Cuidado: o futuro que a série mostra está mais próximo do que você imagina.
lente da verdade
sua vida em likes
espionagem caseira
upload de cérebro
As lentes de contato que gravam tudo já foram patenteadas pelo Google.
A China vai imitar a série: quer ranquear seus cidadãos com base na vida social deles.
Como agem os hackers que veem o que você está fazendo na frente do computador.
San Junipero é aqui: como a ciência busca transferir a mente para fora do corpo.
uidado: o futuro que a série mostra está mais próximo do que você ima SID_blackmirror.indd 1
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isso ĂŠ muito
black mirror
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capítulo 1 0
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SUMÁRIO carta dos editores
espelho negro Desligue o celular e olhe para a tela preta. Esse é o “black mirror”, o “espelho negro” que batiza a série criada pelo britânico Charlie Brooker, e que acaba de ganhar sua quarta temporada. Além da escuridão, você também vê o seu reflexo ali. Por isso é pouco exato dizer que Black Mirror trata só de tecnologia – mais que isso, é uma série sobre você. Sobre nós. Sobre como a tecnologia está afetando a forma como a gente convive. Repare que o tempo verbal está no presente. Sim, os episódios são centrados em futuros distópicos. Mas eles só servem para ilustrar aonde podemos chegar sendo o que somos neste momento. É o que as reportagens desta edição apresentam: a atualidade não apenas presente, mas gritante em cada capítulo de Black Mirror. Enquanto você lê estas linhas, criminosos transmitem suas ações em tempo real nas redes sociais, como acontece no episódio do porco; cientistas realizam estudos sérios sobre imortalidade, como em San Junipero; empresas criam gadgets para transformar soldados em supercombatentes, como em Engenharia Reversa; hackers invadem redes para monitorar pessoas (tema de Manda Quem Pode); gente lincha gente na internet (Odiados pela Nação). Tudo isso faz parte desta edição, que contou com o trabalho de mais de uma dezena de repórteres e uma série de especialistas. Aproveite.
06 as conexões em black mirror Os episódios que fazem referência a outros episódios.
ana Prado, rodolfo Viana e Tiago loPes
Editores
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capítulo 1 0
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T1
T2
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inferno ao vivo Homicídios e outras barbaridades transmitidas ao vivo já são parte do dia a dia.
fale com os mortos Os chatbots estão aprendendo rápido: o próximo passo é trazer mortos “de volta”.
1
quantos likes sua vida merece? A China vai imitar Black Mirror: está ranqueando seus cidadãos com base na vida social deles.
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marcados para sempre As punições polêmicas da vida real: olho por olho, listas de pedófilos e castração química.
2
a vida é um jogo Seu cérebro está preparado para games que inserem elementos virtuais no mundo real? Nem tanto.
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animais políticos x políticos animais
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confissões de um hacker Como trabalha Shadow Ghost, uma versão de carne e osso do hacker de Manda Quem Pode.
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tempo elástico Entenda a ciência de verdade por trás da estrela do episódio: a distorção do tempo.
4
upload de consciência A ideia de transferir a mente para fora do corpo ronda a cabeça de cientistas e filósofos.
5
supersoldados Novos equipamentos transformam soldados em versões reais do Exterminador do Futuro.
6
odiados pela internet Os linchamentos virtuais, e os riscos bem reais que eles trazem.
1
1
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O rinoceronte e o chimpanzé que se deram bem em eleições.
T3
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propaganda onipresente A publicidade já está tão distópica, e inteligente, quanto a do episódio Quinze Milhões de Méritos.
20 3
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cada segundo da sua vida As lentes de contato que gravam sem parar serão uma realidade. E já existe uma minicâmera assim.
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as conexões em black mirror Vários episódios fazem referências bem-humoradas a outros. Veja todas aqui. > texto rodolfo Viana > edição ana prado
e1
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Temporada 1
6
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e1
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Temporada 2
e3
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00min00s
44min34s
06min32s
00min00s 11min42s 32min39s 44min38s 56min27s 56min34s 56min36s 56min44s 56min57s 1h07min14s
05min00s
04min41s
04min26s
00min00s
29min22s
29min02s
01min07s
00min00s
31min57s
13min40s
03min43s
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36min36s
10min35s
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> infográfico flaVio pessoa
e1 Temporada 3
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conexões 0
0
Como ler o gráfiCo
seus resultados
As setas partem do episódio que gerou a referência e pousam naqueles que fazem as referências a ele. Entendeu? Então vamos lá.
1ª TEMPOrAdA
1º episódio
hino nacional TEMPOrAdA
número do episódio número de referências
episódio referenciado
5 CENAS em 4 EPiSódiOS
número de referências
x CENAS em x EPiSódiOS
1 O gráfico em miniatura diz em quais episódios há alguma referência. 2 As fotos mostram algumas das cenas com referências, e a legenda, o momento em que elas surgem.
T3:E3 / 49min25s
T3:E1 / 44min34s
e2
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59min44s
1h25min12s
59min43s
28min05s
13min52s
12min20s
09min56s
03min12s
13min40s
05min05s
59min08s
49min25s
09min43s
23min01s
17min59s
13min42s
13min39s
T3:E6 / 59min43s
Em Manda Quem Pode (T3:E3) aparece o link para uma notícia sobre o divórcio do primeiroministro do episódio do porco. O nome dele também aparece em Queda Livre (T3:E1), numa nota de site um tanto jocosa: “Michael Callow foi expulso do zoológico de novo”. No mesmo episódio, aparecem cosplayers fãs de Sea of Tranquility, programa citado no primeiro episódio da série. Em Odiados pela Nação (T3:E6), Michael Callow aparece nos trending topics. Em Natal, (T2:E4) há outra menção ao divórcio. 7
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conexões 0
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1ª TeMpoRada
2º episódio
T3:E6 / 59min44s
T3:E2 / 17min59s
Quinze Milhões de Méritos núMero de referências
4 cenas eM 3 episódios
T3:E3 / 49min25s
em natal (T2:e4), o programa a que potter assiste se chama Hot shot. É o show de talentos do qual abi participa em Quinze Milhões de Méritos (T1:e2). abi canta a música anyone Who Knows What Love is, que também é cantada no karaokê por Beth, mulher de potter. o soldado Raiman, de engenharia Reversa (T3:e5), também canta a melodia, enquanto mantém parn Heidekker sob custódia. Uma outra ligação mostra, na verdade, uma falha de continuação da série: numa cena do episódio Manda Quem pode (T3:e3), surge um link com a chamada “Quinze Milhões de Méritos será lançado na próxima semana”. “Quinze Milhões de Méritos” é o nome do episódio – o do programa é Hot shot mesmo.
T2:E4 / 56min27s
T2:E4 / 44min38s
8
2ª TeMpoRada
2º episódio
urso Branco núMero de referências
8 cenas eM 4 episódios
Victoria Skillane. Guarde o nome da mulher acusada de sequestrar e matar uma criança em Urso Branco – ele aparece em diversas cenas de outros episódios. Em Natal (T2:E4), o telejornal traz, no rodapé, esta chamada: “Apelação de Victoria Skillane é rejeitada”. Além disso, no mesmo episódio, o símbolo que aparece na TV de Victoria – uma reprodução da tatuagem de Ian Rannoch, seu noivo – é mostrado na porta de uma cela. O desenho também aparece no equipamento de conexão com o cérebro da equipe de Shou Saito, no episódio Versão de Testes. Em Manda Quem Pode (T3:E3), um link no site mostra as últimas notícias no caso de Victoria Skillane. O nome volta a aparecer no episódio Odiados pela Nação (T3:E6),
junto a #DeathTo, hashtag usada para selecionar quem será morto. No mesmo episódio, há uma referência à mulher nos trending topics: um deles é #FREETHEWHITEBEARONE” (libertem a pessoa de Urso Branco, em tradução). Mas não é apenas o nome de Victoria que se repete em Odiados pela Nação. A detetive Blue diz que, antes de se juntar à equipe de Karin Parke, trabalhou no caso Rannoch – aquele do assassinato da menina Jemima, pelo qual Victoria e seu noivo, Ian Rannoch, foram condenados. No noticiário de Odiados pela Nação também há uma chamada que faz referência a Urso Branco. A nota diz que a Corte rejeitou a apelação de Victoria Skillane.
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2ª TeMpoRada
T3:E6 / 09min56s
3º episódio
3ª TeMpoRada
5º episódio
engenharia reversa
momento Waldo número de referências
4 cenas em 2 episódios
número de referências
2 cenas em 1 episódio
3ª TeMpoRada
2º episódio
versão de testes número de referências
5 cenas em 2 episódios T2:E4 / 11min42s
“o membro do parlamento Liam Monroe alega que seu Twitter foi hackeado”, diz a notícia no rodapé do telejornal de natal (T2:e4). Liam Monroe foi o adversário de Waldo ao parlamento. Mas essa não é a única referência no episódio. Um dos participantes da teleconferência durante o encontro coordenado por Matt em natal tem o apelido de i_aM_WaLdo. além disso, a TV exibe a mesma cena do talk-show Tonight for one Week only, do qual Waldo participa. Um adesivo do urso azul também aparece num computador em Manda Quem pode (T3:e3).
3ª TeMpoRada
4º episódio
odiados pela nação (T3:e6) traz três referências ao episódio. no rodapé do noticiário, uma mensagem diz: “shou saito anuncia novo sistema de jogos”. saito é o idealizador da franquia Harleck shadow em Versão de Testes (T3:e2). o nome também aparece em outro momento no telejornal, na chamada “saito apresenta o jogo Harlech shadow Vi”. além disso, o título anterior da franquia está nos trending topics. T3:E2 / 13min42s
san junipero número de referências
1 cena em 1 episódio em Versão de Testes (T3:e2), uma capa de revista menciona a TcKR, a empresa de tecnologia que transporta a consciência para outras realidades em san Junipero.
T3:E6 / 03min12s
o telejornal de odiados pela nação (T3:e6) mostra, no rodapé, a chamada “Forças armadas dos eUa anunciam o projeto Mass”. Mass é o programa do qual participam os soldados de engenharia Reversa (T3:e5). o Mass também aparece nos trending topics ali.
3ª TeMpoRada
6º episódio
odiados pela nação número de referências
2ª TeMpoRada
4º episódio
T3:E6 / 13min52s
1 cena em 1 episódio 0m20s
natal número de referências
2 cenas em 2 episódios na tela de um computador que aparece em Manda Quem pode (T3:e3) há um espaço de publicidade com referência ao cookie de gerenciamento doméstico do episódio natal. Mais: em odiados pela nação (T3:e6), uma chamada no rodapé do telejornal diz que “a ecHR [corte europeia de direitos Humanos] decide que cookies têm direitos humanos”.
outra chamada da revista de Versão de Testes (T3:e2) diz que a Granular “testa a tecnologia VTs”. Granular é a empresa das abelhas-robôs no T3:e6.
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T1 E1 título original ThE NATIONAl ANThEm
título em português hINO NAcIONAl exibição original 4 dE dEzEmBrO dE 2011 nota no IMDb 8/10
na ficção
o “episódio do porco” Esqueça a princesa britânica sequestrada e o primeiro-ministro coagido a fazer sexo com um porco ao vivo, em rede nacional, como forma de resgate. Hino Nacional, episódio que deu início a Black Mirror, na verdade fala de outro assunto: o fascínio pela violência. Divulgado no YouTube, o vídeo em que a princesa lê a exigência dos sequestradores já acumulava 50 mil visualizações. Tão logo a imprensa começa a cobrir o sequestro, os telespectadores colam os olhos na TV. Quando enfim é transmitido o ato sexual grotesco, 1,3 bilhão de pessoas assistem. Os telespectadores estão confortáveis em suas casas, no trabalho, em bares, enquanto, do outro lado da tela, um homem é obrigado a cometer zoofilia ao vivo, diante de toda a nação. Alguns, por repulsa, tapam os olhos diante do horror – mas, de vez em quando, abrem os dedos para espiar.
curiosidade Fora da ficção, uma princesa britânica quase foi sequestrada. Anne, filha da rainha Elizabeth 2a, teve seu carro interceptado em 1974 enquanto se dirigia ao Palácio de Buckingham. O algoz, chamado Ian Ball, baleou o segurança, o motorista, um policial e outras quatro pessoas. Ordenou à princesa que saísse do veículo, mas ela recusou. Um ex-boxeador que passava por ali deu um soco em Ball, e ele fugiu. Acabou preso depois.
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no mundo real
INFERNO
AO VIVO homicídios, estupros e outras barbaridades já são transmitidos a milhares de pessoas em tempo real.
> reportagem lorena dana > edição rodolfo Viana
© Fotos Divulgação Ilustrações Indio San
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Oxford, Reino Unido, 1985. Sedentos por sexo e drogas, jovens da aristocracia britânica se aglomeram na sede do exclusivíssimo clube de cavalheiros Piers Gaveston Society. Os calouros mal podem esperar para fazer parte daquele seleto grupo libertino. Juntos, entoam o lema do grupo: “Ninguém jamais se lembrará de um homem satisfazendo tanto a outro homem”. Logo, o líder da reunião dá o comando. Sem reservas, os jovens hedonistas despem suas calças e roupas íntimas, acariciam seus órgãos sexuais e os metem dentro dos focinhos de porcos mortos. O ritual de iniciação teria sido protagonizado por um rapaz que, anos mais tarde, viria a ser primeiro-ministro britânico: David Cameron.
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O episódio, negado por Cameron, veio a público na biografia Call Me Dave, escrita por Michael Ashcroft e Isabel Oakeshott, e publicada em 2015. Tão logo chegou às livrarias do Reino Unido, os leitores fizeram conexão com o episódio de Black Mirror, exibido quatro anos antes. Charlie Brooker, criador da série, negou qualquer relação entre a história e os rumores de sexo entre Cameron e um suíno morto. Mas nem sempre a ficção está longe da realidade. Como no episódio do porco, vários crimes já foram acompanhados via internet em tempo real.
Ao vivAço Desde que as tecnologias de streaming se popularizaram, criminosos têm usado as redes sociais para transmitir mortes, estupros e outras atrocidades. As principais plataformas usadas são o Facebook Live, criado em 2016, e o YouTube, cuja transmissão ao vivo por celular foi disponibilizada para canais com pelo menos cem inscritos neste ano. Um caso que gerou repercussão foi o de Steve Stephens, conhecido como “o assassino do Facebook Live” por matar um idoso de Cleveland, nos EUA. A vítima era Robert Godwin, um homem de 74 anos que voltava para casa após passar a Páscoa com a família. Nas imagens que viralizaram pela internet, o assassino se aproxima do carro e pede que a vítima diga “Joy Lane”, nome de sua ex-namorada que acabara de terminar o namoro. Robert repete as palavras e é atingido por um disparo. Num segundo vídeo, o atirador diz ter matado 14 pessoas e afirma que continuaria a matar. Com o pânico na região, as autoridades ofereceram uma recompensa de US$ 50 mil em troca de informações que levassem ao assassino. Dois dias depois, funcionários de um drive-thru o reconheceram e chamaram a polícia. Após uma perseguição pelas ruas da cidade, Steve se matou com um tiro na cabeça. Nenhum outro homicídio foi comprovado.
ContrA-AtAque
Rede sociopata Cinco crimes que entraram no feed ao vivo em 2017.
o ladRão que RegistRou o pRópRio assalto
Em janeiro, uma família de Macapá (AP) foi rendida por dois assaltantes de 17 e 23 anos. Quando a polícia chegou e iniciou a negociação para liberar os reféns, o de 17 resolveu fazer uma transmissão ao vivo pelo Facebook. No vídeo, ele aparecia deitado numa cama, ouvindo música, enquanto o comparsa coagia uma das vítimas. Três horas depois, os criminosos se entregaram.
Preocupadas com a repercussão negativa, as empresas tomam medidas para tentar coibir a publicação de conteúdo violento. Após o caso de Steve
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Stephens, o Facebook anunciou a intensificação dos esforços para identificar e derrubar vídeos de crimes, o que incluía a contratação de 3 mil novos moderadores (em adição aos 4,5 mil já existentes) para analisar posts suspeitos. Já o YouTube aposta em ações educativas, como uma série de vídeos contra bullying feita em parceria com youtubers influentes. “Também recomendamos que vídeos de crimes sejam denunciados”, diz Cauã Taborda, gerente de comunicação da empresa. A legislação brasileira relacionada a crimes cibernéticos – a Lei “Carolina Dieckmann”, criada em 2012 após a atriz ter suas fotos pessoais roubadas e divulgadas – não contempla especificamente transmissões do tipo. O desafio aí é definir o papel de quem assiste. Se você visse um vídeo de homicídio ao vivo e não reportasse o crime às autoridades, poderia ser um cúmplice? De acordo com o advogado especialista em direito digital Marcelo Crespo, não. “Espectadores de vídeos de crimes em tempo real não têm obrigação legal de notificar as autoridades”, ele diz. “A não ser que seja constatada uma relação de responsabilidade, como uma babá que assiste ao bebê ser torturado.” Mas quem assiste ao vídeo e faz comentários de apoio pode ser enquadrado, sim. Publicar “Bem-feito”, por exemplo, pode indicar apologia. E a pena é detenção de até seis meses ou multa.
você seria cúmplice se assistisse ao vídeo de um crime em tempo real e não reportasse à polícia? no Brasil, não.
um linchamento ao vivo para um país inteiro
o assassinato transmitido por acidente
um estupro coletivo no facebook
o traficante que se entregou com um vídeo ostentação
Em fevereiro, dois eslovenos foram presos por espancar a vítima até a morte. O vídeo já acumulava mais de 250 mil visualizações e 400 likes quando a polícia recebeu uma denúncia anônima. As autoridades levaram horas para encontrar a vítima, que ainda estava viva, mas não resistiu aos ferimentos. De acordo com um jornal local, “Andrej Cekuta morreu enquanto a Eslovênia assistia”.
Publicado em fevereiro via Facebook Live, o vídeo mostra uma mulher grávida cantando enquanto dirige um carro em Chicago (EUA). Ali estão também seu namorado e o sobrinho de 2 anos. De repente, ouve-se uma rajada de tiros vinda do lado de fora – era uma emboscada. As balas atingem o homem e a criança, que morrem. A motorista é ferida na barriga, mas consegue escapar e buscar ajuda.
Em março, um estupro coletivo foi transmitido ao vivo pelo Facebook Live. A vítima era uma adolescente e foi atacada por seis rapazes nos EUA. Apesar de 40 pessoas terem assistido às cenas, ninguém denunciou o crime. O departamento de polícia tratou o caso como abuso sexual com agravante de criação e disseminação de pornografia infantil. Dois dos estupradores foram identificados e presos.
Em junho, a polícia de Jacksonville, na Flórida (EUA), surpreendeu o traficante Breon Hollings, de 22 anos, ao fazer uma batida em sua casa. O rapaz estava ao vivo no Facebook, esbanjando maços de dólares. Ao perceber a chegada dos agentes – que anunciaram a ação por meio de um megafone –, ele tentou fugir, mas acabou preso. No local, foram encontradas armas e cocaína.
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T1 E2 título original FIFTeen MILLIon MeRITS
título em português QuInze MILhõeS De MéRIToS exibição original 11 De DezeMbRo De 2011 nota no IMDb 8,3/10
na ficção
tecnologia a serviço da escravidão Quinze Milhões de Méritos talvez seja o episódio mais conectado com o tema principal de Black Mirror: a onipresença das telas interativas. Aqui, elas cercam o quarto onde as pessoas dormem, seus banheiros, tudo. Nesse contexto, acompanhamos o personagem Bing, que passa o dia pedalando em uma bicicleta que transforma esforço físico em eletricidade. O pagamento pelo trabalho é feito em méritos, uma espécie de moeda virtual. Dinheiro, porém, não significa muita coisa quando a vida se restringe ao trabalho. É por isso que Bing decide usar parte de suas economias para ajudar Abi, sua nova colega e cantora amadora de grande talento, a se inscrever no programa de calouros Hot Shot. A garota encara o desafio e conquista a plateia, mas logo descobre que não é tão simples sair daquela servidão – mesmo que ela não envolva mais as bicicletas.
curiosidade Satírico na forma como apresenta programas de talentos da TV e seus jurados arrogantes, o episódio foi ao ar na mesma noite da final da edição de 2011 da competição musical The X Factor. Com um cover da canção Cannonball, de Damien Rice, o quarteto feminino Little Mix saiu vitorioso. Mais de 12,8 milhões de pessoas assistiram à final no canal ITV1. Quinze Milhões de Méritos, transmitido pelo Channel 4, foi visto por 1,1 milhão de espectadores.
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no mundo real
pedalada Made in Brazil
quanto cada mérito vale
Uma maçã verde custa em torno de R$ 0,90 No episódio, uma maçã verde custa
> reportagem Rodolfo Viana > edição Tiago lopes
Você também pode gerar energia pedalando. Aparelhos caseiros como o K-tor Power Box (US$ 200 na Amazon) geram 20 Watts de potência – o bastante para carregar quatro smartphones de uma vez. Já a ideia para este episódio veio do Brasil. Charlie Brooker, o criador da série, comentou em 2014: “É algo similar ao que acontece em um presídio brasileiro, onde os detentos pedalam para gerar energia e são recompensados com, sei lá, doces ou algo assim”. Ele se referia ao presídio de Santa Rita do Sapucaí, no sul de Minas Gerais. Em 2012, o juiz José Henrique Mallmann instituiu que os detentos com bom comportamento usassem bicicletas afixadas no pátio para produzir a energia consumida por oito postes da Avenida Beira-Rio, no centro do município. A cada 16 horas de pedal, um dia era reduzido da pena. Em Quinze Milhões de Méritos, as pedaladas rendem “méritos”, que servem como uma moeda. Uma maçã verde, no episódio, custa 2.500 méritos. Veja ao lado quanto os méritos valeriam em reais.
logo,
1 REAL 2.777,78 méRitos 1 méRito 0,00036 REAL o salário mínimo em méritos
937REAis 4,26 REAL/hoRA isso equivale a
2.602.777,78
méRitos
ou ainda
289 horas, 29 minutos e 38 segundos De peDalaDa quanto ganham os personagens Um ciclista faz
2,50
1.980.000 méritos. Isso dá R$ 712,80 por mês.
Em 220 horas, faz
méritos/segundo
R$
* Salário mínimo em 2017
CRiAdoR dE BlACK MiRRoR tiRoU dE PRESídio MinEiRo A idEiA dE GERAR EnERGiA CoM BiCiClEtAS EStátiCAS.
2.500 méRitos
quanto custariam as coisas da vida real em horas pedaladas VAloR (em méritos)
VAloR (em real)
tEMPo dE PEdAl
pular anúncio
1000
0,36
6min40s
escolher cenário para pedalar
200
0,07
1min20s
10.000
3,60
1h6min40s
Bilhete para hot shot
15.000.000
5.400,00
69d10h40min
plano básico da netflix
55.278
19,90
6h8min31s
esta revista
47.222
17,00
5h14min49s
19.441.667
6.999,00
90d0h11min7s
pão na chapa com café preto
5.556
2,00
37min2s
spotify premium
46.944
16,90
5h12min58s
multa de cancelamento do uber
19.444
7,00
2h9min38s
no episódio
assistir a um vídeo pornô
na vida real
iphone X
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no mundo real
propaganda onipresente
A publicidAde de hoje já é quAse tão distópicA, e inteligente, quAnto A de quinze milhões de méritos.
> reportagem KAluAn bernArdo > edição tiAgo lopes
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Bing Madsen pedala todos os dias para gerar energia. Em troca, ganha méritos, úteis para comprar itens virtuais, alimentos e ter o direito de não ver anúncios. Quando Bing não está em frente à tela do trabalho, está entre as de seu quarto, jogando, vendo programas televisivos e sendo constantemente interrompido por publicidade: a cada minuto, tem que se deparar com propagandas. Black Mirror é uma ficção científica distópica: altera alguma prática comum da sociedade atual para imaginar o pior desdobramento possível caso tal comportamento continue se alastrando. Quinze Milhões de Méritos discute meritocracia, sociedade do espetáculo, entretenimento televisivo. Mas um dos aspectos ali apresentados que mais parecem se aproximar da nossa realidade é a insistência
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de uma publicidade quase onipresente, que funciona como combustível para todo aquele sistema socioeconômico.
Mineradores de dados onipresentes Em 2003, um homem entrou furioso num dos muitos endereços da Target, rede de lojas de varejo dos EUA. Sua filha, ainda na escola, estava recebendo anúncios sobre maternidade e gravidez. Ele estava preocupado com o fato de a loja estar incentivando-a a engravidar. O pai ainda não havia descoberto o que a empresa já sabia: sua filha estava grávida, informação que a Target deduziu por causa da coleta de dados da menina e de outros clientes. A história foi contada por um orgulhoso time de estatísticos da rede a uma reportagem do The New York Times, publicada em fevereiro de 2012, sobre seus consumidores. Eles se gabavam de saber tudo: idade, estado civil, endereço, tempo de percurso de casa à loja, salário estimado, mudanças de endereço, cartões de crédito, histórico de navegação, de empregos, de leituras, de cursos e, claro, quais tipos de produto gostava. Isolados, esses dados podem não dizer muito, mas, quando estatísticos os cruzam, podem até identificar se uma mulher está grávida — mesmo que ela não tenha contado a ninguém. Tudo se intensifica no mundo digital graças a
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uma tecnologia chamada “cookie”. Ela foi criada em 1994 por dois programadores: Lou Montulli e John Giannandrea, que trabalhavam no Netscape, um dos primeiros navegadores de internet. De forma bem resumida, um cookie é um pequeno pacote de dados em texto que é armazenado no seu computador quando você usa um navegador. Eles são úteis para deixar a navegação mais veloz e personalizada (e são eles que salvam suas senhas, por exemplo), mas também são usados para coletar dados dos usuários. É por isso que quando você procura, digamos, carros, passa a ver, por dias, anúncios de diversos modelos. O Google e outras empresas que apresentam publicidade online estudam seus cookies e vendem a anunciantes. Claro que nem sempre há uma relação direta: se alguém lê muitas notícias sobre futebol, séries e compra ingressos de show pela internet, o anunciante pode concluir, por exemplo, que é um homem, jovem, prestes a comprar seu primeiro carro. E o usuário passará a ver anúncios de carros mais baratos, mesmo que ainda não tenha pensado em adquirir um. Giannandrea é o atual chefe de inteligência artificial no Google. Na mais recente edição do TechCrunch Disrupt, evento de tecnologia no Vale do Silício que aconteceu em setembro de 2017, ele disse que as previsões apocalípticas sobre o
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futuro de robôs e algoritmos são exaAntipropAgAndA geradas. Apesar disso, reconheceu Como cada geração lida com publicidade na internet. que estamos apenas no começo: segundo o engenheiro, é como se a inGeração (faixa etária) teligência artificial fosse uma criança x (35 a 49) y (20 a 34) z (16 a 19) de 4 anos sem muito objetivo de vida. Essa criança, no entanto, parece 100% estar aprendendo bastante. Quan90% to mais nos conectamos, mais po80% demos ser rastreados e mais nossos dados podem ser usados. No mes70% mo mês desse TechCrunch Disrupt, 60% o Facebook anunciou que, por meio 50% da tecnologia de localização do smar40% tphone, pode saber que você esteve 30% em uma loja e então passar a te mostrar anúncios daquele estabelecimen20% to. E você nem precisa abrir o aplica10% tivo para a rede social saber que vo0 cê esteve lá. Pulam ignoram Evitam anúncios BloquEiam anúncios Computação ubíqua foi um conanúncios anúncios fisicamEntE com uso dE tEcnologias ceito cunhado em 1988 por Mark Wei(fazendo outras atividades (como ADBlock) ou desviando o olhar da tela) ser, ex-chefe de tecnologia da Xerox. No final da década de 1980, ele previa que os computadores não estariam apenas em nossas mesas, mas em nossos bolsos, (conglomerado que é dono do Google) quanto o Fapulsos e onde quer que fôssemos. Mas Weiser ia cebook captaram em 2016 60,4% dos investimenalém: dizia que, com o tempo, os computadores iriam se dissolver para estar em todos os objetos ao tos em anúncios digitais nos EUA. A expectativa é que, apenas no país, o Google tenha receita de US$ nosso redor. É algo que muitos especialistas e entu35 bilhões com anúncios online em 2017; e o Facesiastas começam a enxergar hoje e a chamar de Inbook, US$ 17 bilhões. Nenhuma outra plataforma ternet das Coisas. Mas até onde poderemos ser rastreados em noconseguiu mais do que 5% desse bolo de receitas. “É muito ruim ter duas empresas gerindo tume da publicidade? E quais as consequências desses anúncios? Será que, tal como na série, passaredo. É um problema sério tê-las ditando as regras do mercado de publicidade digital”, comenta. “As mos a ser interrompidos e até mesmo perseguidos pessoas sabem que estão cedendo dados a essas por propagandas? empresas? Que suas informações podem ser usadas para publicidade e outros fins não tão claros?” De fato, há bastante preocupação também por Uma pUblicidade só para você parte da população. Uma pesquisa de 2014 do insMarcelo Santos, doutor em comunicação e semiótitituto Pew Research revela que, nos EUA, nove em ca pela Pontifícia Universidade Católica de São Paucada dez adultos acreditavam ter perdido o controlo (PUC-SP), acredita que um dos principais problemas é a falta de transparência na coleta de dados. le da maneira como suas informações pessoais são coletadas por empresas. E oito em cada dez se pre“Tudo o que fazemos gera dados. E eles têm sido ocupam justamente com seus dados sendo comentregues de forma obscura para incentivar um conpartilhados com anunciantes. sumo acrítico 24 horas por dia. Tudo sem que as Para Santos, a saída é mais transparência e conempresas tenham que assumir qualquer responsabilidade pelo que fazem”, opina. trole por parte das empresas, além de regulações E quando fala em empresas, Santos está se na esfera pública. “Não é errado eu coletar os dados dos consumidores e oferecer produtos a eles; é referindo a duas: Google e Facebook. Segundo o errado fazer isso sem o consentimento deles. Falta instituto de pesquisa eMarketer, tanto a Alphabet
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sua geladeira identifica que você está sem iogurte e, “sabendo” qual é sua marca favorita, começa a exibir ofertas no visor. isso seria útil ou assustador? discutir abertamente como a gente pode ter uma sociedade de consumo saudável”, defende. Nem tudo é visto com maus olhos, no entanto. Ao estudar os hábitos de navegação e conhecer o público um pouco melhor, anunciantes podem oferecer produtos que sejam mais interessantes. Essa é uma ponderação de Silvia Quintanilha, vice-presidente de atendimento da Kantar Millward Brown, instituto de pesquisa global especializado em marcas e mídia. “De fato há a percepção de que o consumidor se sente perseguido pela publicidade. Mas algumas pessoas gostam que você investigue seus interesses e ofereça itens relevantes. Isso economiza o tempo de ter que ir atrás”, comenta. “Se, por um lado, há a irritação de ver o anúncio durante muito tempo, por outro a pessoa se sente valorizada. Eu, por exemplo, fico feliz de saber que não verei propaganda de coisas que não me interessam. O que vejo o tempo todo são propagandas de viagens”, diz Quintanilha.
Baixe “de graça” “Não existe almoço grátis” é uma máxima econômica popularizada por pensadores como Milton Friedman. No contexto digital, ela é ressignificada por
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autores como Chris Anderson, autor do livro Free - Grátis: O Futuro dos Preços, de 2009. Ele argumenta que, nos séculos passados, vivíamos a “economia dos átomos”, na qual os custos de produção e distribuição eram altos. Já na economia do século 21, a dos bits, os custos de produção e distribuição partem do zero — e isso permite que certas coisas sejam gratuitas (como jogos, aplicativos, conta de e-mail etc.). Ou quase. Na verdade o novo “gratuito” merece uma série de aspas. Empresas, usuários e plataformas oferecem algo sem cobrar dinheiro, mas vendem dados, apresentam anúncios, propagam ideias específicas e oferecem amostras de serviços que serão cobrados. Em Black Mirror, vale lembrar, o gratuito é uma “opção”. O usuário sempre pode pular o anúncio, desde que esteja disposto a pagar em “méritos”. Há duas moedas: a monetária e a sua atenção. Não é grátis. Mas a ideia de ignorar uma propaganda é forte, mesmo em nossa realidade. Para assegurar atenção aos reclames, de acordo com Quintanilha, é preciso criar uma publicidade mais interessante e menos repetitiva. “O conteúdo ainda precisa ser mais adaptado às novas realidades porque o consumidor está procurando relacionamento com as marcas, não apenas um gatilho comercial. No Brasil e no mundo a maioria das propagandas ainda é mera oferta de produto, não um desenvolvimento de relacionamento, comunicação de propósito e valores”, defende.
Uma espiada no fUtUro A computação ubíqua, com tecnologia por todos os lados, logo se torna publicidade ubíqua, com publicidade por todos os lados. Imagine: sua geladeira identifica que você está sem iogurte e, sabendo que gosta de determinada marca, automaticamente procura e oferece a melhor oferta de compra. Você faz o pagamento pela própria geladeira e, em alguns minutos, o produto é entregue na sua casa. “A publicidade vai ter que ser criativa para oferecer algo relevante, não intrusivo”, opina Santos. E ela já caminha nessa direção, “está ficando menos invasiva e mais sutil”. Com isso, a tendência é que a gente não tenha mais consciência do que é uma ação publicitária, porque ela vai chegar de forma mais amigável e personalizada. Nessa névoa de informações, já não sabemos ao certo o que são fatos e o que são só ativações promovidas por marcas.
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T1 E3 título original THe enTiRe HiSToRy of you título em português ToDA A SuA HiSTóRiA exibição original 18 De DezembRo De 2011 nota no IMDb 8,7/10
na ficção
Detalhes naDa pequenos De nós Dois Este é o único episódio escrito por um roteirista convidado, Jesse Armstrong. Estamos numa realidade pós-smartphone. O gadget que virtualmente 100% da população tem e passa o dia imerso é outro: uma espécie de lente de contato que grava tudo o que você vê e ouve. A princípio, parece perfeito: você consegue revisitar cada segundo da sua vida. E melhor ainda: pode compartilhar seus melhores momentos com quem quiser. Mas para um sujeito inseguro, ciumento e obcecado por detalhes, como Liam, o dispositivo é um trem-bala rumo à tragédia. Ele passa a buscar indícios de infidelidade da esposa em suas gravações. Ela admite a traição, e isso só aumenta sua paranoia. No auge dramático do episódio, ele exige ver como foi o sexo entre a esposa e o amante, já que está tudo gravado no dispositivo dela. E aí a coisa degringola de vez.
curiosidades Robert Downey Jr. comprou os direitos de adaptação do roteiro desse episódio em 2013 para transformá-lo em filme. Jesse Armstrong é cocriador da sitcom Peep Show. Ali, a ação é mostrada do ponto de vista dos personagens, como se estivéssemos na cabeça de cada um – algo onipresente em Toda a Sua História.
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no mundo real
cada
segundo da sua vida
os gigantes já apostam em lentes de contato para substituir os smartphones. e o google está para lançar uma microcâmera capaz de gravar tudo o que você vê. > reportagem bruno vaiano
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“Essas lentes de contato têm a função de capturar imagens e são capazes de controlar o momento da captura de acordo com um piscar de olhos do usuário.” Essa frase parece só uma descrição técnica do gadget usado neste episódio de Black Mirror. Mas de ficção não tem nada: foi tirada da patente US 20160097940 A1, registrada nos EUA pela Sony em 2014. As lentes, ainda hipotéticas, não devem quase nada às da série: também seriam capazes de filmar, e poderiam exibir as fotos e vídeos recentes direto nos olhos do usuário. Por causa do tamanho reduzido, elas precisariam da ajuda de um dispositivo externo – que manteria uma conexão sem fio com o acessório e processaria o grosso das informações recebidas.
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A Sony não foi a primeira nem a única a projetar algo assim: Google e Samsung, na mesma época, registraram suas próprias versões da tecnologia. A existência de patentes não significa que amanhã esses produtos sairão do papel e chegarão às lojas, mas é um sinal de que as gigantes da tecnologia resolveram marcar terrenos mais ousados no mercado de wearables – confirmando o exercício distópico de Black Mirror. Os idealizadores das lentes smart da vida real querem dar a elas finalidades mais nobres do que lavar a roupa suja com seu cônjuge. Uma das propostas do Google é medir os níveis de glicose de diabéticos diretamente nas lágrimas. Outra é detectar obstáculos na calçada para guiar pessoas com problemas de visão. Até exibir legendas de filme – ou traduções simultâneas de uma peça de teatro em outra língua – seria possível, eliminando a inconveniente aparência física dos óculos-gadget que já estão no mercado. Outro anúncio recente – e com carinha de roteiro da Netflix – é a Google Clips: uma câmera de cinco centímetros, 60 gramas e US$ 250 que, usando um algoritmo de inteligência artifical, decidirá por você o que vale a pena fotografar. Com uma lente de 12 MP, 16 GB de memória e bateria para durar “alguns dias” em stand-by, ela é ativada automaticamente ao observar uma cena que parece digna de registro – como os rostos de seus familiares e amigos sorrindo ou de um cachorro abanando o rabo. Além de produzir imagens estáticas, faz GIFs de seis segundos que são enviados diretamente para o celular do usuário. Ela pode ser presa no cinto, no bolso da camisa ou colocada no canto de uma sala. É bem menor que um smartphone – como se o ícone do Instagram tivesse pulado da tela e se tornado tridimensional. E, ao contrário das lentes eletrônicas, logo estará à venda – deve inclusive chegar ao Brasil. O site americano The Verge resumiu a sensação: “A Google Clips é estranha e fofa. Mas não é assustadora?” Algumas medidas foram tomadas para evitar inconvenientes de privacidade. Da mesma maneira que o algoritmo aprende a reconhecer seus conhecidos, ele evita clicar estranhos na rua. Nenhuma das imagens é compartilhada automaticamente na nuvem – elas vão primeiro para o seu celular, e só saem de lá com o aval do dono. Além disso, ela não associa rostos a nomes: a Clips sabe que aquele nariz é de alguém que está sempre com você, mas não sabe que esse alguém se chama João e tem um perfil no Facebook. Tudo isso só reforça o objetivo central do dispositivo: ele não serve tanto para fotografar uma viagem inesquecível, mas para criar um diário visual da vida de seu usuário. Tanto as lentes quanto a câmera são herdeiras de uma tradição que nasceu na década de 1980: o lifelogging,
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termo sem uma boa tradução em português que se refere ao hábito de registrar, com o auxílio da tecnologia, a própria vida nos mínimos detalhes. Um marco histórico da prática veio em 1995, quando um projeto da web pré-histórica chamado Cool Site of the Day (o site legal do dia) destacou um dos projetos visionários de Steve Mann, doutor pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Por vários anos, usando uma engenhoca complexa pendurada no seu corpo, o inventor transmitiu a própria vida 24 horas por dia, sete dias por semana. Nessa época, carregar um vídeo de alguns segundos era um suplício para a internet discada. Mesmo assim, Mann conseguiu acumular um pequeno exército de seguidores: em 1996, seu site recebia 30 mil visitas diárias. Para viabilizar a empreitada, ele precisava andar na rua vestindo uma enorme pochete de equipamento eletrônico, com óculos especiais e antenas em torno da cabeça. “Muitas pessoas atravessavam a rua para me evitar.” A tecnologia, porém, se provou útil na prática: em 2004, a casa de Mann foi atingida por um carro. Quando ele saiu para ver o que tinha acontecido – vestido com seu equipamento vistoso –, o motorista deu ré e fugiu, atropelando o cientista e quebrando seu pé. A câmera, porém, registrou imagens da placa e do rosto do infrator, que foi identificado e preso. A moral da história é que o lifelogging não é tão novo assim. Lentes com câmera e a GoPro autobiográfica do Google são só desdobramentos da mochila de fios e câmeras que Mann levou por aí enquanto a internet dava seus primeiros passos. Em um mundo em que todo mundo pode andar com uma discreta câmera ligada, o medo da vigilância atinge um nível quase conspiratório. E o nosso desejo de acompanhar a vida alheia de perto – evidente desde o sucesso de Big Brother – também. Entre 2009 e 2011, o escritor norueguês Karl Ove Knausgård – um homem que, em princípio, não tem nada de especial – decidiu escrever a própria vida em 3,5 mil páginas. Não ocultou nomes, e incluiu até descrições dos produtos de limpeza que usou para limpar a casa do pai alcoólatra após encontrá-lo morto no sofá. Sua escrita é prosa pura, sem floreios literários: uma versão impressa de Steve Mann filmando a própria vida. Resultado? A obra foi venerada pela crítica, e 10% dos cidadãos da Noruega têm uma cópia de seus livros – mesmo que, ao contrário da câmera do Google, ele não tenha ignorado os momentos desinteressantes. Documentar e expor a própria vida, portanto, parece ir além do narcisismo: pessoas se interessam por pessoas, e a tecnologia dá vazão a esse desejo. Mesmo que ele tenha consequências imprevisíveis... como alimentar brigas de casal.
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Yasodara Córdova Pesquisadora brasileira de novas tecnologias, e filiada à Harvard Kennedy School of Government.
o passado – e o futuro – das memórias Se anteS objetoS noS ajudavam a reSgatar recordaçõeS, hoje fica tudo regiStrado.
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aniela herdou de seu bisavô um par de esporas de metal com desenhos rústicos: um peão montado em um cavalo e uma porção de bois guardados por um cão vira-lata. Sempre que olha para essa herança pendurada na parede de seu escritório, ela se lembra das histórias que a avó contava sobre a vida no campo e um filme se refaz em sua cabeça. Troféus de seus antepassados, os objetos são os guardiões desse pedaço de sua memória e provavelmente serão herdados pelos seus filhos, que continuarão a se orgulhar desse fragmento físico do passado. As esporas de Daniela são um exemplo de como nós guardamos e acessamos informações do nosso passado. Alguns cientistas chamam o conjunto de memórias de legado pessoal. A criação desse legado pessoal – um processo de “montagem de histórias”, nossas e de nossos
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antepassados – acontece durante toda a vida e também atravessa gerações, sendo fortemente afetada pelas revoluções tecnológicas ligadas à produção e armazenamento dos nossos registros. Em tempos primitivos, o legado pessoal dependia de histórias transmitidas oralmente. Depois vieram a pintura, a escrita... E hoje basta um celular para guardar um momento qualquer, e no formato que desejarmos – vídeos, fotos, áudios, mensagens em datas especiais, conquistas gravadas na timeline de redes sociais, e-mails… É o processo que chamamos de digitização: deixamos nossos fragmentos de memória gravados em servidores distantes, utilizando serviços cujos contratos nunca lemos e que pertencem a empresas governadas por regras que ainda estão sendo escritas pela maioria dos legisladores do mundo. A natureza das memórias mudou: elas não dependem mais de objetos, cheiros, pessoas e imagens para serem despertadas – e estão cada vez menos sujeitas a enganos ou reformulações produzidas durante o ato de contar histórias ou pelo nosso próprio cérebro. Quando Daniela recebeu o par de esporas do bisavô, pôde reconstruir a história do heroico peão baseada no que sua avó lhe havia contado. Com a tecnologia atual, porém, nosso legado não mais será resultado exclusivamente de uma curadoria pessoal e familiar, mas de registros exatos, armazenados em servidores e editados por algoritmos que nunca vamos conhecer.
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T2 E1 título original Be RIgHt BACk
título em português vOltO já exibição original 11 de feveReIRO de 2013 nota no IMDb 8,2/10
na ficção
Tecnologia que faz reviver (ou quase) Martha e Ash eram um casal jovem e feliz, até que o rapaz morre em um acidente de carro. Sem saber como lidar com a perda e sentindo-se ainda mais desamparada ao se descobrir grávida, Martha resolve testar um novo serviço: uma inteligência artificial que usa a vasta atividade online de Ash para reconstruir sua personalidade. Assim, ela passa a conversar diariamente com o falecido, primeiro por mensagens de texto e depois por meio de um androide que simula as suas características físicas. Apesar de ficar cada vez mais envolvida, Martha logo percebe as limitações da tecnologia: por depender de registros nas redes sociais, o robô é incapaz de reagir a situações inesperadas ou mesmo de se zangar (Ash, como muitos de nós, não costumava postar coisas ruins nas redes sociais). E o que temos é um belo ensaio não apenas sobre inteligência artificial, mas sobre o luto.
curiosidades Charlie Brooker disse que pretendia mostrar no episódio outros androides como Ash que já estavam circulando por ali. Acabou não rolando. O episódio faz referência a Alien – O Oitavo Passageiro (1979): no filme, o personagem Ash (Ian Holm) é um oficial que trabalha na nave Nostromo e mais tarde se revela um androide.
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fale com
os mortos Já existem aplicativos capazes de recriar pessoas – e tornar suas personalidades “imortais”.
> reportagem carol vilaverde > edição ana prado
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O episódio Volto Já foi inspirado em uma situação pela qual o próprio Charlie Brooker, criador de Black Mirror, passou. Um dia, mexendo na agenda do celular, ele encontrou o número de uma pessoa querida que havia morrido algum tempo antes e ficou sem saber se deletava ou não o contato. “Senti que seria uma falta de respeito excluir o número, mesmo que fosse uma informação que eu nunca mais iria usar. Aquela era uma forma de me lembrar dela, ainda que estranha”, contou. Tudo indica que, nos próximos anos, inteligências artificiais poderão mesmo oferecer a ilusão de se estar conversando com alguém que já partiu, como acontece em Volto Já. É o que vamos ver nas próximas páginas.
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chatbots Você abre o WhatsApp e começa uma conversa com um amigo. Desabafa sobre os problemas no trabalho, e ele te aconselha a mudar de emprego, fazer algo que te deixe feliz, já que a vida passa rápido... Você se sente inspirado e decide recomeçar a vida do zero, em outro país. Tudo isso seria natural não fosse um detalhe: esse seu amigo não existe. Trata-se de um software de inteligência artificial que mora no seu Whats. Ele não tem sentimentos, nada. Apenas simula respostas baseado em diretrizes pré-programadas. Há várias tecnologias assim hoje. O nome genérico para elas é “chatbot”. Empresas já usam chatbots para lidar com clientes. O sujeito que atende as chamadas da Net, a operadora de TV a cabo, é tecnicamente um chatbot, ainda que você só interaja com ele clicando teclas do seu telefone (“para agendar uma visita, tecle 3”). A forma como ele simula a fala de uma pessoa de verdade, no entanto, é tão notória que todo mundo chama o robô de “cara da Net”. E há quem sinta pendores românticos por ele. Mas há chatbots bem mais sofisticados. A Microsoft, por exemplo, desenvolveu um chatbot capaz de evoluir sozinho. Ele ganha informações e vocabulário conforme interaje com gente de verdade. Para testar o bichinho, a empresa criou um perfil para ele no Twitter e o deixou solto para conversar e aprender com todo mundo. O problema é que o pessoal não ajudou: ensinaram o pobre robô a defender Hitler e fazer comentários racistas. A Microsoft, então, acabou tirando-o do ar. Mas o fato é que os chatbots seguem se desenvolvendo. Alguns, inclusive, estão se especializando em simular a personalidade de alguém que já existe. É o caso do Replika (veja ao lado). Ele aprende a imitar você. E, caso você morra, o chatbot fica, conferindo imortalidade ao seu jeito de ser – ou pelo menos ao seu jeito de conversar no WhatsApp. Claro que isso traz riscos emocionais. Se o “cara da Net” já emociona às vezes, imagine uma inteligência artificial que simule à perfeição um ente querido que morreu. O importante, segundo quem entende do assunto, é se abrir para o sofrimento. “É doloroso para Martha quando cai a ficha de que o androide não é o próprio Ash. Mas isso é bom: não é saudável nutrir o desejo de manter contato constante com a máquina. O desconforto que vem daí é, na verdade, um sinal de ajustamento”, diz Gabriela Santos, pesquisadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto da PUC-SP.
tecnologias que recriam entes queridos que morreram têm potencial, mas use com moderação.
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SimulAcro e SimulAção
Projetos que já conseguem emular pessoas reais – ou estão perto disso.
With me Aplicativo Digitalização 3D e inteligência artificial [ disponível em versão beta ]
replikA Aplicativo Inteligência artificial [ disponível para android e ios]
Em 2015, quando o melhor amigo da programadora russa Eugenia Kuyda morreu num acidente, ela decidiu usar toda a memória digital que tinha dele, como fotos, vídeos e mensagens, para alimentar uma inteligência artificial com quem pudesse conversar por meio de mensagens de texto (também conhecida como chatbot). A criação conseguiu reproduzir a personalidade do rapaz de uma forma tão impressionante que Kuyda e seus parceiros na start-up Luka lançaram o app
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Replika para permitir que cada pessoa construísse seu próprio amigo virtual. A ideia é um pouco diferente da intenção original: com o aplicativo, o usuário constroi um clone virtual de si mesmo e não de um ente falecido, mas o chatbot fica disponível para conversas com outros usuários – inclusive quando você se for deste mundo. Durante as conversas, o robô identifica e registra os interesses, gostos e opiniões do usuário até se tornar capaz de imitar a sua personalidade com cada mais vez mais precisão. Para melhorar a experiência, também dá para conectar contas de redes sociais: as informações pessoais compartilhadas são essenciais para que a Replika evolua intelectualmente e possa estabelecer uma “amizade” mais profunda. Com o tempo, ela se torna capaz até mesmo de identificar variações de humor pela forma como seu interlocutor responde. Mesmo antes de ser oficialmente lançado (hoje já está disponível para download gratuito na versão iOS e Android), mais de 150 mil pessoas de todo o mundo haviam se registrado com interesse em testar o programa. Em tempo: os usuários do Replika podem conversar com Roman Mazurenko, o amigo de Kuyda recriado virtualmente: é só adicionar @Roman no app.
Imagine levar sua esposa já falecida ao show da banda que marcou a vida de vocês e ainda registrar uma foto do momento. O app With Me, da empresa sul-coreana Elrois, quer tornar isso possível em alguns anos. Com uma combinação de digitalização 3D e inteligência artificial, o objetivo é recriar versões digitais de pessoas reais, que ficam “morando” dentro do app e conversam com o usuário por voz. A tecnologia não é tão complexa quanto a do Replika, mas o avatar consegue reconhecer rosto, voz e flutuações emocionais simples, além de lembrar detalhes das últimas interações. Também dá para tirar selfies com ele: a coisa funciona de forma parecida com a dos filtros do Snapchat.
Augmented eternity Aplicativo Inteligência artificial [ em desenvolvimento ]
Se hoje ainda é difícil reconstruir a personalidade de alguém somente a partir de suas atividades online, daqui a 50 anos esse não será um problema: até lá, serão milhões de bytes de informações reunidas por meio de e-mails, redes sociais, fotos, vídeos, registros de compras… Já estamos, de certa forma, alimentando nossas futuras versões virtuais. É o que afirma Hossein Rahnama, pesquisador do MIT Media Lab e fundador da empresa Flybits, que está desenvolvendo o Augmented Eternity (Eternidade Aumentada), um app para permitir às pessoas o compartilhamento de seus conhecimentos por meio de chatbots. O objetivo não é promover conversas com falecidos, mas evitar que o intelecto único de uma pessoa seja perdido com a morte de seu corpo físico. E vai mais além: Rahnama pretende que essa inteligência artificial seja capaz de processar novas informações e continue evoluindo.
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título em português UrsO BraNCO exibição original 18 de feVereirO de 2013 nota no IMDb 8,2/10
na ficção
SadiSmo noSSo de cada dia
curiosidade
Qual é a medida exata da punição para um crime? Essa é uma das questões de Urso Branco. Nele, Victoria Skillane acorda sem se lembrar de coisa alguma. Ao sair pela porta, percebe que várias pessoas gravam seus passos – gente alheia aos pedidos de ajuda da mulher. Nas ruas, ela começa a ser perseguida por caçadores. Encontra Jem, que também parece estar em fuga, e que explica: um sinal emitido pelos televisores tornou a maioria da população voraz por cenas de violência. A única salvação é destruir o transmissor e interromper o sinal. Mas, ao chegar ao local, Victoria se vê diante de uma plateia eufórica. São visitantes do White Bear Justice Park, criado especialmente para punir a mulher, cúmplice de sequestro e assassinato de uma criança. Depois de deletarem a lembrança daquele dia, a agonia da perseguição será repetida amanhã – e depois de amanhã, e sempre, numa punição eterna.
O roteiro original de Urso Branco foi alterado pouco tempo antes das filmagens, enquanto Charlie Brooker buscava locação para rodar o episódio. Na versão anterior, a punição de Victoria não seria repetida diariamente, e a narrativa terminaria com uma crucificação pública. Mas, ao visitar a base aérea que serviria de locação e ver que havia cercas por todos os lados, Brooker teve a ideia de criar um parque temático.
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sempre olho por olho, listas de pedófilos, castração: as polêmicas das punições não convencionais.
> reportagem lucas Baranyi > edição alexandre versignassi
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Em setembro de 2016, Khong Tam Thanh, Michael Le e Vu Thai Son estupraram uma mulher em Singapura, no Sudeste Asiático. Quase um ano depois, em agosto de 2017, os três britânicos receberam a sentença: seis anos e meio de prisão. O tempo da pena se assemelha ao Brasil – aqui, se o crime não envolve morte e a vítima tem mais de 18 anos, o condenado enfrenta de seis a dez anos no encarceramento. Mas os três jovens, que confessaram o crime para evitar mais tempo na cadeia, passarão por outro tipo de condenação antes da reclusão: eles receberão entre cinco e oito chibatadas com um bastão de 1,2 metro feito de rattan, um material similar ao bambu, mas muito mais maleável e difícil de quebrar.
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A punição por açoitamento foi instaurada pelo Império Britânico em 1871, e não vigora apenas em Singapura, mas também na Malásia, em Brunei e em algumas regiões da África. Carregar marcas de açoitamento está longe de ser a pior punição física ao redor do mundo. A amputação, catalogada como penitência pela primeira vez em 1750 a.C., no babilônico Código de Hammurabi, é aplicada até hoje na Arábia Saudita, no Iêmen, nos Emirados Árabes, no Irã, no Sudão e em certas regiões da Nigéria. Segundo a legislação desses países – que acompanham as leis do Alcorão –, quem rouba pela primeira vez tem a mão amputada na altura do pulso. Um segundo roubo é punido pela amputação da outra mão. A partir do terceiro, o condenado perde um dos pés, cortado na altura do tornozelo. No Irã e no Paquistão, existem casos registrados de punição pela lei do Talião – conhecido informalmente como “olho por olho, dente por dente”: duas pessoas foram condenadas à cegueira depois de jogar ácido nos olhos das vítimas. Assim como em Black Mirror, sentenças que duram a vida inteira ainda existem e não se restringem apenas a castigos físicos, podendo deixar marcas que o corpo não mostra.
NA ArábiA sAuditA, A peNA por roubo coNtiNuA seNdo A tribAl: AmputAção de mã0s e, pArA os reiNcideNtes, dos pés.
Lei de Megan Em 2015, os Estados Unidos contavam com 843 mil pessoas registradas em um banco de dados de condenados por crimes sexuais. Alguns Estados americanos disponibilizam essas informações ao público: nome completo do agressor, endereço de casa e do local de trabalho, placas e modelos de veículos e, às vezes, retrato. Mesmo com os dados à disposição, em muitos Estados as autoridades são obrigadas, por lei, a notificar moradores, escolas, vítimas e grupos de interesse sobre a chegada de um predador sexual nas redondezas. Esse banco de dados surgiu após o desaparecimento de Jacob Wetterling. Ele tinha 11 anos quando sumiu. Jacob foi sequestrado em St. Joseph, no Estado de Minnesota. Sua mãe, Patty Wetterling, mobilizou a comunidade local para que o Estado registrasse os agressores sexuais, facilitando, assim, a identificação. Em 1994, foi
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criada a Lei Jacob Wetterling, mas os dados eram mantidos em sigilo e divulgados apenas quando a polícia acreditava necessário. No mesmo ano, porém, Megan Kanka, de 7 anos, foi estuprada e assassinada por um pedófilo reincidente, Jesse Timmenquas. Foi então que a Lei de Megan foi criada, exigindo que os dados dos cadastrados fossem tornados públicos – e que, em alguns locais, as comunidades recebessem notificações da chegada de novos agressores na vizinhança. Ainda que a Lei de Megan tenha boas intenções, ela é falha. Em setembro de 2017, um adolescente de 14 anos foi autuado em Houston, no Texas, após ter feito sexo com sua namorada dois anos mais nova. O Estado trabalha com uma exceção em casos similares – chamada de “Romeu e Julieta” –, mas se aplica apenas quando as duas partes têm no mínimo 14 anos. O jovem foi parar na lista de pedófilos.
PedófiLos fichados no brasiL Em maio de 2013, a 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia, em São Paulo, inaugurou um banco de dados com suspeitos e condenados a crimes de natureza sexual. Em agosto de 2017, foi a vez do Mato Grosso do Sul repetir a iniciativa, com a aprovação de uma lei estadual que torna públicas as informações dos molestadores. A Lei 5.038
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requer que todo condenado por crime de pedofilia no Mato Grosso do Sul tenha dados pessoais e retrato inscritos no Cadastro Estadual de Pedófilos. Cidadãos comuns podem ter acesso às informações. Coronel David, deputado estadual do PSC e autor da lei, acredita que a medida “dá à sociedade um instrumento de defesa efetiva das nossas crianças”, pois mostrará aos cidadãos “se em seu bairro, cidade ou rua mora alguém que possa trazer qualquer tipo de perigo para crianças e adolescentes”. Em São Paulo, tramita o Projeto de Lei 795/2016, do deputado estadual Gil Lancaster (DEM). A ideia é similar à do Mato Grosso do Sul, mas vai além. Caso aprovada, a Lei irá impedir que pedófilos listados no banco de dados paulista participem de concursos públicos nas áreas da saúde e educação. Para Alexandre Saadeh, do Instituto de Psiquiatria da USP, o banco de dados torna a sociedade mais segura. “A maioria dos pedófilos age na sombra e se protege na medida em que ninguém sabe do seu passado”, diz. Vitor Blotta, doutor em Direito pela USP, discorda: “A lógica da punição acaba estigmatizando”. Por trás de tudo isso, existe uma questão complexa: o medo público de que todo pedófilo seja um reincidente em potencial, já que sente
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desejo sexual por crianças, e não vai deixar de sentir. A não ser que... Ele deixe de sentir. E aí entramos em outra seara polêmica da luta contra a pedofilia: a castração química. Esse tratamento de pedófilos, como uma condição para que esses criminosos saiam da cadeia, é realidade em várias partes do mundo: EUA, Argentina, Austrália, Dinamarca, Estônia, Índia, Israel, Moldávia, Nova Zelândia, Polônia, Coreia do Sul, Espanha, Suécia, Rússia. Na castração química, o objetivo é bloquear parte da ação da testosterona, o hormônio masculino ligado à libido. Esse bloqueio é feito com medicamentos como o acetato de medroxiprogesterona – sim, o contraceptivo. Para Sérgio Adorno, coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência da USP, a ideia é “um atentado aos direitos humanos”. “É como se você estivesse autorizado a mutilar pessoas”, diz. Opiniões à parte, não estamos diante de uma questão fácil. A castração não é uma forma de punir pedófilos, mas de proteger crianças (a punição é a cadeia). Pedofilia, afinal, não é como assalto a banco. Você pode decidir se assalta ou não um banco, mas não tem como escolher se vai ou não vai sentir atração por aquilo que lhe desperta desejo. E se os alvos da sua libido forem crianças, você tem um problema. O ato de satisfazer sua vontade sexual, coisa que boa parte das pessoas faz todos os dias, vira um crime bárbaro, bestial, repulsivo: o estupro de crianças. Justamente por isso a castração química é tão adotada – p0r isso e por ser reversível, o que evita injustiças definitivas no caso da condenação de algum inocente. Também não faltam pedófilos que preferem exterminar sua libido a abusar novamente de uma criança. Nem tudo o que parece distópico, afinal, é realmente distópico. Às vezes pode se tratar do único paliativo possível para problemas que, no fundo, são insolúveis.
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T2 E3 título original The WALdo MoMenT título em português MoMenTo WALdo exibição original 25 de fevereiro de 2013 nota no IMDb 7/10
na ficção
Fantoche político
curiosidade
Charlie Brooker previu a eleição de Donald Trump nos EUA, sempre relacionando Momento Waldo a essa visão de político fanfarrão com enormes poderes. Como Trump, a tragédia do episódio começou como uma brincadeira: Jamie, um comediante deprimido, por meio de sua voz e da tecnologia de captura de movimentos, dá vida a Waldo, um ursinho azul que protagoniza um quadro na TV no qual agride verbalmente figuras políticas. Com jeito desbocado e sempre ganhando debates no grito, Waldo passa a ser visto pelos eleitores como uma terceira alternativa ao sistema. Ele acaba chamando a atenção da CIA. A ideia passa a ser cooptada e manipulada por uma força mais poderosa para ajudar na imposição de regimes impopulares em outros territórios. Afinal, se o ditador é um personagem, os opressores reais ficam escondidos dos oprimidos.
A origem de Waldo está detalhada num artigo de Charlie Brooker publicado no Guardian em 2008, três anos antes da estreia da primeira temporada. Ao criticar o então candidato à prefeitura de Londres, Boris Johnson, Brooker escreveu sobre uma ideia antiga de enredo: um desenho animado de língua afiada, com quem seria impossível debater, concorrendo a uma cadeira no Parlamento britânico.
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Juscelino Kubitschek. Eram tempos em que o eleitor escrevia na cédula eleitoral o nome do seu candidato. E, diante do absurdo número de 450 candidatos para 45 assentos na Câmara Municipal paulistana, o eleitorado reagiu. Tal voto de protesto só foi possível graças ao jornalista Itaboraí Martins, de O Estado de S. Paulo. “Papai sempre foi um cara irônico, sacador”, relembra a escritora Cléo Martins, filha do jornalista. “Quando ele saiu [da redação], viu pregado em um poste um anúncio de que o Zoológico de São Paulo iria hospedar um rinoceronte do Rio de Janeiro que se chamava Cacareco. Ele e alguns colegas de redação andavam pelas ruas de São Paulo de madrugada, e se questionavam sobre em quem cada um iria votar. Papai respondeu: ‘Ah, no Cacareco’”, conta. Inaugurado em 16 de março de 1958, o Zoológico de São Paulo foi uma ideia que surgiu um ano antes, na gestão do então governador paulista Jânio Quadros. Para abrilhantar o novo polo de lazer da capital paulista, era preciso algo de destaque. Segundo reportagem de O Estado de S. Paulo à época, Jânio solicitou o empréstimo de Cacareco – primeiro rinoceronte nascido no Brasil, em 1954 – ao prefeito do Rio de Janeiro, Negrão de Lima. “Asseguro a V. Exa. que este governo dispensará a Cacareco todas as atenções e cuidados convenientes”, escreveu Jânio em ofício. Em 5 de fevereiro, o empréstimo foi confirmado. Semanas depois, o rinoceronte desembarcou na cidade. “Com o cartaz que está, Cacareco seria um forte candidato aos Campos Elíseos”, afirmou Jânio na inauguração do zoológico, em referência à então sede do governo de São Paulo. Mal sabia o governador que a principal atração dentre os 300 animais do local faria bem mais história do que o seu discurso um tanto excêntrico tentava sugerir, em tom jocoso. Nas ruas, a campanha “Para vereador, Cacareco” ganhou corpo. Boas sacadas para obter apoio popular não faltaram: “Cansados de tanto sofrer / E de levar peteleco / Vamos agora responder / Votando no Cacareco”, como publicou
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os cerca de
100 mil votos recebidos por
cacareco elegeriam o animal como o
3º
vereador mais bem colocado
nas eleições de 2016.
atrás apenas dos votos de eduardo suplicy (pT)
301.446 107.957 e MilTon leiTe (deM)
Antônio Sérgio Ribeiro, funcionário da Secretaria Geral Parlamentar da Assembleia Legislativa de São Paulo. Já Itaboraí preferia uma sacada mais simples: “Tereco teco por tereco teco, melhor votar no Cacareco”. Contudo, para o “criador da campanha”, houve um momento de incerteza. Foi então que o jornalista resolveu falar com Júlio Mesquita Filho, o “chefão” do Estadão. “Ele não queria sair como quem tinha lançado a ideia do Cacareco porque poderiam achar que o Estadão estava apoiando a história. Mas o jornal achou simpática a ideia e acabou apoiando mesmo”, conta Martins. Não se sabe exatamente o número de votos de Cacareco. O Tribunal Regional Eleitoral anulou todas as cédulas em nome do rinoceronte, mas estimava-se, segundo a imprensa da época, que quase 100 mil eleitores dos 934.794 que foram às urnas na capital paulista tinham optado pelo simpático animal como seu representante na Câmara Municipal. Para se ter uma ideia, o candidato mais votado naquela eleição para vereador foi Manoel de Figueiredo Ferraz, do PSP, com 10.214 votos. A estimativa da votação de Cacareco correspondeu ao somatório dos 15 vereadores mais votados, ou seja, a um terço do Legislativo municipal. O rinoceronte não acompanhou de perto a sua “vitória”. Três dias antes, foi devolvido ao Zoológico do Rio de Janeiro e morreu em 1962, com apenas 8 anos (em média, rinocerontes vivem 45 anos). Mais do que história, Cacareco virou até marchinha de Carnaval, em 1960. E não foi só: o rinoceronte campeão de votos deu origem a brinquedo, filme dirigido por Carlos Manga, gibis e pelo menos três livros que revisitaram a saga. ‘o candidato do povão’ Três décadas depois, a cidade que “exportou” Cacareco ganhou um animal político para chamar de seu. Nas eleições municipais de 1988 no Rio de Janeiro, o descrédito em um período pós-ditadura militar (1964-1985) apontava o voto nulo como o “grande vencedor” do pleito.
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Cacareco foi capa da revista Maquis em 1958; três decadas depois, o Casseta Popular estampou Tião.
Famoso por jogar Fezes no público, tião obteve 9,5% dos votos dos cariocas em 1988. “A política do Rio estava bem por baixo, como está acontecendo agora”, lembra o humorista Hélio de la Peña, do Casseta & Planeta. Ele integrava o grupo que, além de escrever para o programa TV Pirata, da Rede Globo, fazia parte da iniciativa em torno da candidatura do “último preso político” do País: o Macaco Tião. Nascido em 6 de janeiro de 1963, o chimpanzé Tião era o animal mais famoso do Zoológico do Rio de Janeiro. Famoso não só por ser “mal-humorado, rebelde, temperamental, explosivo, ciumento e muito exigente”, segundo arquivos do local, mas também por atirar fezes no público – incluindo políticos que o visitavam.
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Foi assim que nasceu, em um bate-papo em uma mesa de bar entre os humoristas Cláudio Manoel e Bussunda, a ideia de lançar Tião para prefeito do Rio. Era uma ideia brilhante – tanto que o antropólogo Roberto DaMatta profetizou seu sucesso: “[Tião era] quase homem, perfeito para explicar o mundo da política no qual você tem quase personagens”, afirma ele, em entrevista ao documentário Macaco Tião – O Candidato do Povo, que está em fase de finalização e deve ser lançado até o início do próximo ano. O primata “virou o candidato do voto nulo: ‘Já que não tem ninguém bom, vou votar no Macaco Tião. Não vai fazer grande diferença’”, lembra De la Peña. A ideia antiestablishment no Rio ganhou corpo não só pela irritação popular contra a classe política, mas também por ótimas sacadas. “Se o voto é obrigação, vote no Macaco Tião. Ele tem uma grande vantagem diante dos outros candidatos: já está preso”, dizia um dos cartazes da época, em prol de uma candidatura que visava “dar uma banana para a caduquice da política”. De la Peña comenta que a repercussão da iniciativa foi enorme, tendo Tião ido parar nas capas de jornais e da revista Veja. “Na época nós éramos autores do TV Pirata, então conseguimos engajar os atores do programa, o Diogo Vilela, o Guilherme Karam, a Débora Bloch. Engajamos a campanha pela candidatura do Macaco Tião. Todos deram depoimentos, tiraram fotos, gravaram vídeos de apoio.” Nas urnas, Tião conquistou 400 mil votos, segundo o jornal O Globo, ficando em terceiro lugar entre os 12 candidatos. Não foi pouco: 9,5% dos cariocas apostaram nele. O vencedor foi Marcello Alencar (PSDB), eleito prefeito com 31,6%. A votação histórica foi parar no Guinness Book, o livro dos recordes. Afinal, nenhum outro chimpanzé recebeu mais votos do que ele desde que o mundo é mundo. No mesmo ano em que o macaco faleceu, em 1996, a Justiça Eleitoral adotou a urna eletrônica e pôs fim à possibilidade de o eleitor optar por animais. Desde então, restaram apenas políticos.
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T2 E4 título original WhiTe ChRiSTMaS título em português NaTaL exibição original 16 de dezeMBRO de 2014 nota no IMDb 9,2/10
na ficção
fale com ele
curiosidade
É Natal, e o falante Matt tenta improvisar uma ceia em uma pequena cabana em algum lugar remoto. Apesar de dividir a casa com Joe há anos, um não sabe nada da vida do outro. Para fazer com que o colega se abra – e confesse um crime –, Matt puxa conversa, trazendo à tona fantasmas pessoais de ambos que estavam reservados ao passado. A percepção do real, contudo, não passa de uma projeção. Nada ali é o que parece ser, a começar pelos dois companheiros de cabana. Os personagens são cópias digitais da consciência de Matt e Joe. São simulacros de pessoas que, fora daquela projeção, no mundo real, não se conhecem, não dividem uma cabana num local distante, nunca conversaram. O tempo, também, mostra-se inconstante: enquanto as cópias de consciência interagem por anos no plano simulado, na verdade passaram-se apenas alguns minutos no mundo real.
Natal não foi a única produção natalina de Rafe Spall em 2014. Onze dias antes do episódio de Black Mirror ser exibido na TV britânica, foi lançado nos cinemas o longa Que Fim Levou Papai Noel?, comédia familiar de enredo um tanto clichê: gente que se vê disposta e ajudar Papai Noel a recuperar o Natal. Spall interpreta Steve, que deve ajudar o filho de 9 anos a colocar o bom velhinho de volta nos trilhos.
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no mundo real
TEMPO Como funCiona a dilatação do tempo (na físiCa e na sua Cabeça). > reportagem Carlos orsi > edição ana prado
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Num dos melhores momentos do episódio, Matt manipula o tempo para treinar a “Greta cookie” – uma cópia digital da consciência da verdadeira Greta, mulher que contratou o serviço, e que serve como uma espécie de assistente pessoal. Para convencer aquela inteligência artificial a lhe obedecer, Matt a coloca na solitária por seis meses – tempo que, para ele, corre em poucos segundos. É o suficiente para que o cookie fique atordoado e aceite qualquer trabalho que lhe seja proposto. Isso não é fantasia. A dilatação do tempo é uma velha conhecida da física e já pôde ser medida no mundo real, ainda que numa magnitude bem diferente daquela registrada em Black Mirror. Quando o astronauta americano Scott Kelly retornou à Terra, em março de
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Depois De 803 Dias em órbita, o russo sergei KriKalyov voltou à terra mais jovem Do que quem ficou aqui. 2016, depois de passar 340 dias no espaço, ele havia se tornado mais jovem do que seu irmão gêmeo idêntico que tinha permanecido na superfície do planeta, o também astronauta Mark Kelly. A diferença de idades era, para todos os efeitos práticos, imperceptível: 0,01 segundo. Assim como todos os seres humanos que visitam a Estação Espacial Internacional, Scott sofreu o efeito de dilatação do tempo, conforme previsto pela Teoria da Relatividade, de Albert Einstein, no começo do século 20 (veja o box na página ao lado). Esse efeito é causado pela altíssima velocidade que as naves espaciais atingem: quanto mais rápido se viaja, mais devagar o tempo passa para você. O recorde mundial de dilatação do tempo, no
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entanto, ficou com um soviético: o cosmonauta Sergei Krikalyov, que, depois de passar 803 dias em órbita, acumulou um rejuvenescimento de 0,02 segundo. Mas não é preciso ir ao espaço para medir o fenômeno. Bastam aviões comerciais. Em 1971, cientistas puseram relógios atômicos a bordo de dois voos ao redor do mundo, um viajando para o Leste, na direção da rotação da Terra; outro, para o Oeste, contra a rotação. Um terceiro relógio permaneceu no solo. O avião que viajou para o Leste tinha a maior velocidade total em relação ao centro da Terra – pois soma-se à sua velocidade a rotação do planeta. E não deu outra: o relógio a bordo dele estava 60 nanossegundos atrasado em relação ao que tinha ficado no chão.
O tempO de cada um Em Natal, a dilatação do tempo afeta os “cookies”, que são softwares, códigos. Não são de carne e osso. Em seres humanos, no entanto, a questão da percepção subjetiva do tempo – a sensação de que o tempo “voa” quando nos divertimos ou “se arrasta” na sala de espera de um consultório médico – é bem mais complicada do que isso.
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A teoriA dA relAtividAde e A dilAtAção do tempo Ou “por que nosso pé envelhece mais devagar que nossa cabeça”. Pense numa cena de perseguição de filme policial em que o herói põe sua arma para fora do carro em movimento e atira no veículo dos criminosos que vai à frente: a velocidade da bala, medida por um observador na calçada, será a produzida pelo disparo da arma (que geralmente fica perto da velocidade do som, ou 1.000 km/h), somada à do carro, de, digamos, 120 km/h: a velocidade total será, assim, de 1.120 km/h. A regra vale para todos os objetos do dia a dia; com a luz, porém, isso não acontece: não importa como se tente medi-la, a
velocidade de um raio de luz no vácuo, de 300.000 km/s, jamais será maior ou menor do que isso, nem mesmo se for emitido por uma nave da patrulha espacial voando a 120 km/s. Para que a velocidade da luz possa ser absoluta, tempo e espaço precisam ser relativos. Em 1905, Albert Einstein mostrou que, quanto mais depressa um corpo se move, mais devagar o tempo passa para ele (dilatação temporal) e mais sua dimensão no espaço se reduz (fenômeno chamado de contração espacial). Essa é a
Em seu livro Felt Time (“tempo sentido”, em tradução literal), de 2016, o psicólogo alemão Marc Wittmann aponta algo interessante sobre o assunto central do episódio: “A questão de se o cérebro tem um ritmo que estrutura a percepção e as operações motoras ainda não foi respondida”. Traduzindo: a ciência ainda não sabe se há um relógio central no cérebro que possa ser acelerado ou atrasado. Há experimentos que mostram que a resolução temporal humana – o intervalo mínimo de tempo necessário para que uma pessoa perceba que uma coisa aconteceu antes de outra – é da ordem de dezenas de milissegundos. Mais: para a maioria das pessoas, o “agora” corresponde a um intervalo de 3 segundos: o que veio antes está no passado, e o que acontece depois é o futuro imediato. Intervalos de tempo de até 3 segundos também são os que melhor conseguimos estimar: durações superiores a isso tendem a ser avaliadas como mais longas ou curtas do que o tempo efetivamente transcorrido, dependendo da personalidade, do grau de atenção e do estado emocional de cada um. Pessoas ansiosas, hiperativas ou impulsivas, por exemplo, tendem a viver num mundo de “tempo dilatado”: para elas, os
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Teoria da Relatividade Restrita. Mas a velocidade não é o único fator a influenciar a dilatação do tempo. Segundo a Teoria da Relatividade Geral, proposta por Einstein em 1915, a gravidade pode fazer o mesmo: quanto mais próximo do centro de uma fonte de atração gravitacional, mais devagar o tempo passa. A relação entre tempo e gravidade tem diversas consequências: cálculos publicados em 2016, na revista European Journal of Physics, mostram que o centro da Terra
é dois anos mais jovem que a crosta. Nossos pés envelhecem mais devagar que nossas cabeças. Pessoas que moram no alto de montanhas envelhecem mais depressa do que aquelas que vivem no litoral. O efeito prático é minúsculo. Em 2010, cientistas publicaram na revista Science a medição, feita com relógios atômicos, da diferença de passagem no tempo causada por uma diferença de altitude de 1 m. Resultado: o relógio no ponto mais alto é 0,000000000000016% mais rápido que os demais.
minutos parecem durar mais do que para a média da população. Nosso nível de memória e atenção também afeta a percepção, criando o que os psicólogos chamam de paradoxo do tempo. “Enquanto esperamos pelo médico – quando a atenção está focada no tempo –, meia hora pode passar de forma intoleravelmente lenta. Ao nos lembrarmos da espera, porém, é quase impossível recordar alguma coisa, porque nada aconteceu. Já em meia hora de conversa com uma pessoa interessante, mal notamos o tempo passar: mas, depois, nos lembramos de tantos momentos estimulantes que parece que o evento durou muito mais tempo”, descreve Wittmann. Atividades de rotina, que executamos de modo quase automático, podem fazer o tempo passar voando. Mudanças e novidades, por sua vez, reduzem essa percepção subjetiva. Esse é um dos motivos que levam muitos adultos a reclamar de que os anos estão passando cada vez mais depressa, à medida que suas vidas entram na rotina de casa e trabalho. Já crianças e adolescentes, para quem tudo é novidade e as descobertas são muitas, experimentam uma maior duração do tempo subjetivo.
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T3 E1 na ficção título original nosedive título em português quedA livre exibição original 21 de outubro de 2016 nota no IMDb 8,3/10
Castas virtuais Queda Livre é um episódio épico: extrapola a aprovação que buscamos com textões no Facebook e selfies no Instagram. As pessoas ali ganham notas que definem seus privilégios diários. Por meio de um implante ocular, usuários compartilham suas atividades e interações com outras pessoas, e podem avaliar estranhos, enquanto são avaliados por eles. As notas vão de 0 a 5. Lacie é nota 4,2, mas precisa chegar a 4,5 para conseguir o desconto no aluguel de um apartamento. Para isso, força uma aproximação com uma velha conhecida de status social mais vistoso. Acaba convidada para o casamento da amiga, e vê a oportunidade perfeita de agradar a todos e aumentar sua nota. Como a jornada de Lacie rumo ao casamento é um campo minado de imprevistos, sua nota vai caindo, e fica minúscula a ponto de torná-la uma pária social – coisa que, ela descobre no final, talvez não seja tão ruim.
curiosidade A primeira ideia do roteiro era diferente. As pessoas estavam ranqueadas de 0 a 100, e um figurão com nota elevada era chantageado a derrubar sua própria avaliação em pouco tempo. Mas, conforme ele agia de maneira maldosa para cair no ranking, mais popular ficava.
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no mundo real
quantos likes sua vida merece? Não é só No uber e No airbNb. agora até os goverNos começam a flertar com a ideia de raNQuear cidadãos. > reportagem gabriela moNteiro e aNa caroliNa leoNardi > edição tiago lopes e alexaNdre versigNassi
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Para Lacie, protagonista de Queda Livre, avaliações são mais do que mero reconhecimento: são degraus de uma escada social. Guardando as proporções óbvias, isso já está acontecendo na vida de muita gente. O canadense Sam Fiorella, por exemplo, perdeu um emprego em 2011 por causa do aplicativo Klout, responsável por avaliar e ranquear as pessoas conforme a influência delas nas mídias sociais. O processo é simples: basta se cadastrar usando uma de suas redes – Twitter, Facebook, Linkedin etc. – e esperar o app fazer o cálculo. Não é fácil aparecer bem ali. A escala de notas vai de 0 a 100, e a maioria das pessoas não consegue passar dos 40. Quem mantém interações frequentes com usuários influentes e famosos, compartilha links úteis e se mantém ativo na web tende a ver sua pontuação crescer. Foi o caso de Sam. Após receber a negativa de uma gigante do marketing por “só” possuir 35 pontos,
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ele decidiu reverter a situação. O canadense resolveu se tornar um usuário assíduo e relevante em todas as suas mídias sociais. “Eu estava online constantemente, sempre escrevendo e tuitando coisas que eu sabia que as pessoas iriam compartilhar. Também parei de falar com quem tinha ranking baixo”, disse à revista Exame. Deu certo. Em pouco tempo, Sam viu sua pontuação pular de meros 35 a gloriosos 75 pontos – uma marca ótima para “não celebridades”. Apesar de ter chegado aonde queria, Fiorella decidiu abandonar o Klout. “De que adianta saber que o Justin Bieber tem 100 pontos se eu quero, por exemplo, vender carros? Garotas adolescentes não compram carros, não importa o quanto Bieber poste minha marca”, questiona. Além disso, ele percebeu que gastava muito tempo cuidando de sua pontuação e se preocupando com o que lhe parecia correto, em vez de simplesmente ser espontâneo. Seja como for, não há critério de avaliação mais usado do que o número de seguidores. Quanto mais followers, melhor. Ou pelo menos era assim que o produtor que entrou em contato com a atriz Natallia Rodrigues enxergava. “Ele me ligou dizendo que tinha um papel que era a minha cara, mas que isso só seria possível se eu aumentasse o número dos meus seguidores no Instagram”, diz Natallia. “Aí ele propôs que eu comprasse seguidores fantasmas... Agradeci e disse que ele não poderia contar comigo.”
UBER E AIRBNB Um dos melhores exemplos de como avaliações podem impactar vidas reais é o Uber, claro. Nas palavras da assessoria da empresa, o sistema funciona assim: “Motoristas parceiros que não mantiverem uma nota mínima de aprovação (4,6 em uma escala de 0 a 5) por parte dos usuários podem acabar desconectados do serviço. O mesmo acontece com usuários que não tiverem uma aprovação mínima por parte dos motoristas”. O “podem” prevê flexibilidade na regra, mas a margem de erro oficial é mínima: apenas 0,4 ponto separa você do excelente ao péssimo. Passageiros que possuem nota baixa costumam ser vistos como problemáticos. Mas o receio dos motoristas nem sempre é justificado. “Já recebi um chamado de uma passageira 3,7. Fui até o local para ver de longe e vi que se tratava de uma idosa com dificuldades para andar. Aceitei a corrida e foi muito divertido, perguntei sobre a nota e ela
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respondeu que não sabia lidar com cartões de crédito e o pessoal a penalizava ainda mais pela sua restrição de mobilidade”. Preconceito também é cartão vermelho numa sociedade de notas. “Estava trabalhando na Rua Augusta quando recebi uma chamada cuja nota era 3,22. Resolvi aceitar mesmo assim e, chegando lá, havia dois rapazes de mãos dadas. Quando eles entraram no carro, viram que eu tinha um adesivo que diz ‘carro livre de discriminação’. Mesmo sem saberem sua nota, eles já começaram a desabafar dizendo que muitos motoristas desistem da corrida assim que percebem que são homossexuais”, conta o motorista Moises Machado. Outro serviço movido pelas avaliações é o Airbnb, uma plataforma de hospedagem em que os anfitriões disponibilizam suas residências com preços mais acessíveis que hotéis. Criado em agosto de 2008, ela já conta com opções em mais de 65 mil cidades e 190 países.
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CHINA
Comentários positivos para o governo Chinês nas redes soCiais dão aCesso a Crédito mais barato. Como no Uber, há avaliação dos dois lados – e elas são sempre feitas “no escuro”: o anfitrião só vê o comentário feito pelo hóspede após deixar o seu próprio e vice-versa. “Essa estratégia não existia antigamente, e isso resultava em algo menos confiável: o anfitrião poderia ler uma má avaliação feita para ele e querer ‘revidar’, dando também uma nota baixa”, diz Rômulo Vieira, que oferece sua casa em São Paulo há um ano e oito meses na plataforma. Mesmo assim, o ambiente dentro do Airbnb é parecido com o deste episódio: é extremamente raro ver avaliações nitidamente negativas. Um anfitrião, afinal, pode acabar recusando um hóspede depois de ver que ele é um crítico contumaz. Já num site em que as avaliações são unilaterais, nos quais só os usuários de um serviço dão notas, a realidade é bem diferente: praticamente não há hotel no Trip Advisor, por exemplo, sem alguma avaliação que classifique o lugar como “horrível”. No Airbnb não: tudo tende a ser um mar de rosas. Um mar de rosas bem Black Mirror.
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Mas talvez nada seja mais Black Mirror do que aquilo que a China pretende fazer. A partir de 2020, eles vão instaurar um Sistema de Crédito Social para garantir a conformidade política e promover o que o Partido Comunista chama de uma “cultura de honestidade”. O governo chinês tem feito parcerias com empresas do mercado financeiro que já usam sistemas de ranqueamento para criar scores que avaliam o risco de inadimplência de cada consumidor. Esses números são usados por bancos para definir se alguém pode ou não receber um financiamento ou parcelar uma compra, quanto tempo vai ter para pagar e com que juros, qual será o limite do cartão de crédito dela, etc. – nada muito diferente do que o Serasa e o SPC fazem no Brasil. Um dos serviços a quem o governo chinês se associou é o Sesame Credit, uma empresa afiliada à gigante do varejo Alibaba. A Sesame avalia as pessoas em um score entre 350 e 950 pontos (sabe-se lá por que não fizeram de zero a mil). A Alibaba divulgou quais são os fatores usados para calcular esse número. Além do clássico (seu histórico de crédito e se você paga suas contas certinho), temos a categoria “comportamento e preferências”. O que uma pessoa compra é levado em conta: se comprou fraldas, tem mais chance de ser uma figura responsável, de família. Sobe o score. Gastou tudo em videogames, uma imaturidade – a avaliação piora. Nada disso é surpreendente: os birôs de crédito que atuam no Brasil também levam em conta seu histórico de compras, só não são tão claros sobre o que exatamente melhora ou piora seu score. A realidade chinesa só vai além das nossas práticas no último critério de avaliação: “relações interpessoais”. Por esse título, o sistema se refere ao tipo de amigo que você tem nas redes sociais e com quem você interage. Aquilo que você compartilha também conta: fazer posts otimistas sobre o país e as lideranças políticas chinesas conta como ser “uma energia positiva” na rede. Sobe o score. Com uma pontuação a partir de 650, você passa a ter o direito de alugar um carro sem deixar uma grana de garantia. Com mais de 666, você ganha de presente um empréstimo pré-aprovado de US$ 8 mil. Acima de 750, o processo de pedido do desejadíssimo visto europeu fica mais simples. O bizarro é que modelos como esse não apenas avaliam comportamentos, mas também acabam por moldar a estrutura social – e, em último caso, cercear a liberdade das pessoas. Lacey que o diga.
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T3 E2 na ficção título original PLAytEst título em português vERsão dE tEstE exibição original 21 dE outuBRo dE 2016 nota no IMDb 8,2/10
Causa mortis: versão beta Em Versão de Teste, a calmaria antes da tempestade apresenta um protagonista carismático, para que a audiência acompanhe seu sofrimento com mais empatia. Cooper é um jovem boa-praça que, apesar de nunca atender às ligações da mãe, esbanja simpatia com estranhos. Durante um mochilão, acaba ficando sem grana para comprar a passagem para voltar de Londres aos Estados Unidos. Por um troco fácil, ele se dispõe a ser cobaia de videogames de imersão. Os jogos são carregados diretamente no cérebro de Cooper. Um, em especial, projeta os piores medos do jogador, que se vê numa casa mal-assombrada. O que deveria ser um bico prazeroso se transforma numa sequência de pesadelos na vida real, uma areia movediça que confere um novo e fulminante sentido para o termo “jogo de imersão”.
curiosidades Antes de ser a casa onde Cooper vê seus piores medos, a Englefield House, no condado de Berkshire, em Londres, foi a mansão do Professor Xavier em X-Men: Primeira Classe. Há diversas referências a games, digamos, sombrios no episódio. Por exemplo, o sobrenome de Cooper, Redfield, é o mesmo dos irmãos Chris e Claire, personagens de Resident Evil.
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no mundo real
A vidA é
um jogo Tecnologias de imersão Trazem o mundo virTual dos games para a realidade. seu cérebro esTá pronTo? > reportagem claudio prandoni > edição rodolfo viana
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Cooper Redfield entra numa sala asséptica da produtora de games SaitoGemu. Recosta-se numa cadeira, mas o conforto termina logo: um dispositivo é implantado em sua nuca. Plugado diretamente ao computador, o rapaz conecta-se a jogos imersivos nos quais o virtual se confunde com o real. Um deles é o protótipo de um game de terror que usa os medos pessoais de Cooper contra ele próprio. Como a mente já não distingue mais o que é fantasia e o que faz parte do mundo real, a diversão vira pesadelo. Muito disso ainda é coisa de seriado de ficção científica, mas uma coisa é fato: as tecnologias imersivas de realidade virtual (RV) e realidade aumentada (RA) ganham cada vez mais espaço no mundo dos jogos eletrônicos. Segundo
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desejOs e medOs Hi-tecH Dois casos recentes de como a tecnologia brinca com nossas sensações. O festival japOnês de pOrnô virtual
Em julho de 2016 aconteceu em Akihabara, um dos bairros mais geeks de Tóquio, um festival de pornografia em RV. Antes de ser cancelado pelo tumulto, alguns visitantes conseguiram entrar e aproveitar as demonstrações, como experiências virtuais mostrando personagens com acessórios, como uma espécie de manequim equipado com sensores e mãozinhas mecânicas, realizando movimentos bem sugestivos.
WelcOme tO yOur silent Hill
o instituto de pesquisa Superdata, a expectativa é que o mercado de games fature US$ 104,6 bilhões em 2017, sendo que o segmento RV deve responder por US$ 3,8 bilhões desse total – mais que o dobro do ano anterior, na marca de US$ 1,8 bilhão. Surgem, então, muitos gadgets como o Oculus Rift, da Oculus, um visor com display de VR que foi comprado pelo Facebook em 2014 por US$ 2 bilhões. Também há o HTC Vive, com sensores para instalar pela sala e registrar com mais precisão os movimentos do usuário. Completa a lista o popular PlayStation VR que, segundo a fabricante Sony, está chegando ao Brasil. Enquanto o mercado fatura, resta saber se o nosso cérebro está adaptado para esse tipo de tecnologia. É documentado que muitas pessoas sentem enjoos e tonturas ao usar os visores de RV, e mesmo quem consegue lidar numa boa não encara sessões muito longas. “Nosso cérebro não evoluiu para visualizar e experienciar a realidade nesses aparelhos”, diz
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Um jogo de terror que muda de acordo com os medos e a personalidade de quem joga? Isso não é exclusividade de Black Mirror. Lançado em 2009 para PlayStation 2, Wii e PSP, o game Silent Hill: Shattered Memories faz testes psicológicos com o jogador ao longo da história e usa as respostas para mudar elementos da trama, como a forma dos monstros, lugares visitados e até personagens que aparecem pelo caminho.
o professor Pedro Calabrez, pesquisador do Laboratório de Neurociências Clínicas da Unifesp e apresentador do canal Neurovox. “O cérebro tem problemas para se adaptar a movimentos rápidos, bruscos e erráticos. Ele não consegue processar de maneira coesa e concisa os estímulos que chegam. E o resultado disso são vertigens – iguais às que você sente numa montanha-russa.” Os fabricantes estão atentos a isso, de qualquer forma. “Os desenvolvedores já criaram várias técnicas para diminuir o enjoo de
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movimento”, diz Ana Ribeiro, produtora do jogo Pixel Ripped 1989. “É preciso evitar que o usuário veja na realidade virtual algo que entre em conflito com o que o cérebro percebe. Geralmente, o que causa mais enjoo são rotações e movimentos no mundo virtual que não são compatíveis com a situação no mundo real.”
“A vidA reAl é chAtA” Realidade virtual é o que há de mais avançado em tecnologias imersivas no mundo dos games, mas, se formos levar ao pé da letra a primeira interação de Cooper com um jogo conectado à sua mente – aquele em que ele precisa acertar uma toupeira –, estamos falando de outra coisa: realidade aumentada, que consiste em sobrepor elementos digitais ao mundo real. O conteúdo de RA ainda é escasso, mas tende a crescer em breve. Hoje, é um campo mais explorado pelos smartphones – tanto que Apple e Google já lançaram ferramentas específicas para criar conteúdo em RA para aparelhos com os sistemas iOS e Android. Com RA dá para traçar, por exemplo, estratégias em um jogo de tabuleiro digital montado na mesa da sua sala – aí é só andar ao redor do cenário para ter diferentes perspectivas. Aponte para o céu à noite e confira informações sobre as estrelas que estão sobre a sua cabeça. Ou mire a câmera para jogadores em um campo de beisebol – e estatísticas sobre os atletas aparecem em tempo real. Já aparecem até aplicativos que usam a tecnologia de forma bem simples, mas útil em situações específicas. Que tal visualizar como ficaria sua parede com determinada cor de tinta? Ou ver se aquele sofá que você quer tanto comprar cabe na sua sala? Tudo isso era ficção até há pouco tempo. Hoje faz parte do dia a dia. A grande dificuldade da RA é manter a coerência do digital com o real. “A vida real é chata e não temos controle sobre ela. A física real é chata. A iluminação real não tem shader. Tudo isso faz com que a imersão seja quebrada com frequência”, diz
Tiago Moraes, desenvolvedor da OvniStudios, empresa especializada em tecnologias imersivas. “E quando a magia é quebrada, tudo perde a graça”, completa.
PArA Além dos gAmes A realidade virtual extrapola o campo dos jogos eletrônicos para entretenimento. Por exemplo, o game Sea Hero Quest VR, criado pelo estúdio londrino Glitchers em parceria com universidades britânicas e suíças, tem sido usado para fazer pesquisas sobre demência, que tem entre seus primeiros sintomas a perda do sentido de orientação espacial. O objetivo no jogo é viajar por ambientes naturais como lagos e pântanos. O sistema, então, colhe estatísticas sobre como as pessoas exploram ambientes novos, e gera dados que permitem entender melhor a doença. Outro estudo, da Universidade de Barcelona, ajuda as pessoas a encarar o medo da morte. Na experiência, você vê uma sala de estar comum pela perspectiva de um personagem virtual e é capaz de interagir com alguns objetos, como uma bola. Os estímulos do mundo digital são replicados no seu corpo por pequenos motores de vibração, o que reforça a sintonia com o corpo virtual. De repente, sua perspectiva é alçada para fora do corpo, como se você se tornasse um espírito e flutuasse para o teto da sala. A experiência de “sair do corpo” é associada à morte. O mero contato com essa situação, segundo os pesquisadores, é capaz de diminuir o medo de morrer em quem tem esse tipo de fobia. Bem Black Mirror, não?
Na uNiversidade de barceloNa, um experimeNto com vr simula a descoNexão do corpo para ajudar pessoas a perder o medo da morte.
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T3 E3 na ficção título original SHuT up And dAnCe título em português mAndA quem pode exibição original 21 de ouTuBro de 2016 nota no IMDb 8,5/10
O Deus TrOll Kenny é um jovem comum, que se masturba na frente do computador como qualquer outro. Até que sua câmera é hackeada, e o seu ato vira moeda de barganha nas mãos de um hacker. Ele passa a ser coagido a cometer alguns crimes sob pena de ver público seu momento íntimo. Durante um dos trabalhos sujos, Kenny conhece Hector, que também está sob o jugo do hacker misterioso, que jamais aparece em cena – age como se fosse uma entidade divina, onipresente e sempre pronta para aplicar seu castigo. Depois de assaltarem um banco a mando do hacker, eles levam o dinheiro a um ponto. Ali, é revelado o tipo de pornografia que Kenny assistiu (spoiler: pornografia infantil), o que justifica sua humilhação iminente. Mas a entidade não está interessada no dinheiro do roubo ou em cumprir com sua parte do acordo, que é manter os vídeos privados. O deus troll só quer o caos.
curiosidade A reviravolta no final, quando revela-se que Kenny assistia pedofilia e que as outras vítimas tinham algo obsceno no passado, não fazia parte das versões anteriores do roteiro. Foi a última opção, na verdade. Antes de chegar a ela, Charlie Brooker considerou não justificar por que o hacker escolhia aquelas pessoas. Também cogitou a possibilidade de apenas Hector ter um grande segredo.
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no mundo real
confissões de um
hacker Conversamos Com o brasileiro shadow Ghost, uma versão em Carne e osso do invasor de blaCk mirror. > reportagem rodolfo viana > edição ana Prado
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Em seu celular, Shadow Ghost mostra o e-mail que acabou de criar. É uma mensagem comercial voltada para os funcionários da companhia onde trabalha como analista de segurança. “Temos seis meses de Netflix grátis para você, colaborador da empresa X”, começa o texto, seguido por um grande botão de “Participe agora”. Ao clicar, o usuário é levado a uma página onde, para ter acesso à promoção exclusiva, deve informar seu e-mail corporativo e sua senha. O site seria facilmente interpretado como uma tentativa de phishing, técnica usada por cibercriminosos que simula uma página real para adquirir informações do usuário, como senhas de banco. Mas a criação de Shadow Ghost é diferente: há um cadeado verde antes do endereço da página. Isso indica que o site tem um
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certificado SSL e, portanto, é legítimo e seguro. “Tornei autêntico o que é fraude”, diz, com a cara de moleque travesso, enquanto dá um gole na cerveja num bar na Avenida Paulista, numa noite quente de setembro. Com o certificado, o site não configura ameaça e passa despercebido por programas de antivírus. Fica de fora de uma estatística preocupante: o Brasil é um dos grandes alvos de phishing. Em 2016, ano de Jogos Olímpicos no País – e a tentação de ganhar ingressos por meio de promoções –, 27,61% de todos os ataques do mundo miraram usuários brasileiros, segundo relatório da empresa de segurança Kaspersky. O site falso de Shadow Ghost é apenas um teste de segurança da empresa onde trabalha e não tem implicações reais. Se não fosse uma simulação, porém, o hacker, com login e senha de apenas um funcionário incauto, poderia ter acesso à rede interna da empresa e escalar privilégios – ou seja, virar o administrador do computador – podendo, entre outras coisas, modificar configurações, redirecionar o fluxo de informação, rastrear as atividades de todo mundo, deletar documentos importantes. Poderia, inclusive, acessar câmera e microfone dos computadores, como o hacker do episódio Manda Quem Pode. Dias depois, o hacker informa o resultado do teste: 25 funcionários caíram no golpe.
Hackers também amam Shadow Ghost ganhou seu primeiro computador em 1997. Tinha 12 anos quando o pai, um funcionário público que economizou meses de salário, lhe deu um AMD K62 400 Mhz, com Windows 95, “incríveis 32 Mb de memória e HD de 20 Gb”, lembra – um top de linha da época. A primeira coisa que o garoto fez foi procurar no extinto buscador Cadê? uma apostila de hardware, imprimir o material e desmontar o computador para ver como funcionava. “Meu pai ficou puto”, diz, aos risos. O conhecimento em eletrônica desembocou no primeiro hack de Shadow Ghost, no ano seguinte. Um hack que não envolvia computadores, mas telefones. Ele levava ao orelhão um aparelho vagabundo, “desses comprados em loja de 1,99”. Sem muito esforço, conectava-o no fio da linha do orelhão, esquivando-se, assim, do equipamento de cobrança do telefone público. Sem gastar um tostão, o moleque de 13 anos passava as tardes em serviços de disque-paquera.
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Foi justamente uma paquera um dos primeiros alvos de suas invasões. No fim do ano de 1999, Shadow Ghost conversava no MSN com uma menina de quem estava a fim. Mandou uma animação boba: um Papai Noel desejando Feliz Natal. Quando a menina clicou para assistir, antes de aparecer o bom velhinho fazendo gracejos, um programa misturado ao código da animação foi acionado. Era um trojan, software que abria conexão direta entre invasor e vítima. A partir de então, Shadow Ghost passou a ter acesso a tudo o que ela fazia: e-mails trocados, fotos salvas, históricos de bate-papo... Ele recebia, por e-mail, prints da tela do computador da menina de tempos em tempos. Monitorou a garota por alguns meses, e ela nunca soube.
remorso nenHum A invasão à paquera do MSN na adolescência foi uma exceção, diz Shadow Ghost. Ele não mira pessoas físicas, a menos que elas representem uma “ameaça direta”. Por exemplo, um advogado “que me colocou num rolo em que eu não estava” teve computador e celular monitorados por algumas semanas. O hacker queria saber o que exatamente ele conversava por e-mail, WhatsApp, Facebook… Além do advogado, sete pessoas ao seu redor foram comprometidas – ou seja, invadidas e espionadas. Há duas técnicas de invasão usadas por Shadow Ghost – às vezes, ao mesmo tempo. A primeira é a engenharia social – ou seja, usar informações disponíveis para hackear não o sistema, mas o usuário. “Se eu procurar no Google ‘CPF telefone filetype PDF currículo’, eu vou encontrar uma infinidade de currículos com endereço, telefone e CPF”, diz o hacker. Com essas informações, é possível descobrir a operadora de celular, por exemplo. Agora imagine a cena: você recebe uma ligação de alguém que diz ser atendente da sua operadora. A pessoa confirma seus dados por telefone – nome completo, endereço, CPF – e diz que é possível que a linha tenha sido clonada. Antes que o pânico domine seu corpo, você é informado que receberá um e-mail para atualizar seu cadastro e manter sua linha segura. Minutos depois, uma mensagem – como a descrita no começo deste texto – aparece no seu e-mail. Ela tem um botão de “Atualizar cadastro”. Você não clicaria? Ok, talvez você não clicasse, mas alguém próximo a você certamente clicaria. E, com o computador comprometido, o hacker poderia mandar mensagens para você – com arquivos anexos maliciosos, claro – como se fosse seu avô ou sua tia (afinal, quer remetente mais confiável que um familiar?).
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hackers do passado longínquo Eles existem desde bem antes dos PCs.
A segunda técnica de Shadow Ghost fica no campo dos códigos, e serve para atacar sistemas de empresas. As portas para esse tipo de invasão estão nos lugares onde o acesso é feito por login e senha. Funciona assim: quando você coloca login e senha em qualquer site, o sistema vai consultar no banco de dados as informações e ver se elas batem com o que você digitou. Isso é feito por SQL (Structured Query Language, ou linguagem de consulta estruturada). Mas se, em vez de login e senha, você digitar um comando malicioso que o SQL saiba interpretar, você pode criar uma nova credencial e entrar no sistema, ou pode pedir para que o sistema entregue alguma credencial existente. O nome dessa técnica é SQL injection (injeção de SQL). Em todos os casos, você já está no servidor, e a invasão foi concluída. Hoje, os ataques de Shadow miram o que ele chama de “estatais ou multinacionais, cobertas por seguros milionários, que arrancam dinheiro de uma galera sem piedade”. Ele, claro, não revela quais, só diz: “nunca prejudiquei o Zé das Couves da esquina”. O objetivo dos ataques, ele jura, não é financeiro. Sua motivação seria simplesmente saciar a própria curiosidade. Seja como for: para chegar aos alvos corporativos, muitas vezes Shadow Ghost toma o controle de máquinas de gente comum: “Eu e um grupo mantivemos um botnet [rede de máquinas invadidas que executam tarefas a mando do invasor]. São mais de 1.500 computadores”. Um deles pode ser o seu.
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1903
nelvile Maskelyne Crítico do telégrafo sem fio de Guglielmo Marconi, Nelvile Maskelyne aproveitou uma demonstração do dispositivo feita pelo físico John Ambroise Fleming, em Londres. Com um transmissor e uma antena de 50 m, interferiu na comunicação, e enviou xingamentos em código Morse.
1932
Marian reJeWski, henryk Zygalski e JerZy róZycki Esses matemáticos poloneses quebraram a Enigma de três rotores, a máquina alemã de mensagens criptografadas, com o uso de permutação matemática e combinação.
1939
alan Turing, gordon WelchMan e harold keen O trio de ingleses, com o gênio Touring à frente, quebrou uma versão avançada da Enigma, usada na Segunda Guerra.
1943
rené carMille Especialista em controle de ponto do exército francês quando o país foi invadido pelos alemães, ofereceuse para coordenar o Departamento de Demografia de Vichy. Durante um censo para encontrar judeus, Carmille alterou o aparelho para nunca tabular a religião como “judeu”, o que salvou muitas vidas, mas o levou a ser enclausurado num campo de concentração, onde morreu.
1957
Joe “Joybubbles” engressia Um garoto cego de 7 anos com uma audição impecável descobre que assoviar ao telefone em uma frequência de 2.600 Hz interferiria no sistema da AT&T, permitindo ligações gratuitas.
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T3 E4 na ficção título original SAn JunIpErO título em português SAn JunIpErO exibição original 21 dE OuTuBrO dE 2016 nota no IMDb 8,8/10
felizes para sempre, numa placa de memória O pessimismo diante da tecnologia é uma constante em Black Mirror. O soberbo San Junipero, porém, é uma exceção. Nele, Yorkie e Kelly se conhecem num clube numa cidade costeira, em 1987. Um flerte aqui, um hit oitentista ali, e as duas acabam se envolvendo. Até que o cenário idílico se revela como uma simulação criada para o alívio momentâneo daqueles que estão à beira da morte. No mundo real, Yorkie está presa a uma maca, paralisada. Não só à beira da morte: a simulação está cheia de gente que já morreu. Os corpos pereceram, mas as consciências foram “subidas” para lá. Para todos os efeitos, é a materialização da imortalidade, algo inerentemente positivo. San Junipero até discute se faz mesmo sentido viver para sempre, mas no fim se rende aos fatos: o melhor jeito de alcançar a imortalidade, como já disse Woody Allen, é não morrendo.
curiosidades Os direitos autorais das músicas que tocam no episódio foram os mais caros da produção. Girlfriend in a Coma, dos Smiths, toca por cinco segundos, e pagar por ela foi como “jogar dinheiro na fogueira”, disse Charlie Brooker. Inscrito no Emmy Awards de 2017 como filme para TV, San Junipero ganhou os prêmios de melhor filme e melhor roteiro em filme dramático.
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upload de
consciência A ideiA de trAnsferir A mente pArA forA do cérebro é um objetivo concreto dA ciênciA. > reportagem cArLos orsi > edição rodoLfo viAnA
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Transferir a mente de alguém para dentro de uma máquina que vai garantir a imortalidade a seus usuários é um tema popular não só na ficção científica, mas também na ciência de fato. Ray Kurzweil, um cientista metido a guru, mas ainda assim respeitado, fala em realizar uploads de consciência dentro das próximas décadas. Se aquilo que chamamos de “mente” é só um padrão de atividade cerebral, não seria possível copiar esse padrão e reproduzi-lo em algum outro suporte, como chips de silício? É nisso que gente como Kurzweil ou o físico Frank Tipler, autor do livro Física da Imortalidade, aposta. Mas essa opção depende da resposta, ainda desconhecida, a uma questão que é, ao mesmo tempo, científica e filosófica: a mente humana é computável?
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Ou, em outras palavras, tudo o que você é – ideias, lembranças, comportamentos, opiniões, sentimentos – cabe mesmo num programa de computador? O matemático Alan Turing (19121954) realizou trabalhos teóricos mostrando que é possível criar máquinas capazes de simular qualquer processo. Pelo menos qualquer um que possa ser descrito por um algoritmo. Algoritmos são conjuntos de instruções encadeadas de forma lógica, como as regras das quatro operações que aprendemos na escola ou os programas que rodam em nossos computadores. Assim, se a personalidade humana puder ser reduzida a um algoritmo, ela deixa de depender exclusivamente do suporte material do cérebro, e nada, exceto o grau de avanço tecnológico, impede que seja recriada numa máquina. Só tem um problema: não sabemos como a mente computa. Não sabemos se os nossos pensamentos são mesmo feitos de algoritmos. Um filósofo especialmente aberto à possibilidade de que, sim, eles são, é o americano Daniel C. Dennett, autor de livros como Tipos de Mentes e Consciousness Explained. Dennett oferece exemplos do poder dos algoritmos para produzir resultados sofisticados, como os usados atualmente
se a mente for traduzível em algoritmos, ela não precisarÁ de um cérebro como suporte.
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para modelar o clima e os processos biológicos. A própria evolução das espécies por seleção natural, segundo Dennett, pode ser tratada como um processo algorítmico. A mente de cada pessoa, então, seria só um conjunto de equações. Enorme, de zilhões e zilhões de terabytes, mas ainda assim passível de upload para outra plataforma que não um cérebro. Outro agente que acredita nisso é ninguém menos que a União Europeia, que está investindo 1 bilhão de euros no Projeto Cérebro Humano, uma iniciativa que tem, entre seus objetivos, reproduzir um cérebro humano em computador.
OS CÉTICOS Mas há quem defenda o contrário, alegando que a mente não é computável. Ela pertenceria a uma classe de sistemas que não podem ser adequadamente representados por algoritmos. O próprio Alan Turing
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upload de zumbis A mente pode ser computável, mas a consciência não.
provou que sistemas assim são teoricamente possíveis, embora sua aplicação prática seja um desafio. O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis e o matemático e filósofo egípcio Ronald Cicurel estão no time dos céticos. No livro The Relativistic Brain, de 2015, eles argumentam que o grau de integração com que o cérebro funciona não pode ser simulado por máquinas como as de hoje, que se limitam a processar algoritmos. Os computadores seriam “incapazes de dar conta das funções mais elevadas do sistema nervoso central, simplesmente porque não podem simular o tipo de computação analógica integrada que gera essas funções em cérebros reais, onde tudo afeta tudo simultaneamente”, escrevem. Bom, mesmo que o cérebro seja computável, não dá para saber se a sua consciência, aquilo que você chama de “eu”, subiria mesmo junto com o upload. Aquilo que acabar abrigado em um computador pode funcionar só como uma simulação da sua mente. Uma cópia exata, mas “zumbi” (veja mais no box). Sua mente iria para San Junipero, e interagiria com outras mentes lá. Mas seus “olhos” jamais se abririam lá dentro. Sua consciência pereceria junto com seu cérebro. A mente, afinal, pode até ser algo plenamente traduzível, se não pelos computadores de hoje, pelos de amanhã. Mas a consciência talvez continue sendo o que sempre foi: o maior e mais inescrutável mistério do Universo.
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Filosoficamente, a principal objeção à possibilidade de mentes serem algoritmos é a questão da experiência subjetiva: um robô pode ser programado para se comportar como se estivesse apaixonado, mas como programá-lo para que se sinta apaixonado? Essas criaturas teóricas, que externamente agem como seres humanos, mas não sentem nada, são os “zumbis filosóficos”. Em seu livro The Conscious Mind, o filósofo australiano David Chalmers define um zumbi filosófico como “alguma coisa idêntica a mim, mas sem experiência consciente – apagada por dentro”. O americano John Searle, outro filósofo que se debruça sobre a natureza da mente, concorda que zumbis assim são possíveis. Há ainda mais uma camada filosófica a ser explorada. Em 1984, o filósofo britânico Derek Parfit (1942-2017) propôs o paradoxo do teletransporte: imagine uma máquina que destrua seu corpo num lugar, enquanto outra constrói uma réplica em Marte, com exatamente a mesma aparência, personalidade, memória. Você foi assassinado e substituído por um impostor, ou viajou a Marte por teletransporte? Isso vale para o upload de consciência. Programas não são realmente transferidos: são copiados para um novo lugar e apagados do anterior. As consciências mantidas num reservatório ou na nuvem estarão mesmo preservadas, ou serão apenas simulações digitais de gente que, na verdade, já morreu?
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T3 E5 na ficção título original Men AGAinSt FiRe título em português enGenhARiA ReveRSA exibição original 21 De OutubRO De 2016 nota no IMDb 7,9/10
(Não) CoNheça o seu iNimigo Num futuro mais distópico que a média da série, somos apresentados a uma unidade do exército especializada em exterminar as chamadas “baratas”. São seres com estética de zumbi, de mutante pós-nuclear. Monstros, em suma. Eles entram sorrateiramente nas casas, roubam comida, e vivem escondidos em cantos escuros (daí o apelido de “baratas”). Para executar o trabalho, os soldados recebem um implante neural que melhora seus sentidos e lhes fornece informações usando realidade aumentada. Mas não é só isso. O sistema, na verdade, cria as “baratas”. Não existem zumbis. Não existem mutantes. São apenas civis paupérrimos. O implante desumaniza o “inimigo” para que os soldados não pensem duas vezes antes de matar inocentes, se esse for o desejo dos comandantes.
curiosidades O termo “barata” se refere ao genocídio de Ruanda, em 1994. Durante cem dias, 800 mil pessoas foram mortas pelos hutus, que perseguiam os tutsis, a quem chamavam de “baratas”. O título foi extraído do estudo Men Against Fire, escrito em 1947 pelo general S.L.A. Marshall. O livro fala sobre soldados que, durante a Segunda Guerra Mundial, não dispararam seus rifles.
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Super soldados Antes, bombAvAm os militAres com metAnfetAminA. hoje A ArmA é outrA: reAlidAde AumentAdA. > reportagem cArol vilAverde > edição AnA PrAdo
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“É muito mais fácil puxar o gatilho mirando no bicho-papão”, diz o personagem Arquette em Engenharia Reversa. Os implantes de realidade aumentada que aparecem no episódio dão conta de um dos maiores problemas para um soldado, que é a eventual empatia com o inimigo a ser morto por ele. Além de apresentarem dados da missão e auxiliarem na mira, na comunicação e no condicionamento, essa tecnologia coloca “máscaras” sobre os alvos das operações e fazem com que eles tenham uma aparência monstruosa, pouco humana. Para o exército de Black Mirror, alterar a percepção da realidade no combate foi a chave para obter o soldado exemplar, extremamente focado e sem compaixão. A ideia de criar supersoldados não é nova, nem ética. Os nazistas enchiam
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A evolução dos supersoldAdos Como exércitos transformaram homens em máquinas de guerra.
1939
ligAdões
Os nazistas tentavam melhorar o desempenho das tropas com metanfetamina. Milhões de pílulas foram distribuídas entre os combatentes, que lutavam sem sono, fome ou sede. Os efeitos colaterais, no entanto, eram terríveis: os soldados levavam semanas para se recuperar do esforço feito sob efeito da droga, e muitos se tornavam dependentes. Os soldados japoneses também receberam rações de metanfetamina – principalmente os kamikazes.
1941
steve rogers soviético
Entre 1936 e 1941, os soviéticos implantaram eletrodos no cérebro de 300 voluntários para tentar eliminar seus sensores neurais de dor. Também testaram titânio para reforçar os ossos dos soldados. Nada deu certo: os implantes causaram tumores cerebrais e os corpos rejeitaram o reforço nos ossos.
1958
as tecnologias criadas para os campos de batalha da vida real não ficam muito atrás daquelas da ficção. 58
ArmA psicodélicA
Nos anos 1950 e 1960, o Exército dos EUA tentou avaliar se o LSD poderia ser transformado em arma. A ideia era incapacitar as tropas inimigas com a droga alucinógena em aerosol. Deu errado: a droga perde efeito quando lançada no ar. Também existe um registro em vídeo com oficiais americanos participando de um teste divertido em 1958: logo após tomar LSD, eles tentam marchar e seguir ordens.
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suas tropas de metanfetamina – a droga que Walter White fabrica em Breaking Bad. Trata-se de um estimulante superpoderoso, que propicia horas de euforia a mil e cansaço a zero, mais uma tonelada de efeitos colaterais: danos no coração, no cérebro e risco de overdose... (veja mais ao lado). Essas práticas caíram em desuso, por motivos óbvios. Mas as tecnologias que permeiam os campos de batalha do mundo real não ficam muito a dever aos da ficção científica. A realidade aumentada, que complementa a visão com elementos digitais, serve de exemplo. O laboratório de pesquisas do exército americano anunciou neste ano o protótipo TAR (sigla em inglês para Realidade Aumentada Tática). São óculos de realidade aumentada que fazem você enxergar igual o Exterminador do Futuro. Por exemplo: um sensor na sua arma troca informações com os óculos e permitem que você mire com uma perfeição robótica. “Já a realidade virtual (VR) serve como uma ótima ferramenta de treinamento militar”, diz Eduardo Araújo, pesquisador e designer de simulações da empresa Virtopia, especializada na área. “A VR permite uma grande economia: os soldados podem treinar tiro à vontade, sem gastar nada além da energia elétrica. Essa tecnologia também permite treinar em qualquer cenário, a qualquer hora”, explica.
um sistema do exército americano faz soldados enxergarem igual o exterminador do futuro.
todas as línguas do mundo Tradução simultânea também é um campo em exploração na tecnologia militar. A língua é uma das principais barreiras a serem superadas pelos exércitos em território estrangeiro, especialmente quando precisam trabalhar com soldados e civis locais. Além dos tradutores humanos, escassos e difíceis de treinar, as Forças Armadas dos EUA utilizam a MFLTS (Machine Foreign Language Translation System), máquina que traduz em tempo real tanto falas quanto texto de sites e redes sociais. O sistema, que também tem primos no mundo civil, roda em smartphones, e em breve falará 65 idiomas.
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O próximo passo, de acordo com as Forças Armadas dos EUA, é adaptar esses dispositivos para novas tarefas. A mais interessante: determinar se uma pessoa está falando ou não a verdade (tarefa dura para qualquer software, mas não impossível).
no Brasil Quem cuida desses assuntos por aqui é o Departamento de Ciência e Tecnologia das Forças Armadas, que pesquisa e desenvolve produtos para atender às necessidades operacionais dos militares. Os soldados brasileiros já usam realidade virtual para treinamento de combate. O STAL (Simulador de Tiro de Armas Leves) é um dos destaques: destinado ao treinamento de atiradores, combina simuladores de tiros de pistolas e fuzis e fornece dados sobre o desempenho dos soldados. O Exército também planeja implantar, ainda em 2018, um projeto de realidade aumentada, nos moldes do TAR americano. Para Joni Amorim, pesquisador colaborador da Unicamp, uma aplicação interessante da realidade aumentada poderia acontecer em operações de suporte das Forças Armadas ao trabalho policial, como ocorre em algumas comunidades do Rio de Janeiro. “Um militar que não conhecesse a região poderia receber orientações via GPS sobre qual direção seguir por meio de óculos que mostrassem um mapa sobreposto à imagem real”, diz Amorim. A onipresença de sistemas assim não seria boa só do ponto de vista tático. Se todo soldado (e todo policial) usar aparatos de realidade aumentada, isso significa também que todo soldado, e todo policial, poderia ter cada segundo de sua atividade gravado em vídeo. E isso ajudaria a coibir justamente aquilo que este episódio de Black Mirror critica: abusos contra inocentes.
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T3 E6 na ficção título original HATEd in THE nATiOn título em português OdiAdOs pELA nAçãO exibição original 21 dE OuTuBRO dE 2016 nota no IMDb 8,7/10
TweeT e CasTigo
curiosidade
As redes sociais são, entre tantas coisas, simulacros das praças públicas onde, há alguns séculos, se decapitavam condenados. Com uma diferença: o carrasco que hoje desce a guilhotina pode ser o homem sem cabeça de amanhã. Odiados pela Nação é sobre julgamentos imediatos e ódio coletivo – e sobre como é fácil disseminar esse sentimento em tão poucos caracteres. No episódio que encerra a terceira temporada de Black Mirror, a detetive Parke e sua companheira, Blue, devem investigar mortes misteriosas, como a da escritora Jo Powers e a do rapper Tusk. Ambos são repudiados no Twitter depois de declarações públicas polêmicas. Parke e Blue descobrem que abelhas-robôs criadas para polinizar Londres são as responsáveis pelas mortes. Hackeadas, elas vão atrás de vítimas escolhidas por usuários do Twitter: ao fim do dia, a pessoa mais citada na rede social junto à hashtag #DeathTo está marcada para morrer.
O episódio foi inspirado num fato real da vida de Charlie Brooker. Em 2004, em sua coluna no The Guardian, ele criticou George W. Bush e concluiu, de forma irônica: “John Wilkes Booth, Lee Harvey Oswald, John Hinckley Jr, onde estão vocês?”. Citar os assassinos de Abraham Lincoln e John Kennedy e o homem que tentou matar Ronald Reagan pegou mal: Brooker recebeu inúmeros e-mails furiosos e até uma ameaça de morte.
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no mundo real
#Deathto AiNDA NãO há ABelhAS-rOBôS ASSASSiNAS, MAS já TeMOS uM MONTe De geNTe DeSejANDO A MOrTe De OuTrAS peSSOAS NO TwiTTer. > reportagem Rodolfo Viana > edição ana PRado
“Odiados pela Nação”. Não poderia haver título melhor para o episódio que fecha a terceira temporada de Black Mirror. Nele, as pessoas, no Twitter, associam a hashtag #DeathTo a alguém que queiram ver morto. Se o odiado tiver muitos tweets em seu nome, as abelhas-robô se encarregam de exterminá-la. É claro que a brincadeira macabra ganhou o Twitter. Desde que o episódio foi ao ar, em 21 de outubro de 2016, 7.072 tweets únicos – ou seja, sem contar retweets – foram publicados. O pico de tweets ocorreu dois dias depois que o episódio foi disponibilizado na Netflix.
mortes virtuais Quando a hashtag foi mais usada e quais os nomes mais citados. 23/10/2016
279 tweets (pico de 2016) usuários comentam o último episódio de Black Mirror
9/2/2017
69 tweets (pico de 2017) imprensa divulga notícia sobre o japão criar abelhas-robôs para polinização
21/10/2016
9/7/2017
33 tweets usuários repercutem notícia da CNN sobre polinização com uso de drones
Lançamento do episódio OUT/NOV 2016
FEV/MAR 2017
JUN/JUL 2017
AGO/SET 2017
as dez vítimas favoritas no mundo 327 (8,50%) 139 (3,61%) 94 (2,44%) 47 (1,22%) 40 (1,04%) 37 (0,96%) 32 (0,83%) 20(0,52%) 20 (0,52%) 15 (0,39%)
3= Donald Trump 1=Black Mirror 9= “eu mesmo” 4= Netflix (plataforma) 4= jair Bolsonaro 3= Michel Temer 3=Abelhas 2= garrett Scholes (personagem do episódio) 2= jo powers (personagem do episódio) 1= enrique peña Nieto (presidente do México)
Mas boa parte dos tweets não tem uma vítima: são comentários sobre o episódio, demonstrações de aflição pela existência de abelhas assassinas etc.
Sem nome
3.223
45,6%
com nome
#Deathto
3.849
54,4%
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no mundo real
OdiadOs pela
internet O que mOtiva Os linchamentOs virtuais – e as cOnsequências desses ataques nO mundO real. > reportagem ana lOurençO > edição ana PradO
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Você está viajando com amigos pelo interior do país. Em uma cidade, passam por um cemitério militar, cuja entrada está decorada com uma placa em que se lê: “Silêncio e respeito”. Você resolve parar e posar para uma foto quebrando as “regras”: com uma mão, faz um gesto para indicar que está gritando e, com a outra, mostra o dedo do meio. Um amigo posta a imagem no Facebook e te marca na publicação. O que era para ser uma simples brincadeira de gosto duvidoso vira um pesadelo: a foto viraliza e você começa a receber milhares de mensagens de ódio e ameaças de morte. Páginas do Facebook são criadas com seu nome. Poucos dias depois, perde o emprego. Nos meses a seguir, desenvolve depressão e passa a se recusar a sair de casa.
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Essa história aconteceu com Lindsey Stone, uma americana que, em outubro de 2012, posou para a foto no Cemitério Nacional de Arlington, onde estão enterrados veteranos de guerra e figuras políticas importantes dos Estados Unidos. A história de Lindsey é semelhante à da personagem Clara Meades em Odiados pela Nação – na série, a mulher posta nas redes sociais uma foto em que simula estar urinando em um monumento de guerra. As coincidências terminam por aí, mas as marcas do ódio virtual podem ter tanta força quanto o ataque das abelhas-drones.
A gênese do AtAque A vítima de um linchamento geralmente “cumpre a função ritual e sacrificial do bode expiatório”, escreve José Martins de Souza, sociólogo e professor da USP, no livro Linchamentos: a justiça popular no Brasil. Em seu levantamento, Martins estima que haja um linchamento físico por dia no País, e que, nos últimos 60 anos, cerca de um milhão de brasileiros tenha participado de pelo menos um ato ou uma tentativa desse tipo. Apesar das diferenças entre o linchamento físico e o virtual, a efeito de pesquisa, a distinção é menos acentuada: “o linchamento virtual também é real. A pessoa atacada tem família, vida social, não é só um avatar”, explica a pesquisadora da Unicamp Karen Tank Mercuri Macedo, que estudou o tema. “Acreditamos que o linchamento virtual muitas vezes acontece por falta de letramento digital. Se a pessoa não tem uso crítico da tecnologia, não conseguirá avaliar a fonte das informações que recebe e tem mais chances de ser um linchador ou linchado em potencial.” Mas quem toma parte em linchamentos tem consciência do que está fazendo? Depende da situação. “Há um caso de um linchamento real no Rio de Janeiro em que uma idosa foi vista tentando arrancar o olho da vítima com uma colher. Quando foi levada para a delegacia, ela não lembrava o que tinha feito. Acreditamos que a fúria da multidão deixe vir à tona um comportamento que nem a pessoa entende”, explica Macedo. Mas a situação muda nas redes
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posts iNfelizes Três casos de linchamento virtual com consequências bem reais. “Não pego aids, sou braNca”
Em dezembro de 2013, a relações públicas Justine Sacco, de 30 anos, aguardava um voo de Londres para a Cidade do Cabo, na África do Sul, quando tuitou: “Indo para a África. Espero não pegar aids. Brincadeira! Sou branca.” Onze horas depois, ao desembarcar, Sacco descobriu que havia recebido mais de 100 mil mensagens de repúdio e ameaças de morte. Até Donald Trump tuitou pedindo sua demissão – algo que de fato aconteceu. “Mate uM NordestiNo afogado”
Após a vitória de Dilma Rousseff nas eleições de 2010, a estudante paulista Mayara Petruso tuitou uma série de comentários, entre os quais viralizou a frase: “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado!”. A forte repercussão levou Mayara a abandonar a faculdade e ser demitida. Ela foi condenada a um ano e cinco meses de prisão por incitação à violência. faNtasia: vítiMa da MaratoNa de bostoN
Em 2013, Alicia Ann Lynch, uma norteamericana de 22 anos, decidiu tuitar sua foto do Halloween. Sua fantasia: vítima do atentado na maratona de Boston, que matou três pessoas e feriu mais 264. A reação foi rápida: mensagens de ódio, informações pessoais e até fotos íntimas de Lynch vazaram na rede.
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sociais, mesmo que envolva uma ação impensada. “A pessoa tem muito mais consciência do que está fazendo na internet do que na agressão física no mundo real, que geralmente parte de uma explosão súbita.”
Por que linchamos? Não raro, o linchamento virtual resvala para a violência física – é o caso de Fabiane Maria de Jesus, dona de casa assassinada em maio de 2014, no Guarujá, após ser acusada de praticar magia negra e sequestrar crianças. O boato surgiu na internet, junto a relatos falsos de testemunhas. Fabiane foi espancada até a morte por moradores, após ser confundida com um retrato falado da suposta sequestradora. O linchamento foi filmado e divulgado na internet, onde viralizou. Depois, descobriu-se que o retrato havia sido feito em 2012 por policiais do Rio de Janeiro, em um caso sem relação alguma com o boato. O linchamento tem caráter vingativo, de punir com força redobrada o suposto crime original. É uma forma de a sociedade julgar a ineficiência dos procedimentos oficiais de justiça. “A hipótese mais provável é a de que a população lincha para punir, mas sobretudo para indicar seu desacordo com alternativas de mudança social que violam valores e normas de conduta tradicionais”, escreve Martins. “O linchamento não é uma manifestação de desordem, mas de questionamento da desordem.” Esse questionamento muitas vezes é provocado por um dos maiores gatilhos para o linchamento: a intolerância. “Todas as pessoas que já fazem parte de minorias vão continuar sendo marginalizadas na internet, embora tenhamos por lá essa sensação de igualdade. Existe sempre um poder, um grupo mais privilegiado controlando os outros”, ressalta Macedo. “Se você não se encaixa no grupo homogêneo, precisa ser destruído, nem que seja só com palavras. Não existe mais essa fronteira fixa entre o real e o virtual.” A intolerância é, grosso modo, uma das bases para o ataque de grupos
organizados e genericamente definidos como haters. Todos estão sujeitos aos seus ataques, especialmente se defenderem alguma causa considerada polêmica. É o caso de ativistas feministas (veja mais na página ao lado) e militantes políticos, ou defensores de pautas como a legalização das drogas ou do aborto. Para Macedo, “a ideia deles seria preservar alguns valores socialmente construídos, tidos como certos. Nessa lógica, deve-se ‘destruir’ o que pensa diferente, que seja uma ameaça aos bons costumes”.
crime coletivo Três anos depois, apenas cinco pessoas foram condenadas pelo assassinato de Fabiane, com penas variando entre 26 e 40 anos de prisão, dentre dezenas que podem ser vistas no vídeo divulgado. A legislação brasileira ainda não tipifica o crime de linchamento: a característica fundamental das penas ainda é individualizar o crime, não o considerando em contexto coletivo. Mas a penalização para o linchamento virtual e físico pode se tornar mais rigorosa com o projeto de lei 7544/14, do deputado Rubens Pereira Júnior (PCdoB-MA), que foi aprovado em março na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. O projeto prevê aumentar em 1/3 a punição para a “incitação ao crime” via internet ou outro meio de comunicação de massa. “Todos os que compartilham ou comentam no linchamento deveriam responder criminalmente, mas a dificuldade de rastrear acaba focando a punição na primeira pessoa que o publicou”, diz Macedo.
diferentemente dos linchamentos reais, que partem de explosões de fúria, os justiceiros virtuais costumam agir de caso pensado.
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e n t r e v i s t a LoLa aronovich Professora da Universidade Federal do Ceará e autora de um dos maiores blogs feministas do Brasil, Lola vem recebendo ameaças há seis anos e já registrou 11 boletins de ocorrência.
Ativismo e perseguição ativistas de direitos humanos e de causas como o feminismo também vivem sob ataque na rede. S Quando as ameaças começaram? l.a. Meu blog vai fazer dez anos
em janeiro de 2018. As ameaças começaram entre 2010 e 2011. Desde então, elas vêm sendo muito frequentes. Ontem mesmo um rapaz de Aracaju gravou um vídeo com um amigo em que me xinga e me ameaça de morte. Em 2016, esse mesmo indivíduo publicou uma foto de um revólver, com munição, e uma passagem para Fortaleza [onde Lola mora]. Ele disse que viria até a minha casa me matar (eles têm e divulgam meu endereço residencial) e depois se suicidaria. S como os ataQues chegam até você? l.a. Algumas ameaças chegam por
email, outras por comentários não aprovados no meu blog, outras no Twitter. A maior parte vem de um chan (fórum anônimo) criado em
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2013 por um rapaz que foi preso em 2012 e permaneceu mais de um ano na cadeia por seus crimes de ódio. Quando foi solto, voltou a fazer o mesmo de antes. Ele e seus comparsas atacam juízas, delegadas, jornalistas, advogadas, professoras. Eu fiquei sabendo do chan porque seu autor me enviou o link várias vezes. S Qual foi o episódio mais assustador Que você já viveu? l.a. Não tive episódios assustadores,
porque nunca fui atacada fisicamente. Pelo contrário, nas palestras que dou por todo o Brasil, sou recebida com muito carinho. Mas alguns são surreais, como um misógino gravar um vídeo (mostrando o rosto!) dizendo ser meu filho. Nunca vi o cara, nem sei o nome dele, e ele diz que eu queria abortá-lo quando fiquei sabendo que o feto era masculino,
mas minha mãe não deixou. Outro episódio foi quando criaram um site de ódio no meu nome em que diziam que eu havia realizado um aborto numa aluna em uma sala de aula na universidade! E teve gente que acreditou. É absurdo. S você já tomou alguma medida para se proteger? l.a. Eu fico num dilema: vale a pena
acompanhar as ameaças e planos de ataque (mesmo que nunca sejam concretizados) ou é melhor deixar para lá e correr o risco de ser pega de surpresa? Sinceramente, não sei. É terrível que a gente tenha que se acostumar com esse tipo de ataque, mas a gente se acostuma. Durmo bem à noite, não tenho medo. Mas estou cansada. São inúmeras denúncias, 11 boletins de ocorrência, inquéritos, e nada é feito. Há um inquérito aberto na Delegacia da Mulher de Fortaleza. A deputada federal Luizianne Lins (PT-CE) apresentou um projeto com nome de “Lei Lola”, baseado no meu caso, exigindo que a PF investigue casos de ameaças a mulheres online. Eu torço para que a lei seja aprovada e cumprida, pois a verdade é que não temos proteção alguma. S você sabe Quem são as pessoas Que atacam você? elas costumam se esconder atrás de fakes ou dão seus nomes reais?
l.a. Uma boa parte eu sei quem
são, tenho seus nomes, números de documentos e endereços. As polícias civil e federal e a Abin [Agência Brasileira de Inteligência] têm os nomes de muitos outros faz tempo. Não adianta muito processá-los porque eles não trabalham, não estudam, não têm nada no nome deles. Já as centenas de perfis no Twitter que me agridem (a maior parte sem necessariamente me ameaçar de morte) são quase todos falsos. É uma luta desigual, pois eu sou uma pessoa de verdade, com nome completo, endereço e fotos, e eles são covardes contando com o anonimato. Na vida real, cara a cara, eles não teriam coragem sequer de me dirigir a palavra. S o Que você acha Que motiva as pessoas a atacar outras pela internet? l.a.O principal motivo é que as
pessoas se sentem protegidas pelo anonimato para falar as piores atrocidades. Elas pensam que a internet é terra de ninguém. Acho que muitos promoveram bastante bullying na escola e não superaram a fase. Então, ao xingar uma mulher de baleia, de burra, de vagabunda (porque eles geralmente alvejam mulheres), conseguem relembrar aqueles “bons tempos”. Além do mais, essa prática cria a ilusão de fazer parte de um grupo, que se une por meio do ódio.
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