A Cabeça do Gigante

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A CABEÇA DO GIGANTE

Texto de Felipe Moreno

PEÇA EM 1 ATO

Cenários: diversos de acordo com ação.

Época: Atual

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Lista de personagens: Silvestre Santos Raposo Cintra Rodrigo Cíntia Cecília Armando Deputado 1 Deputado 2 Juiz

Obs: É possível um ator representar mais que um personagem

Copyright na SBAT – Sociedade Brasileira de Autores

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A CABEÇA DO GIGANTE

RECEPÇÃO DE ESCRITÓRIO. AMBIENTE MUSICADO. DUAS MESAS COM PASTAS E TELEFONE. NÃO HÁ NINGUÉM SENTADO. PERTO DELAS HÁ ALGUMAS CADEIRAS (OU SOFÁ) DE ESPERA. NESTE ÚLTIMO, ESTÃO SENTADOS RODRIGO E CÍNTIA ESPERANDO PARA SEREM ATENDIDOS. RODRIGO USA ROUPA FORMAL, COM RECATO. JÁ CÍNTIA TAMBÉM USA ROUPAS FORMAIS, MAIS COM MAIOR APARATO. CONVERSAM.

LUZ

GERAL.

RODRIGO — É minha quinta seleção só esta semana. Acho que devia existir outro meio de recrutar estagiários. Se tivessem tantas vagas assim, eu não seria um recordista em procurar estágio. Se bobear, entro pro Guiness. CÍNTIA — Você tem razão. É uma sensação esquisita. Sempre ouço que colocam mais vagas disponíveis do que existem de verdade. Já disse isso para o meu pai, mas ele insiste que continue tentando assim mesmo... RODRIGO — Os mais velhos sempre têm razão. Ou na maioria das vezes. CÍNTIA — Você acha mesmo? É que eles não passam por isso e talvez nem imaginem o que passamos... RODRIGO — Minha mãe sabe. Ela foi comigo algumas vezes. Meu tio também. Todo mundo sabe a dureza que é começar a trabalhar naquilo que estudamos. Seu pai também, pode acreditar. CÍNTIA — Quanto tempo vai demorar ainda. Se eu contar, não faz menos de duas horas que estou aqui. Devem analisar item por item os candidatos... RODRIGO — Analisar o que da gente? Só podem se candidatar recémformados... O que muda, no máximo, é a faculdade. Ainda se eles olhassem as notas...

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CÍNTIA — Estudei na Federal e conheço amigos de faculdades particulares. Por mais que falem que não, me sinto no mesmo barco que eles. Melhor não me sinto mesmo. RODRIGO — Mas é por isso que fazem testes. Vão atrás de coisinhas para grandes achados. Quem é que sabe mais sobre Direito Comercial... Ou quem está mais bem preparado emocionalmente para o cargo... Eu, você ou eles? Oh! Quem será que tem aquele “quê” especial que pode fazer a diferença nos momentos decisivos...? (Apertando um botão imaginário) Pohnnnn... Testando cobaias inteligentes! CÍNTIA — Subjetividade devia ser que nem religião: não se discute qual é melhor ou pior. NESTE MOMENTO ENTRA CECÍLIA IMPECAVELMENTE VESTIDA E MAQUIADA. APROXIMA DOS DOIS COM UMA FICHA NAS MÃOS.

CECÍLIA — Rodrigo Maia. RODRIGO — Sou eu. Mas, se quiser, pode atender a moça primeiro... CÍNTIA — Não. Não precisa. Eu espero. RODRIGO — Não, você está há mais de duas horas esperando. Eu não tenho nenhum compromisso agora. Pode ir. CECÍLIA — Tudo bem, eu entendo a sua preocupação com a moça, mas ela vai ser atendida em seguida. Não se preocupe. RODRIGO — Bem, então, estou pronto. CECÍLIA — (Indicando a cadeira perto da mesa) Por favor, sente-se. RODRIGO SENTA-SE E CECÍLIA TAMBÉM. A DISPOSIÇÃO DA MESA E DA CADEIRA É TAL QUE OS DOIS FICAM HORIZONTALMENTE NO PALCO PARA

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QUEM VÊ DA PLATÉIA. ENTRA ARMANDO E SE DIRIGE À CÍNTIA, TRAZENDO IGUALMENTE UMA PASTA NAS MÃOS. SÓ QUE OS SEUS MODOS SÃO BEM DIFERENTES DOS DE CECÍLIA.

ARMANDO — Cíntia Melo. 22 anos. Confere? Venha, moça. Senta aqui. CÍNTIA SE SENTA NA OUTRA MESA JUNTAMENTE COM ARMANDO. ELES FICAM COMO QUE NUMA DIAGONAL TOMANDO O ÂNGULO DA PLATÉIA. PORTANTO VEMOS ARMANDO MAIS DE FRENTE E CÍNTIA QUASE DE LADO. ESTA DISPOSIÇÃO DEVE ESTAR PRÓXIMA DA BOCA DE CENA. O TELEFONE NA MESA DE ARMANDO TOCA E ELE ATENDE.

ARMANDO — Sim. Oi João. Tudo bem e você? Está sim. Vou te passar a ela. Abraço. (A Cecília, tapando o bocal do fone) Aquele que te conhece como eu. Jóia rara! CECÍLIA LEVANTA-SE PARA ATENDER SEM DEIXAR DE OLHAR DURAMENTE PARA ARMANDO, QUE A IGNORA E VOLTA-SE PARA CÍNTIA. VAI ACONTECER UMA PEQUENA PAUSA E CECÍLIA VAI DESLIGAR O TELEFONE E RETORNAR PARA O ATENDIMENTO COM RODRIGO. LUZ EM FOCO SOBRE ARMANDO E CÍNTIA.

ARMANDO — (A Cíntia) Me conte, moça. O que fez da vida? CÍNTIA — (Com espanto) Está me perguntando a minha experiência? ARMANDO — Sim, a sua experiência de vida. CÍNTIA — Não tenho experiência! Só estou querendo começar...

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ARMANDO — Eu sei que está querendo começar. Mas quero saber onde estudou, como foi a sua infância. Seus pais, irmãos... Enfim, cá entre nós: preciso conhecê-la melhor e analisar o seu perfil para a vaga. CÍNTIA — (Insegura) Eu pensei que isso não entrasse na seleção... ARMANDO — Isso o quê? CÍNTIA — Não... Eu vim fazer teste de conhecimentos para uma vaga de estágio. Não é isso? Me desculpe, mas me sinto envergonhada de falar de mim... ARMANDO — Isso é um mau sinal... Desse jeito não posso fazer o meu trabalho, além do que você mostra que esconde alguma coisa secreta talvez... Jogo limpo, entendeu? Se quer a vaga, precisa entender que nada pode ficar escondido. Nossa responsabilidade é enorme. Só indicamos aos nossos clientes quem realmente se apresenta por inteiro e não teme nada. CÍNTIA — Não. Eu não tenho medo de nada, tampouco tenho o que esconder... (Pausa) Quando comecei a estudar... Era muito criancinha porque entrei antes do tempo segundo minha mãe. Foi na escola Conceição do Rosário que o senhor deve conhecer... ARMANDO — Conheço. Claro. Colégio tradicional, de famílias católicas aristocráticas. Sei, sei... Então deve ter tido uma educação notável, pelo que me consta daquele colégio. CÍNTIA — Tem mais fama que parece para falar a verdade. Embora eu não possa afirmar que não seja um bom colégio. Professores, bedéis, tias, bibliotecas. Lá tinha tudo isso. Uma estrutura de dar gosto... O FOCO DE LUZ DIMINUI AQUI E É COMO SE CONTINUASSEM A CONVERSA SEM QUE SE OUÇA MAIS. LUZ ACENDE NA OUTRA MESA, ONDE ESTÃO RODRIGO E CECÍLIA.

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CECÍLIA — Sua ficha é interessante, Rodrigo. Estudou em escolas públicas não? RODRIGO — Sim, até entrar na faculdade. Daí meu tio ajudou a pagá-la. CECÍLIA — Tio? Não tem pai? RODRIGO — Não, meu pai morreu. Meu tio, irmão da minha mãe, é quem ajudou em casa. Tenho mais quatro irmãos. CECÍLIA — Mais novos? RODRIGO — Sim. Pelo menos alguma experiência tento passar para eles. CECÍLIA — Que tipo de experiência? RODRIGO — Eu sou jovem ainda, mas ajudei meu tio, que tem uma oficina mecânica, desde garoto. Mas meu futuro não estava ali. CECÍLIA — E onde você acha que ele está? RODRIGO — No meu ideal. Sonho em ser um grande advogado. Foi para isso que estudei. CECÍLIA — Sonho todo jovem tem. Como espera se diferenciar dos outros? RODRIGO — Não sou diferente dos outros. Pelo que eu vi na faculdade, o desejo praticamente era o mesmo. CECÍLIA — Deve ter reparado então que alguns fizeram outros cursos, buscando qualificar-se para o mercado exigente... RODRIGO — Eu também pensei em fazer... Mas não tive condições de pagar outros cursos. O dinheiro que ganhava na oficina do meu tio era para dar uma força em casa... CECÍLIA — São atitudes assim que fazem de você um bom candidato à vaga. Vê primeiro os outros, as necessidades deles...

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RODRIGO — É. Mas nem sempre. Sou humano. Tenho momentos que sinto até vergonha de mim, principalmente quando penso mais nos meus planos... Mas nunca deixei de pensar na minha mãe e nos meus irmãos. Isso eu juro. É que é difícil se dividir. Mas sei que é necessário... CECÍLIA — Entendo. É importante que não percamos o foco, Rodrigo. Você está participando de uma seleção, e eu como psicóloga posso dizer que sua força de vontade e perseverança, além de sua sinceridade, são pontos que contam a seu favor. Mas preciso me ater à objetividade. Por que então você acha que devemos indicá-lo à vaga existente? Deve ter algum diferencial... RODRIGO — Diferencial? É preciso mesmo ter um diferencial? Todos nós temos necessidade de começar naquilo que estudamos. É uma coisa comum, não é. Somos tão parecidos que eu de verdade acho difícil mostrar o que tenho de diferente. CECÍLIA — Desejos e mentiras. Nisso também somos bastante parecidos. RODRIGO — Não estou mentindo. Que há de errado em ser sincero? CECÍLIA — Quis dizer que todos nós temos desejos e mentimos de acordo com nossos interesses... RODRIGO — Mas eu não estou mentindo! CECÍLIA — Acredita mesmo nisso? RODRIGO — Lógico que acredito. Eu não tenho o hábito de mentir. CECÍLIA — Eu não disse que você mentiu, mas que às vezes a mente prega peças. Não sei por que ficou nervoso... RODRIGO — Não estou nervoso; apenas me defendendo de uma possível acusação. CECÍLIA — Bem, vamos ver seus outros testes aqui.

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CECÍLIA

PEGA

OUTRAS

PASTAS

E

COMEÇA

A

OLHAR.

RODRIGO,

VISIVELMENTE ZANGADO, SE MOVIMENTA NA CADEIRA. A LUZ APAGA-SE AQUI. PAUSA. PENUMBRA. UM TELEFONE CELULAR COMEÇA A TOCAR FORA DE CENA E VEM PARA DENTRO. ENTRA SILVESTRE SANTOS COM SEU CELULAR TOCANDO. LUZ EM FOCO SOBRE ELE, QUE PÁRA NO PROSCÊNIO. ATENDE O CELULAR COM UM GESTO DE AFETAÇÃO DO TIPO POLITICAMENTE CORRETO. CARREGA NA OUTRA MÃO UMA PASTINHA DO TIPO EXECUTIVO.

SILVESTRE — Oi Salazar, tudo bem? Eu estou indo para o escritório, mas pode falar. (pausa) Não, não, eu não recomendo fazer concessões desse tipo. Você sabe como é: as empresas pedem os melhores selecionados. Se a sua empresa entrar nessa, vai cair pelas tabelas. Só estou alertando. Candidatos têm aos montes, mas só alguns têm aquele algo mais que as empresas querem. Vou entregar o ouro para o bandido, mas se quer mudar o cenário aí na sua empresa, cheque minuciosamente a vida do candidato. Vai aprender a reconhecer os deslizes dos menos preparados. Eles vão sempre mostrar uma falha capital, que pode ir do comportamento inadequado à vazão emocional desequilibrada. É tão visível quanto água de Fernando de Noronha. Tudo que precisar ver do candidato, verá nessa estratégia. É infalível! Não, não precisa agradecer. Sempre que precisar de alguma consulta, estou á disposição. Até mais, meu amigo. E faça isso que não se arrependerá. Um abraço. (Desliga) LUZ GERAL. SILVESTRE VOLTA-SE À CENA NO PALCO COMO QUE CHEGANDO AO ESCRITÓRIO. OS DOIS JOVENS NÃO ESTÃO MAIS EM CENA. JÁ ARMANDO ESTÁ ASSEDIANDO CECÍLIA NA MESA DESTA. TEM O ROSTO ENFIADO NO PESCOÇO DELA COMO SE LHE FALASSE AO OUVIDO. MAS LOGO AO VER SILVESTRE, DISFARÇA.

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SILVESTRE — Bom ver que minha dupla preferida está se entendendo tão bem. O que aconteceu por aqui na minha ausência? ARMANDO — (Disfarçando mal) Hoje foi um dia interessante, não é Cecília? Apareceram muitos jovens para aquela vaga de estágio. Sabe, daquele mega escritório de advocacia... SILVESTRE — E...? ARMANDO — Fomos obrigados a dividir a seleção em duas etapas. Acabamos agora a pouco. SILVESTRE — Olha, eu tive um dia muito cheio hoje. Todo mundo me quer para uma coisa ou outra; não tem fim. E vocês: o que querem de mim? ARMANDO — O de sempre, não é Cecília? CECÍLIA — O que o Silvestre pode fazer agora é decidir quem chamar dos candidatos para a entrevista final. Melhor agora, que amanhã é outro dia. SILVESTRE — Amanhã é outro dia... Nem tinha me dado conta disso... Se você não me desperta, Cecília, tenho a sensação de que o tempo teria partido e me deixado por completo... Então, está bem: mostre-me as fichas que selecionaram. Como está o nível desses candidatos? ARMANDO — Eu acho que o ensino no país acabou. Essa rapaziada está jogada às traças. Queria eu poder mexer os pauzinhos como num jogo de palitos. Tem que aparecer alguém que saiba destrinchar esse nó cego. Eu queria tentar... SILVESTRE — Um nó inextricável não se destrincha, Armando. Messias e salvadores da pátria são para fanáticos e bitolados. A única realidade é essa mesma: o dinheiro vem na frente dos pensamentos reformadores e das malditas utopias. Nem cartório de protestos aceita esse tipo de coisa. CECÍLIA — Mas posso dizer que nesse emaranhado todo até que tem gente que escapa. Hoje entrevistei um jovem com bastante potencial. Família grande 10


e pobre, educação deficiente, adversidades uma em cima da outra... Mesmo assim, ele mostrou muita personalidade. Ele não tem o nosso perfil, mas eu o recomendaria pelo menos para mais uma entrevista. SILVESTRE — O perfil... Vocês sabem que sempre vou fazer questão disso; podemos abrandar um pouco e ouvir candidatos quando mostram qualidades. Se o rapaz mostrou talento, chame-o. Quero poder examinar com os meus próprios olhos. E você, Armando, garimpou alguém especial? ARMANDO —

Gostei de uma moça... Cíntia. Isso mesmo. Cíntia Melo.

Estudou nos melhores estabelecimentos de ensino, fala três línguas fluentemente e me pareceu muito animada para começar uma carreira de advogada. SILVESTRE — Belo perfil para a vaga. Mas vou abrir uma exceção e também entrevistar esse rapaz que a Cecília falou. Chamem os dois. Essa vaga já é da moça, mas fiquei penalizado com a história desse rapaz... Tem gente que se supera; sobem escadas com um sacrifício doido. E doído também. Muitos trotam e com as pernas bambas ficam no meio do caminho; outros estão entre os nascidos com as pernas quebradas e até ficarem direitos, a vida já acabou... E que não me venham dizer que levo meus negócios roçando rostinhos com mãos ásperas! Meu coração também é mole. Se não tem a freqüência, é por que não posso me dar a esse luxo. Mais alguma coisa hoje? (Sem esperar) Não, não, chega! Por hoje acabou! Vou-me embora. Minhas pernas, apesar de fortes, também precisam de descanso. Até amanhã, minha dupla preferida! OS DOIS ACENAM PARA ELE QUE SAI. ARMANDO, DE INESPERADO, CAI PARA CIMA DE CECÍLIA, VIRA BRUSCAMENTE O ROSTO DELA E A BEIJA. UM BEIJO RÁPIDO E ARDENTE. ELA CONSEGUE SE DESVENCILHAR E VAI PARA FRENTE DO PALCO. ARMANDO SURPREENDE-SE.

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ARMANDO — O que deu em você? Estamos sozinhos agora... CECÍLIA — Você é um escroque. Como teve coragem de falar aquilo perto de clientes? ARMANDO — Sabia que ia falar isso. Foi uma brincadeira. Eles nem perceberam nada. CECÍLIA — A questão não é essa. Foi a forma que fez. Parecia um comandante de navio. ARMANDO — Comandante de navio? (Ri, debochadamente) CECÍLIA — O João não é tão idiota quanto parece. Se ele ouve, vem aqui e mata nós dois. ARMANDO — (Se aproximando dela) Por que não se separa e fica só comigo? Daí que não precisa mais ficar com aquele idiota. CECÍLIA — Me larga. Não vou mais sair com você. ARMANDO — Tem certeza... ARMANDO PUXA CECÍLIA PARA SI DE MODO QUE ELA FICA PRESA À SUA FRENTE SEM TER COMO ESCAPAR.

CECÍLIA — Você está me machucando... ARMANDO — E se falar de novo que não vai mais sair comigo, vou fazer coisa pior. CECÍLIA — Crime passional. Não sabia que era tão estúpido, Armando. ARMANDO — Você tem de ser minha. Só minha, entendeu bem? CECÍLIA — Esqueça. Não vou me separar de João por sua causa.

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ARMANDO — A escolha é sua, portanto não reclame mais. E não diga mais bobagem. ELE BEIJA-A A FORÇA, MAS ELA RELUTA E ACERTA-LHE UM GOLPE BAIXO. SE DESVENCILHA DELE QUE FICA ALI AGACHADO GEMENDO. TEMPO. ELA VAI PARA A SUA MESA E COMEÇA A ARRUMÁ-LA. ACHA UMA FICHA E VAI PARA A MESA DE ARMANDO E PEGA O TELEFONE. ARMANDO NÃO GEME MAIS MAS FICA ALI SE REFAZENDO DO GOLPE.

CECÍLIA — (Ao telefone) Rodrigo Maia? Aqui é a Cecília Ramalho, da Agência de Empregos Silvestre Santos. Gostaria que viesse ter uma conversa com o dono de nossa empresa amanhã. Ele gostaria de entrevistá-lo. As nove e trinta, pode ser? Está ótimo então. Até amanhã. (Desliga) ARMANDO ESTÁ RECUPERADO E SE VOLTA PARA CECÍLIA.

ARMANDO — A próxima vez, eu... CECÍLIA — Você o quê, Armando? Acha que não posso me defender do seu assédio sexual? ARMANDO — Por que ficou tão escorregadia? Não te dou tudo que quer? CECÍLIA — Sufocamento. Para que preciso disto? Vamos ser bons amigos. Aliás, precisamos ser, pois trabalhamos juntos. Trate de ligar para a moça e pede para ela vir amanhã de manhã. Eu vou embora. Até mais, Armando. E me respeita, viu. Não quero mais te machucar... CECÍLIA PEGA A SUA BOLSA E VAI SAINDO, SEM, NO ENTANTO, SE ESQUECER DE OLHAR PARA ARMANDO COM INTENSIDADE. ARMANDO FICA SÓ. ANDA DEVAGAR COM A MÃO NO SACO E COM AS PERNAS ABERTAS VISIVELMENTE

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COM DOR. VAI ATÉ A SUA MESA E PUXA O TELEFONE COM RAIVA. OLHA COM ALTIVEZ PARA UMA FICHA E DIGITA COM FORÇA E RAPIDEZ AS TECLAS ENQUANTO VIRA-SE PARA O PALCO COM O TELEFONE NO OUVIDO E LOGO COMEÇAR A FALAR POR ELE.

ARMANDO — É a moça que queria uma vaga de estágio? Chegou o seu dia, meu bem. Amanhã, quero dizer. Venha cedo; oito e meia. Vai ser a entrevista final. E nem pense em faltar. O coitado daquele pobre diabo vai disputar a vaga com você... Ganhe dele! (De repente geme de dor; pausa) Não se impressione; é apenas uma dor crônica... Fique com a vaga, está bem. A Silvestre Santos vai recomendar você, tenha a certeza. Estamos te esperando cedo. (desliga) ARMANDO AJEITA O SACO E MANIFESTA DOR. A LUZ VAI SE APAGANDO. PENUMBRA TOTAL. PAUSA. A LUZ VAI SE ACENDENDO NUM CANTO DO PALCO ONDE TEMOS UM BAR. ESTÃO SENTADOS RELAXADOS EM BANQUETAS BEBENDO SILVESTRE E RAPOSO CINTRA, JOVEM DEPUTADO QUE ESTÁ COM SUA CAMISA SOCIAL ENTREABERTA.

SILVESTRE — Está embarcando numa barca furada, Raposo! Foi eleito tão jovem mas não para propor leis imaginárias como essa... RAPOSO — Não é uma lei imaginária. SILVESTRE — Não, claro que não... Auxílio-inclusão! Você não foi eleito para propor um absurdo desse tamanho. Isso não é projeto. O Estado não tem de onde tirar dinheiro para pagar tal despautério. Tem idéia de quantos miseráveis vagabundos têm por aí?

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RAPOSO — Não gosto do caminho que escolheu, tio. Sua crítica é discriminatória e não deixa dúvidas de seu preconceito. SILVESTRE — Acredita mesmo que possa salvar os miseráveis? Robin Hood cosmopolita? RAPOSO — Sua insensibilidade é de causar espanto. Não vê que se abriu um fosso social perigosíssimo? Não dá mais para adiar o problema. SILVESTRE — E nesse seu projeto de lei os ricos vão pagar a conta? Acha mesmo possível forçar uma classe já tão massacrada com tantos impostos com mais um de doer? RAPOSO — O sistema é cruel e desumano. Já temos um problemão para resolver que é o crime organizado. Se não fizermos nada, todo esse pessoal excluído vai se rebelar. Ninguém vai ter mais sossego. Teremos um estado de sítio contra o estado de direito... SILVESTRE — O que você quer dizer com isso? RAPOSO — Quero dizer que nada vai estar mais direito nesse país. A população viverá num ciclo perpétuo de estado de emergência, sem qualquer segurança. O poder do crime organizado é uma realidade e tende a piorar. A vida se tornará uma loteria. SILVESTRE — Mas isso não se acaba com uma lei! Você está tendo a pretensão com esse seu projeto de querer consertar um sistema que foi feito para organizar as classes... Precisamos do pobre e do rico do jeito que são. Cada um no seu lugar. Igualdade é a mais imbecil utopia que existe. Não pode estar falando sério. RAPOSO — O rico não ficará menos rico por subsidiar os menos favorecidos. SILVESTRE — Menos favorecidos... Quer torná-los mais favorecidos. Como se isso adiantasse alguma coisa. Berço é que conta. Não vai melhorar a vida desses pobres coitados com algumas benesses sociais...

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RAPOSO — Não se trata de benesse social, tio. Se conseguirmos fazer essa lei funcionar, haverá auxílio a todo jovem sem recursos desde a sua entrada na escola até a sua formação universitária. SILVESTRE — (Com ironia) Vamos ser descontados em folha ou em conta corrente? RAPOSO — Não acredita mesmo na mudança social, não é tio Silvestre? SILVESTRE — Não pode levar essa ingenuidade para a câmara dos deputados, Raposo! O que está constituído não se muda assim de uma hora para outra. RAPOSO — O nome disso é conservadorismo. Mas o que precisa ser conservado são as necessidades principais de convivência entre as pessoas. E qual é a primeira necessidade de convivência? Respeito. Precisamos acreditar de fato e de direito nos anseios de todas as pessoas, independentemente da classe social a qual pertencem. Com essa lei, vamos restabelecer a dignidade pelos anseios de todos. Eu disse: todos! SILVESTRE — Não acredito que eduquei um lunático. RAPOSO DÁ UM GOLE LONGO EM SUA BEBIDA OLHANDO FIXAMENTE PARA SILVESTRE. PREPARA-SE PARA LEVANTAR-SE.

RAPOSO — Já que não posso contar com o seu apoio melhor eu ir... SILVESTRE — Espere, Raposo. Nossas divergências estão apenas na esfera política... E tudo aquilo que criamos juntos, o que eu te ensinei... RAPOSO — Sou-lhe grato por isso, tio. O que fez por mim deve estar computado lá em cima... Mas aqui em baixo preciso de pessoas que estejam voltadas para o bem comum. Fui eleito para trabalhar em favor do povo menos favorecido. Sozinho, eu não sou nada.

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SILVESTRE — Não vou apoiar um projeto de lei absolutamente descabido! Se me convidou para um drinque pensando nisso, perdeu o seu tempo. RAPOSO — Esteja certo de que eu conseguirei, mesmo sem o seu apoio. Sei que tenho a desconfiança de muitos. Políticos nesse país recebem a pecha de corruptos, desonestos e aproveitadores. Mas o meu negócio é com quem precisa. E você, tio Silvestre, ainda verá que nunca estive falando tão sério em minha vida. RAPOSO SE LEVANTA, VESTE O PALETÓ E VAI SAINDO.

SILVESTRE — Vai, Robin-Hood! E não espere dividendos com esse disparate! Não chegará à presidência por isso. Só leve o seu saco de balas de açúcar aos pobres coitados! SILVESTRE RI JOCOSAMENTE E VIRA A SUA BEBIDA. PAUSA. A LUZ VAI SE APAGANDO SOBRE ELE. TEMPO. LUZ GERAL. ESCRITÓRIO DA SILVESTRE SANTOS. ESTÃO SENTADOS NAS CADEIRAS DE ESPERA RODRIGO E CÍNTIA. CECÍLIA E ARMANDO NÃO ESTÃO EM SUAS MESAS.

CÍNTIA — Não sei por que pedem para chegarmos tão cedo se nos deixam esperando... RODRIGO — De novo está mais de duas horas aqui? CÍNTIA — Metade disso. Acho que ainda não chegou ninguém. RODRIGO — Entrevista decisiva deve ser mais demorada. CÍNTIA — Não imaginava que disputaria a vaga justamente com você. RODRIGO — Olha, se eu não precisasse tanto te diria: leva que é sua, garota! 17


CÍNTIA — Você leva jeito para aquilo que minha mãe chama de cavalheiro. RODRIGO — Olha, não sou bom-moço; não se engane com essa minha carinha... (bate no rosto) Tem coisas aqui dentro que nem me atrevo a mexer... CÍNTIA — Os portões de Cabul. Fechados a sete chaves. Quem não tem coisas escondidas nessas cidadelas escuras... Mas você foi muito legal comigo. Entendeu que estava angustiada da outra vez, e agora... RODRIGO — Agora estamos disputando a mesma vaga. Essa é a realidade. E não é nada boazinha. Isso faz com que sejamos concorrentes. Não cabe nenhuma hipocrisia aqui. CÍNTIA — O que está querendo dizer? RODRIGO — Nada, nada. CÍNTIA — Não, por favor, fale. RODRIGO — Acho que é melhor não... CÍNTÍA — Não vai falar. Tudo bem então. PAUSA. SILÊNCIO CONSTRANGEDOR. RODRIGO DE REPENTE PEGA NA MÃO DELA E A OLHA OLHOS NOS OLHOS.

RODRIGO — Está bem, vou falar, mas quero que não fique com raiva de mim. Promete? CÍNTIA — Claro. Não tenho por que ficar com raiva de você. RODRIGO — Então ta. (Pausa) Sei que você estudou no Conceição do Rosário, se formou na federal e fala três línguas... CÍNTIA — Sim, e o que é que tem isso?

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RODRIGO — Você acha que isso não vale nada? (solta a mão dela e relaxa) CÍNTIA — Claro que vale, mas o que é que tem isso? RODRIGO — Preciso dizer mais? CÍNTIA — Ei! Por acaso você é um advogado-detetive? RODRIGO — Você vai descobrir já; eu não me engano. CÍNTIA — Nossa! Nunca pensei que fosse tão misterioso... NESTE MOMENTO ENTRA CECÍLIA QUE SE DIRIGE AOS DOIS JOVENS PARA CUMPRIMENTÁ-LOS.

CECÍLIA — Olá, bom dia. Espero que não estejam cansados de esperar. O diretor já está vindo para a entrevista. Como é que vocês estão, muito ansiosos? CÍNTIA — Um pouco. RODRIGO — Eu e ela vamos fazer a entrevista juntos? CECÍLIA — Não, o diretor geralmente faz as entrevistas separadamente. UM TELEFONE CELULAR COMEÇA A TOCAR DE FORA E VEM PARA DENTRO. SILVESTRE ENTRA COM SUA PASTA E JÁ COM O TELEFONE NO OUVIDO.

SILVESTRE — Sim. Oi Salazar. Tudo bem? Não, meu amigo. Não foi exatamente isso que eu disse. Falei para você investigar o passado do candidato. Assim é possível descobrir a sua procedência... Sabe o que é isso não é. Tem que ver o caldo de cultura que um candidato traz da sua procedência... Se isto é o mais importante para uma boa seleção? Eu diria... (com muita ênfase) In-dis-pen-sá-vel! Isso é tão óbvio quanto descobrir petróleo nas Arábias! Eis a receita oficial, meu amigo. Não titubeie. Teste e

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me conte um dia desses quando formos almoçar... Você me deve um almoço hein? De nada, meu amigo. Vamos combinar. Até logo. (desliga) SILVESTRE PÁRA NA MESA DE ARMANDO. DE REPENTE SE DÁ CONTA DA PRESENÇA DOS JOVENS QUE O AGUARDAM E OS CUMPRIMENTA.

SILVESTRE — Oi, bom dia! Desculpem o meu atraso, não foi por querer... (A Cecília) Cecília: o Armando me ligou e disse que tinha que dar uma chegada no hospital. Está sabendo de alguma coisa com ele? CECÍLIA — (Se fazendo de desentendida) Não, não... Que será que houve? CÍNTIA — Não sei se ajuda, mas quando ele me ligou ontem falando da entrevista, gemia bastante... SILVESTRE — Gemido pode ser um sinal de superação. Ou de que as juntas estragaram por falta de oleosidade. Vai saber... (Tom) Bem, mas vamos ao que interessa. A moça é a primeira? Sente-se aqui, minha jovem. Vamos ter um dedo de prosa. SILVESTRE SENTA-SE A MESA DE ARMANDO E CECÍLIA SENTA-SE A SUA. CÍNTIA SENTA-SE À FRENTE DE SILVESTRE. RODRIGO PERMANECE ONDE ESTÁ SENTADO.

CÍNTIA — Na primeira entrevista, falei bastante da minha vida para o senhor Armando... Não tenho experiência, nunca trabalhei. Só estudei. SILVESTRE — É você fala três línguas com fluência... CÍNTIA — Quatro com o português. SILVESTRE — Estou impressionado com os jovens de hoje. CÍNTIA — Por quê?

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SILVESTRE — Vocês têm muita facilidade em aprender. Principalmente as moças, que estudam mais que os rapazes. CÍNTIA — (Meio constrangida olhando para Rodrigo) Verdade? SILVESTRE — Não precisa ficar constrangida; o jovem sabe que é verdade o que eu disse não é, rapaz? RODRIGO — Posso dizer por mim. Acho que não fico atrás de ninguém em matéria de estudo... SILVESTRE — Sim, é uma bela posição, sem dúvida. Eu não poderia dizer o mesmo pois fui um aluno irregular. Cabulava aulas... Ia para os parques atrás de uma boa cena de amor... Olhava tudo de binóculo. Tintin por tintin! Sempre fui muito curioso... Hoje em dia ninguém faz mais isso. Também o amor alheio se passa na televisão! Não é, minha jovem? Cíntia Melo... Doutora Cíntia, não? Fale-me dos seus pais. O que eles faziam... CÍNTIA — Juro que nunca fiquei escondida vendo eles fazendo amor! SILVESTRE — (Ri,, constrangido) Oh! Me desculpe se minha pergunta pareceu capciosa. Não foi isso que quis perguntar. Quis dizer sobre sua educação. CÍNTIA — Normal. Como muita gente. Meu pai é engenheiro naval. Trabalha na Marinha. Quando eu era menor, ele viajava muito para o Rio de Janeiro, onde cuidava dos projetos da marinha mercante. Já minha mãe é pesquisadora. Trabalha em laboratório de pesquisa de combate ao câncer. Tenho dois irmãos mais velhos também. Na verdade, foram eles que sempre ajudaram na minha educação - por causa do trabalho dos meus pais... SILVESTRE — Pai engenheiro e mãe da área médica resultaram numa filha advogada. Muito interessante. CÍNTIA — O senhor nunca ouviu dizer que a lógica muitas vezes está onde não se tem lógica?

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SILVESTRE — Queria poder acreditar nisso... Mas a lógica que convence é aquela que mostra uma verdade incontestável no mundo. E sabe qual é? CÍNTIA — Tem tantas verdades... SILVESTRE — Não, essa vem acima de todas as outras. É a cabeça do gigante. Mostra a sua imensa estatura. CÍNTIA — Honestidade? SILVESTRE — Não, eu estou falando da cabeça do gigante. A maior verdade que comanda este mundo. CÍNTIA — Sinceramente não sei. SILVESTRE — Pense, minha jovem: a cabeça do gigante esteve em sua educação, na sua criação. Foi ela que fez com que se tornasse uma pessoa culta, instruída, bem-educada e acima de tudo bem-colocada no mundo... Então, descobriu? RODRIGO — (De inesperado) Ei. Eu estou entendendo qual é a jogada aqui... O senhor está querendo me humilhar não está? Fala sério. Não é isso? O senhor quer dizer que a educação patrocinada pelo máximo de dinheiro e o mínimo de esforço é essa tal cabeça do gigante. A verdade que comanda as demais... PAUSA. SURPRESA NO AR. CECÍLIA, CÍNTIA E SILVESTRE OLHAM-NO COM PERPLEXIDADE. NESTE MOMENTO, ENTRA ARMANDO

MANQUITOLANDO. A

SITUAÇÃO GANHA OUTRA COR COM SUA PRESENÇA PATÉTICA. SILVESTRE VOLTA-SE A ELE.

SILVESTRE — Armando! Que bom te ver. Parece meio viscoso, mas ainda está firme. ARMANDO — Sofri um pequeno acidente. Nada grave. 22


ARMANDO OLHA COM RISPIDEZ PARA CECÍLIA, QUE DISFARÇA.

SILVESTRE — Descanse então. Sente-se ao lado do jovem estagiário enquanto termino essa entrevista. ARMANDO VAI SENTAR-SE AO LADO DE RODRIGO, QUE NOVAMENTE SE MANIFESTA COM ENERGIA.

RODRIGO — A senhora ali nos disse que seríamos entrevistados em particular, mas não é isso que está acontecendo. ARMANDO — Ela não disse que a surpresa faz parte da seleção por motivo óbvio. RODRIGO — Então isso não é comum... SILVESTRE — Decidi fazer a entrevista desse modo hoje. Algum problema? É um fato extraordinário mas nada tão incomum assim. Uma exceção que estou fazendo porque queria experimentar um novo método de seleção. RODRIGO — Mas se for assim eu também posso responder às mesmas perguntas que tem feito a ela. SILVESTRE — Está um pouco afoito... RODRIGO — Não estou afoito. É que estava percebendo um fato estranho. ARMANDO — (De surpresa) Está julgando os nossos métodos? Está parecendo mais selecionador do que selecionado. SILVESTRE — Deixe isso, Armando. Você não está com dor? O jovem não me parece tão preparado emocionalmente para um cargo tão importante, é verdade... Intromete-se na entrevista da colega, faz observações inoportunas... Fique sabendo, meu jovem, que tudo é pesado numa seleção, ainda mais uma falta grave como essa.

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CÍNTIA — Desculpe, senhor Silvestre, mas talvez ele tenha um pouco de razão. Quem sabe fosse melhor fazer a entrevista individual. RODRIGO — Eu batalhei muito para estar aqui. Minha história é diferente da dela, mas nos formamos na mesma profissão. Não posso querer ter o mesmo histórico de ninguém, pois tenho o meu. E o valorizo tanto quanto qualquer outro. Mesmo que o outro aparente ser superior. SILVESTRE — Não existe aparência superior, meu jovem. Ou se é ou não se é alguma coisa... RODRIGO — Eu estou dizendo que me formei advogado assim como a moça. Estamos em igualdades de condições... ARMANDO — As condições quem determina somos nós, não se esqueça! CECÍLIA — Estou entendendo a posição do rapaz... Ele quer ser avaliado por sua formação, por sua qualificação, o que achamos muito justo. SILVESTRE — Esperem... A moça aqui é quem está sendo avaliada primeiramente. Não é, Cíntia? Diga-nos se realmente se sente preparada para ocupar o posto em um grande escritório de advocacia. CÍNTIA — Acho que sim... É difícil saber antes. Nunca trabalhei, como disse, não sei o que posso esperar. Mas estou preparada para o desafio. Foi por isso que estudei tanto. SILVESTRE — Muito bem então. Seus conhecimentos já foram testados e acho que é o suficiente. Vamos recomendá-la ao escritório. Já o rapaz... Bem, ele também é muito bom pelo que estou vendo em sua ficha. Mas só há uma vaga de estágio. Então terá que aguardar outra oportunidade. RODRIGO — (Levantando-se) Espera um pouco. O senhor não vai me entrevistar? Isso não é justo. ARMANDO — Posso te dar um conselho? Guarde o seu conceito de justiça para os futuros casos que advogar... 24


RODRIGO — Onde está o respeito e o critério aqui? Por que vai indicar a moça se nem ao menos conversou comigo? O que é que eu tenho de errado? CÍNTIA — Calma, Rodrigo. RODRIGO — Só por que eu falo as coisas? Não, eu acho que não é isso não. Desculpe, Cíntia, mas a coisa não é com você. É com o sistema esdrúxulo de só escolherem quem tem background. Eu ouvi o senhor ao telefone recomendando não sei a quem olhar a “procedência” do candidato. Deve ser assim que mantém as aparências de sua empresa, não é senhor Silvestre Santos? ARMANDO — Está querendo o que, rapaz? A vaga na marra? Saiba perder como um homem digno! RODRIGO — Eu sou digno, sim senhor! Lutei para me formar sim. Com ajuda de minha família que não tinha muitos recursos, mas me formei. E se acham que ser pobre e ter uma pele morena são sinais de nascer derrotado, estão completamente equivocados. SILVESTRE — Não sei o que está falando, meu jovem. Eu apenas decidi pela moça. Como poderia ter decidido por você. Só tenho uma opção, e ela me pareceu a melhor... Agora, acabou. Tenho outras coisas para fazer. A moça converse com a dona Cecília e acerte o que faltar com ela. (Preparando-se para retirar-se) RODRIGO — Vou reclamar esse serviço no órgão competente. Exijo ter um tratamento igual aos outros. ARMANDO — Faça o que acha melhor, mas agora se retire do nosso escritório. CÍNTIA — Esperem. (Pausa) Eu também não quero essa vaga... MOMENTO DE SURPRESA. SILVESTRE QUE ESTAVA SAINDO VOLTA-SE A CÍNTIA.

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ARMANDO — Não está no juízo perfeito, menina! CÍNTIA — Estou sim, senhor Armando. Vocês não foram justos com o meu colega. Não, colega, não. Concorrente. CECÍLIA — Pense direito, Cíntia. É a vaga que estava esperando... CÍNTIA — Vou nessa com você, Rodrigo. RODRIGO — Está certa disso? CÍNTIA — Totalmente. SILVESTRE — O mundo está ordenado de maneira correta. Os critérios estão estabelecidos mesmo antes de eu abrir essa firma. Querer mudá-los não é atitude inteligente de jovens formandos... RODRIGO — Mudar o que está errado deve começar por sua pessoa, senhor Santos. Nos disse que é curioso, mas não observa que as pessoas são iguais. Devia reavaliar seus critérios de seleção. Não importa essa procedência do candidato, mas sim quando ele consegue se superar e tem o desejo de conseguir trabalho para iniciar uma carreira. O que é dignidade para o senhor? SILVESTRE — (Ignorando) Cecília, chame novos candidatos para essa vaga. Esses dois querem ensinar o pai nosso ao vigário. RODRIGO — Não. Não é isso, senhor Santos. Eu ainda vou desmascará-lo! CÍNTIA — Nós faremos isso sim! ARMANDO — Fora daqui os dois! Ninguém vem a nossa empresa fazer ameaças. RODRIGO — A Ordem dos Advogados vai tomar conhecimento de como os estudantes de Direito estão reféns de lobisomens que escolhem o cardápio com antecedência para as suas refeições. Bravo, Cíntia. Você deu uma lição a eles. Uma grande lição de moral!

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RODRIGO BEIJA CÍNTIA E ELES SAEM ABRAÇADOS. FICAM SILVESTRE, ARMANDO E CECÍLIA. PAUSA. CLIMA DE ENTERRO.

ARMANDO — (A Cecília) Você como psicóloga precisa rever os seus conceitos de abordagem. Em hipótese nenhuma, este rapaz poderia ser indicado a participar dessa seleção. CECÍLIA — (Diagnosticando mentalmente) Não superou o complexo de inferioridade. Tem fixação obsessiva. ARMANDO — (Zangado) Eu não tenho porcaria de fixação nenhuma! CECÍLIA — A carapuça... Sempre ela com o seu estigma de negação... ARMANDO MOSTRA UM AR DE FÚRIA CONTRA CECÍLIA. PAUSA. SILVESTRE PARECE DISTANTE DA RUSGA ENTRE ELES.

SILVESTRE — (Dentro de outro fluxo de pensamento) Não cabe mais desafiar o establishment; é coisa ultrapassada... Atentem para o seguinte: jovens que ladram ao meio dia estão é famintos. Querem comer; então é melhor deixá-los correrem para as suas vasilhas de comida. Tudo passa. O fogo da juventude é o primeiro a se consumir. Esqueçamos tudo isso. Os latidos são iguais a vagidos de criança recém-nascida. Só causam desespero, mas não têm importância alguma. O AMBIENTE FICA EM SUSPENSO. ENTRA MÚSICA (BLACK DOG, LED ZEPPELIN) E SOBE NUM CRESCENDO. PAUSA. A LUZ CAI LENTAMENTE ATÉ FICAR TUDO ESCURO. A MÚSICA VAI DIMINUINDO ATÉ CESSAR. TEMPO. LUZ. RAPOSO FALA NUMA ESPÉCIE DE TRIBUNA COMO A QUE SE UTILIZA NO PLENÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. RAPOSO ESTÁ DE PÉ JUNTO A UM MICROFONE FALA A UMA PLATÉIA DE POUCOS DEPUTADOS SENTADOS.

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RAPOSO — Chegar a esta casa com um propósito de fazer alguma benfeitoria social sempre foi meu projeto. E agora que cheguei até aqui, coloquei claramente aos senhores uma matéria como ponto central: meu projeto de lei pretende proporcionar aos menos favorecidos condições efetivas para um lugar ao sol. Porque o sol nasce é para todos. E alguma coisa deu errada não exatamente na natureza, mas na forma desordenada de querer abocanhar esse sol como propriedade particular. O sol, senhores... Grande parte do seu brilho foi tomado. Resta a nós legislar para aqueles que vivem numa semipenumbra, e isto não é retórica. Não tenho podido pôr minha cabeça no travesseiro com tranqüilidade, primeiro como um homem do povo; agora como um homem público. E acredito que nem os senhores... POLÍTICO 1 — Salvaguarda para os pobres... É uma história velha, deputado. Esse seu projeto assegura condições para a camada dos menos favorecidos, mas a troco de que? A sociedade civil tem o pé atrás com projetos que visam tirar um pouco mais de seu quinhão. RAPOSO — Não haverá justiça sem o esforço daqueles que podem pagar um preço. POLÍTICO 2 — Ah! A energia do ideal da juventude! Deputado Cintra: projeto de lei dessa natureza é perigoso para esta casa. Abre um precedente à panfletaria desordenada em nome da democracia aqui em nossa porta. RAPOSO — Não entendi a sua colocação, deputado. POLÍTICO 2 — O que acha que vai acontecer? O proletariado se sentirá tomado de ardor pela causa e não dará sossego trazendo uma coleção de reivindicações, e esta casa será pressionada pelas instituições democráticas a permanecer reticente nessas questões... POLÍTICO 1 — É difícil para um jovem idealista como o senhor, deputado Raposo, ver o todo sem sombreá-lo com posições inflamadas, mas o capital tem exercido ao longo do tempo sua réstia de soberania. Digo réstia por

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modéstia, mas acho que o senhor entende o que quero rimar, não é deputado? RAPOSO — Capital, proletariado... Isso já não são mais termos usuais dentro da modernidade, senhores deputados... Não devemos temer, porque o jogo democrático está a nosso favor. POLÍTICO 1 — Ao contrário, deputado. Você não está vendo exatamente o pior; que se trata de um jogo maquiavélico... POLÍTICO 2 — A insídia vai estar por perto do senhor. Cuidado! Um projeto popular atiça a mente de contrários que não suportariam sua reputação. Isso é só a ponta do iceberg. RAPOSO — Não estou pensando em mim, vocês não entenderam. Não me interessa o que advirá com isso, senão ver o menos favorecido mais enquadrado no sistema em que vivemos... Se não houver um levante, o levante de uma mão estou querendo dizer, uma mão que se estenda a essa gente, um coração que compreenda as injustiças pelas quais essa classe passa, o que nos resta? Não fui eleito para assistir a essa discriminação econômica que não esconde nem para debaixo do tapete a vergonha que devíamos sentir por deixarmos isso acontecer... Compreendam, senhores deputados. Façam coro comigo e aprovem esse projeto. Ele é a mais esperançosa esperança que nasce nesse plenário. POLÍTICO 2 — E você já pensou nas brechas que esse projeto precisa ter, deputado Cintra? RAPOSO — Brechas como... POLÍTICO 2 — Brechas como defender a regulamentação no caso de uma implantação. RAPOSO — Mas para isso ele precisa ser aprovado aqui e depois no senado. Ao judiciário caberá se organizar na defesa desse projeto. E então, o que me dizem? 29


POLÍTICO 1 — Você está tratando esse seu projeto como remédio social, deputado. Um erro crasso. Precisamos discutir políticas que diminuam o fosso social em que vivemos neste momento histórico, mas não enfiar goela abaixo um projeto de lei impopular, porque não vá pensando que não soçobrará diante da elite financista. Com quem pensa que está lidando? RAPOSO — Com gente, deputado. Antes de terem recursos, são gente. E se não quiserem colaborar, correm o risco de extinção. Ou vamos continuar subestimando o poder organizado do crime, que é o patrocinador maior de toda essa vexatória desigualdade social? POLÍTICO 2 — Precisamos de mais tempo para discutir a matéria... Tanta pauta em discussão e seu projeto pode ainda conseguir o consenso necessário. RAPOSO — Muito bem então, senhores. Nem passa pela minha cabeça ceder às dificuldades aqui nesse plenário. Não desistirei enquanto não perceber uma disposição comum nesta casa em torno da sustentabilidade política desse projeto. Que bom seria ouvir a nação agradecida... A câmara dos deputados mostrará um naipe de “ás” que desconheciam... Acredito que faremos alguma coisa de real valor pela sociedade. E o reconhecimento disto será o nosso maior saldo. Não existe imagem mais valiosa do que o reconhecimento popular. ENTRA

O

SOM

DE

UM

RUMOR

DE

GENTE

FALANDO

COISAS

DESENCONTRADAS ATÉ QUE SEJA POSSÍVEL DISCERNIR ENTRE

OS

RUMORES, DESAFOROS E PROTESTOS FURIOSOS. O SOM VAI TOMANDO CONTA DO PLENÁRIO. A LUZ VAI SE APAGANDO. TEMPO. FOCO DE LUZ SE ACENDE SOBRE RAPOSO QUE AGORA ESTÁ DESALINHADO E COM OS CABELOS DESPENTEADOS

COMO SE

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FOSSE VITIMA DE UM

QUASE


LINCHAMENTO. O RUMOR CONTINUA FORTE E DIMINUE ATÉ FICAR EM BG. RAPOSO VAI PARA A FRENTE DO PALCO MEIO CAMBALEANTE.

RAPOSO — Parem! Parem! Parem com isso! Vocês ficaram loucos! Eu sou apenas um deputado bem-intencionado. Parem com essa agressão! Parem, pelo amor de Deus. O BARULHO AUMENTA E RAPOSO SE ESCONDE COBRINDO OS SEUS OUVIDOS COM OS SEUS BRAÇOS AGITADOS EM BUSCA DE PROTEÇÃO. PAUSA. ELE SE SOCA E SE DÁ PONTAPÉS COMO SE FOSSEM DESFERIDOS POR TERCEIROS, E, AOS POUCOS, ELE VAI FICANDO MINADO ATÉ CAIR NO CHÃO. O RUMOR VAI CEDENDO E ELE TENTA SE LEVANTAR. INSTANTES. ELE MIRA A PLATÉIA.

RAPOSO — Sobrevivo... Sim, eu sobrevivo apesar de todos os contrários. A política que eu prego... A política que eu venero é aquela... É aquela que ninguém mais quer se acostumar... A verdade pode doer... Pode querer mostrar que precisamos fazer nossos intestinos funcionarem direito... Chega de guardar dejetos, de estimular a podridão da diferença social... Vocês não estão compreendendo o teor... Eliminar a desigualdade é mister. É mister de uma sociedade que se orgulha de querer crescer sadiamente. Estão compreendendo o teor desse projeto? Ele não é meu; é de todos vocês! É de todos nós! Pelo o amor de Deus que paira sobre todos! Creiam como um dia acreditaram que o homem era filho do Homem com H maiúsculo... RAPOSO SE COMOVE E LIMPA AS LÁGRIMAS. SILÊNCIO MOMENTÂNEO. DE REPENTE, O RUMOR DISPARA NOVAMENTE EM FORMA DE ENXOVALHAÇÕES E VAIAS. RAPOSO VOLTA A DEFENDER-SE DAS OFENSAS COBRINDO O

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ROSTO E O CORPO. PAUSA. O BARULHO DIMINUI QUANDO ENTRAM RODRIGO E CÍNTIA COM UMA FAIXA FAVORÁVEL AO DEPUTADO RAPOSO: “ESTAMOS COM VOCÊ, DEPUTADO RAPOSO CIONTRA”. (O “O” DA PALAVRA CONTRA ESTÁ DESENHADO SOBRE O “I” DA PALAVRA CINTRA, SOBRENOME DO DEPUTADO). OS JOVENS PARAM NA FRENTE DELE, COM ARES DE TRIUNFO. ESTÃO VESTIDOS BEM DIFERENTES DO QUE NO COMEÇO, COM JEANS RASGADOS NAS PERNAS, CAMISETAS, FAIXAS NA TESTA E CARAS PINTADAS.

RODRIGO — (Com autoridade) Resista, deputado! Não esmoreça que estamos com você nessa luta! CÍNTIA — Sua coragem é que pode fazer a diferença. Os contrários não têm força para derrubar o que a gente construir aqui, agora. Somos jovens como você, deputado. RAPOSO — (Patético) Vocês... Vocês estão comigo de verdade? RODRIGO — Diga para ele, Mulher Aranha. Que prédio comprido que escalamos até chegarmos aqui. CÍNTIA — Deputado, o senhor acreditaria se disséssemos que pegamos o monstro a unha? RAPOSO

(Convencendo-se)

Então

vocês

são

os

super-heróis

metropolitanos... Que bom! Como é reconfortante saber que estão aqui comigo; já não tinha mais esperança... Vocês não imaginam como é difícil arrancar as máscaras dessa gigante... A cabeça emproada, o rosto maquiado, baby liss nos cabelos... Sabem de quem estou falando, pois são inteligentes. Ela é uma fortaleza, a força que não arreda o pé de sua autoridade que nunca pode ser contestada... Quando eu falo dela, falo de uma super-heroína, a esposa do Tarzan dessa selva de pedra que é essa cidade.

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RODRIGO — Não importa, deputado; basta colocá-la então na boca do dragão. RAPOSO — Ser super-herói é fácil, mas como fazer isso sem ter os plenos poderes de um? CÍNTIA — Somos três hoje, deputado, amanhã seremos uma legião, não é assim que falavam aqueles que tinham fé? RAPOSO — Me perdoem... Tem vezes que ela me falta e sem perceber mergulho na dúvida, no próprio ventre do meu contrário. Ainda vamos mostrar suas entranhas, sua pele verdadeira de lobo em vez de cordeiro do bem. RODRIGO — Agora sei de quem está falando, deputado Cintra. Não pense que podemos ser vítimas dela, de jeito algum. Precisamos mostrar que temos tanta força quanto, não só para resistir a ela, mas para colocá-la em seu devido lugar. CÍNTIA — Eu conheço essa de quem vocês falam tanto? RODRIGO — Conhece mais ainda do que eu e ele juntos, creio. CÍNTIA — Então me diga logo! Para que me deixar curiosa desse jeito? RODRIGO — Não vale a pena falar seu nome, pois assim vamos dar mais força a quem já tem tanta à custa do povo. RAPOSO — Exatamente. A nossa luta é em favor do menos favorecido, daquele que se tornou invisível aos olhos dela, uma rainha cruel... CÍNTIA — Já sei quem ela é! Essa rainha tem um trono invisível também e está acima do bem e do mal, não é verdade? RAPOSO — Ela é desleal, usa armas letais, de extermínio em massa! Ruim, detestável! Estamos diante de uma tirana infiel à causa.

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RODRIGO — Vamos dar nomes aos bois, deputado! Não somos tão intelectuais assim para sermos tragados por uma retórica vazia. O senhor tem lido jornal? Não, não pense que estou com esses maltrapilhos da notícia não! Até uma investigação final, todos são suspeitos de acabar com os nossos sonhos de decência... Não falo como vítima, que seria um ato de covardia fazê-lo, mas sim como alguém que deseja mudar esse país como o senhor. CÍNTIA — Verdade verdadeira, deputado. Imagine que estivemos, eu e esse bravo bolchevique tupiniquim aqui (Passa a mão maternalmente no rosto de Rodrigo), participando de uma seleção de emprego numa empresa odiosa chamada Silvestre Santos. O senhor conhece? Não faz idéia da política de estrebaria que eles praticam lá. Me senti repudiada com a discriminação. Ou somos humanos ou então seremos totalmente desumanos... Se existe dignidade, ela passou a ser meu nome. Não quero os louros da vitória, nem que me façam rainha da minha colméia. Vamos logo dar nomes a todos esses bois que estão levando nossos sonhos para o matadouro. RAPOSO — Vocês dois estão salvando o meu mandato. Valeu a pena ser eleito. Que certeza absoluta que tenho agora! Não sei de onde caíram, mas eu sei que são de carne e osso como eu. RAPOSO TOCA NO CASAL APALPANDO-OS PARA CERTIFICAR QUE NÃO ESTÁ TENDO UMA MIRAGEM.

RODRIGO — Não deixem que acabem com o seu orgulho, deputado. Não queira baixar a guarda ou perdoar porque eles não sabem o que fazem... CÍNTIA — Ânimo, deputado! O mais difícil é acreditar na própria força; os contrários tiramos de letra. RAPOSO — Vocês estão corretos. Mais um pouco, eu seria derrubado por essa turba de reacionários. Precisamos nos unir. E o primeiro passo é mostrar as vísceras de quem age porcamente na sociedade. A começar por essa

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arapuca onde foram procurar trabalho. Silvestre Santos não é? Eu conheço esse cidadão... RODRIGO E CÍNTIA (JUNTOS) — Conhece?! RAPOSO — (Num abatimento repentino) Infelizmente devo muito a ele ao que eu sou hoje... CÍNTIA — Então ele é seu... RAPOSO — (Corta) Não, ele não é meu pai. Podem denunciá-lo! Eu apóio incondicionalmente. RODRIGO — (Num arroubo ardente) Abaixo a indecência da discriminação! (Tom) O que acha que podemos fazer contra essa empresa, deputado? RAPOSO — Movam uma ação de perdas e danos morais. E materiais também, porque não fosse a política de exclusão ali praticada, vocês estariam empregados. RODRIGO — Essa moça é uma exceção. Renunciou à vaga por pudor. Pudor aos princípios da cidadania. CÍNTIA — Fiz o que o meu coração mandou. Nada de mais. RODRIGO — Nem de menos. Fez tudo aquilo que precisamos fazer no dia-adia: defender o certo e atacar o erro. RAPOSO — Vocês dois são exemplos de juventude e ideal. Serão meus assessores nessa batalha contra a desigualdade. Com esse jeitão de desbravadores da justiça, não tenho dúvidas que estudaram Direito e estão prontos para mostrarem nos tribunais da decência o quanto carregam do anseio dessa época. Estava caído, apedrejado, achincalhado, mortificado, mas agora, a coragem com que assumiram minha causa que é a causa do povo brasileiro, ou a que deve ser, me reergueu novamente. Vamos acionar essa empresa enfadonha. Esses disseminadores da miséria vão ter o que merecem!

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RODRIGO E CÍNTIA — (JUNTOS) Bravo! Bravo! RAPOSO SAI NA FRENTE E OS DOIS ATRÁS DELE COM A FAIXA ESTENDIDA. ENTRA MARCHA MUSICAL. PAUSA. LUZ VAI SE APAGANDO. TEMPO. LUZ SE ACENDE NO PALCO. SILVESTRE ESTÁ SENTADO NA MESA DE ARMANDO. ELE FALA AO TELEFONE.

SILVESTRE — Não pode ter coração mole, Salazar. Que muitos têm currículo bom é uma verdade relativa. Aliás, relativo é este mundo desde o big bang, que expandiu o tempo-espaço. Depois vieram povoados, guetos, civilizações... Andrômeda pode estar em rota de colisão eterna com a Via Láctea, mas isso é relatividade. No mundo dos negócios, a coisa não tem isso. Vencem os que tiveram preparo educacional e social. Você tem dúvida? Então olhe para você mesmo. Se não fosse sua criação numa grande fazenda rural do Uruguai teria tido a destreza que tem hoje? Quem é educado como se deve traz a maior virtude do vencedor: a capacidade psicológica de continuar o sucesso de sua família. Foi acostumado desde cedo para isso. Não se impressione com aqueles que vencem a custa de muito esforço. Esses são uma tremenda minoria... Não. Não vai querer olhar o mandatário da república! Ele é só mais um entre milhões de desafortunados que provou do mel e se melecou todo. E lambuzou tudo que meteu a mão também! É ou não é? Diga a verdade, Salazar. Ah! Deixa para lá, você é estrangeiro... NESTE INSTANTE, ENTRA CECÍLIA E ENTREGA UM DOCUMENTO A SILVESTRE, QUE LÊ RAPIDAMENTE E MUDA A FISIONOMIA. AINDA NO TELEFONE, FALA AO AMIGO.

SILVESTRE — (Com preocupação) Salazar, o mundo daqui me chama. Fique firme e não se impressione. Preciso desligar. Até outra.

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SILVESTRE DESLIGA E PEGA O DOCUMENTO E O RELÊ. OLHA PARA CECÍLIA, COM DESCONFIANÇA.

CECÍLIA — Por enquanto foi o que consegui apurar. SILVESTRE — Sim, é um documento do orfanato onde fiquei, estou vendo. Mas e daí? O que faço com isso? CECÍLIA — A dona do orfanato não sabe de detalhes... Ou disse que não sabe por algum motivo que desconhecemos. O que ela me deu foi esse documento depois de eu insistir bastante. SILVESTRE — Minha vida inteira querendo saber dos meus pais... E agora um pedaço de papel oficializando que não tive pais. Isto é tão absurdo e incongruente quanto só pensar nessa hipótese. CECÍLIA — É lógico que teve pais, Silvestre. O problema está em saber onde eles foram parar... SILVESTRE — Devíamos pagar por incompetência. Um órgão não pode se contentar em achar uma criança abandonada na rua e acabou! Assim como a polícia consegue desvendar um crime sem a presença de criminosos e testemunhas, assim devia ser também nesses casos... O descaso público fica até pior do que os pais irresponsáveis que abandonam ou até matam criaturas indefesas. Uma lei dessa aprovada no congresso acabaria com o anonimato de gente desumanizada para viver em grupos. E ainda vem aquele idiota do Raposo com uma lei inversa e caolha... Quer justamente ajudar essa gente sem eira nem beira. CECÍLIA — Entendo o que está sentindo. SILVESTRE — Não, acho que não entende. Você não imagina o que é não saber quem são seus pais legítimos, de onde veio, e por quê. Por que me deixaram numa rua erma num cesto perdido como um Moisés qualquer...

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CECÍLIA — Tantos fatores podem ter contribuído para que isso acontecesse, mas o mais provável é a tal da doença crônica do país: a miséria. SILVESTRE — Você acredita que meus pais verdadeiros eram miseráveis, Cecília? Isto é inconcebível! Será que não tinham mais nenhum parente para recorrer? Não acredito que eram retirantes do nordeste, porque eu sou branco. Não está vendo? Bran-co. E lá dá muito cafuso, índio com negro... Eu não. Minha pele é clara e reluzente! E se foi coisa de Deus também não acredito. Ele não faria uma barbaridade dessas. Deixar que fosse concebido para justamente eu nascer numa situação de penúria... Por que faria isso? Não sou hoje um homem especial, conhecedor da alma humana como você, Cecília? Apesar de não ter estudado psicologia. Preciso me conformar que irei passar a vida inteira sem saber o motivo desse descalabro. Não se faz uma coisa dessas, a culpa não é dele lá em cima não... É de um casal irresponsável que desistiu de enfrentar a realidade ao ver que fizeram bobagem... (levanta-se) CECÍLIA — Deixei meu cartão no orfanato. Insisti para que procurassem alguma pista. Vamos aguardar alguma novidade. Fé, Silvestre! (Tom) Agora, preciso ver a outra seleção. (Vai saindo) SILVESTRE VAI PARA FRENTE DO PALCO. LUZ APAGA-SE NO PALCO E UM FOCO DE LUZ ACENDE-SE SOBRE ELE. PAUSA. MÚSICA “TRAUMEREI 2 ”, DE SCHUBERT ENTRA. SILVESTRE RETIRA DO BOLSO UMA MONTAGEM PEQUENA DE “LEGO” E OLHA COM UM SAUDOSISMO MELANCÓLICO.

SILVESTRE — Toda a infância brincando... Devo tudo, tudo, mas tudo mesmo a quem me adotou... Se não fossem esses bloquinhos que fizeram a minha luxúria infantil uma construção maravilhosa, o que seria de mim? Um pobre diabo abandonado à margem de uma esquina por miseráveis e putrefatos carniceiros travestidos de pobres... (Cospe de nojo) Malditos! Eu não posso nem pensar em vocês, com seus andrajos e rostos sujos! Não me convence dizer que não tinham como me criar. Vagabundos! Por que conceber então?

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Deviam saber que numa deitada o mundo fica mais inchado de miseráveis... Sem-vergonhas! Eu... Eu sou um filho que escapou do demônio da pobreza... Acham que foi sorte? Não foi, não. Havia o dedo de um anjo bom que cuidou para que eu caísse nos braços de uma família decente. Eu tenho tanta gratidão e ao mesmo tempo tanta dor nos refolhos de minha alma por carregar esse fardo... Queria apenas poder olhar na sua cara, mãe, nos seus olhos, pai... Mas vocês me renegaram! Malditos! Eu também os renego. Não existirá perdão pelo que fizeram. Serão recusados até no fogo do inferno. Estão amaldiçoados para a eternidade... ENTRA PONTUAÇÃO MUSICAL MARCANDO A FIRMEZA DA DECLARAÇÃO DE SILVESTRE. ELE GUARDA A PEÇA DE LEGO NO BOLSO E SAI DECIDIDO. A LUZ VAI CAINDO ATÉ ESCURIDÃO COMPLETA. LUZ. PASSAGEM DE TEMPO. ESTÃO NO ESCRITÓRIO DA SILVESTRE SANTOS CECÍLIA E ARMANDO EM SUAS RESPECTIVAS MESAS. CECÍLIA ESTÁ INTROSPECTIVA E MERGULHADA NO TRABALHO. ARMANDO, AO CONTRÁRIO, ESTÁ AGUARDANDO UMA BRECHA PARA ATACAR.

ARMANDO — Você vai ficar aí muito tempo nessa pose de desentendida? CECÍLIA — (Pára e volta-se para ele) O que você quer de mim? Será que preciso ser ainda mais contundente com você, Armando? ARMANDO — Aquele papo seu não foi sério, eu sei... Quer fazer charme comigo, talvez queira mais pimenta em nossa relação. Não basta o que já fizemos e estamos ainda por fazer? CECÍLIA — Não seja presunçoso, querido! O que tínhamos é coisa que não volta mais. Passado, entendeu. Vamos ser colegas. De trabalho. Estamos aqui para isso.

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DE INESPERADO, ARMANDO DÁ UM PULO DA CADEIRA E VAI PARA CIMA DE CECÍLIA. CHEGA BEM PERTO DE SEU PESCOÇO, NA MEDIDA EM QUE PRATICAMENTE A DEIXA IMOBILIZADA.

ARMANDO — Não vou jogar esse seu joguinho traiçoeiro. CECÍLIA — Você está me machucando... ARMANDO — Eu não sei viver sem você... CECÍLIA — (Ri zombando) Ah! Um rinoceronte declarando amor para uma cabra tonta... Pensa o quê, Armando? Que eu posso me enganar com as suas palavras de garanhão arrependido? ARMANDO — Você anda muito nervosa. Que tal uma férias. Poderíamos... CECÍLIA — (Corta) Não poderíamos não, Armando. Acabou. Chega. Convença-se de uma vez. ARMANDO TENTA ROUBAR UM BEIJO DE CECÍLIA, MAS ELA VIRA O ROSTO. NESTE MOMENTO, ENTRA SILVESTRE TRAZENDO UM PAPEL NA MÃO E UM AR DE PREOCUPAÇÃO NA ALMA.

SILVESTRE — Eles nos processaram! Eles nos processaram! ELE PÁRA PRÓXIMO DE CECÍLIA E ARMANDO, QUE SE AFASTA DE CECÍLIA E VOLTA-SE PARA SILVESTRE.

ARMANDO — Não vejo novidade nisso, Silvestre. Pensava que nunca ia acontecer? SILVESTRE — De que lado você está afinal, Armando? É uma coisa muito grave ter uma ação nas costas.

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ARMANDO — Você mesmo diz: depende de quem vem... SILVESTRE — Ah, que importa! Isso daqui é amolação. Chamem aqueles dois de novo. Digam a eles que eu quero negociar uma trégua. CECÍLIA — De quem está falando, Silvestre? SILVESTRE — Daquele casal que esteve aqui para a vaga do escritório de advocacia. Aliás, quem é mesmo que mandaram para a vaga? Ah, não importa. Chamem eles. O meu poder de destruição eu não controlo mais... Não pensem que podem mexer assim comigo. Eu sou honesto! Trabalhos com valores estritamente corretos e justos. Um casal de advogados moleques é café pequeno para mim. Vamos! O que estão esperando? Chamem aqueles dois! E depois me avisem. SILVESTRE SAI. ARMANDO E CECÍLIA FICAM EM SUSPENSO.

CECÍLIA — Não podemos deixar que isso aconteça. ARMANDO — Você se impressiona fácil. CECÍLIA — Eu nunca vi Silvestre tão alterado. ARMANDO — Você é que devia ir para o paredão. Convenceu bem de que o rapaz tinha potencial, e agora? Viu só o que ele fez? Moveu uma ação contra a empresa. CECÍLIA — Mas a mocinha que VOCÊ escolheu foi junto. A culpa não é só minha. ARMANDO — Ela deixou-se influenciar por esse mulatinho que pensa que é gente... CECÍLIA — Não vem não, Armando. Preconceito de cor já está superado faz tempo.

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ARMANDO — Quem disse que isso é preconceito? É uma verdade que não é só minha. Está comprovado. CECÍLIA — Comprovado que a raça branca é superior... Sei. Esse papo é sempre igual. E a outra branquinha, o que diz dela? ARMANDO — Está colocando em xeque a política da empresa da qual você se sustenta. CECILIA — Que é que tem isso a ver com a política da empresa? ARMANDO — Pense um pouco. Você é a psicóloga. CECÍLIA — Vou dizer ao rapaz que Silvestre quer pedir desculpas... ARMANDO — Não seja imbecil! Vai perder duas vezes: o rapaz vai gozar de você e depois o Silvestre a põe na rua. CECÍLIA — Você tem idéia melhor por acaso? ARMANDO — Não é necessário idéia. Apenas convidar para uma reunião aqui na empresa com Silvestre. Aqui eles saberão... CECÍLIA — Filme de suspense... Só se forem muito idiotas para virem aqui. ARMANDO — Pensem o que quiserem, não importa. CECÍLIA — Ficou muito parecido com o chefe, viu Armando? ARMANDO — É mesmo? É por isso que não me quer mais? ARMANDO NOVAMENTE SE DEBANDA PARA O LADO DELA, ENLAÇANDO A SUA CINTURA.

CECÍLIA — Me larga. ARMANDO — Senão você me chuta o saco de novo. Isso só me excita ainda mais.

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CECÍLIA — Não estou brincando... ARMANDO — Nem eu. Vamos nos acertar. Eu quero você e você também. CECÍLIA — Maldita mania de colocar suas palavras na minha boca. ARMANDO — Conheço você bem demais e não me engano. CECÍLIA — Me solta! Senão eu vou escandalizar. ARMANDO — Uma pantera nervosa. Nada é tão gostosamente perigoso... ELE A BEIJA A FORÇA. PAUSA. ELA NÃO CONSEGUE REAGIR AGORA E PARECE RENDER-SE AO BEIJO.

ARMANDO — Eu sabia que me queria... ARMANDO VOLTA A BEIJÁ-LA. A LUZ VAI SE APAGANDO ATÉ A ESCURIDÃO. DE REPENTE OUVE-SE UM GRITO LANCINANTE DE ARMANDO QUE PASSA A ECOAR NO PALCO. PAUSA. SILÊNCIO. LUZ. PASSAGEM DE TEMPO. ESCRITÓRIO. ARMANDO ESTÁ SENTADO EM SUA MESA E TEM UM ESPARADRAPO NO LÁBIO INFERIOR QUE VAI ATÉ A PONTA DO QUEIXO. ENTRA MÚSICA. O TELEFONE COMEÇA A TOCAR MAS ELE NÃO ATENDE. ENTRA SILVESTRE E MÚSICA PÁRA. SILVESTRE ATENDE AO TELEFONE E FICA OLHANDO PARA A EXPRESSÃO PATÉTICA DE ARMANDO.

SILVESTRE — (Ao telefone) Silvestre Santos, pois não. Quem gostaria de falar com ele? Aurora... (Esperando uma reação de Armando) Você é candidata, Aurora? Ele saiu e não demora. Retorne a ligação mais tarde. Obrigado. (Desliga; a Armando) Que bicho te mordeu, Armando?

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ARMANDO APONTA PARA A MESA DE CECÍLIA. TENTA FALAR ALGO MAS PÁRA POR CAUSA DA DOR QUE SENTE NA BOCA.

SILVESTRE — Vou ter de tomar providências aqui. Anda se machucando muito, Armando. Vou te mandar para a nossa filial do Rio. Gostaria de ir? E o casalzinho de advogados, cadê? Nem dormi direito esta noite por causa deles... CECÍLIA ENTRA. VEM DE BOLSA E MUITO BEM MAQUIADA E SE DIRIGE A SUA MESA.

CECÍLIA — Pelo visto cheguei atrasada para reunião. Bom dia, Silvestre. (Olhando para Armando) Dormiu bem, Armando? ARMANDO OLHA-A FURIOSO E LEVANTA-SE PARA AVANÇAR SOBRE ELA. NESTE MOMENTO, SILVESTRE SE INTERPÕE ENTRE OS DOIS.

SILVESTRE — Quer dizer que estou perdendo a minha dupla favorita para sentimentos de competição interna? Amores pela conquista não são de muito valor já que depende da sorte... Vocês dois guerreando é como se abanassem moscas. Bobagem. Nenhum vai crescer mais na empresa! (Irônico) Gostava de ver a dupla quando mostrava sinergia... Era a minha dupla favorita. Mas agora estão perdendo o cartaz que tinham comigo. É o fim, ou o recomeço? Decidam. Ou eu é que vou ter que decidir sobre vocês. PAUSA. O CLIMA FICA EM SUSPENSO. CECÍLIA E ARMANDO FICAM SE OLHANDO COMO SE AVALIANDO.

SILVESTRE — Esta bem, está bem. Chega de se estender nessa conversa. Eu prometo dar uma colher de chá pra vocês ainda... Mas agora a preocupação é outra. Conseguiram falar com aqueles dois vituperáveis? Meu

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cóccix está ardendo. (Bota a mão nele) Coçando, melhor dizendo... Não posso ficar agitado. O mundo anda conspirando contra mim. CECÍLIA — O rapaz disse que vinha mas acompanhado. SILVESTRE — Com a moça, claro. Eles estão testando os meus limites. Nem eu sabia quais eram... UMA CAMPAINHA MUSICADA DO TIPO UTILIZADA NAS PORTAS DE ALGUNS LUGARES TOCA SUAVEMENTE COM A ENTRADA EM CENA DE RODRIGO, CÍNTIA E DEPUTADO RAPOSO CINTRA. PAUSA. O CLIMA ALI CRESCE EM SUSPENSE.

SILVESTRE — (Sobressaltado) Que faz aqui, Raposo? RAPOSO — Talvez tenha errado em não avisar, mas eu vim acompanhar seus dois clientes. SILVESTRE — Clientes? Eles não são meus clientes. Quer dizer que aquela tua idéia de lei estapafúrdia levou para longe a tua razão a ponto de se atrever a me desafiar junto com esses meninos mal-acostumados? RODRIGO — Ei, senhor Santos. Não está fazendo o papel de anfitrião. Afinal, não o foi o senhor mesmo que nos convidou a comparecer para uma reparação? SILVESTRE — (Tentando refletir) Reparação... Reparação... Estou em processo de reparação... RODRIGO — É bom saber que não é pelo fato de termos aceitado este convite que vamos ser vítima do seu cinismo. CÍNTIA — Pensamos que o senhor estivesse disposto a nos pedir desculpas...

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SILVESTRE — Desculpas, eu... (Gargalha) Não ouvi direito... (Sem parar de rir) Eu mereço desculpas... RAPOSO SE APROXIMA DE RODRIGO E CÍNTIA PARA FALAR ALGUMA COISA EM VOZ BAIXA. CECÍLIA APROXIMA-SE DE ARMANDO PARA FALAR ALGUMA COISA. ELE A OLHA

COM DESCONFIANÇA, MAS NÃO REAGE COM

HOSTILIDADE. SILVESTRE SÓ AGORA PÁRA DE RIR. VOLTA-SE A RAPOSO E AOS DOIS JOVENS.

SILVESTRE — Me digam: qual é o plano da trinca. Eu já tenho uma dupla, mas se desejam aumentar a família Silvestre Santos... RAPOSO — Estamos esperando... SILVESTRE — O quê? RAPOSO — Ora, saber o motivo do convite... Se não se trata de fazer uma reparação ou nenhuma espécie de acordo, então para quê os chamou? SILVESTRE — Você não pode estar falando sério, Raposo. Achava mesmo que uma ação por danos morais tem poder para abalar a Silvestre Santos? Não há nada mais ridículo. Tua carreira política vai ser um desastre tão ruidoso que será manchete cômica dos jornais do mundo inteiro. Vou guardar a notícia bomba estampada nas primeiras páginas: “Projeto de lei batizado de ‘Unicef Brasileira’, de jovem deputado matusquela, sofre derrota histórica na câmara dos deputados”. RODRIGO — O projeto do deputado Cintra é a coisa mais importante dos últimos tempos em nosso país. Patético é essa sua firma alimentar posições preconceituosas contra pessoas que não tiveram uma educação que o senhor julga desejável. Não deveria levar um ponto de vista tão pequeno para gerir a sua empresa, sob pena de tropeçar na própria vaidade.

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SILVESTRE — A julgar por sua atitude liberal, fraldinha, imagino que apóie a construção do paraíso na terra com a misericórdia dos ricos... CÍNTIA — Uma coisa, senhor: eu sou moça rica, mas nem por isto imagino que só esse detalhe seja tão importante nesses assuntos. O que faz uma pessoa é o que ela é e não o que ela tem. ARMANDO — (De inesperado, mostrando ênfase e arrancando o esparadrapo da boca) Maravilhoso pensamento! Bem de acordo com os esotéricos modos de viver da atualidade. Basta entoar um mantra ao acordar, ler o futuro na borra do café, acreditar na proteção dos anjos no decorrer do dia, além, é claro, de pedir a benção ao papa quando ele chegar ao Brasil... E pronto. Tudo se resolve. (Tom) Aqui é firma, mocinha! Realidade. Dura. Tem concreto embaixo dos pés. Ta vendo? (Dá umas batidas com o sapato no chão) RODRIGO— Não podemos concordar com as crenças e valores dessa empresa. Fomos vítimas dela. Fazem propaganda enganosa e aqui, em surdina, escolhem seus preferidos. Crime contra a boa-fé popular. Contra nossa boa-fé. SILVESTRE — Eu poderia discutir esse assunto com você de várias maneiras, mas não vale a pena. RAPOSO — Seu problema e de grande parte da burocracia das instituições é apoiar inconscientemente um modelo maniqueísta, um modelo social retrógrado que julga e separa ricos e pobres, bons e ruins, dentro do mesmo espaço. RODRIGO — Isso mesmo. Nem no inferno existe uma coisa dessas. RAPOSO — O que você e tantos outros têm feito é acreditar que é possível conviver com as aparências, que é normal a desigualdade socioeconômica quando na verdade não há poder nenhum constituído, seja de estado seja social seja institucional, que detenha sabedoria para ver que o mal está na separação entre dois mundos, como se um fosse mocinho, e o outro, bandido.

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E a ratoeira está montada. Isso só faz irritar o ranço e o ódio que se assanha na população segregada. Exclusão em série. É crime contra a humanidade como qualquer outro que privilegie a minoria em prejuízo da maioria. SILVESTRE — Qual é cara desse monstro que está pintando hein, Raposo? Não vem me dizer que tem uma nota de dólar na língua e uma bandeira vermelha e azul com estrelinhas brancas na lapela, porque isso é mais velho ainda do que as minhas crenças. RODRIGO — Esse monstro é o capitalismo, sim senhor! Ele se desenvolveu mas não levou em conta as diferenças entre as classes. ARMANDO — Oh! Um novo Che Guevara! O bonde que você pegou quebrou e parou em mil novecentos e batatinha. CECÍLIA — Olha, se mal me intrometo, quero lembrar que aqui é uma empresa do século vinte e um e que ela segue as mesmas normas de outras do gênero. Nada mais. O mundo certamente não mudará a partir daqui. Isto eu garanto. CÍNTIA — Mas a mudança precisa começar em algum lugar, correto? E um bom lugar é onde se pratica a iniqüidade. RODRIGO — Sim, porque nós conhecemos as “normas” desta empresa e posso dizer que elas não são moeda corrente nas outras. Como se alguém que tivesse tido a melhor educação fosse o mais legitimado para uma vaga. Isto não existe em lugar algum. SILVESTRE — Ledo engano, meu jovem. É um erro ver a culpa onde ela não mora. A nossa política está de acordo com o que achamos justo. O mundo é que acha que devemos ter a organização da sociedade e dela é que formulamos os critérios lógicos para nos guiar em tudo. A nossa empresa segue nessa linha e para frente. Nossos critérios não são subjetivos como parecem, pois os melhores aparecem mais do que outros, querendo nós ou não. Não estamos inventando nada diferente aqui.

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RAPOSO — Seguem a política de que o melhor é o menos arriscado, não é. Selecionam para os seus clientes aqueles que hipoteticamente são melhores que aqueles que não possuem o status social que julgam condição sine qua non para competirem em pé de igualdade. Isso é esdrúxulo tanto quanto a solução final do terceiro Reich. ARMANDO — Mas eu duvido que o Juiz seja dessa opinião. Vocês deviam é retirar essa ação e dar por encerrado essa quixotice. CÍNTIA — Senhor Armando, muito me indigna lembrar de sua entrevista. Foi tão explícito em querer saber como foi a minha educação formal familiar... Só agora eu vejo o sentido que isso faz. SILVESTRE — É um imbróglio. Uma mixórdia. Isso daqui é uma bobagem de marca maior. Eu é que estou arrependido de ter chamado vocês... RODRIGO — Serviu pelo menos para que soubesse que nossa posição é bastante diferente da sua. RAPOSO — Que mais tem a nos dizer, tio. SILVESTRE — Nada mais. Esqueça-me. De uma vez para sempre. Não sou mais seu tio. Você traiu a minha confiança. E além do mais anda tomado de idéias roubadas da história... A megalomania utópica. Uma história que fracassou por completo. Mas se deseja mesmo ser Robin Hood, vá em frente. Só não me procure quando virar tapete onde todo mundo irá pisar. RAPOSO — É uma pena que veja o mundo por uma lente que não reflita a verdade. Você, seus funcionários e grande parte das pessoas esqueceram que existe vida em todo mundo que respira esse ar e não só para onde estão dirigidos os seus olhos. Nos veremos na audiência. Até logo. RAPOSO PROCURA LEVAR PARA FORA RODRIGO E CÍNTIA.

ARMANDO — (A Platéia) Já vão tarde.

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RODRIGO — (Saindo) A sua verdade vai virar pedra, senhor Santos... CÍNTIA — Um túmulo. Será enterrada com honras. Mas nós não estaremos presentes no enterro. ELES SAEM. FICAM SILVESTRE, ARMANDO E CECÍLIA.

CECÍLIA — Eu gostaria de dizer umas coisas... ARMANDO — Não há mais nada a ser dito, e sim a ser feito. ELE OLHA PARA SILVESTRE, QUE FOI PARA FRENTE DA PLATÉIA; ESTÁ DISTANTE OLHANDO O FUNDO DA PLATÉIA.

SILVESTRE — Venham até aqui e olhem... ARMANDO E CECÍLIA SE APROXIMAM E FICAM LADO A LADO COM ELE. INSTANTES.

SILVESTRE — Estão vendo por esta janela o mundo lá fora? A correria, a busca pelo sustento, o formigueiro que nunca pára de trabalhar... Estamos ajudando a construir tudo isso faz tempo. Somos corretos e honestos como uma formiga. CECÍLIA — Como sabe que a formiga é honesta? ARMANDO — Ora! Pelo espírito de carregadora. Não está vendo? SILVESTRE — E sabem o que conduzem as formigas? CECÍLIA — A fome. As necessidades materiais. ARMANDO — O lema: unidas venceremos! A união faz a força! Povo unido jamais será vencido!

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SILVESTRE — Nada disso. As formigas são guiadas porque alguém pensa que elas devem fazer isso instintivamente. ARMANDO — E quem é esse? SILVESTRE — Não sabem? A cabeça. A cabeça do gigante. Tudo foi articulado por essa mente gigantesca. O comando está em boas mãos, por isso não há poder algum para mudar o que foi estabelecido. ARMANDO — Não sabia que acreditava em Deus. SILVESTRE — Isto não é crença, é fato. Veja a mão dominante sobre o formigueiro. Quem tem juízo obedece; quem não tem é esmagado por ela. Vira papel almaço. CECÍLIA — Estou entendendo a lógica da coisa... SILVESTRE — Exatamente, Cecília. Você pegou o espírito da coisa. Não devemos temer nenhum contratempo com esse caso dos meninos ofendidos e seu super-herói dos pobres. Vamos continuar trabalhando. CECÍLIA — Como boas formiguinhas... SILVESTRE — Exatamente. Então ao trabalho. Entendam que o que foi estabelecido é para nunca parar de continuar. NESTE MOMENTO, ENTRA MÚSICA DE CAVALARIA COM SOM AGUDO DE CORNETA. CECÍLIA E ARMANDO VOLTAM-SE PARA AS SUAS RESPECTIVAS MESAS. SILVESTRE MANTÉM-SE NA FRENTE DO PALCO COM UM AR GRAVE. TEMPO. AS LUZES VÃO SE APAGANDO NO PALCO. PAUSA. O CELULAR DE SILVESTRE TOCA FORTE. LUZ SOBRE SILVESTRE QUE ATENDE.

SILVESTRE — Alô. Salazar, meu velho! Que bom ouvi-lo de novo! (pausa) O quê? Moveram uma ação contra vocês? Não, eu não tenho nada a ver com

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isso! Por que está me xingando? (Alterando-se) Seu mal agradecido! Eu só quis te ajudar. Amigo da onça o cacete! Claro que eu não quis te ferrar, seu bosta! Filho de mãe solteira é você! Eu tenho família! Tive educação! Sou um homem bem formado! Conheço esse negócio como a palma de minha mão! Ouviu bem? Pazzo! (desliga; pausa; volta-se ao público, com amargura) Não podemos mais ser sinceros. Muito menos benevolentes. Neste mundo isto não tem valor. No passado remoto talvez. Amigos viram inimigos de uma hora para outra. Não entendem a verdade pela qual agimos, nem a leal motivação com a qual nos guiamos... Querem as coisas de mão beijada, o bolo pronto, nada fora dos conformes. Tudo previsível, esperado, desejado. Não sabem que a borra do café esconde um delicioso sabor... As verdades aparecem quando menos se esperam. Não sei se perdi por esperar. Mas também não ganhei. Mundo maniqueísta! Uma coisa ou outra. Boa ou má. Tanto faz. É sempre uma coisa ou outra. Me largaram na rua, mas depois fui adotado por uma família escrupulosa. Meus pensamentos voltam a todo o momento para trás querendo capturar o passado. Como ponteiros de um relógio ensandecido. Suporto. Resisto. Como um rei posto ou deposto. Dá na mesma. Tanto é que estou aqui. No trono. Com um olho aqui e outro acolá. É para isto que me prepararam. Para a visão dupla. Realidade e vesguice. Ser o melhor e fingir que não vejo as patifarias do mundo. Eu não sou um patife! Eu não sou um visionário! Eu não sou o que pintam de mim. (para si próprio) O senhor ouviu? Escutou bem? Esqueça-se. Esqueça-se. Não existe mais aquele menino abandonado... ENTRA MÚSICA. CLIMA. TEMPO. AOS POUCOS, A LUZ VAI SE APAGANDO SOBRE ELE. ESCURIDÃO. PAUSA. LUZ. RAPOSO VOLTA A FALAR NA TRIBUNA DA CÂMARA AOS DEPUTADOS. ESTÁ DE PÉ JUNTO A UM MICROFONE E FALA ENTUSIASTICAMENTE.

RAPOSO — Não temo os reveses, senhores deputados. Pois eles são que nem ondas do mar: vão e vêm até virar espuma... Ninguém em sã consciência

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pode tomá-los a sério. Aquele episódio foi uma efeméride típica de nossa mentalidade pouco aberta. Nova luz se espera, mas, quando bem surge, fecham-se as janelas... Quero dizer que saí fortalecido daquele episódio. E estou aqui para relançar a matéria do meu projeto de lei. POLÍTICO 1 — É difícil crer que insista com isso, deputado Cintra. O seu imposto de inclusão social está dando náuseas na sociedade. RAPOSO — Um momento, deputado. A sociedade não pode ser representada apenas por grupos do contra-senso comum. POLÍTICO 2 — A classe média não é paradoxal, deputado. Está reagindo contra aquilo que pode ainda mais comprometer seu tão minguado orçamento. RAPOSO — A classe média não será instada a ficar mais pobre com esse imposto. Eu garanto. POLÍTICO 2 — Como convencer alguém, deputado, se nós, como o senhor mesmo diz, não temos mais argumentos de convencimento? RAPOSO — Depois do choque, vem a reflexão. A sociedade brasileira vai ver que se um imposto novo é um mal para o seu orçamento, será um benefício para futuro dela propriamente. Quem quer ter filhos e netos que passem a maior parte do tempo vítimas de bandidos? Segurança começa com educação a toda gente. Do mais rico ao mais pobre. Toda a opinião pública fala a mesma coisa. E eu estou sendo o porta-voz dela aqui nessa tribuna. Volto a repetir: não existe sociedade pela metade. Estamos divididos, senhores... O nosso país rompeu o dique da desigualdade social. É a chance histórica para essa casa. Podemos realizar a maior benfeitoria política e social a nação. Só precisamos de coragem. Antipatia é uma coisa que só acontece no início de um relacionamento. Nós não iremos desapontar. A conjuntura está aí, o momento quem faz somos nós. A sociedade saberá reconhecer o quanto estamos comprometidos com a melhoria do povo, e, consequentemente, do país.

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POLÍTICO 1 — Tenho medo que essa confiança se transforme em decepção, deputado Cintra. Não que queira jogar pimenta nessa comida, mas o povo tem memória curta. Não guarda nada que fazemos por ele... E fazemos muito diga-se de passagem! POLÍTICO 2 — Permita-me um aparte de lembrança, mas vivemos numa democracia. Esse seu projeto, deputado Raposo Cintra, teria que ser longamente discutido entre o empresariado antes de nos decidirmos em votar uma lei tão perigosa. Pior ainda, na calada da noite. RAPOSO — Não existe coação, senhores deputados... A democracia não sairá abalada porque não estamos afrontando a liberdade. A liberdade é um direito da nação e a justiça social um dever. São partes complementares da democracia! Os bandidos não respeitam as leis e sabem por quê? Porque se sentem injustiçados. Que adianta a liberdade se não podem ser alguém? Chegamos ao paradoxal, senhores deputados. Ninguém é verdadeiramente livre quando não se é. PAUSA. UM PESADO SILÊNCIO SE INTEGRA AO CLIMA DO MOMENTO. ENTRA INTRODUÇÃO OU CABEÇA DO PROGRAMA DE RÁDIO “VOZ DO BRASIL”. LUZ CAI EM SEMIPENUMBRA. PAUSA.

VOZ OFF (Radiofônica) — Alo,alo, ouvintes... O presidente esteve hoje no palácio da Alvorada falando a seus ministros... A educação foi a pauta. O setor deve receber investimento recorde neste governo. Será o setor que mais receberá recursos de toda a república do Brasil em todos os tempos, disse o presidente. Por outro lado, os outros setores já começaram a sair em protesto contra a falta de recursos. O presidente, contudo, disse que nem está preocupado com isso. Vai fazer o que prometeu em sua campanha eleitoral. LUZ. A VOZ É SUSPENSA.

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POLÍTICO 2 — Eu não disse? O nosso presidente está atento à pobreza em nosso país. Está seguindo à risca a cartilha da convenção do nosso partido. POLÍTICO 1 — E o seu partido, deputado Cintra? Por que não o apóia neste seu projeto de lei? RAPOSO — Ele me apóia, claro. Claro que me apóia. POLÍTICO 1 — Pode ser, mas a bancada do seu partido é tão pequena que não faz muita diferença. RAPOSO — Isto não faz parte de um jogo partidário, senhores. Não adianta só o governo investir e deixar à míngua outros setores. É por isso que insisto que a sociedade precisa participar também... Um projeto aprovado nesta casa chegará ao Senado fortalecido. Faremos coligações, pressões, articulações... Já posso ver esse projeto de lei recebendo votação recorde. POLÍTICO 2 — Eu não vou apoiar esse seu projeto, deputado. Sinto dizer isso, mas ele tem a cara da pior perturbação que um país democrático poderia ter. É a minha decisão final. RAPOSO — O senhor não sabe o que está falando, me desculpe. POLÍTICO 1 — Deputado Cintra: o senhor deve ser um advogado sofredor. Humanismo não pode ser imposto. Eu também não pretendo apoiar esse seu projeto de lei. RAPOSO — Eu já esperava que resistissem até o fim de suas forças, senhores... Mas eu não vou desistir. Isto eu prometo. POLÍTICO 2 — Esta casa não ficará à mercê de suas idéias equivocadas, pelo menos quanto a mim. POLÍTICO 1 — Disse bem o deputado. Essa casa precisa ser arejada pelos ventos da temperança republicana. O Brasil é uma ex-colônia que não perdeu o viço. É uma república errante, mas feliz. É dona de seus próprios erros; e

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anda com seus próprios pés. O caminho é caminho do centro. E é este caminho que o nosso partido está seguindo. RAPOSO — O povo, senhores... Pensem no povo. POLÍTICO 1 — É nele exatamente que estamos pensando. Não vamos acabar com a desigualdade taxando quem enriquece o país com o seu suor. RAPOSO — O país só será rico de fato, senhor deputado, quando tirarmos a espada que atravessa nossa garganta. POLÍTICO 2 — A sua obsessão é doentia, deputado Cintra! Melhor seria que pensasse numa batalha sem sangue, sem espada. Não creia que seria pacífico se um projeto de lei como o seu fosse aprovado. Quer um conselho? Desarticule-se. Rompa consigo mesmo para evitar mais desgaste pessoal. RAPOSO — Não farei isso, senhor deputado. Estou inteiro e sou íntegro. Pensa que eu conseguiria dormir se abortasse meu projeto? Não. Não colocaria meu sono nunca mais em dia. Estaria dando um tiro pela culatra. Mas agora vou sair dessa tribuna ainda mais fortalecido. Acreditem. Vou ganhar essa batalha. E sem sangue. Nenhuma gota pingará. Nada é mais instigante que sentir a força que eu trago junto do peito. A pátria, senhores deputados. A pátria merece que eu esteja convicto de que é possível restabelecer o direito da justiça. Viva a justiça social! NESTE MOMENTO, A LUZ CAI EM PENUMBRA. APONTAMENTO MUSICAL DÁ O TOM DO MOMENTO. TEMPO. LUZ. PASSAGEM DE TEMPO. AUDIÊNCIA DE FÓRUM. JUIZ ATRÁS DE UMA MESA, RODRIGO E CÍNTIA JUNTO DE RAPOSO SENTADOS DE UM LADO E SILVESTRE, ARMANDO E CECÍLIA DE OUTRO. A AUDIÊNCIA ESTÁ NO INÍCIO.

JUIZ — Esta ação foi ajuizada contra a empresa Silvestre Santos Consultoria Especializada em Seleção de Recursos Humanos... Ufa! (Pausa; a Silvestre)

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Doutor: o senhor como advogado e proprietário dessa empresa me diga uma coisa: esta firma é especializada especialmente no que hein? Recursos humanos é um conceito tão amplo quanto aquilo que dizem sobre o éter na física... Se puder explicar, me fará um favor. SILVESTRE — (levantando-se) Com prazer, meritíssimo. Recursos humanos é como um saco de papai noel que só tem validade quando se abre e divide seus presentes com os outros. Quando colocamos na razão social de nossa firma esta expressão, pretendíamos enfatizar que nossa prioridade seria atuar conjuntamente com os nossos clientes que encontravam dificuldades para localizar os melhores talentos para as suas fileiras... JUIZ — Dificuldades de que tipo, doutor. SILVESTRE — (Pensa, algo atormentado) Dificuldades... De todo o tipo, meritíssimo. Há empresas que nos chegam donas de vagas muito especializadas e que só aceitam profissionais muito bem preparados. JUIZ — (Repete num lapso de memória) Muito bem preparados... (Tom) Bem, aqui então temos o outro lado da moeda: reclamam contra a forma discriminatória do réu para com os candidatos que não se enquadram em um modelo considerado socialmente promissor dentro de nossa escala social... (A Raposo) É essa interpretação mesmo que devo seguir, doutor?... RAPOSO — (Levantando-se) Perdão, meritíssimo. Não estou advogando para ninguém, mas como deputado, cidadão e bacharel em Direito, sinto-me plenamente disposto a orientar esses jovens atacados em sua honra por essa empresa que não está em paz com sua consciência. SILVESTRE — Protesto, meritíssimo. Este cidadão é deputado em exercício e não tem registro para advogar. Não sei o que faz aqui. RAPOSO — Meritíssimo, eu não estou advogando ninguém. É a primeira causa de meus colegas e eu estou aqui apenas como orientador jurídico.

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JUIZ — (Repete num lapso de memória) Orientador jurídico... (Tom) Bem, então se manifestem os advogados do executor, ora! RODRIGO E CÍNTIA LEVANTAM-SE JUNTOS.

RODRIGO — Meritíssimo. Eu e minha colega somos advogados recémformados e vamos advogar em causa própria. Acho que assim o nosso testemunho ganha muito maior relevância não só como os executores da ação, mas, principalmente, por sermos vítimas de preconceito. JUIZ — Bem, então vamos aos fatos. (Voltando-se a Silvestre) Consta aqui no processo que a sua empresa seleciona o pessoal de forma discriminatória... SILVESTRE — (Exaltado) Absurdo, Meritíssimo. Uma grande afronta essa acusação, pois a nossa empresa está há anos trabalhando sério e jamais se colocou assim de forma tão leviana. RODRIGO — Não foi isso que sentimos na entrevista, doutor. A minha colega pode corroborar que fomos discriminados na empresa por motivo torpe. CÍNTIA — Exatamente, Meritíssimo. Fomos a uma seleção para uma vaga de estágio em um escritório de advocacia quando então o senhor Silvestre Santos e seus comandados adotaram conosco uma política segregacionista. ARMANDO — (Levantando-se) Protesto! Eu não vim aqui para ser ofendido! JUIZ — Queira conter-se, senhor! Senão vou ter que dispensá-lo e todas as demais testemunhas do caso... SILÊNCIO. SILVESTRE CONVERSA COM ARMANDO E CECÍLIA. POR SEU LADO, RODRIGO E CÍNTIA CONVERSAM COM RAPOSO. PAUSA.

RAPOSO — Permita-me, Meritíssimo. Mas eu tenho um testemunho importante a dar...

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JUIZ — O senhor deputado jura falar a verdade e somente a verdade em nome da justiça de nosso Brasil sabendo que se não o fizer sofrerá as penas da lei? RAPOSO — Juro. JUIZ — Então fale. RAPOSO — Bem, Meritíssimo, preciso começar do começo... JUIZ — (repete num lapso de consciência) Começar do começo... RAPOSO — Verdade que eu devo muito a essa pessoa, pois o que sou hoje é graças à educação que recebi dela, mas... SILVESTRE — Protesto, Meritíssimo. Dissertação íntima não tem relevância para esse julgamento, ainda mais supondo que se trata de apelo emocional com intenção de tornar esse caso um caso pessoal... Por que será hein? JUIZ — Muito bem, mas se o testemunho tiver relevância com o caso, o senhor tem a palavra. RAPOSO — Obrigado, Meritíssimo. Então, como estava dizendo, eu devo muito a essa pessoa que está aí do outro lado... SILÊNCIO

REPENTINO.

RAPOSO

OLHA

PARA

SILVESTRE,

QUE

FICA

VISIVELMENTE ABESPINHADO.

JUIZ — A quem está se referindo mais exatamente, senhor... SILVESTRE — Meritíssimo. Por favor! Esse cidadão está tentando forjar uma situação favorável. Algo que não condiz com o pleito. JUIZ — (Ignora Silvestre; duro a Raposo) Diga logo o que tem a dizer sobre quem quer que seja e que tenha total relevância com o caso.

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RAPOSO — (Direto) Fui criado por esse senhor, Meritíssimo. Doutor Silvestre Santos. Foi ele quem me educou no lugar de meu pai e me deu tudo até que me tornasse alguém. Respeito-o muito, mas também o conheço bastante. Posso falar sobre sua índole sem qualquer erro. SILVESTRE — Protesto, Meritíssimo! Eu não aceito que se fale de minha pessoalidade. O que está em jogo aqui é outra coisa. JUIZ — Que outra coisa? Sua empresa e sua pessoa já não são mais inseparáveis neste julgamento, doutor. Os ingredientes se misturaram e temos um bolo. Um bolo de frutas secas. SILVESTRE — (repete que nem o juiz, num lapso de memória) Um bolo de frutas secas... CÍNTIA

Me

desculpe,

Meritíssimo.

Mas

preconceito

sócio-racial

compreende-se nos crimes resultantes de discriminação de raça, etnia, religião ou procedência nacional. Lei número 7716, de 05 de janeiro de 1989. RODRIGO — Artigo quarto dessa mesma lei: negar ou obstar emprego em empresa privada. É o que essa empresa tem feito, mesmo que de forma indireta. CECÍLIA LEVANTA A MÃO PARA FALAR. JUIZ OLHA PARA ELA COM GRAVIDADE.

JUIZ — (A Cecília) A senhora quem é? Trabalha na empresa também? CECÍLIA — Sim, Meritíssimo. Sou psicóloga. Conheço bem os meandros da atuação de nossa empresa nesse segmento. Fui eu quem selecionou o jovem advogado (Apontando para Rodrigo). Se a nossa prática fosse discriminatória, ele não teria sido chamado para a entrevista final. SILVESTRE — Exatamente, Meritíssimo. Essa é a prova inconteste. JUIZ — O que tem a dizer os executores... 60


RODRIGO — Isso é uma farsa, Meritíssimo! Fui chamado sim à entrevista final, mas foi notória a distinção que fizeram entre mim e a candidata (Aponta para Cíntia). Posso garantir que não estávamos disputando a mesma vaga em igualdade de condições. JUIZ — (A Cíntia) A senhora confirma? CÍNTIA — Sim, Meritíssimo. Eu tive o privilégio de ser bem nascida e de ter estudado num dos melhores colégios da cidade. Ganhei a vaga do meu colega aqui sem fazer qualquer esforço. JUIZ — (Repete como habitual) Sem fazer qualquer esforço... RAPOSO — (Levantando-se) Meritíssimo: permita-me, por favor. INSTANTES. JUIZ OLHA PARA RAPOSO TENTANDO MANTER A GRAVIDADE, PORÉM COM CERTA IRONIA.

JUIZ — O seu testemunho só serve para fazer fumaça ou tem alguma coisa com o que chamuscar? RAPOSO — Meritíssimo. Sem sombra de dúvida. Trago verdadeira bomba aqui comigo. MANIFESTAÇÕES DE ESPANTO NO AMBIENTE.

JUIZ — (Num tom ambíguo) Devo pedir evacuação do recinto? RAPOSO — Não será preciso, Meritíssimo. Ninguém vai sentir mais do que a própria verdade. SILVESTRE — Meritíssimo, esse sujeito está procurando confundir esse julgamento com frases de efeito. RODRIGO — (a Silvestre) O nobre deputado tem um testemunho a dar. Nada há para confundir, mas sim para deslindar algumas chaves desse processo.

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CÍNTIA — Verdade, Meritíssimo. Uma pessoa que conhece a fundo o caráter do senhor Silvestre Santos não pode ser desprezada neste julgamento. SILVESTRE — Protesto, Meritíssimo! Minha pessoa não pode ser assim devastada por alguém a quem dei de comer e que agora se volta covardemente contra mim em público. O que pretendemos descobrir com isso? Minha humanidade? Minhas falhas? Meu temperamento de pai? Sou igual a todo mundo, não mereço ter destaque, nem fogueira. Inquisição nunca mais. Tenho a minha honra ilibada desde quando comecei a trabalhar, e isso já tem tempo. Estudei direito e ofereci a ele a mesma condição. Eu sei o que eu sou. Posso ter mais defeitos que qualidades. Mas sempre soube ver o futuro com olhos de profeta. Talvez como Nostradamus eu ajoelhasse aos pés de um andarilho e dissesse: Sua Santidade... E mais tarde confirmasse que ele de fato virou Papa. Que importa? Hoje estou aqui sofrendo as aberrações desse processo equivocado. Sempre dei oportunidades aos mais jovens, e não foi somente para esse filho que hoje é um deputado federal. O criei por amor a um irmão de criação, que não podia fazê-lo. Fiz isso. Tenho esse sentimento de pai embora fosse seu tio. E continuarei sendo o que sou. Sei do meu futuro. Tanto quanto jamais soube do meu passado... SILVESTRE PÁRA DE FALAR PORQUE SE ENGASGA COMOVIDO COM UMA LEMBRANÇA.

RAPOSO

MANTÉM

UMA

POSTURA

GRAVE

E

AMEAÇA

MANIFESTAR-SE, MAS O JUIZ ACENA PARA ELE NÃO FAZÊ-LO. SILVESTRE CONTINUA COM A PALAVRA.

SILVESTRE — Meu passado de criança que não tive... Um hiato que ficou na minha lembrança. Não parece que nasci, mas sim que caí de algum ninho cheio empurrado pela asa de uma mãe desnaturada. Fui um enjeitado sim. É isso que esse moço quer falar. Quer dizer que pelo fato de eu ter sido abandonado por minha família, fiquei complexado. (num repente, grita) Não! Em absoluto! Eu recebi uma criação exemplar por parte dos meus pais adotivos. E conheci um irmão que misturou seu sangue ao meu. Ao contrário 62


dos desgraçados que me abandonaram, minha família foi presente em minha vida e me deu de tudo que precisei... Sendo assim, por que faria distinção entre classes sociais diferentes se eu pude sentir na pele as duas situações? Qual resposta que esperam de mim? A de um rancoroso que odeia famílias pobres que abandonam seus filhos quando eles têm fome e querem mamar? Ou a de um sádico vingativo e obcecado por maltratar jovens pobres e desprovidos de uma educação ideal? Não vou dar essa chance para sua resposta, filho ingrato. (Breve Pausa) Meritíssimo: minha dignidade se exauriu. Sinto muito. Como advogado inclusive. Peço que minha participação nesse processo seja considerada terminada. Não tenho mais nada a declarar. JUIZ — Bem, se é assim este julgamento está encerrado. Os executores têm algo mais a dizer? PAUSA. RODRIGO E CÍNTIA ESTÃO SURPRESOS COM A SITUAÇÃO. RAPOSO ESTÁ PERTURBADO.

RAPOSO — Meritíssimo. Essa situação, não estou entendendo... JUIZ — O que há aqui para não entender, doutor? O caso está cristalino, absolutamente claro para mim. Os elementos ganharam significância e já possuo o veredicto desse julgamento... RODRIGO — Meritíssimo, gostaria de colocar que o senhor Silvestre Santos tentou impressionar a todos nós com sua eloqüência. Impediu o depoimento sincero do senhor deputado Raposo Cintra, ao tentar nos convencer de como converteu um sentimento doloroso de filho enjeitado em pai ou tio zeloso que soube educar exemplarmente um filho ou sobrinho que não era seu. Muito hábil... CÍNTIA — Acrescento, Meritíssimo, que fiquei tocada com a história do senhor Silvestre, mas decepcionada com a conclusão da questão.

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JUIZ — Doutora... Sinto muito que esteja decepcionada. Para mim, os elementos desse caso são suficientes para um veredicto. O JUIZ ASSINA UM DOCUMENTO E EM SEGUIDA LEVANTA-SE E OLHA PARA TODOS. PAUSA. EXPECTATIVA NO RECINTO.

JUIZ — Essa questão chegou ao fim, senhores... Eu profiro agora o meu veredicto: declaro a empresa e o senhor Silvestre Santos inocentes. Nada deve aos executores. Dou por encerrada a sessão. MANIFESTAÇÕES DE DECEPÇÃO DO LADO DE RODRIGO, CÍNTIA E RAPOSO E EXPLOSOES DE ALEGRIA DO LADO DE SILVESTRE, ARMANDO E CECÍLIA, QUE COMEMORAM SE ABRAÇANDO. INSTANTES. O JUIZ SAI. SILVESTRE, ARMANDO E CECÍLIA SE APROXIMAM DE RAPOSO, RODRIGO E CÍNTIA. ESTÃO TRIPUDIANTES.

SILVESTRE — (A Raposo) Você se tornou uma pobre lenda, Robin Hood. RAPOSO — (A Silvestre) Por uma batalha perdida, não. Isso só me estimula à vitória final. ARMANDO — (A Rodrigo) Melhor mesmo que fique no seu devido lugar, garoto! RODRIGO — (A Armando) Não se engane ao pensar que o seu seja melhor que o meu. CECÍLIA — (A Cíntia) Uma boa moça teria aceitado a nossa vaga de emprego. CÍNTIA — (A Cecília) E daí não encontraria meu verdadeiro trabalho que é lutar pela honra das pessoas.

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SILVESTRE — (A Raposo) Você é tão tolo quanto meu irmão que sonhava com um mundo do faz de conta. RAPOSO — (A Silvestre) Um dia não será só sonho, porque o mundo acordará do transe. ARMANDO — (A Rodrigo) Mal começou e sua carreira manchou. RODRIGO — (A Armando) Eu ainda só estou no começo e você já chegou ao fim. CECÍLIA — (A Cíntia) Pare e pense; não se deixe levar por impulsos. CÍNTIA — (A Cecília) O melhor impulso é a verdade que ganha os nossos corações e tem força para mudar o mundo. RAPOSO — (A Silvestre) Esteja certo de uma coisa, tio Silvestre: sua história perdeu a graça. Ninguém mais vai se lembrar dela. Você será uma exceção de um tempo que não mais existirá. SILVESTRE — (Com ironia) Além de tudo é um profeta do deja-vu... RAPOSO — Vejo apenas o futuro. E com clareza, se quer saber. Os ególatras serão extintos como foram os dinossauros. ARMANDO — Ah, então vocês é que serão os exterminadores do futuro... (Ri, debochado) RODRIGO — Não é possível que não vejam que estão na contramão dos tempos. O futuro está sendo construído agora, neste exato momento. Amanhã será o que hoje estamos pensando. E o que queremos se concretizará. SILVESTRE — Outro profetazinho. Não sei que bicho mordeu vocês, mas não vêem que estão sonhando. Foram derrotados em juízo por esse processo ridículo contra nós. A difamação voltou-se contra vocês mesmos.

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CÍNTIA — Mas estamos em paz com nossa consciência, senhor Silvestre. Nossa parte estamos fazendo. Não temos como mudar o que apodreceu. CECÍLIA — Menina, você está sendo influenciada pessimamente. CÍNTIA — E daí? Quem é você para fazer julgamento de valor? Devia ver a sua influência negativa. A de que recebe desses dois brutamontes! ARMANDO — Espera lá, franguinha! ARMANDO VAI PARA CIMA DE CINTIA, MAS É CONTIDO POR RODRIGO. ELES SE ENCARAM E RIVALIZAM. O MOMENTO É DE TENSÃO. COMEÇA UMA ENCENAÇÃO DE GESTOS E EXPRESSÕES DE PROVOCAÇÕES ENTRE TODOS OS ELEMENTOS DOS DOIS GRUPOS. ENTRA MÚSICA (BACH SONATA PARA VIOLINO E PIANO FORTE Nº 4) E A ENCENAÇÃO GANHA QUASE QUE UM MOVIMENTO MELANCÓLICO. LUZ CAI EM SEMIPENUMBRA. TEMPO. DOIS A DOIS E COM OS BRAÇOS SOBRE OS OMBROS DO OUTRO, ELES MEDEM FORÇA MAS SEM VANTAGEM APARENTE PARA NENHUMA PARTE. CECÍLIA E CÍNTIA DE UM LADO, ARMANDO E RODRIGO DE OUTRO, RAPOSO E SILVESTRE MAIS ADIANTADOS NA FRENTE DO PALCO VÃO CAINDO NO CHÃO. MÚSICA CONTINUA. LUZ VAI SE APAGANDO ATÉ FICAR TUDO ESCURO. PAUSA. LUZ EM FOCO SOBRE SILVESTRE EM UM CANTO DO PALCO COM UMA PEÇA DE LEGO MONTADA QUE PODE PARECER UM CAPACETE QUADRADO (QUANTO MAIOR MELHOR). ELE SEGURA A PEÇA COMO SE FOSSE UMA

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CRIANÇA. OLHA-SE NO ESPELHO E VÊ SUA IMAGEM REFLETIDA NELE EM TAMANHO FAMÍLIA. SONATA DE BACH CONTINUA EM BG.

SILVESTRE — Consegui. Eu consegui. Isto não é surpresa, afinal sempre consigo aquilo que quero. (Num rompante) A cabeça do gigante... Do tamanho ideal. Da largura de minha inocência. Oh! Passado que não se esvai! (De repente, segura firme a peça de lego com medo) Ninguém vai tirar isso de mim. Construí com tanto esmero; capricho de uma criança perfeccionista. Cada peça em seu lugar, crescendo, montando, crescendo... Como se fosse o violino e o piano forte de uma filarmônica. Posso sentir a harmonia que tomou forma e uma finalidade. Sim, eu nasci com uma finalidade. O fim último de realizar o que sou. De fato, eu sou. (Se apalpa) De carne e osso. Não tenho espírito, apagaram-me de mim. Não sei por que. (Pausa, com medo) E se amanhã me roubarem... (Agarra a peça de lego de novo contra si) Não vou deixar levar aquilo que mais prezo nesse mundo. E ele, o mundo, não pode ficar sem isso... A cabeça do gigante não se descobre; ao contrário, revela-se. Sempre dentro de todas as possibilidades. Com as sinapses bem à vista. Minha arte é ver o que posso fazer para revelar aquilo que eu sou. Ou, antes, o que faço. Faço sim, com perfeição. Melhor do aquilo que meus olhos vêem ou que os meus sentidos percebem. Quem é melhor do que o gigante? Davi é um baixinho medíocre! A sua vitória sobre Golias não passou de lenda. Eu sim sou o melhor! Eles acreditam em mim, porque eu prometo um brinquedo, uma promessa real. E uma promessa é feita de palavras que não existem, evaporam... (Faz um gesto) Puf! Sou o melhor dentre tantos que prometem. Fui um dos primeiros a mostrar com quantos paus se faz uma canoa. Minha empresa hoje é sólida, como essa linda peça (beija a peça de lego). Quero ter todos eles aos meus pés. Os candidatos, sim. (num arroubo) Eles são todos meus! Meus! Ainda faremos uma grande ceia com todos eles à minha mesa. Me servindo, claro! (Ri, debochado; pausa, com agressividade, para o público) Qual é o problema? Eles não gostam do que eu ofereço? Sim, eles são obrigados a reconhecer o que eu faço de bom! Serviço de utilidade públicaprivada! Vão se danar se pensarem que eu só viso lucros! Vão se danar! 67


SILVESTRE DE REPENTE MURCHA PERDENDO A AGRESSIVIDADE. PEGA A PEÇA DE LEGO E PÕE NA CABEÇA. MIRA UM PONTO VAGO NA PLATÉIA E ESTACIONA O OLHAR. SEU CORPO FICA PARALISADO, DURO. MÚSICA SUAVE QUE EVOQUE PREGUIÇA. A LUZ VAI SE APAGANDO SOBRE SILVESTRE. PAUSA. LUZ VAI ACENDENDO DEVAGAR SOBRE RODRIGO E CÍNTIA QUE SEGURAM AS PONTAS DE UMA FAIXA (A MESMA QUE TROUXERAM DA OUTRA VEZ E QUE ESTÁ ESCRITO “ESTAMOS COM VOCÊ, DEPUTADO RAPOSO CIONTRA”). ENTRAM OS DOIS DEPUTADOS QUE DISCUTIRAM NO PLENÁRIO O PROJETO DE “INCLUSÃO SOCIAL” COM RAPOSO CINTRA. PARAM DE FRENTE PARA A FAIXA.

DEPUTADO 1 — Não podem fazer piquete na frente da Assembléia. Quem mandou vocês ficarem aqui? RODRIGO — Ninguém mandou não, senhor deputado. Estamos apoiando de livre vontade o projeto do deputado Raposo Cintra. DEPUTADO 2 — Aposto que foi ele que pediu para vocês virem aqui. CÍNTIA — Não somos cobras mandadas! Estamos fazendo o que achamos direito. Estamos ou não numa democracia? DEPUTADO 2 — Gostam mesmo do projeto de lei do deputado Cintra? RODRIGO — Igualdade social, senhor deputado. É disto que o país está precisando. DEPUTADO 1 — Me desculpem, mas isto é retórica. Existe igualdade quando se há consenso. Todas as classes sociais precisam abrir mão de alguma

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coisa. Só não podemos inventar um novo imposto para a classe média já tão combalida. CÍNTIA — Não é para a classe média, deputado. É para os ricos. Aqueles que possuem grande capital. RODRIGO — Exatamente. A distorção pode diminuir quando os ricos se comprometerem a erguer os pobres da miséria sociocultural. OS DEPUTADOS RIEM ESCRACHADOS. NESTE MOMENTO, ENTRA DEPUTADO RAPOSO CINTRA. OS OUTROS PARAM DE RIR E OLHAM PARA ELE COM CENSURA. RODRIGO E CÍNTIA BALANÇAM A FAIXA EM COMEMORAÇÃO. TEMPO.

RAPOSO — (Aos deputados) Por que estavam rindo, senhores? Pensaram que eu estivesse sozinho na luta pelo meu projeto de lei? Muitos me borbadeiam, mas há aqueles que têm a consciência límpida de perceberem onde está o problema de nosso país. DEPUTADO 2 — Não me faz rir de novo, deputado Cintra. Esses meninos nem sabem a irresponsabilidade que estão cometendo. RODRIGO — Como!? O que disse? Nós somos advogados! Estamos cientes de nosso papel como cidadão. Podemos processá-lo por injúria. CÍNTIA — Perdem o respeito por nós, por isso não podem exigir o nosso respeito também. DEPUTADO 1 — Garotos propaganda. Não passam disso. Vamos, deputado. Temos coisa muito mais importante por fazer. OS DOIS VÃO SAINDO PELA LATERAL DO PALCO E RODRIGO AMEAÇA SEGUILOS ENFURECIDO, MAS É CONTIDO POR RAPOSO. INSTANTES.

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RAPOSO — Deixe. Deixe eles irem para a sofreguidão de suas pobres e tacanhas mentalidades. Eles acreditam que estão fazendo um bem para o país recusando-se a aprovar o nosso projeto. Não faz mal. Ainda vamos ganhar a simpatia popular e pressionar essa assembléia a votar. O capital ainda será muito útil à sociedade, como nunca foi. Eu acredito. Vocês também. Somos três hoje; amanhã seremos trinta; depois trezentos; três mil, três milhões... De mosqueteiros. RODRIGO — Sua fé é contagiante, deputado. CÍNTIA — Sim, é como uma folha que se desprendeu da árvore do conhecimento. RAPOSO — O que disse, minha jovem? CÍNTIA — Disse que o senhor é um político especial que acredita que possamos reconstruir nossa sociedade. RAPOSO — Sim, a reconstrução... A reconstrução nacional. É tudo que precisamos agora. CÍNTIA — Interessante como estamos mais fortes apesar de sermos tão poucos... RODRIGO — É por causa de nossa coragem. E porque estamos resistindo. RAPOSO — Fé e coragem. Duas coisas que não se vê, mas que determina sermos senhores de nossa causa. RODRIGO — Desculpe, deputado, mas falando assim lembro do que disse seu tio: Robin Hood... CÍNTIA — (Ri) Robin Hood e seus defensores! RAPOSO — (Feliz) Uma legião de benfeitores! Não era disso que o país precisava? De gente que sabe que pode fazer a diferença? Então, meus queridos! Vamos entrar nessa Assembléia. Vocês devem mostrar que estamos

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unidos em torno disso. Falem, discursem, notifiquem. Mostrem que a sociedade tem uma solução em suas mãos: cobrar dos donos do capital uma contribuição extra. Eles sabem que tiraram proveito do sistema para amealhar suas fortunas, mas está na hora de colocá-los na realidade social responsável. Se não temos força para mudar a relação do capital, uma lei o terá. É isto, companheiros. Não precisamos de sindicatos. Precisamos é de lei que reja a igualdade social. Se há imposto de renda, é possível taxar uma parte desse imposto para os mais ricos, e revertê-lo à educação dos mais pobres. Viva o imposto- inclusão! ELES DÃO VIVAS E SEGUEM PARA DENTRO DA ASSEMBLÉIA, OU SEJA, SE DIRIJEM PARA FORA, COM RODRIGO E CÍNTIA SEGURANDO A FAIXA PELAS PONTAS E RAPOSO NO MEIO, QUASE NUMA MARCHA. A LUZ VAI SE APAGANDO ATÉ A ESCURIDÃO. TEMPO. LUZ. BREVE PASSAGEM DE TEMPO. ESCRITÓRIO DA SILVESTRE SANTOS. CECÍLIA ESTÁ EM SUA MESA TENDO A PRESENÇA ASSEDIANTE DE ARMANDO ALI GRUDADO A ELA COMO DAS VEZES ANTERIORES. ELE A BEIJA NO PESCOÇO E ELA ESTÁ VISIVELMENTE EXCITADA, MAS PROCURA RESISTIR COMO FEZ ANTES.

CECÍLIA — Chega, Armando! Chega! ARMANDO — Você me deixa louco! ELE A AGARRA DE FORMA ABSOLUTA E A BEIJA QUASE SUFOCANDO QUANDO ENTRA SILVESTRE.

SILVESTRE — (Surpreso) Oh! A minha dupla preferida voltou a se entender. (Ambíguo) Sinal de êxito profissional.

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ARMANDO LARGA CECÍLIA E OS DOIS FICAM EM SUSPENSO COM A SUPOSTA JOCOSIDADE.

SILVESTRE — Vocês chegaram a um patamar de sucesso que se dão ao luxo de esquecer as tarefas do escritório em favor de seus deleites pessoais. Dizem que a carne é fraca, mas acho o contrário. Se não fosse, vocês estariam mais preocupados com o trabalho. Mas tudo bem. Vocês até formam um casal especial... Estão promovidos! Merecem. Vocês dois irão comandar a filial do Rio de Janeiro. Preparem-se. Amanhã devem estar lá. CECÍLIA — Amanhã? Mas eu... Você sabe que eu sou casada. SILVESTRE — Pense bem. Estou sendo generoso ao propor a solução de um problema para você, Cecília. Vai ser obrigada a se separar. ARMANDO — Quer dizer que do nada quer nos mandar para a filial? SILVESTRE — Como do nada, Armando? Por gratidão. Por merecimento, já disse. E por toda a fidelidade e parceria que demonstraram ao longo de todos esses anos. Eu já disse: minha generosidade está em alta. ARMANDO — E aqui, como vai fazer sem nós? SILVESTRE — (Pausa, pego de surpresa) Eu acho que vou viajar... Por um período. Depois, quando voltar, decido como fazer. CECÍLIA — Não sei, Silvestre, mas estou achando você muito estranho. Você está preparando alguma coisa... ARMANDO — Sim, também acho. Querer ficar sem nós assim de uma hora para outra é bastante estranho. SILVESTRE — Cansei. Sou de carne e osso. E de tutano. Foi um monte de problemas e eu quero dar um tempo. Preciso. Ninguém diz, mas eles são cancerígenos. Toda a semente do mal cresce através deles.

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ARMANDO — Tudo bem, tire umas férias então. Eu e a Cecília tocamos o escritório. Melhor do que sermos transferidos de modo relâmpago. CECÍLIA — Sim. Você viaja e descansa. Depois vê com calma se acha mesmo que devemos ir para o Rio. SILVESTRE — Não. Já me decidi. Vocês vão para o Rio amanhã. Vou fechar este escritório. Se depois eu resolver, eu reabro. Agora se preparem. Resolvam o que for preciso hoje, pois amanhã deverão estar disponíveis para viajar. CECÍLIA E ARMANDO ESTÃO INCRÉDULOS. SILVESTRE CAMINHA ATÉ A FRENTE DO PALCO. PAUSA. DE REPENTE, VIRA-SE PARA OS DOIS.

SILVESTRE — Então? Que estão esperando? CECÍLIA — Eu não vou sair daqui. SILVESTRE — Ora, não me obrigue... CECÍLIA — (Corta) Pode me mandar embora, se quiser. Não arredo o pé daqui. ARMANDO — Eu também não vou sair daqui para outro lugar. SILVESTRE — O que está acontecendo com vocês? Não estão querendo a promoção? Ficar juntos de uma vez? Estou dizendo que vou fechar a firma aqui e viajar. Não há mais nada a fazer. ARMANDO — Isto é um blefe ou o quê? SILVESTRE — Não estou blefando. O que pensam que estou querendo fazer? CECÍLIA — Se não o conhecesse tão bem diria que está pretendendo fazer uma bobagem. SILVESTRE — Que tipo de bobagem?

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CECÍLIA — Suicidar-se. SILVESTRE SOLTA UMA TREMENDA GARGALHADA. RI CONTINUAMENTE, MAS PERCEBE QUE É UM RISO NERVOSO E DESCONTROLADO. TEMPO. ELE VAI PARANDO DE RIR E OLHA PARA CECÍLIA, SÉRIO.

SILVESTRE — Acha que cometeria tamanha insanidade? CECÍLIA — Não há fruta amarga que não deixe um gosto horrível na boca. ARMANDO — Você cansou de ganhar, Silvestre. Precisa perder agora. Deve estar se sentindo mal com o fato de ter derrotado o seu filho no tribunal. SILVESTRE — Filho não; sobrinho. CECÍLIA — Armando tem razão. Você está querendo se punir, Silvestre. Acredita que tem que pelar-se para ressurgir de novo. SILVESTRE — Que querem que eu faça então? Cansei! Levo tudo nas costas sozinho. Só tenho vocês, mais ninguém. Não me importo de ter vencido aquele débil mental que sonha um mundo cor-de-rosa para que a plebe deixe de ser plebe. Que dizer de uma insanidade dessas. Quero é descansar, não fazer mais nada. Esquecer que tudo foi feito em vão. ARMANDO — Que bobagem, Silvestre. Este escritório, a filial no Rio... SILVESTRE — Coisas apenas... Coisinhas. Insignificantes. Que faço com isso? (Abre os braços querendo abraçar o espaço físico) Só me restou o vácuo. Não sei para que e nem tenho para quem deixar esse dinheiro... Minhas economias estão sólidas. Endureceram meu coração. Não amo nada e ninguém. O amor não existe, ele desapareceu de minha vida e foi se esconder em algum conto de fadas escandinavo. Os vikings sabem o que é amar. Com aqueles

chifres

não

se

importam

em

ser

cornos.

amam

despreocupadamente. Eu queria ter nascido viking... Queria voltar a amar, a sorrir, a festejar. Entendem o que quero dizer? Eu mesmo não entendo por 74


que estou sentindo isso. O que há para entender? Eu? Por que eu preciso me entender? Não quero! Enterro esse desejo e todos os demais. Estou morto de agora em diante e vou me recolher em um lugar distante... Onde as folhas das árvores caiam depois de uma tempestade com suas plantas florosas, as folhas tristes e chorosas que estão mortas para dar vez a outras mais belas. É o ciclo natural que faz sentido. As folhas que superlotam essas ruas são apenas lágrimas secas por ver a natureza se cumprir como uma lei áurea e irreversível. O ciclo das estações é que comandam a minha vida agora. Sintome como uma árvore prestes a ser vitimada por um raio. As outras árvores, que são vocês, temem pela sorte. Ficam amedrontadas com os trovões e relâmpagos da terrível tempestade. O que falam elas? “Quem será de nós a próxima vítima daquele raio ensurdecedor?” Eu não temo mais nada, pois já morri. Estou morto. A vida deixou de ser bela porque o sentido se perdeu em algum lugar do passado. Em um mundo que só existia na cabeça daquele gigante adormecido... Que nunca mais quis se levantar de seu sono eterno... Entendem o que eu quero dizer? Eu não sei se vale a pena descobrir que morremos para este mundo. Acabou. Estou caído atravessado na avenida. O raio me derrubou. SILVESTRE CAI DE JOELHOS NO CENTRO DO PALCO. BUSCA ALGUMA COISA NO BOLSO DA CALÇA E RETIRA A PEÇA DE LEGO, ESTA PEQUENA COMO AQUELA DO COMEÇO DA PEÇA. COMEÇA A RIR PARA ELA FEITO UMA CRIANÇA QUE DESCOBRISSE DE REPENTE ATRAVÉS DELE.

SILVESTRE — Você construiu o mundo e depois o destruiu, moleque. Terminou o seu ciclo de brincadeiras. Contente-se como a folha que se subtrai da copa ou como a própria árvore que desfalece pela fúria do raio. O ciclo chega ao fim para todos. A natureza não engana ninguém. Eu vou continuar o sono daqueles que tombam. O gigante continuará no comando de uma forma ou de outra.

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ENTRA MÚSICA (ENIO MORRICONE, NOVO CINEMA PARADISO). CECÍLIA E ARMANDO SE ABRAÇAM E SE APROXIMAM DE SILVESTRE. AGACHAM-SE E FICAM OS TRÊS REUNIDOS ALI EM SIMBIOSE. A LUZ FRAQUEJA ATÉ SEMIPENUMBRA. A MÚSICA CRESCE. CERRAM-SE AS CORTINAS.

FIM.

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