximo acadêmico. A ideologia da meritocracia esconde práticas de desigualdade que são independentes de mérito, portanto, é importante buscar entender como as desigualdades estão imbuídas na construção e avaliação da excelência (VAN DEN BRINK; BENSCHOP, 2012, p. 518).
7.1 EFEITO MATEUS “E o motivo todo mundo já conhece: é que o de cima sobe e o de baixo desce” (As Meninas) Em diversas esferas da vida observamos que uma vantagem inicial tende a gerar mais vantagens, e uma desvantagem mais desvantagens, entre indivíduos e ao longo do tempo, aumentando a diferença entre quem tem mais e quem tem menos. Este efeito foi nomeado por Merton como efeito Mateus, em referência ao versículo do evangelho de São Mateus. “A todo aquele que tem, será dado mais, e terá em abundância. Mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado” (Mt 25.29). A existência do efeito pode parecer óbvia na vida cotidiana, mas quanto mais nós o examinamos, mais complexo e menos óbvio este se torna. Nem sempre é uma verdade universal que as pessoas mais ricas enriquecem, enquanto as mais pobres empobrecem – seja riqueza em termos de dinheiro, poder, prestígio, conhecimento, ou qualquer recurso tido como valioso. Uma vantagem inicial nem sempre leva a maiores benefícios, e uma desvantagem inicial nem sempre traz malefícios (RIGNEY, 2010, p. 1). O estudo dos efeitos Mateus explora os mecanismos e processos pelos quais iniquidades, uma vez estabelecidas, se tornam auto-perpetuantes e auto-amplificantes na ausência de intervenção, aumentando a distância entre quem tem mais e quem tem menos. Não se pode teorizar sobre estratificação sem prestar atenção nestes processos (RIGNEY, 2010, p. 2). Gostamos sempre de acreditar que as vantagens com as quais nascemos, e quaisquer demais vantagens que conseguimos acumular ao longo de nossas vidas, são batalhadas e merecidas, portanto implicações perturbadoras podem surgir do estudo deste efeito. Mas as injustiças e iniquidades se encontram por todos os cantos, dentro das nações e entre elas, então precisamos reconhecer de quais sistemas que fazem outras pessoas sofrerem nos
18 beneficiamos (RIGNEY, 2010, p. 2-3). As pessoas falham em distinguir a diferença entre dizer que todo mundo tem uma chance e dizer que todo mundo tem a mesma chance (RIGNEY, 2010, p. 7). Alguns exemplos do efeito Mateus na ciência podem ser observados, por exemplo, quando laureados do Nobel são eleitos para a Academia Nacional de Ciências. Também é reconhecido quando artigos escritos em colaboração e descobertas simultâneas são creditados ao nome mais eminente. Artigos com coautoria de uma pessoa cientista mais renomeada inclusive tendem a ser citados erroneamente pelo nome desta. Premiações são oferecidas a nomes que já notórios (KNELLER, 1980, p. 198-200; RIGNEY, 2010, p. 28). O valor intelectual das contribuições à ciência é atribuído pelos cientistas que, de acordo com os padrões da época, fizeram contribuições notáveis ao conhecimento. A autoridade profissional, e, portanto, a atribuição de posições de poder, surge da realização intelectual. Quem realiza as melhores pesquisas, dentro dos critérios do seu tempo, controla a comunidade científica, ao invés de um conjunto de administradores com interesses próprios. Apesar de estratificada de acordo com o talento a comunidade científica não é puramente elitista, considerando-se que o poder de influência se encontra amplamente distribuído pelas especialidades (KNELLER, 1980, p. 198-200). Uma maior compreensão do efeito pode ser tida considerando sua relação com outros conceitos de teoria social. Merton definiu que as consequências de um efeito social como manifestas, ou seja, intencionais e reconhecidas, e latentes, seu oposto. Ele também classifica a interação destas consequências com a sustentabilidade do sistema social em positivas, ou funcionais, e negativas, ou disfuncionais (RIGNEY, 2010, p. 13-14). Ao estudar o efeito de Mateus no mecanismo de recompensa Merton analisa os efeitos primariamente como funções e disfunções latentes na operação normal das instituições científicas. Em suas análises conclui que o efeito é tanto positivo quanto negativo; positivo por facilitar o reconhecimento de talentos e a manutenção dos padrões de qualidade, negativo por supressão de talentos, iniquidade e ressentimento entre as pessoas cientistas qualificadas menos famosas (RIGNEY, 2010, p. 16). Merton também define a estrutura de oportunidades como “a escala e a distribuição das condições que proveem várias probabilidades para ação individual e em grupo para alcançar resultados específicos”. Pessoas localizadas em diferentes lugares da estrutura social recebem oportunidades diferentes, mas estas apenas aumentam as chances de sucesso e parte importante depende da agência humana e das decisões tomadas. As estruturas e os acessos a
19 elas não são estáticos, estão sempre em fluxo em algum nível. Um elemento deste fluxo é o efeito Mateus em si. Sucesso tende a produzir mais sucesso e fracasso tende a produzir mais fracasso, seja na ciência, nos negócios, na política, na educação ou na vida cotidiana (RIGNEY, 2010, p. 18-20).
7.2 EFEITO MATEUS MATILDA "She didn't write it. She wrote it, but she shouldn't have. She wrote it, but look what she wrote about. She wrote it, but she wrote only one of it. She wrote it, but she isn't really an artist, and it isn't really art. She wrote it, but she had help. She wrote it, but she's an anomaly. She wrote it, BUT . . ." (Joanna Russ) O efeito Mateus é a atribuição imerecida de mérito para cientistas já proeminentes. A versão deste efeito que considera gênero é conhecida como efeito Matilda, e aborda a falta de reconhecimento de pesquisas realizadas por mulheres, sendo diversas vezes atribuídas a cientistas homens (LINCOLN et al., 2012, p. 308; ROSSITER, 1993, p. 337; VAN DEN BRINK; BENSCHOP, 2012, p. 519). Dois exemplos do fenômeno são apresentados na Figura 1. Os esforços femininos continuam sendo avaliados como menos importantes que os realizados por homens, apesar da queda na discriminação evidente. Entretanto não apenas os homens superestimam o trabalho masculino, mesmo por mulheres tão competentes quanto estes (BARRES, 2006, p. 134; LINCOLN et al., 2012, p. 308). Valian sugere que isto ocorre porque queremos muito acreditar na justiça do mundo. As mulheres que alcançam sucesso podem desconsiderar as práticas sexistas dentro da ciência porque a ausência de êxito de outras mulheres faria com que o seu próprio sucesso pareça maior. Outra explicação é a “negação da desvantagem pessoal”, ou seja, mulheres comparam o seu desempenho com o de outras mulheres e não o de outros homens. Parece que se deseja tanto acreditar na neutralidade do mérito que enquanto uma pessoa não tiver sua carreira bastante prejudicada ela continuará se recusando a aceitar a injustiça. Se a intolerância não for abordada as mulheres continuarão a avançar muito lentamente (BARRES, 2006, p. 134).
20 Figura 1- Marie Curie
Fonte: http://xkcd.com/896/, tradução nossa.
Uma evidência clara de que a pesquisa acadêmica não é imune ao efeito Matilda ocorreu em 2001 quando a revista Behavioral Ecology instituiu o processo de revisão de manuscrito duplo-cego. As identidades de autoria e de revisão eram, agora, ambas anônimas, ocasionando o aumento de 7,9% na aceitação de artigos com mulheres como primeira autora (LINCOLN et al., 2012, p. 308). Para mulheres talentosas a academia costuma não ser muito uma meritocracia (BARRES, 2006, p. 134). Quando se avalia excelência temos um padrão duplo em relação a gênero, uma mulher que não alcance o padrão em um quesito que seja será rejeitada, enquanto um homem que não
21 alcance este mesmo padrão tem uma oportunidade de se aperfeiçoar. Reluta-se em deixar a ideologia da excelência, porque isso poderia afetar os padrões de qualidade utilizados, apesar de que isso já é feito (conscientemente ou não) com os homens. Esta diferença de tratamento acaba se perdendo na retórica da meritocracia e nos comentários relativamente despercebidos dos homens. Em função da ética científica do mérito é negada a influência do gênero na prática acadêmica (VAN DEN BRINK; BENSCHOP, 2012, p. 519). Premiações se relacionam com publicações como marcos de sucesso profissional e são decisivos na hora de indicações e promoções. Apesar do aumento no número de mulheres com doutorado e sua importância crescente na força de trabalho científica elas continuam subrepresentadas em premiações por sua pesquisa, esta desvantagem já começa desde as nomeações. Por serem menos validadas como pesquisadoras competentes tendem a não se promover ou pedir nomeações de outrem. Os critérios dos prêmios tendem a evocar estereótipos masculinos como “líderes” ou pessoas que “assumem riscos”. As cartas de recomendação para indicadas costumam ser mais curtas, mencionam o gênero, usam estereótipos femininos e incluem mais linguagem negativa para levantar dúvida quanto à candidata (LINCOLN et al., 2012, p. 309). Apesar de o número de mulheres premiadas nas duas décadas ter aumentado, uma análise mais cuidadosa mostra que a proporção de mulheres que receberam prêmios por pesquisas acadêmicas, de fato, diminuiu. Além disso, as chances de um homem ser contemplado com um prêmio de pesquisa independem da proporção entre os gêneros dos candidatos indicados. Representação feminina nos comitês avaliativos, especialmente quando presidentes/presidentas, parece moderar a disparidade (LINCOLN et al., 2012, p. 315). Historicamente, as alegações de que os grupos em desvantagem são inatamente inferiores costumam serem frutos de ciência ruim e intolerância. E considerar que mulheres são menos aptas que homens, sem qualquer evidência relevante, é culpabilização da vítima (BARRES, 2006, p. 134). Muitas mulheres têm suas carreiras freadas pelo preconceito que sofrem. Muitas acabam “decidindo” sair da ciência ou engenharia por serem constantemente bombardeadas sobre sua suposta incapacidade, afetando sua autoestima e reduzindo suas ambições. Uma das formas que parece mais promissora de ajudar as mulheres cientistas é confiar nos trabalhos delas e gerar expectativa positiva. Se não respeitarmos as habilidades das mulheres elas não poderão aprender, avançar, liderar ou participar efetivamente da sociedade de forma plena (BARRES, 2006, p. 135).
22 Chamar atenção a este comportamento que já ocorre há séculos talvez ajude as próximas gerações a escrever uma história mais igualitária e compreensiva e uma sociologia da ciência que chama atenção para cada vez mais novas “Matildas”, ao invés de deixá-las para trás (ROSSITER, 1993, p. 337).
7.3 PERCEPÇÃO Ao longo da pesquisa a pessoa cientista se depara com fatos – coisas que acontecem ou subsistem, os eventos ou estados – e, a partir de seus conceitos, os traduz em dados, ou seja, representações simbólicas de eventos e estados. Os dados, por serem interpretações dos fatos, não são sensações vazias de significado, mas sim dependentes da nossa percepção essencialmente judicativa (KNELLER, 1980, p. 102). Graças a este comportamento específico da percepção humana é possível que diversas pessoas ignorem conjuntos de dados relevantes por não conseguirem adaptá-los à teoria vigente. Por exemplo, quando Carl Andersen provou experimentalmente a existência do pósitron ele se baseou em dados semelhantes que anteriormente tinham sido avaliados como resíduos. A noção do pósitron tinha sido, até então, evitada, pois contrariava a crença de que para cada forma de eletricidade (positiva e negativa) só era necessária uma partícula. Apesar da evidência dos dados o pósitron não tinha sido identificado por contrariar a expectativa científica da época (KNELLER, 1980, p. 174-5).
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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS “E assim, tanto quanto esta crônica, nada se conclui.” (A excêntrica família de Antônia) Entender precisa e amplamente a ciência é um desafio decorrente de esta ser uma atividade extremamente plural e que se relaciona de formas diferentes com diversos setores da sociedade, os quais se comunicam e se influenciam em uma trama complexa. Ainda assim, se quisermos influenciar positivamente o desenvolvimento global, precisamos entender a construção do saber científico, os mecanismos para explicitação de conhecimento tácito e as consequências da ciência na sociedade. Um dos principais pressupostos que precisamos quebrar é o de que a ciência seja neutra. O mito da neutralidade científica pode ter consequências devastadoras quando permite que a sociedade trabalhe para a ciência, ao invés de influenciar positivamente a sociedade como um todo. Desconsiderar as ideologias em vigor é uma prática destrutiva e desumanizadora dos atores sociais envolvidos, além de enfatizar apenas o pensamento hegemônico, ou seja, ignorar especificidades quando estas são exigidas. De forma geral podemos dizer que se as pessoas no front científico tiverem um conhecimento mais profundo dos mecanismos envolvidos em sua atividade, estas, então, poderão considerar as demais variáveis em favor de resultados mais próximos do seu ideal. Entender as implicações e abrangência do seu trabalho permitiria a cientistas construírem uma maior noção de responsabilidade, alinhando-se a uma ciência mais humanitária. As formas de influência, seja direta ou indireta, precisam ser revistas para que a autorregulamentação científica identifique e minimize efeitos indesejados o mais rápido possível, evitando-se, assim, situações críticas como a que permitiu a existência do lysenkoísmo na Rússia soviética. Devido ao caráter “industrializado” da ciência atual é necessário que o financiamento científico seja reestruturado. Deve-se evitar que a iniciativa privada possa controlar os rumos das pesquisas atuais ao mesmo tempo em que se pretende uma separação clara entre ciência e Estado. Uma alternativa possível seria o financiamento voluntário realizado pela comunidade leiga, o chamado crowdfunding científico. Considerando que a ciência não é neutra, ou seja, que ela é, e invariavelmente sempre será, direcionada por elementos tendenciosos diversos, precisamos identificar quais destes estão operando em um dado momento. Entre os exemplos clássicos, e também controversos,
24 de direcionamentos é importante considerar a atuação da ética e da religião. A ciência deveria ser subordinada a estas ou deveria se desenvolver como área do conhecimento independente? Ao refletir sobre o papel da ciência nas políticas públicas torna-se cada vez mais evidente que um corpo de cientistas plural é uma necessidade urgente. Conforme disse Barres (2006, p. 135-6) a liderança nas instituições acadêmicas e científicas precisa englobar mais diversidade, que ampliaria os pontos de vista, respeitando e sendo sensível a diferentes perspectivas. Para isto é vital que se incluam lideranças de grupos sub-representados como mulheres, pessoas negras, lésbicas, gays, bissexuais e pessoas transgêneras, o que também reduziria a hostilidade sentida por estas pessoas nos seus ambientes de trabalho. Existem pessoas extraordinárias nestes grupos que estão aptas a desempenhar a função com maestria que podem suprir estas vagas. Representatividade pode ser alcançada através de políticas afirmativas, que visam contrabalancear as injustiças sofridas por estes grupos. Estas são especialmente importantes, pois, como diz Boaventura Sousa Santos (1997), “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza”. Conviver com a diferença torna as demais pessoas mais aptas a compreender as necessidades específicas das pessoas e as formas de contorna-las. Conquistar uma ciência inclusiva e humanitária não é uma tarefa fácil, mas, com certeza, é uma forma eficiente de viabilizar um mundo melhor e mais igualitário para todas as pessoas. Apesar de atualmente limitadas às ciências sociais, estas reflexões deveriam expandir seus limites para que as ciências naturais cumpram melhor a sua função designada.
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26 MÜLLER-HILL, Benno. Science, a social product? Trends In Biochemical Sciences, [s. L.], v. 27, n. 11, p.592, 1 nov. 2002. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1016/S09680004(02)02218-1>. Acesso em: 6 jul. 2013.
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