Canaletras

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Projeto Letras Criativas 2007 Copyright na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro


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SUMÁRIO Introdução ---------------------------------------------------- 02

1ª Parte ------------------------------------------------------- 04 Não custa nada?!

2ª Parte ------------------------------------------------------- 47 Tudo por causa de quê?!

3ª Parte ------------------------------------------------------ 104 Isso não pode ser!?

Sobre o Autor ------------------------------------------------- 175


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INTRODUÇÃO A arte de contar de estórias é universal e comum a todos os povos. Sentimos uma vontade irrefreável de compartilhar o produto de nossa imaginação com nossos pares, pois como dizia Platão, só participando com nossa alma racional é que conseguimos “participar” e alcançar o mundo real (das ideias). Interessante como a visão platônica aponta como realidade simplesmente aquilo que é inteligível, e não o sensível - o mundo das coisas que possuem formas, como o nosso o corpo e as coisas materiais. Neste e-book, o mundo da criação imaginativa entra em ação e busca concretizar uma forma com a qual as pessoas sentem grande empatia: o riso, o humor, a graça. Pode-se entender essa escolha como uma maneira de compartilhamento, através da qual visamos participar juntamente com o leitor das coisas reais que criamos em nossa imaginação, pois é ali que a observação e a argúcia se juntam propiciando o surgimento da arte em um ponto do imaginário como se fosse mesmo o embrião da expressão artística. Você vai encontrar aqui estórias farsescas contadas em uma forma livre dos cânones literários, até mesmo como meio de aproximação do leitor que deseja entreter-se pura e simplesmente.


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Divididos em três partes, a primeira reúne 5 estórias bem-humoradas; a segunda, 7 contos estilos e gêneros diferenciados, e a terceira parte, uma peça farsesca adaptada de um dos contos reunidos nesta coletânea. É um prazer dividir este e-book com você, participante das idéias comuns. Bom divertimento!


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NÃO CUSTA NADA?!


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A CASA DOS VENTILADORES BARULHENTOS

N

inguém mais agüentava o calor naquela casa. Mesmo muito arejada e com amplas janelas, ela carecia de ar fresco. Rosali e Tereza, duas irmãs muito afinadas uma com a outra,

eram assaz calorentas, por isso não poupavam ventiladores e sempre estavam alerta em deixar algum dos seus vinte ventosinhos funcionando a toda velocidade em algum lugar da casa onde passariam invariavelmente. Assim, pensavam, não corriam o risco de sentir aqueles horríveis calores, já pós-menopausa, mas que assim mesmo as faziam ainda mais entediadas e ressentidas por sentirem muito, mas muito calor nessa vida. Marques e Marluce, seus inofensivos pais, também moravam naquela casa de cinco quartos, três banheiros, copa-cozinha, lavanderia, quintal e belo jardim. O casal junto somava cento e oitenta anos, de modo que calor mesmo já não sentiam tanto devido à perda de qualidade funcional de seus sistemas endócrinos. Eram tão passivos às causas externas quanto à recusa em morrer. Viam aquela sanha, digamos, quase maníaca, de suas duas filhas sessentonas com aquela leva de ventiladores espalhados pela casa, mas não falavam nada. Tampouco compreendiam como se era possível ficar tão obcecado por aparelhos barulhentos fazendo correntes de ar em tudo que era lugar daquela casa. Mas se recusavam a falar sobre isso com elas. Haviam prometido morrer os dois levando para o túmulo a dúvida. Tinham lá os seus motivos. Assim, as coisas naquela casa pareciam definitivamente ajustadas. Rosali e Tereza já haviam se habituado a sempre reclamar de seus calores, porém felizes com a liberdade de


6 terem disseminado estrategicamente pelos ambientes os seus estimados rebentos de ventosas elétricas, com seus pais quase sempre encolhidos no retiro do aposento simples, porém satisfeitos pela atenção dedicada de suas filhas, que não lhes deixavam faltar alimentos e remédios habituais. E as coisas terminariam assim até a morte de todos eles, se os ventiladores não se rebelassem e fugissem de casa. Pode parecer estúpido isso, mas parece que aquelas hélices igualmente entediadas com a mesmice da casa premeditaram a fuga, segundo o que ficamos sabendo de Rosali e Tereza na manhã seguinte quando acordaram. - Eu já vinha desconfiando de alguns deles, Tereza. Eu os peguei andando pelos quartos como se quisessem fugir. Foi influência, eu tenho certeza! - Será que o Arquibaldo também fugiu? - Complô. Se mandaram todos. O Arquibaldo deve ser o chefe e levado toda a turma no bico. - Estava na cara mesmo. Era muito barulho que vinham fazendo. Desse mato, tinha que sair cachorro! - Nós fomos burras mesmo, Tereza. Eles estavam disfarçando com o barulho e combinando uma fuga. - Precisamos recapturá-los. Vamos acabar morrendo de calor sem eles. - Mas aonde vamos procurá-los? É melhor mandar fazer uma faixa e anunciar. - Excelente idéia, Rosali! Eu tenho o número de um fazedor de faixas aqui perto.


7 - Que está esperando então? Mande escrever o seguinte: “Procura-se Ventiladores do Bloco do Barulho. Número de componentes: 20. Saíram para a folia nesta madrugada do dia 1 e não voltaram para casa. Ligue: 3661-2035. Recompensa-se bem”. E assim foi feita a faixa naquela mesma manhã. O faxeiro recebeu uma gorda remuneração por apressar-se e escreveu em letras grandes e negras os dizeres solicitados. Claro que ele ficou ensimesmado com aquilo, mas, como estavam às vésperas do Carnaval, acreditou ser algum bloco apressadinho antecipando-se à folia oficial, e, sem mais questionamentos mentais, preparou a faixa e entregou às duas irmãs. Assim que foi estendida a faixa na avenida mais próxima da casa delas, o telefone não parou de tocar um minuto. - Alô – era a vez de Rosali atender à ligação. – Eu vou dizer pela enésima vez que aqui não estamos contratando ninguém para sair no Trio Elétrico! Ora, só queremos de volta os nossos ventiladores! Foram dois dias de sufoco que viveram as duas irmãs atendendo candidatos à folia. A cada ligação atendida, um suspiro de ansiedade perdida porque nada de notícias sobre os ventiladores do barulho. Como podia ser isso? Ninguém conseguia acreditar naquela história absurda. Somente as duas irmãs sabiam da veracidade dela. Seus pais, passivos, nem perguntaram que fim levou o Arquibaldo, o ventilador mais velho, e, por incrível que pareça, o menos barulhento daquela casa. Talvez, pensaram, o fim dele chegara primeiro. Mas o que chegara mesmo naquela casa fora a noite. Quente toda vida e, agora, muito mais cruciante para Rosali e Tereza. O dia já tinha sido terrível para elas, que, muito mais pelo cansaço de atender a tantos telefonemas e também pelo fator afetivo a que estavam


8 sujeitas devido à falta daquela fragorosa barulheira, teriam que se contentar com seus calores noturnos e sem as densas e enviesadas brisas de seus ventiladores. Por isso, foram para o quarto mais cedo. Conversaram bastante antes de adormecerem. Era um modo de amenizar o calor e a impotência que sentiam. Podiam comprar novos ventiladores, porque tinham dinheiro para isso. Mas não estado de espírito. Além do fator afetivo, depositaram muita confiança naqueles aparelhinhos traiçoeiros. Claro, estavam se sentindo logradas. “Precisamos destroçá-los antes de comprar novos. Isso não se faz a duas amáveis senhoras”. Inusitadamente, a noite naquela casa foi tranqüila. Contando a ausência da contumaz ventania barulhenta. Logo cedo, como de costume, as duas irmãs levantaram-se e foram preparar o café e também levá-lo para seus pais no quarto. - Eu sonhei com os eles, Rosali! – exclamou Tereza, os olhos expressivos, bem arregalados. - Sonho é sempre uma pista – animou-se a outra. - Agora vamos achar aqueles danadinhos! - Não. Eu to dizendo que sonhei com o pai e a mãe. Eles estavam num campo florido e os seus cabelos não eram cabelos. Eram nuvens tão brancas que o céu parecia uma cortina de seda! – Transcendia o êxtase de Tereza. A bandeja despencou das mãos de Rosali. A associação foi imediata e ela correu para o quarto dos pais e, quando abriu a porta, os dois estavam abraçados, inertes na cama, com os lençóis que os cobriam esvoaçando para cima e pelas laterais da cama. Um tremendo


9 rumor parecia querer levantar a cama e levar o casal de velhinhos voando através da janela diretamente para o céu. “Nossos pais são anjos; não serão enterrados”, este era um único pensamento das duas irmãs, as quais, agora, não tinham reação aparente; ao contrário, estavam paralisadas à porta do quarto, observando a cena. Mas feito um furacão, a cama dos velhinhos decolou dali e voou pela janela subindo para o céu. O que restou foram vinte ventiladores barulhentos ali sob o lugar que a cama ocupava no quarto. -

Deus! – exclamou Rosali.

-

Que idéia genial eles tiveram! – entusiasmou-se Tereza num insight. – A fé move

os ventiladores, que por sua vez, levam ao céu! De imediato, as irmãs começaram a rezar. Quase que de forma mecânica e ininterrupta. Ajoelhadas em frente à janela e olhando para o céu, projetavam as energias da fé para o alto, enquanto os seus cabelos e roupas também eram erguidos pela ventania daqueles ventosinhos. E eles, sem muito apoio agora, projetavam-se pelo quarto andando e produzindo ruídos em graus diferentes e algo ritmados. Parecia de fato um bloco do barulho a desfilar suas alegorias, que, para todos os efeitos, continha originalidade. Agora era carnaval e a folia parecia querer continuar. As irmãs loucas também para subir aos céus movidas ao vento daqueles simpáticos aparelhinhos, sem sequer imaginar que os danados foliões do barulho eram os novos donos do pedaço. A casa seria para sempre dos ventiladores barulhentos. Logo que elas desaparecessem por aquela janela. Vruuum!


10 SALIÊNCIAS, REENTRÂNCIAS, AMBIVALÊNCIAS E INCONSTÂNCIAS

E

ram grandes aqueles peitos e, por causa deles, Luana tinha até dificuldades para se levantar todos os dias de manhã. Já não sabia quando todo esse tormento mamário havia começado. Uma roda viva

sem fim, Santa Virgem! - Luana! Vem pra mesa, menina! - Péra, mãe! Não tá vendo que estou indo?! - Ninguém agüenta mais tanta demora toda manhã! Você já devia saber de cor e salteado o horário do café, pôxa vida! - Ah, mãe! Cala a boca, pô! Não é a senhora que sofre, né! É fácil ver só o que te interessa! Além do mais, por que então não toma o seu café sem mim, se é só a senhora mesmo esse tal de “ninguém” que não agüenta tanta demora toda manhã? Eu tô com o saco cheio, se quer saber! - Tá bom, tá bom; deixe eu te ajudar... Como se vê, era assim todos os dias. Uma calamidade nervosa dentro da casa de dona Normanda, por causa dos peitos de Luana, mas que logo ganhava um ar de contemporização no momento seguinte, devido a uma reflexão que extraía dessa mesma impaciência, um sentimento de compaixão pela filha. Quase nunca o pai da casa, João Medeiros, presenciava esse fato, porque saía ainda muito cedo com a sua sacolinha a tiracolo para trabalhar na supervisão de uma obra em uma cidadezinha a pelo menos setenta quilômetros dali.


11 Assim, quase como um britânico, pontualmente Luana despertava ouvindo sua mãe colocando a mesa para o café. Era uma circunstância que já se repetia por antecipação, antes mesmo de ela acordar, porque no seu inconsciente parecia ver e ouvir dona Normanda preparando os utensílios na cozinha, batendo bules e chaleiras, canecas e talheres, como se isso já fosse a senha para fazê-la sair da cama. Luana, no fundo, estava cansada de viver assim. Se já era entediante sonhar com os preparativos do café matinal, que dizer, então, de não conseguir erguer-se direito por causa daqueles peitos. Para ela, a verdade era uma só: se a sociedade aprovasse o ato, ela já teria arrancado seus dois peitos por inteiro e colocado outros dois menores, cem por cento silicone. “Por que podem botar silicone para aumentar e não se pode tirar aquilo que me incomoda?” Luana passava apuros com essa idéia na cabeça. Chegou a ligar para Maria Lúcia para falar um monte sobre o que estava sentindo, mas a amiga teve uma santa idéia que imobilizou a ação da peituda. - Vou te levar a cinta que minha mãe põe na barriga. Fica fria. Acho que vai dar certo. A única coisa que precisa tomar cuidado é com o troço que tem ali no meio. - Hã? - É! A cinta é bem dura; acho que é feita de aço, mas é forrada com espuma e couro. E tem uma coisa na frente que é pra apertar o umbigo. - Será que dói?... - Fica fria. Se você tem peitos grandes, o caso da minha mãe é ter umbigão! - Não é hérnia, não?


12 - Não! É umbigão mesmo! Ele é tão grande quanto os seus peitos! - É, cada mulher com seus volumes, não é mesmo? Bom, então traz essa cinta logo. Quero experimentar! E assim Maria Lúcia tratou de pegar a cinta de dona Eugênia logo que a mãe saiu para fazer compras. Maria Lúcia sabia que precisava ser rápida, porque a mãe punha toda noite aquela bendita cinta. No entanto, parou para examinar direito aquele objeto. Ele tinha uma espécie de barriguinha macia meio que acamurçada, que servia para fazer pressão contra o umbigo. Na verdade, Maria Lúcia nunca havia percebido o quão grande era aquela saliência. “Isso no meio dos seios da Luana acho que vai dar mais do que uma coceirinha...” Luana riu a valer. Imaginou cenas incríveis com sua amiga sassaricando de sensações gostosas com aquele “falo gordinho” no meio dos peitos. Achava que ela, no fundo, ia gostar. Já tinha dado uma sapeada em algumas revistas eróticas e visto uma tal posição “espanhola”. Ela fechou os olhos imaginando coisas e, sem perceber, apertou a cinta com aquela proeminência contra os seus seios também. “Hummmm... Que loucura!” De repente, a imagem - “puf” -, desapareceu, e Maria Lúcia se recompôs, colocando a cinta umbilical dentro de sua mochila. Seria então em Luana que ela precisava experimentar agora. Pôs a mochila às costas e deixou sua casa. - Que demora, Lúcia! Eu estava aqui que não me agüentava pra ver essa cinta! - Mas vai precisar ser rápida, antes de minha mãe voltar. Vamos combinar o seguinte: se ela ficar boa, então eu saio pra comprar outra pra você, está bem? - Shhhh! Minha mãe nem pode ouvir isso.


13 - Que eu vou comprar outra? - Nããão! Ah! Deixa pra lá. Me dá a cinta! E Luana pôs a cinta de dona Eugênia, escondido de dona Normanda. Tudo transcorria bem, não fosse um imprevisível fato: o fecho da cinta umbilical que ficava na parte traseira travara depois que Luana já a havia colocado, prendendo-a então na altura do tórax. E isso lhe conferiu uma aparência ainda mais estrambótica: a cinta escorregara dos seios para cima até debaixo de suas axilas, e, com isso, espalhou para os lados os seus enormes seios, fazendo daquilo uma maçaroca de carne e pele retorcida que impedia até mesmo sua respiração. - Vaaaai loooogo... - Péra, Luana! Eu estou tentando abrir isso aqui. Aaaaaai!... Está muito duro... As duas amigas ficaram digladiando-se em torno daquela cinta. Como não se conseguia abrir a presilha, tentaram puxá-la por sobre a cabeça de Luana, sem sucesso. As duas já transpiravam quando entrou no quarto dona Normanda. Não houve como disfarçar a cena, porque as duas garotas estavam numa concentração tal que não seria possível qualquer tipo de dissimulação. - Mas o que é que é iiiisssooo! Vocês estão se preparando para voar? As duas pararam de imediato aquele mexe-mexe em torno da cinta. Primeiro, pelo susto de ver dona Normanda ali com as pupilas quase saltando para fora das órbitas. Segundo, porque não entenderam bem o que ela quis dizer com “voar”. - Voar, dona Normanda? – indagou Maria Lúcia. Em seu rosto, uma expressão quase congelada.


14 - Sim, isso mesmo, voar. Voar de balão. Maria Lúcia começou a rir, para desespero de Luana, que, desentendida, ficou ainda mais nervosa. Mas a amiga não conseguia se conter de tanta graça. E quem não gostou disso foi dona Normanda. Empurrou Maria Lúcia de lado e virou para as costas da filha, iniciando sofregamente uma nova tentativa para soltar aquele maldito fecho. - Onde vocês arrumaram essa porcaria? – perguntou ela enfurecida. -Aaaaaaiiiii – Luana estava se sufocando. - É... A Luana queria alguma coisa... Sabe, para... – Maria Lúcia estava com medo. Arquejava tanto que não conseguia se concentrar na sua fala. - Se isso matar a minha filha, sua mãe vai se ver comigo, ouviu bem? – Normanda tinha o rosto vermelho coberto de suor. Maria Lúcia parou por instantes, respirou fundo e disparou: - Não! A minha mãe não tem culpa. Ela nem sabe que eu peguei a cinta. - Mas ela deve saber como abrir essa coisa! – complementou Normanda, soltando a filha e caindo exausta sobre a cama. As duas mocinhas se olharam. Uma máscara lívida cobriu o rosto de Maria Lúcia. A respiração quase parou. O temor acionou todos os seus demais órgãos, e, como se dentro dela se operasse um duto viscoso e fervente, começou a sentir queimar todas as partes de seu corpo. Luana, por seu turno, estava roxa, coitada. Que infelicidade fora a sua em aceitar essa idéia maluca de vestir nos seios uma cinta para umbigo! Ela não conseguia raciocinar


15 agora, apenas buscava uma maneira de tentar manter-se viva com aquela atadura triturandolhe as vértebras. Dona Normanda não demorou a se refazer do esforço. Pegou o aparelho de telefone e deu para Maria Lúcia. O ambiente a esta altura estava tenso e perigoso. Luana, que também se cansara de ficar ali sentada na cadeira em frente ao espelho da penteadeira, tentou deitar-se na cama, mas sentiu-se pior. O ar assim pareceu escapar dela, por isso retomou o seu lugar na cadeira, ajudada pela mãe. Enquanto isso, ao telefone, Maria Lúcia tentava convencer a mãe a vir até a casa de Luana. - O que eu tô dizendo, mãe, é que por causa da senhora está acontecendo uma tragédia aqui! E tudo depende de você: se não chegar aqui em dez minutos, tanto eu como Luana, não estaremos mais aqui. E entenda isso como quiser. Por isso, se gosta da gente, por favor, apareeeça!!! E foi o que fez em cinco minutos, dona Eugênia. Mas logo que entrou no quarto de Luana, caiu dura quando viu a sua cinta nos peitos da moça. Na realidade, poderia dar margem a dúvidas se foi por causa da cinta ou por causa de Luana, claro. Mas o que de fato aconteceu é que ela desmaiou ali mesmo. A sorte era que tinha um grosso tapete Bandeirante cobrindo um bom espaço do chão impedindo-a de bater a cabeça e sofrer algo pior. - Vai lá na cozinha pegar vinagre! – ordenou dona Normanda desesperada para Maria Lúcia. – E traga o pano de prato perto da pia! - Eeeeeuuu... Não estoooou... Maaaais... Aguennn... Taaaando...


16 - Calma, minha filha, calma – Dona Normanda implorou. – É só colocar essa mulher de novo no mundo e tiramos você dessa porcaria. E assim foi que tentaram, primeiro, com o vinagre Areal de dona Normanda; depois, com uns tapas bem-dados de Maria Lúcia no rosto de sua mãe. De nada adiantou. A mulher não voltava a si e tiveram de chamar uma ambulância para removê-la para o hospital. Aproveitaram a circunstância e levaram Luana junto na ambulância. Esta já havia se arrependido até o último fio de cabelo de ter posto aquele troço nos seus peitos. Enquanto os pensamentos desordenadamente iam e vinham em sua cabeça, ela ruminava contra dona Eugênia, ali esticada na maca a seu lado. “Se você não inventasse moda para o umbigo, eu estaria com os meus peitos intactos, sua barriguda!” Dona Eugênia foi direto para o pronto-socorro. Lá descobriram que a hérnia da mulher havia estourado, rompendo assim, conexões importantes nas vias gastroenterológicas. Cirurgia urgente. Este foi o seu fim. Quanto a Luana, ela teve marcas profundas em toda região torácica, porque aquela cinta umbilical comprimira sua pele com tal força que era como que houvesse sido marcada a ferro quente a trezentos graus. E, claro, seus peitos também ficaram muito marcados. Mas alguma coisa dentro dela contrastava com a imagem que tinha dos seus seios agora. Uma fagulha de alegria despontava de seu sorriso insinuante. As suas mamas estavam diferentes. E, para quem não agüentava mais ter dois grandes mamões ali tomando o lugar dos seios, algo assim parecido com uma pista expressa e asfaltada, até que caía bem sobre aquela montanha de carne. Um bom motivo para sorrir. Porque normal para Luana era sentir diferente-se. Ver-se então, uma felicidade...


17 Passaram-se dois meses depois desse incidente. Dona Eugênia já estava em plena recuperação de sua saúde, e Luana também. Tanto dona Normanda como Maria Lúcia resolveram fazer uma festa para as duas. Queriam comemorar a volta por cima. De incidentes e boas intenções o mundo estava cheio, mas de Luana e dona Eugênia não! Valia a pena então esquecer peitos e umbigos. E só lembrar, divertidas, aquela cinta fatídica! Pois ela dera jeito nas duas.


18 O PUNK DA LATA

A

quela lata de massa de tomate era o que havia de melhor para ele. Servia agora como recipiente de um gosmento xarope pastoso em pelotas da cor do espinafre. A cor, para ser mais exato, era de um verde-musgo escuro, feito

um suco bilioso depois de um porrão de vodca misturado a um coquetel de frutas cítricas. Tudo isso expelido nojentamente por aquele jovem deslavado, cabelos pretos de fios longos e quebradiços, refém de anéis e argolas nos lóbulos das orelhas, narinas e língua. Era um punk na acepção da palavra. Rebelde, contestador e não-convencional. Seu nome: Adson. Curiosamente, era fanhoso. De modo que, quando ele dizia o seu nome a alguém, ficava difícil entendê-lo logo de cara, porque era complicado diferenciar com clareza essa tal sílaba final “son” de seu nome, uma vez que o rapaz não conseguia falar um “son” fechado, impostando seu vocalismo para o grave, geralmente ajudado pela curvatura em “O” que a boca fazia nesse caso. “Son. Son”. E que ninguém no mundo se atrevesse a falar sobre sua deficiência ou qualquer outra coisa relacionada a ela na cara de Adson porque, se não, ele virava bicho! Nem mesmo o doutor Solano Fontes, especialista em deformidade facial de lábios leporinos e do palato ousou dizer algo novamente para o jovem punk, provavelmente porque já estava escaldado com a consulta anterior no melhor hospital de Santa Aparecida, quando, então, sentiu na pele, ou melhor, no pescoço, a fúria incomum que insurgiu de dentro do rapaz ao ser informado do tratamento do problema. Bastou o médico pronunciar a simples palavra “fanho”, dentro do contexto de sua explicação científica, para sentir o pomo-de-adão ser atacado ferozmente pelas garras do punk, sendo obrigado, então, a prometer, ainda sob aquela situação de pavor, que nunca mais falaria sequer uma palavra sobre esse problema


19 para o jovem. De lá para cá, foram feitas três novas consultas com esse médico. Todas rigorosamente acompanhadas pela presença do pai do rapaz, seu Tomás, que afiançara ao médico qualquer dano possível que porventura ocasionasse de seu filho. Esse destempero da personalidade do jovem custara, de fato, seu isolamento. Nem mesmo o pai falava qualquer coisa a ele sobre sua deficiência. Sua família era simples, composta de dois irmãos mais jovens e de dona Aparecida, proprietária de uma lavanderia no centro da cidade. E ninguém mesmo podia atrever-se a falar nada, porque conheciam a reação insana de Adson. Assim sendo, ele vivia do seu jeitão, impondo medo quando se sentia invadido. Adson tinha cabelos compridos e desgrenhados. Vestia-se com roupas pretas e justas além de uma botinha de bico fino. Usava também correntes, pulseiras, piercings e objetos de metal que pendiam por sua roupa e corpo, dando-lhe uma aparência de portaferrugem ambulante, ou, até mesmo, de pára-choque de carro de festejo matrimonial, tantos eram os badulaques que pendiam dele. Isso, sem contar, que jamais ele esquecia de pendurar aquela latinha de massa de tomate sem tampa que lhe caía lateralmente, próximo ao saco. Jamais esquecia, não; nunca a tirava da calça. Lavava-a com lata e tudo. E então, quando estava vestido naquela calça preta com a latinha pendurada, ela sempre estava caída ali próximo de seu saco murcho, que, insistente, punha-se irremediavelmente e contra a vontade do dono, no lado contrário à posição natural, coisa que Adson não suportava nem fodendo! Nessa noite, no entanto, ele queria refugiar-se numa festa rave, com sua banda que mais parecia gang de loucos suicidas, porque além dos traços de aparência humano-metal,


20 falavam em um código indecifrável aos ouvidos da inteligência comum, e, para piorar ainda mais a conversa, Adson era fanho. - E (hn)u (hn) onheço a a(hn) nda – disse ele com empolgação aos rapazes. Na realidade, ele disse, à sua maneira, que conhecia a banda e que eles eram de “balada” e “doidaços de pedra”. A banda de Adson também arriscava fazer um som. Claro que Adson só tocava e, vez ou outra, fazia um coro, de maneira que, quando isso acontecia, ninguém sequer imaginava que ele fosse fanho, porque era um grunhido assim que emanava daquela boca: “Ahnahnahnahnahnahnahnahnahnahn...”. Mais ou menos nesse ritmo vocal, ninguém poderia supor que tivesse alguma deformidade no palato. E, por favor, não ousassem dizer que ele estava fora do ritmo, porque senão ele ficava nervoso e daí sim que ninguém entenderia “lhufas” do que estava falando. Adson tinha sido um menino normal até os cinco anos, quando então sofrera um acidente no ônibus escolar que o levava de volta para casa. O impacto do choque fora tão grande que ele afundara a região do malar, afetando também toda a região intralabial e nasal. Chegou a fazer uma cirurgia reparadora na época, mas somente depois de muito tempo é que passou a sentir auto-rejeição por causa de sua voz, que a cada dia passado, fora ficando mais e mais fanhosa. Agora, no entanto, Adson não estava mais nem aí para isso. Já tinha completado dezenove anos e era um cara modernoso e cheio de vida. Tanto é verdade que, no meio da festa onde ele e sua bandinha se encontravam, um mulheril “da hora” dançava animadamente sob luzes coloridas que refletiam nelas mesmas um frenético jogo de corpo louco e sedutor.


21 Adson acabou “azarando” uma garota ali pelo meio da pista. Até então, o que se verificava era uma troca de piscadas e sorrisinhos de parte a parte. Adson já admitia que ela estava no papo, com um sem-número de fantasias rolando em sua cabeça. A melhor de todas era aquela em que via a sua latinha de massa de tomate atravessada em sua língua, de forma a ficar com seu rosto frente a frente com garota, e esta, também, engajada em aventurar-se a um roçar-de-língua por dentro e ao longo do “tunelzinho de alumínio”. E como se adivinhasse as intenções escabrosas do jovem punk, a garota pegou a latinha que estava pendurada como um pingente na calça preta já desbotada de Adson. Ele ficou excitado automaticamente. Era como se ela tivesse pegado ali no seu instrumento. O seu rosto transformou-se de um sorriso para uma expressão de tesão. Ela tinha-se aventurado a pegar na latinha dele! Ele soltou um fanho. E a garota olhou-o, preocupada, porque pensou que ele não gostara do ela fizera. Mas o pior não foi isso, e sim o salto do vocalista da banda que tocava no palco por sobre o corpo de Adson na pista de dança. - Seu filho da puta! – gritava enlouquecido o rapaz magro também todo aparamentado com seus metais sobre Adson, de modo que, quando colidiram, pareceu mais batida de carro do que de ossos. – Você quer o quê desse broto hein, maluco? Eu não sou doido pra pagar esse mico na sua cara, pérvi! Adson estava em apuros. Ele grunhia debaixo do varapau descarnado que o prendia ali com pernas e braços. E ambos pareciam agora irmãos siameses agarrados daquele jeito. E o som abafado da voz fanhosa de Adson era ouvido praticamente por todos ali na pista, uma vez que a banda também havia parado de tocar, e todos olhavam aquela cena estranha dos dois grudados tentando sabe Deus lá o quê!


22 A latinha de Adson surgiu, redentora. Ele conseguira pegá-la mesmo naquele aperto e desferir um golpe baixo no adversário vocalista, que, a essa altura, pareceu atingir o mais agudo dos agudos. Não foi difícil para Adson desvencilhar-se do agressor, momento em que o patrocinador da festa chegou para acalmar os ânimos. Ânimos que estavam agora bastante concorridos, uma vez que os componentes da banda oficial queriam mesmo era dar porrada no pessoal de Adson. O ambiente ferveu e, sem que ninguém visse, Adson subiu ao palco e pegou o microfone e começou a falar. Estava fora de si e xingava com tanta veemência que as caixas de som pareciam entoar a ópera fanho-nervosa de Adson! Um show. Verdadeiro show. Todos desembestaram a rir. Ninguém entendia “lhufas” do que ele dizia, mas ele não parava. Até mesmo os rapazes da banda oficial esqueceram a rixa e passaram a rir do histérico Adson. E, à medida que via e ouvia aquelas pessoas gargalhando de sua voz, mais Adson progredia com sua fala fanha, agora misturando uma gaguez nervosa que fez aumentar ainda mais o distúrbio sonoro daquele ambiente. Um verdadeiro espetáculo nonsense. Até que Adson cansou de falar. Largou o microfone e pegou a sua latinha de massa de tomate vazia e a pôs na boca como se fosse uma gaita. E começou a cantar dentro dela. Todos pararam de rir e passaram a ouvir atentos aquele fenômeno acústico diferente que proporcionava a voz de Adson forjada contra o alumínio da latinha. Curiosamente, era dessa forma que desaparecia o fanho de sua voz. Em vez disso, surgia uma outra, com um novo tom e, proporcionando um agradável ritmo. Parecia até outra pessoa cantando! Isso animou a todos, principalmente o pessoal da banda que tocava ali. Eles voltaram para o palco e pediram para Adson fazer um solo na latinha. E não é que mandaram bem?! Um show. Verdadeiro show pós-punk de lata!


23 E o lucro foi grande. Enquanto o sucesso da banda era total, inclusive com a absorção da banda dos amigos de Adson, ele conseguia voltar a falar com a garota do vocalista. Na verdade, ela não era nada do rapaz, e fora apenas objeto de ciúme dele. Mas, agora, depois do show particular de Adson e sua latinha, era certo que ela só tinha olhos para ele. “Que se esfolasse o magricela do Rodrigo”. No entanto, mais certo do que ficar com Adson foi a sua exigência: de que enquanto ele falasse com ela, pusesse a latinha na boca. Porque além da voz fanhosa dele desaparecer como por milagre, surgia uma outra metálica que ela disse ser muito mais sedutora. E ela crescia os olhos para a lata dele! Adson sentiu-se feliz assim. Para agradá-la, poderia assumir esse papel de punk-lata e deixar de lado de uma vez por todas aquela sua contumaz fúria por se fanho. Só precisaria, vez ou outra, tirar a lata da boca para beijar, comer, beber... De resto, enquanto ficasse com a amada, assumiria uma nova voz. E assim foi que começou um novo período para Adson. Ele virou um artista especial – “Ad Son Da Lata”. E sua banda fez muito sucesso enquanto ele ficou à frente dela. Ganharam rios de dinheiro, até que Adson resolveu fazer uma nova cirurgia reparadora. Todos foram contra ele. Já tinham-se acostumado com o seu jeito fanho metálico, e não admitiam que ele voltasse a ser normal. Quer dizer, só fanho, porque não acreditavam que aquela operação daria de volta a normalidade vocal para Adson. Acabaram brigando por causa disso, assim como sua garota também. Ninguém queria perder a especialidade fanho-metal de Adson, mas ele decidiu sair da banda. “Vou fazer carreira-solo” – disse ele sem a latinha, ao estilo fanho-anasalado. Realmente um tempo se passou, e ele acabou se modificando. Estava mais experimentado e mais calmo. Somente permanecia sua deficiência vocal. A latinha de massa de tomate era ainda a sua melhor ferramenta. “Essa lata de massa de tomate é o que há!”, pensou ele. Porque para pensar não precisava de cordas vocais, portanto não precisava


24 falar fanhosamente. De fato era a sua latinha uma grande companheira. Mesmo sem amigos, tinha a ela. E Adson acabou voltando para o seio da família. “Seu” Tomás o apoiara a fazer uma nova cirurgia, e a mãe prometera ficar a seu lado durante sua recuperação. Procuraram pelo doutor Solano Fontes e marcaram a nova cirurgia. Mas o dia marcado para a operação acabou sendo inusitado quando, ao levarem Adson na maca para a sala de cirurgia, ele propiciou um show particular tocando em sua latinha. Muita gente ali no hospital saiu dos quartos para vê-lo e ouvi-lo. Ele ficava definitivamente marcado e conhecido como o punk da latinha e seu canto melofanhoso. Quem sabe agora pela última vez.


25

“BREVES ESTAÇÕES – A VIAGEM DE UM SUDORÍPARA”

A

A ANGÚSTIA s badaladas pulsantes dentro de mim haviam se tornado perceptíveis. Pareciam acelerar-se à medida que eu contava um por um aquele batalhão de gente vindo contra mim. Ouvia claramente o bumbumbum do meu coração

ressoar aflito como que querendo sair do meu corpo. Era eu ou ele, decretei. “Fique quietinho aí, bumbão”. Eu poderia jurar que ele, bumbão, gostasse de ficar ali coberto por um calor de gente, protegido. Não seria só o meu corpo, mas sim também corpos acalorados em busca da vida cotidiana, das coisas que fazemos e não fazemos questão de fazer diariamente. O ar havia se transformado em gás carbônico, tornando a grande massa humana refém da mesma atmosfera. Sentia as primeiras gotículas de suor pipocar pela derme comprimida pelo algodão da minha camisa. O colarinho desta havia como que grudado na nuca e não podia fazer muita coisa porque estava engravatado neste dia. Aliás, todos os dias. Sempre. Como o era ficar diariamente comprimido feito sardinha em lata. “Hummmm, que clichê famoso!” Quis me mexer um pouco, trocar a pastinha de executivo de braço, mas somente a duras penas consegui. O momento em que estávamos todos juntos, era interminável. Uma pontada no estômago e a minha atenção voltou-se para a lembrança de que não havia comido nem um pedaço de pão-de-coco que minha irmã comprara bem cedo na padaria do Edu, o japonês. Padaria de japonês não era privilégio para qualquer um! “E talvez a grande maioria aqui não tenha mesmo comido hoje de manhã”. Isso me trouxe um conforto repentino e fugaz. Não deu nem tempo para estorcer o músculo facial a fim de um risinho que logo um abafa pareceu dominar-me. Parecia mesmo interminável aquele


26 momento em que estávamos juntos. Pensei em Solange. Aquele seu perfume importado, se não me engano Fortiore, tinha um aroma suave de rosas. “Como ia bem ele agora”... Era melhor imaginá-lo penetrando por minhas narinas e tentar ocupar o tempo. Cheirinho bom!

O APERTO Não era nada não. E sim o meu pensamento que começou a trabalhar com maior velocidade. Claro que não em coisas úteis, para variar. “Neguinho não pára para pensar em trabalho!” E eu que não sou bobo nem nada, não entro nessa também. Nossos corpos permaneciam unidos, de modo que podia sentir as batidas não somente do meu coração. Mas daquela senhora magra e de óculos que estava juntinho de mim do meu lado esquerdo. Empolguei-me com a possibilidade de falar alguma coisa, mas será que a mulher estava a fim disso mesmo? “Que coisa de doido querer ficar falando com gente que não se conhece”. Mas eu estava sentindo o seu coração. Enquanto que o meu não mais. Ele parecia ter-se arrefecido. E só foi pensar nisso para ele dar suas batidas fortes. Bastou ficar preocupado pensando que ia morrer, para o bumbão crescer como surdo em escola de samba! Ou será de bamba? Porque agora o crioulo à minha direita enfiou o carão sorridente para dentro de mim. Estava na cara que ele era batuqueiro. E da “Vai-Vai”, ainda por cima. Lembrei de tê-lo visto no último desfile. Não que fosse uma certeza certeza, mas eu não costumava me enganar com rostos. Minha mãe sempre me disse que eu puxara a ela, porque ela tinha uma visão fotográfica. “Mas será que isso não era não porque o negão estava grudado em mim agora?” Nossos corpos estavam tão unidos que eu podia sentir as batidas de seu coração. Pensei em dizer alguma coisa a ele, mas desisti por causa do bafo. Não, não, eu nunca fui preconceituoso com isso; só que tampouco era masoquista. Virei o rosto, contudo havia grande concentração ali de pessoas e meu corpo não saiu do lugar. Um só coração parecia bater em uníssono. Como numa escola de samba. E de bambas. Comecei


27 a rir ao imaginar aquela gente querendo sambar enquanto em minha mente um refrão da Marrom entoava: “Não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar...” Mas o acabado era eu! Porque se me soltassem, eu caía.

A SENSAÇÃO A engrenagem era uma só. Todos os corpos respiravam meio que sincronizadamente. Claro que ninguém ensaiara coisa alguma, mas a necessidade da inércia exigia. Uma preguiça só! Dava até medo que isso fosse verdade. “Ô povinho pra se encostar!” Claro, eu queria dizer que não adiantava união nesse caso. Por mais juntos que ficássemos, ninguém nos pagaria por isso. O que íamos dizer sobre o acontecimento? Que isso era um incidente? E eu que tinha lido uma coisa muito estranha dizendo que o incidente era a determinação de um personagem, e que este era a iluminação de um incidente. Então se isso fosse verdade lá estava eu sendo a iluminação daquele acontecimento. Iluminação pobre, por sinal. Comecei a rir de novo porque me lembrei do lampadinha do professor Pardal. “Então eu era ele, que loucura!” Tinha momentos que eu já me confundia com o que estava me acontecendo. A respiração do outro se confundindo com a minha. Nossos movimentos em sincronia, indo e voltando, para frente e para trás... Assim eu começava a ficar excitado. Se fosse então para balançar, que eu sentisse prazer, ora bolas! Um atiço formigou em minha mente. Era como se a lampadinha da libido tivesse se acendido agora. Isso porque a morena café-com-leite estava me olhando. Não tão de perto, mas próxima. Aliás, o difícil era dimensionar o que era próximo e longe. Um mundo se juntava ali num entra e sai. E o meu pensamento fervilhando. Queria respirar com a morena, no meu diapasão. “Se os movimentos eram tão sincronizados agora, por que não ficávamos juntinhos indo e voltando, para frente e para trás, só nós dois?” O meu corpo relaxou porque recebeu um sinal agradável do cérebro. Encravei um sorriso maroto no rosto e dirigi a ela. Na mesma situação, ela o devolveu do


28 jeito dela. Ao menos estávamos em movimento. As sensações pareciam se corresponder com graça. Com leveza, claro. E sintonia. Mas mais ainda com a sincronia daquele movimento.

A PACIÊNCIA Se alguém me perguntasse como estava me sentindo com tudo aquilo, seguramente eu falaria que é a própria vida que dita seus ritmos. Porque apesar de todo aquele movimento de pessoas, de repente, parava. Quero dizer que às vezes só. Como que querendo nos colocar à prova. Claro que podíamos ver os fatos como esporte. E isso foi reforçado pelo cabo da polícia, que pediu em voz alta diante daquele tumulto: “Calma, pessoal. Vamos levar tudo isso na esportiva”. Como se fosse fácil! Eu nunca fui bom em esportes. Desde pequeno já parecia um dumbo, e, agora, no auge da idade de Cristo, eu só poderia fazer o papel da bola! Mas como, se ali não havia um espaçozinho sequer para um chute? “Aaaai!!”, eu gritei. A mulher magricela havia me acertado um chute na canela. Sim, claro, eu a desculpei, mas a minha vontade era dizer que o sapato dela era muito bicudo, embora tivesse o bico quadrado. “Que absurdo tudo isso!” Antigamente uma coisa era só uma coisa; agora, tudo não é mais uma coisa só, sujeita à transformação constante. Eu devia ser meio que retrógrado. Como a própria palavra, pois embaralhava a cabeça só de pensar nela! Não gostava desse negócio de mudar as coisas tão rapidamente. “Isso era mais uma prova para a humanidade”. E a gente ali parado... Como se quisessem nos colocar à prova! Estava exausto com tantas paradas e provas! Se tivesse que escolher ser um bicho agora, desejava ser uma lesma! Para não ser colocado à prova e ser aceito como sou. “Que mania essa coisa da gente se encaixar naquilo que inventam!” Eu não era um executivo, a não ser a minha pastinha que era. Eu era um bancário que precisava atender pessoas e ajudá-las a se servir do banco para o qual trabalhava. Se eu fosse honesto comigo e com elas, falava-lhes a


29 verdade: de que eu não acreditava em tudo aquilo que existia. Que fazia tudo isso por causa da sobrevivência. Com mulher e dois filhos pequenos, eu não podia parar. “Mas que raios que continuamos aqui sendo colocados à prova?”

A IMPACIÊNCIA A minha pastinha havia colocado no meio das pernas. Cada vez mais sentia os pés formigarem. “Será que era sintoma de artéria entupida?” Sei lá. Era visível a canseira de muita gente. Alguns, no entanto, não aparentavam isso; ao contrário, mantinham no rosto uma máscara indelével de que não eram feitos de carne e osso, mas sim de ferro. Estava na cara que a todos ficava implícito um código do tipo “quando nos cansamos da mesma posição, nos esforçamos para mudar, mesmo que só um pouquinho”. Coisas para tirar qualquer um do sério. Era o que eu pensava. Se fosse mais desavergonhado, proporia para dançar uma régue ali mesmo. Assim, se era para mudar, mudaríamos. Mesmo que fosse um pouquinho e só de posição. Porque mudar para mim continuava muito difícil. Sentia-me inquieto só pelo fato de pensar nessa possibilidade. Mas nos obrigavam a entrar nesse jogo. E sem treinamento! Como mudar sem estar preparado? Desde pequeno ouvia o pai dizer que no trabalho dele tudo continuava igual e que ele se aposentaria nele no final de sua vida. E, agora, o coitado tinha sido demitido antes mesmo de se aposentar, sendo que estava com cinqüenta e cinco anos. Como todo lugar que ia procurar emprego diziam-lhe que era velho, ele caiu em depressão. Como fazê-lo mudar a essa altura de sua vida? Mas a vida era essa mesma, a realidade não admitia choradeiras, portanto acabei tendo de ajudar o meu pai a compreender que ele devia modificar alguns de seus hábitos. Justo eu, que mal-e-mal sabia lidar com essa estória de mudança. Bufei de cansaço. Era o primeiro sinal de que não adiantara muito trocar de posição só um pouquinho. E acho que nem se fosse muito. Porque o cansaço não era só físico, mas mental. A impaciência havia conquistado seu lugar em


30 minha disposição, e tudo aquilo que ainda havia de agradável em mim, pareceu dar lugar a ela. A enésima passageira. Porque dela ali havia almas-gêmeas com certeza.

A TRANSPIRAÇÃO Grande parte do aglomerado tinha brilho nos rostos. A sensação que tinha era comum a todos. Era o suor de nossos corpos que começava a fluir sem que nada pudéssemos fazer. Senti uma vontade louca de arrancar aquela gravata e rasgar aquela sufoco de camisa! E percebi que isso também transbordava daqueles outros. Sei lá, sempre tinha esse costume de achar o que os outros estão sentindo. Não, como já disse eu era bancário, e não um psicólogo. Mas gostava de rebuscar sensações no coração das pessoas. Era interessante demais entrar naqueles sentimentos e passear por eles. Penetrar nas cabeças alheias e ver os pensamentos que são mais ou menos parecidos. Quer dizer, são todos parecidos quando pensam sobre sentimentos de angústia, desespero, medo, raiva e tristeza. “O bicho ta pegando aqui dentro!” E, claro, sendo assim, apenas dava para pensar sobre sentimentos ruins. Eu até que procurava por alguma coisa boa, mas naquele aperto, com a pele molhada ensopando meus panos, começava a me sentir um criminoso. E ainda mais agravado pelo fedor de perfumes sendo vencidos por cêcês se vaporizando... Com isso então desejava tudo de ruim para aquelas pessoas! A cada gota que brotava em minha testa curva, outro pensamento negativo igualmente irrompia de minha mente. De modo que balbuciei alguns impropérios que um jovem com cara de cêdeéfe olhou-me por de trás de seus óculos como quem visse alguém tendo uma paranóia, ou qualquer coisa do gênero. Isso tudo porque a sensação piorava a cada instante. O suor fluindo em bicas como uma torrente. “Hummmm, outro clichê famoso!” Mas o que me deixava mais emputecido mesmo era nada poder fazer. Uma coisa que Deus fez errado, se querem saber. Por que não podemos controlar a transpiração do corpo afinal de contas? Aquela sensação era constrangedora. E eu não


31 podia acreditar que o nosso bom Pai quisesse que passássemos por isso. A menos que Ele também transpirasse com a gente. “Sim, só podia ser; Ele é Todo de Tudo”.

A IMINÊNCIA Já tinha lido também sobre o clímax. Naquele mesmo livro que falava do incidente e do personagem. Não me lembrava o nome do livro e do autor porque, ao contrário da minha memória fotográfica, tinha péssima memória só gráfica. Quero dizer, tudo que lia entrava por aqui e saía por ali! Ficavam apenas frases esparsas, palavras soltas, máximas que gostava. No mais, tudo escapava de meu subconsciente. Menos o clímax. Sim, porque o calor era enorme agora e parecia que nos faria desmaiar. Ali era um forno de assar pão! “Eita! Um novo clichê velho que só o fusca!” Ah! Mas eu não queria nem saber mais! Se minha mente não guardava coisas interessantes, ao menos uns “clichezinhos básicos” até que me faziam sorrir. O que era um disparate a esta altura. Aquela gente toda era digna de uma placa de homenagem. Mesmo com a rotatividade constante, havia os amados remanescentes que não trocavam de posição, o que justificava pensar mesmo em pão, em massa, em amassado, em compilado... Sei lá, mas eu estava achando graça. A mulher magricela desferiu um olhar de peixe morto para mim, talvez pensando que o calor tivesse de fato assando os meus miolinhos trocando a razão pela doidice. O que não correspondia à verdade porque estava lúcido diante daquela molhadeira que havia se tornado as costas de minha camisa. Se houvesse mesmo um clímax, aquele era este momento. A sensação de desmaio era iminente. As imagens começaram a se embaralhar, e junto com os efeitos da sudorese, vinham o desespero e o pânico. Tipo, “eu não vou conseguir agüentar mais!”. Uma vontade louca de correr dali, mas dentro de um desespero de sentir as pernas não acompanharem. A única solução que via agora era atingir o meu objetivo: chegar ao banco. Seria um alívio pisar naquela agência depois desse suadouro todo. E eu juro que não iria


32 xingar ninguém. O respeito pela coisa pública e privada era a minha marca registrada. Um trabalhador eu era.

O ACASALAMENTO Não, aquilo não era o clímax. Mas sim um anticlímax. Porque se nós já transpirávamos feito peles vermelhas sobre a fogueira, ainda assim estávamos próximos do ponto alto, porque, agora, uma força maior nos fazia ficar ainda mais colados um ao outro, de maneira que eu sentia todo o corpo da mulher magricela. Quer dizer, o corpo não; os ossos, bem dito. Pensei nessa “força maior”. Quem seria a dita cuja? Por que Deus estaria nos proporcionando esse momento? Qual o seu desígnio? Havia alguma coisa muito imperceptível aos nossos olhos humanos? Eram perguntas de um pobre filósofo apertado contra uma mulher descarnada. Se bem que se ela fosse do meu tipo, eu acho que não trairia a Madalena. Mas assim já estaria traindo a Solange! Já não sabia mais o que fazer mesmo. Se essa força estranha me empurrava contra a mulher, e esta, não saía do lugar, era porque alguma coisa precisava acontecer, ora pois pois! Eu, um legítimo descendente dos Oliveiras, parrudinho e peludo do jeito que a mulherada gostava, só poderia mesmo fazer sucesso. Ainda mais em uma circunstância daquelas. “Eu não posso pensar desse jeito, que afronto contra a moralidade de Deus!” Estava parecendo um imbecil a ponto de misturar as bolas. Se eu estava pensando naquilo, que assumisse sozinho a fantasia e ponto. A “força maior” que nos fazia ficar ainda mais grudadinhos um ao outro a ponto de sentir todo – eu disse, todo! – corpo do outro não era divina coisa nenhuma. Era o nosso limite para suportar a nossa necessidade de viver em sociedade. Eu sempre pensei que sozinhos jamais poderíamos chegar a algum ponto, porque mesmo que chegássemos, sozinhos, não haveria ninguém para reconhecer o nosso feito. Sozinhos, não poderíamos nos reunir com os


33 outros. Mas quem era aquela mulher que agora estava tão apertada ao meu corpo, que eu já estava me machucando com aqueles seus ossos pontudos? A GLÂNDULA Estava difícil de segurar. Eu já me encontrava praticamente fora de si. De todos aqueles que eu tinha em meu raio de ação, a que me mais me instigava agora era a magricela. Provavelmente, ela tinha sido modelo, porque agora devia ter uns trinta e dois anos. Era mais nova que eu. Estávamos tão juntos que se eu abrisse a boca para lhe perguntar a idade, ela veria o sininho fronteiriço pendurado em minha goela, por isso fiquei com vergonha. Afora o meu hálito que seguramente não devia estar lá grande coisa, porque tinha mania de dormir de boca aberta, de modo que, mesmo escovando os dentes com paciência, sempre ficava uma carga pequena de gás butano. E eu não podia me arriscar. Além do mais já tinha perdido a noção do quanto poderia estar fedendo em razão da minha intensa transpiração. Vale lembrar que eu era rechonchudo, com umas banhas caídas na altura da cintura. E achava muito curioso que os gordinhos sentissem vergonha de falar sobre isso, e eu não. O único constrangimento pessoal era o cheiro que exalava quando suava. Era uma coisa que parecia estar reentranhada e pronta a soltar seus gases mortíferos quando acuada. Quem nem um gambá. “Xiiii. Outro clichezão!” Era isso que me angustiava. Mais do que o próprio pânico sentido no meio daquele aperto, era a falta de controle das glândulas sudoríparas. Eu me sentia o próprio. “Um sudorípara, gente!” Mas será que a magricela estava sentindo o meu cheiro? Porque eu não sinto nada. Apenas aqueles ossos mal ajeitados contra os meus pneuzinhos. Ela, vez ou outra, lançava um olhar meio que sofrido para mim. E isso era engraçado porque ela estava no macio, ao passo que eu naquela dureza! “Os papéis haviam se invertido! Que loucura!” Sim, porque agora a magricela tinha se tornado viril, e eu... “Um sudorípara boiola?” Não! “Eu preciso falar-lhe alguma coisa”.


34 Isso não podia ficar assim. Quando então uma voz volumosa ecoou em nossos ouvidos: ESTAÇÃO SÉ... DESEMBARQUEM PELO LADO ESQUERDO DO TREM!

O DESFECHO Era o desenlace. Todos saíram dali praticamente. Menos eu e a magricela, que fomos engolfados pela entrada de um novo batalhão de gente. Rimos agora. Como se tivéssemos compreendido o que a Força Maior havia designado para a gente. E a confirmação veio quando ela finalmente me disse: “Quente aqui, né?” E foi isto a força que impulsionou uma nova gota de suor que senti correr do alto da cabeça rolando lateralmente para a minha nuca. “Pronto! Mais uma pra minha coleção!” E agora que se dane o clichê! Porque não agüento mais suar desse jeito.


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A LENDA DO BOTA PRETA

C

ândido Pires estava quase eleito. Também pudera, uma dinheirama fabulosa a sua organização de campanha havia gastado. Cândido Pires era doido. Doido pra ser eleito e estar no governo. Mas no dia em que

iam apura os voto, parecia que ele queria está anônimo. Um anônimo fugitivo, sem sonho de pudê ou de querê comandá. Isto que vou contá sobre essa figura, aconteceu no dia dezessete de novembro de mir novecentos e noventa e oito, na Fazenda Vento Forte de Minas Gerais. E posso contá porque fui testemunho oculá – sabe aquela ocasião em que parece memo que somos atraído ao acontecimento feito corredera em dias de tempestade? Pois é, eu estava lá. Mió dizendo, estive. Pra começo de conversa, me chamo Urias Arantes, e sou o caseiro da fazenda de Cândido Pires, a figura aí citada acima. Num tenho muito estudo não, mas gosto das letra e fuço nos livro que o doutô Cândido sempre leva pra fazenda. O ôme é danado, sô! Tem livro de tudo quanto é assunto, e eu me esbardo sempre despois do armoço. Digo, num tenho estudo, mas vontade é coisa que sobra. Por isso memo que to tentando contar essa história. Tudo começô quando o danado do doutô Cândido Pires queria morrer por um dia. Sério, cumpadre! Ou então ele queria se esquecê das eleição por algumasora - na realidade, enquanto durasse a apuração dos voto pra governadô. Sendo o desejo dele num acompanhá as apuração dos voto, sabe que o danado fez então pra num sufrê durante a contagem? – Veio se escondê em sua fazenda! Imaginava ele


36 que, ali, longe da cidade e dos conhecido, estaria a sarvo das boca bafuda que joga uma só lambança no meio do povo, que bem podia ser empurrada pros intestino que num ia fazê farta nenhuma e, despois, ir direto pro esgoto, sô. Cândido Pires chegô na fazenda na noite anterior ao tar do sufrágio, dia dezesseis de novembro, por vorta das oito da noite, de modo que ordenou ao seu cabo eleitorar e candidato a deputado estaduar, Vidêncio Ramos, que ficasse na cidade acompanhando tudo, mas assim que terminasse o demônio daquele escrutíno, tinha pranos pra vorta e fazê um grande comício na Praça dos Democrata. Eu disse “tinha pranos” porque ele num vortô e o comício ficou sem sua figura mais esperada e, até onde eu sei, que mais voto podia tê. - Vamos combinar uma coisa: você só me procura se eu estiver com boa margem de folga à frente de meus opositores – ordenou Cândido ao seu cabo eleitoral Vidêncio Ramos, antes de vir pra fazenda. - Antes disso, não quero saber nada sobre nomes, números, imagens e falatório. Mas, se eu ganhar, Vidêncio... Bom, se eu vencer, rapaz, aí as suas preocupações não serão mais preocupações. Boto você e a tua família lá no gabinete pra trabalhar. Quer dizer, trabalhar é modo de dizer, entende? E Vidêncio abriu uma fieira de dentes torto, esperançoso e seguro de que seu chefe tinha bico bom daqueles que num deixa escapa grão de farofa pelos lado da boca. E em seguida, foi que o doutô Cândido Pires, apressado, pulou pra drento de seu Fordão Quatro por Quatro, e acelerou rumo à fazenda. E só foi quando então o ilustre ôme pisou a terra vermeia da Fazenda Vento Forte de Minas Gerais, que eu, Urias Arantes, um ôme bom também sô - e muito fiel antes que me esqueça - já estava ali de prontidão segurando nas mão a sela do garanhão Brabão.


37 - Urias! gritou o patrão da porteira. - Essa fazenda é minha esta noite e amanhã, entendeu? – De longe, eu num entendi. Só despois que o ôme atravessou a porteira e veio até mim e se explicou é que deu jeito. – Escuta só, Urias: se tiver perguntas e reclamações a fazer, desembucha logo que to cansado. E guarda essa sela que agora não vou montar. Ah, e por falar em sela, trata de forrar o Brabão bem forrado que amanhã ninguém me acha por essas bandas. Um raio! O ôme veio se esgoelando de coisa pra falá e vomitô tudo na minha fuça. Acho que tava com a pá virada, e eu num tava esperando... Ainda bem que também num tinha nada pra perguntar pra ele. O doutô sempre me deu tudo, a minha famíia num tinha nenhuma queixa, todos os meus cinco fio tavam na escola, a muié dava duro com eu na roça. De modo que, o que poderia querer com um homem tão bão? A num ser avisá que tinha um bode brabo sorto na fazenda, escapulido das terra dos Santana. - Óia, douto: só queria avisa que tem um bode doido solto aí na fazenda que é ruim que só a peste. Atende pelo nome de Bota Preta. O sinhô quando oiá pra ele, e ele te oiá direto no zóio, diga pra ele rápido que nem um estampido de revórve: “Senta a Bota, Preta!” E o bicho arreia; fora disso, ele ataca. Mas num se esquece que ele tem que te oiá de frente direto nos zóio. - Ora, ora, Urias – emproou o ôme - e eu sou homem de fugi de um bode, moço! Se ele aparecer na minha frente, taco o Brabão pra cima dele que ele vai se enterrar até a cauda de medo, vixe! Eu num disse mais nada. Ele num conhecia o Bota Preta, e por isso fazia poco caso do danado. Mas aquele bode era bicho ruim demais, sô! Parecia que sabia que era ruim, porque botava medo em todo mundo que aparecesse na sua frente. E se o doutô pretendia num ser incomodado na fazenda, o bode seria o pior chato que ele podia encontrar por aqui.


38 Mas Cândido Pires só ia cavalgá no dia seguinte memo, e, até lá, quem sabe o Bota Preta vortava pra terra dos Santana. O pió memo era que o danado tinha gostado das terra do doutô Cândido. Era certo que a fazenda tinha um tantãozão de terra a se perder de vista uns dois arquere mai ou meno, e uma baita prantação de verdura. O doutô já estava descasado, mas na época de sua esposa, dona Creide Borba, eles vinham todo finar de semana pra cá cuida do Hortão que acabaram fazendo. Ainda hoje restô uns pé de arface que dá jeito, mas os brócoi, as escaróia, as corve-frô, e tudo mais, já foram pras cucuia. Uma pena porque só eles cuidavam e num deixavam ninguém cuidá. De modo que eu num quis sabê disso memo despois que dona Creide saiu pro exteriô. “Probrema deles, ói! Quem é dono do miiaral guenta as espiga que cresce antes e despois da semeadura, num é memo?” Naquela noite até que tudo correu a sete maraviía. E, quando amanheceu o dia, já tinha sór em todo campo da fazenda. Tava quente que só a cardeira da siderúrgica dos Solano pra derreter mais. Um inferno aqui na terra e um fogo só no céu. Eu aproveitei pra forrá de novo as bucha dos porco, porque os danado parecia parafuso espanado que num segurava as lavage no estomago, sô! O doutô Cândido Pires já tinha muntado no Brabão e saído pela fazenda afora. Num havia quarqué sinar de onde eles foram, mas deviam estar perto dos arrozar dos Pimenta, a leste de Jacutinga. “Quer saber, vou também arriá Derico e cavargá um pouco por essa terra santa”. Eu estava já a uma míia de casa, quando ouvi um baruio. Um baruio estranho é verdade. Meio rincho, meio balido, meio grasnado, uma coisa estranha. E, então, cravei as espora em Derico e corremo desabaladamente fazenda adentro. E nisso quase fui pro chão,


39 fiquei com os pé por um triz nos arreio de Derico, mas me equilibrei, e fomos ver o que estava acontecendo. Foi então que topei com os zóio do bicho. Bota Preta tinha um brio ruim em vorta dos zóio. Era como se uma jararaca tivesse injetado veneno roxo nas pupia dele. Até parecia ácido que se joga no poço, uai. Daí que num tive dúvida e sortei: “Senta a Bota, Preta!” Mas o danado foi esperto toda vida, sô. Nesta mema hora, ele virô a cara e tirô os zóio de mim. E berrô feito um demônio, até que eu sartei pra trás de uma cerejeira. Bota Preta me procurou com aquele zóio roxo. E eu repetia sem pará “Senta a Bota, Preta; Senta a Bota, Preta!” E ele fugia os zóio pra num arriá. “Bicho safado!” Num quis nem sabê: subi dois gaio acima, como espírito pro céu. O medo ventô pra drento de mim como nos firme de artura, e eu pensei que fosse me esburrachá no chão, coisa só de um tantinho. Daí que ouvi um bufido de cavalo. Era como se o animar estivesse drento de um buraco ou quarqué coisa assim. “O doutô Cândido Pires!!! Ele deve ter se estrupiado mais o Brabão!” Em seguida, ouvi um caburé piar arto, rindo. Xinguei o gozadô e pulei de vorta pro chão. Bota Preta também se assustô e correu protro lado da triia. Era uma triia que ia dá lá nos trecho dos arrozar dos Pimenta. “Num falei que sabia onde eles tavam?” E curri pra onde vinha o baruio doido, que cuntinuava. Agora sim, a minha suspeita se confirmava: tanto o doutô Cândido quanto Brabão tinham caído num buraco. “Mas era uma cova! E quem cavô foi o bicho ruim do Bota Preta! Ô bicho sabido, sô!” Foi só quando vi o doutô Cândido sem os sentido é que pude vê a seriedade da coisa. Me joguei pra drento da cova que Bota Preta tinha feito com aquelas pata grande e preta, que nem bota memo, e vi que o doutô tava desbotado. A cor da pele tava que nem tinta fresca e ele num respondia nenhum chamado. Brabão, por sua vez, gemia aos quatro vento, o desgraçado. Tava entalado com as pata dianteira presa debaixo do corpo. Eu trazia


40 na cinta comigo um punhar e um moio de chave. Mas tava só também; Derico se assustô com Bota Preta e fugiu, de modo que eu num tinha muita coisa a fazê senão primeiro sarvá o doutô, e, só então, despois, tenta retirá o cavalo daquele supliço. Mas quem disse que Bota Preta deixô. O bicho ruim tava de gaiato ali, espreitando nóis por debaixo daqueie zóio roxo de botá medo em lobisome. Esperto por demais, escondia os zóis a todo instante da minha cara, porque sabia que eu era o único que podia fazê ele arriá. De cima da cova, o bicho nozoiô daquele jeito. Vi até um risinho tantã sair daquela boca de bode. “Fio de bode com coisa-ruim! Deixa eu pô as mão nesse coro preto que cê vai vê!” De repente, o danado do bode, virou-se de banda e começô a nos enterra na cova. Com as pata engrenada na terra, fazia um movimento que nem tivesse fazendo xaxim. E eu vi o diabo nessa hora! A cova era funda e eu num tinha como me segurá pra saí dali. Mas também, quem mandô entra?! Pra mim, Bota Preta era Bota Capeta, isso sim. Ele num parava de atirá terra sobre nóis, e eu já tava vendo a gente virá adubo. O gorpe sarvadô quem deu memo foi Derico. Ô cavalo bão aquele, sô! Ele vortô com a corage que eu lhe ensinei e se jogô contra aquele demônio. Brigaram um tanto de tempo. O chifrudo bem que ruminou, mas Derico deu-lhe um coice certero que acertô a pata traseira do bicho. Ele arriô e se estendeu, enquanto Derico virou o traseiro pra cova e curvou-se pra trás pra que eu pudesse segurá no seu rabo. “Ô cavalo inteligente esse meu, sô!” No fim, saí da cova e amarrei o bode. Não o jegue; mas sim, o bode: o Bota Preta. E olhando bem naquele zóio roxo e ruim, disse, arto, com raiva: “Senta a Bota, Preta!” Mas


41 daí era só raiva, porque o desgramado já tava arriado, rezando o padre-nosso pro vigário. Eu, Urias Arantes, tinha prendido Bota Preta, o bode véio fio de um diabo cornudo! Nisso, tinha passado bem umas três hora. Tomei as rédeas de Derico, peguei umas corda que tinha ali no arreio, amarrei em Derico e no pescoço de Brabão e tirâmo o garanhão do buraco. Foi só um susto; ele num tinha quebrado nenhuma pata. O pió memo era com o doutô Cândido, que tava ainda desmaiado. O omê num tinha vortado a si, e achei memo que ele tinha se ferrado. Daí que arreei o Derico direito, pus o doutô Cândido atravessado de um arreio a outro e vortamo pra fazenda. Eu muntado, agora, em Brabão. Um cabra bão pra bode nenhum botá defeito, sô! Em casa, entretanto, o doutô Cândido acordô e eu contei mai e meno o que aconteceu. - Você me falou pra falar quando visse o bode: “Senta a Bota, Preta!” que ele arreava. Mas que trem doido é aquilo, Urias!? Ele não existe de verdade. Bota Preta é lenda! É lenda! - Pode até sê, doutô; mas precisemo pegá o danado. Vamo vortá lá na tríia e matá o desgramado. - Então tá; pega lá a espingarda que não vai sobrar um pelo daquele barbicha pra contar a história! E vortamo pra onde deixamo Bota Preta. E quem disse que o danado tava lá? Bicho ruim é que nem gato: tem, por assim dizê, sete vida. Cândido Pires tava maluco que só ele. Chego a pegá a espingarda e dá uns tiro pra cima pra vê se o bode aparecia. Mas nada de Bota Preta aparecê. Acho que tava com as barba de moio. Sendo assim, vortamo pra casa da fazenda.


42 Já tinha dado a hora do armoço e o doutô Candido foi cumê lá em casa porque assim num corria o risco de ficar tentado a atendê o telefone em sua casa. Minha muié Donana, e meus fios, já tinham cumido e deixado nóis dois a só. Daí que servi a ele uma batidinha de carambola e ficamo assim jogando cunversa fora até terminar de cumê. - Eu vô te dizê, Urias: só quero pensar no governo no dia da posse. Esse negócio de ficar me preocupando antes do tempo, não dá não. - Acho que o doutô ta certo memo. Guverno deve sê um trabaio muito difici. Vir pra fazenda descansá é mio coisa do mundo. Uma pena foi só esse bode desgramado aparecê. - Mas quem disse que desisti de pegar o bicho, Urias? Eu deixo o governo no dia da posse se não catar esse bode pela barbixa! E põe mais uma batidinha aqui, que tá o bicho! Forrado o estomago, saímo atrás do animar. Como disse, a fazenda era muito grande; dois arquere é terra pra diabo, e lá fomo nóis catá o Bota Preta. Mas despois de duas hora sem sinar do cabra macho, eu disse a Cândido Pires: - Óia Doutô: acho que o bode pulou a cerca e foi pras terra dos Santana. Afinar, ele veio de lá memo. - Se é assim, vamos até lá pegá-lo. Eu tava muntado em Brabão e o doutô em Derico. O ôme era supesticioso que só uma moça; achava que Brabão tinha vacilado da primeira vez e quis matá o coitado. Fui eu quem convenci Cândido a deixá então o garanhão comigo. Assim, trocamo de animar. Eu já tava cansado de procurá aquele bode, mas o doutô tinha cismado em matá o bicho. Quando então o Bota Preta apareceu na nossa frente. O desgramado tava irreconhecivi; era agora um cão de ôio azul! Mas era o Bota Preta, disso eu tenho certeza! Aquela barbixa de bode e aquelas pata toda preta, era inconfurdivi! - Que cão é esse, Urias? Não sabia que criava cães aqui.


43 - Num é meu não, doutô. É o bode! Atira nele, doutô! - Que é isso, rapaz? Tá ficando cego ou doido? - To falando que é o danado do Bota Preta, sô! - Isso não é possível! Quem nasce bode, cresce bode e morre bode, ou não? - Qué tê certeza? Grite o código da besta! - Senta a Bota, Preta! E o cão pé-de-bode arriô. Era o danado, só podia sê. O bicho era satânico, memo num tendo pé-de-pato. “Diacho! Era mió atira no desgramado e cabá logo com essa coisaruim”. Mas quem disse que o doutô Cândido quis matá o bicho? Ao contrário, pegô o cachorro de pé de bode e de rabo abanadô pra i cum nóis até as terra dos Santana. Ele num acreditô que aquele cão dos inferno fingindo-se de bonzinho fosse Bota Preta. Azar meu e sorte do doutô. Ocês vão ver porquê. Assim, quando cheguêmo no arado que dividia as terra do doutô Cândido e dos Santana, o cão pé-de-bode sartô protro lado da cerca e nos encarô. Juro pela minha mãe Zózima que vi com esse zóio cor de chumbo que a véia guerreira me deu, a transformação do coisa-ruim. Os zóio azul cor do céu começaram a escurecer até o roxo cor de ácido e os pelo cumprido amarronzado foram ficando bríiante e escurecendo que nem carvão. O medo ventô forte pra drento de mim e eu pensei que fosse desmaiá de tontura, sô. O doutô Cândido, tadim, clariô que nem lâmpida cento e cinqüenta watts. E da mesma forma que clariô, apagô. Sorte que num caiu de Derico. De novo, eu era o único que estava de iguar pra iguar com o coisa-ruim. - “Senta a Bota, Preta!” – gritei arto enquanto já pegava a espingarda pra me defendê do desgramado. – “Senta a Bota, Preta! Senta a Bota, Preta! Senta a Bota, Preta!”


44 E cadê o desgramado? Bota Preta num só num arriô, como sumir! E eu comecei a procurar que nem doido aquele bode sem-vergonha e ele tinha sumido. Comecei a atirá feito louco pra todos os lado. Eu num podia acreditá que ele num tava mais ali. O bicho ruim era esperto que só a desgrama, e ia vir por detrás de mim pelas costa. E, na loucura que sentia, descarregava as pórvora toda da espingarda pra tudo quanto é lado. Nem percebi que tinha acertado o doutô Cândido Pires naquela desgraceira de desespero, sô. Tinha furado o ôme de tudo quanto é jeito. Só percebi isso quando vi seu corpo desabar do lombo de Derico e cair ensangüentado na terra. Mas daí percebi também que o corpo que tava caído ali era do Bota Preta, e não do doutô! Era memo; tava morto cheio de tiro, furado que nem coador de leite. Desci assustado de Brabão pra me certificá que era memo o bode e não o doutô Cândido. “Coisa de louco, sô! Num é possivi! É Bota Preta memo! Mas cadê o diabo do doutô?” De pavô, sartei por cima de Brabão e vortei correndo pra fazenda. Nem me dei conta que Derico passou por mim desarreiado e veloz como uma flecha. E quando desmuntei de Brabão em casa bufando atrás de Donana, pra contar o causo, num é que dô de cara com Bota Preta! O satanás era impossivi! Tinha vida de monte e tapeadô que só o diabo! E a minha famíia, o que estava aquele desgramado fazendo ali? Cadê Donana e meus fio? - Vem Bota Preta! Vou te matá nas unha, seu desgramado! – Eu tava doido. Só via uma luiz piscando pra cima dos meu zóio, como um sinar de que Deus tava comigo. E pulei pra cima de Bota Preta com os braço esticado feito estaca de ferro daquelas de construção. “Quero vê se o danado tem podê maió que aquele que Deus me dá? Garrei o bicho pelos chifre e torci, com a força de Deus dos diabo, até dá um nó em vorta de sua cabeça. Os mioio começaram a saí dos tampão preto e tinham um cheiro azedo


45 de ácido que sentí derrete as mão. Ouvi os grito de Donana e das criança de drento do banheiro. Sortei o danado e corri pra acudi minha famíia. Graças a Deus, tavam todos bem, Misericórdia do Sinhô, Deus do céu! Quando vortei pra sala de casa, Bota Preta tava derretendo com os próprio mioio que saía de sua cabeça. De fato, aqueles zóio roxo eram feito de ácido memo. “Mas se Bota Preta tava desaparecendo ali, quem ficou ali na fronteira da fazenda Vento Forte de Minas Gerais foi do doutô Cândido Pires, o candidato a governadô do Estado!” Sartei de novo em Brabão e disparamo na direção das terra dos Santana. O capeta era tinhoso, sô! Tinha podê pra muda de cara e corpo como achava que convinha a ele, o desgramado. Mas quando aportêmo ali onde o corpo do doutô caíra de Derico, o que vi? Os traço da forma do corpo do doutô Cândido Pires desenhado na grama em seus contorno. E só isso. Era como se um ácido tivesse consumido o corpo do doutô e ficado só as rebarba! Coisa de pé-de-pato, sô! Num era possivi que aquele desgramado do Bota Preta tivesse derramado aquele zóio roxo de ácido de enxofre sobre o corpo do futuro governadô! Eu num podia acreditá nisso! Mas foi tudo verdade. Despois de vorta pra fazenda, tive que comunicá o fato pro senhô Vidêncio Ramos. O ôme nem se importô em vir pra fazenda de Cândido Pires pra vê com seu zóio o que tinha sobrado do candidato que só queria desaparecê por um dia, e que, agora, tinha virado fumacinha lá nos campo perto da fazenda dos Santana. Nem corpo pra enterrá pudemos juntá. O que fiz memo, foi enterrá os resto de Bota Preta no memo espaço de terra onde sulfurou o pobre ôme que só queria desaparecê por um dia.


46 Como disse, foi azar meu que tinha que dormi sabe lá Deus até quando com as lembrança de ter matado um ôme tão bão como o doutô Cândido Pires. E, pió de tudo, tê enterrado ele junto com o coisa-ruim, sô! Mas azá de uns sorte de outros num é memo? Porque o doutô partiu desta para mió. Digo que foi tão bão quanto ganhá as eleição! Até memo puquê ele, até onde eu sei, num tivera os voto que queria pra sê governadô aqui no Estado. Sei também que o comício onde Cândido Pires ia falá, aconteceu memo. E como o ôme ficara na estrada de terra comendo poeira vermeia, sô, Vidêncio Ramos anunciô no palanque na Praça dos Democrata que era candidato a governadô nas próximas eleição. Craro, num esqueceu de agradecê os voto que teve pra se elegê deputado federal pela legenda de Cândido Pires. Agora, sobre o sumiço dele, Vidêncio inventô uma história pra bode dormi: a lenda do Bota Preta - que eu, Urias Arantes, tive a ousadia de lhe contar despois que ele teve aqui. E pro senhores agora, obrigado.


47

TUDO POR CAUSA DE QUÊ?!


48

“FORMIGAÇÃO”

M

ORAES OLHOU PARA CIMA. Raios fosforescentes de um sol tubular pairavam sobre sua cabeça. Tudo claro como nuvens de algodão. E mormaço. Uma grande massa de ar quente lhe

engolfava tal qual um grande urso polar. Ele pegou a sentinela. Havia aberto os olhos sonolentos. Com os nós dos indicadores, apertou-os órbita adentro. Uma névoa embaçoulhe a visão como uma cortina de nuvens densas. Botou a perna para dentro da cabine de aço. “Aghhh! Que forno!” Aquilo era o inferno reduzido a uma caixa alta, vidro, porta, tudo blindado. Como um frango, ele sentiu a derme lubrificar-se, como se passasse um óleo de assar. Estava fatigado. Quarenta e oito horas de vigília não eram para qualquer um. Perversão. Tudo aquilo era uma perversão, inclusive ele. Um frango de farda. E um trezoitão pesando na cinta regada a cápsulas assassinas. “Aghhh! Um tiro na têmpora, e adeus sofrimento”. Em plena segunda, na efervescência matinal da nova semana. Ele olhou através do visor blindado o movimento que se formava ali dentro. “Formigas. Gente antenada”. Sensações fortes, alguma coisa que só fazia sentido fora dele. A decisão, espontânea, cintilou no mesencéfalo. Era como se tivesse acendido a invisível lâmpada pineal. Tudo o mais seria rápido e indolor como a luz de um flash. Toc, toc, toc, toc, toc... E o assoalho do mezanino rangeu. Moraes ergueu as pálpebras e elas caíram num piscar pesado, como uma bolsinha de veludo cobrindo pedrinhas preciosas. “Madona! Mas é a coisa mais gostosa... Bummm!”


49 Assustado Moraes tentou levantar-se. Parecia ter perdido aquelas sensações vívidas. Pela nuca abaixo sentiu escorrer um fio de suor como se fosse um braço de rio. A cabeça estremeceu em curtos espasmos e golpeou o chão com força. A respiração se perdeu e, nas faces, irromperam brotoejas na forma de pérolas transparentes como numa metamorfose. Seu estado apresentava-se revulsivo. E, agora, somente uma bomba-relógio marcava os passos do seu coração. Era como se este fosse o único órgão instalado naquele organismo vigiado por uma alma preste a se libertar.

-

Algum sinal, doutora?...

-

Auriçama, Doutora Auriçama Fuentes.

-

A senhora é chilena?

-

Meu marido que é. Acho que o pulso está perdendo ritmo. Por favor, levanta as pálpebras dele.

-

Vermelhinhas ainda hein, doutora!

-

Vamos, vamos, depressa! Segure aqui para mim.

-

O braço?

-

Sim. Ô bicho pesado!

“Formigas, gente antenada”. Uma galáxia de cabeças diferentes estava inclinada sobre pranchetas de desenho, por isso ninguém o notou ali fora parado à porta da classe olhando pela janelinha. Moraes tinha um olhar vivo e brilhante como se fosse a sombra luminosa de uma aparição. Um foguete disparava em sua mente afirmando-lhe que não estava preparado para desenhar planos e calcular ângulos, nem mesmo projetar o que quer que fosse em três dimensões. Mas todos ali dentro continuavam concentrados em suas


50 tarefas, enquanto ele percebia o olhar de uma musa ali fora o encarando com um sorriso matreiro nos lábios. Imediatamente, Moraes sorveu aquela luz resplandecente e sentiu o sangue correr muito rápido pelo corpo. A gosma de sua saliva se adensou na boca e esta lhe pareceu colada. Ele sentiu vontade de abraçar aquele corpo cheio de formas e volumes, bagagens que gostaria de levar para uma viagem sem fim. Uma flor de lótus no paraíso. Aquilo sim era uma realidade da qual não devia duvidar nunca jamais e em tempo algum! -

Vamos entrar?

-

Onde?

-

Na classe.

-

Mas eu não estudo.

-

Quem disse?

-

Hã?

Outro formigamento. Uma sensação já conhecida, mas desta vez infinitamente mais prazerosa. Ele sentia o ar daquela boca sedenta se aproximar à sua. De nada adiantava forçar se era tímido. O impulso o engolfou. Ele apertou-a contra si e sentiu o fogo acender músculos e entranhas. Lembrou-se de como um foguete era ejetado ao espaço. Aquela maçaroca de fogo embolando cada vez mais a cauda do foguete. Era a mesma coisa agora. Queria encontrar o espaço macio daquela pele, daquele universo incendiário no negrume da carne, na vertigem dominante do prazer pulsante. Aquele ser era real, sim. E, mais: sua visão, caleidoscópica. -

Força!

-

Estou fazendo.

-

Mais!

-

Espera.


51 -

Ahn?

-

Por onde eu começo?

-

Ah! Não!...

Ele era errante, mas queria aprender. No âmago dos seus sentidos. Batendo coxas. Uma nova maneira de recomeçar. A visão da realidade já não mais lhe entorpecia. E sim o medo de continuar errando. Sem parar. Porque se estava ali passando por aquilo, alguma coisa precisava tirar de bom. A realidade da vida o testava. Não havia porque temer, mas temia. Temia perder os sentidos e sair daquela redoma perfeita de imagens reais. Era preciso viver as fantasias e aprender a dominar seus encantos. Um astronauta a caminho do espaço. Uma lua incandescente ao luar. Uma noite perdida na noite. Algo assim...

-

Conte-me o que se sucedeu depois.

-

Eu não sei ao certo.

-

Mas você viveu, não foi?

-

O quê eu vivi?

-

O sonho da noite.

-

Eu não tenho certeza.

-

Mas eu tenho.

Uma invasão de pensamentos desencontrados, como fagulhas na mão do soldador. Seria a morte? Ou algo ainda mais temível. Uma chapa de ferro encostando-se à sua alma. E isso lhe trazia uma insólita sensação de que o vento soprava para bem longe essa aparente realidade... Aparentemente real?

-

Viveu sem necessidade.


52 -

Eu não posso acreditar nisso.

-

A vida é passageira.

-

Por quanto tempo?

-

Que ela dura?

-

Não. Que ela morre...

O vento soprava seu espírito para bem longe. Ficava como que um vácuo no lugar de seu corpo. As galáxias passavam por ele agora como que cometas. As lembranças iam se perdendo pelo espaço e pareciam luzes que piscavam o próprio desvanecimento. Onde ele estava mesmo?...

-

Não me diga que trabalhava naquele banco!?

-

Ahn hã!

-

Então era de lá que eu o conhecia!...

-

Não sei, talvez.

-

Não. Agora tenho certeza.

-

Fui segurança.

-

Eu sei. Eu sei.

-

Fui obrigado.

-

Necessidade, não é?

-

E você, faz tempo que estuda aqui?

-

Desde quando você me achou.

-

Não é possível!


53 “Formigas. Gente antenada”. Um acúmulo de gente ali próximo à cabine. A portinhola escancarada e uma poça de sangue ali esparramada formando um mapa rubro e infernal. -

Alguém viu o que aconteceu?

-

Não exatamente.

-

Disseram que viram uma moça aproximar-se da cabine.

-

Mas ninguém viu ela atirar.

-

Estou vendo que isso vai ser uma investigação longa.

-

Pior é que não vai dar em nada.

-

O que pode ter acontecido?

-

Vai ver ele tentou estuprá-la fora daqui.

-

Vingança?! Mas é claro!

-

Nicodemos Moraes de Souza. Trabalhava há um ano e meio aqui no banco.

-

Vamos, vamos. Abram espaço. Quem viu o homicídio?

-

Seu guarda! Juro por Nossa Senhora que ela era uma musa!

-

Ela quem?

-

A dona que matou o segurança.

-

Então você viu o crime?

-

Crime?! Que crime?

-

Você não acabou de falar que a moça matou o segurança!

-

A lâmpada não se apaga quando queima?

-

Geralmente acontece sozinha...

-

E a moça estava sozinha, eu vi!

-

Não! Estou falando da lâmpada que se apaga sozinha.


54 -

Chiiii... Que complicação!

Mais rumores se desencontrava ali tornando ambíguo os indícios do acontecido: tudo que era necessário acontecer, ou acontecia segundo a vontade própria ou segundo a vontade de outrem; missão cumprida, esse alguém desaparecia. “Formigas. Gente antenada”. Sobre tudo o que acontecia. E que desacontecia. Como num piscar de olhos.


55 MONTAGE

H

AVIA POUCA LUZ na ilha de vídeo. Embora fosse um dia bem claro, ali, naquele cubículo forrado por material acrílico, uns poucos monitores compunham o cenário, a maioria deles apagados, uns três

acesos, com as imagens trocando de posições como se fossem cavalos de corrida em plena reta final. O responsável pelo troca-troca de imagens está sentado sobre uma cadeira giratória, jovem ainda porém já meio calvo e com uma barba rala pulverizada pelo rosto lívido e macilento. Olha atentamente para três monitores e vê as imagens em troca-troca se sucederem, logo em seguida passando em slow-motion. Um sorrisinho maléfico parece ser vaporizado do canto de sua boca. Então, de forma deliberada, ele pega o aparelho telefônico e começa a digitar um número, bem devagar. Os monitores voltam a se alternar como no começo e o rapaz fica agora sob uma iluminação estroboscópica. De repente, irrompe o tom rouco e caucasiano de uma voz através da linha telefônica: — Sim. Silêncio. As imagens vão surgindo nos monitores e mostram, no primeiro, um velho playboy erguendo-se de uma cadeira no estúdio de gravação; no segundo, um vulto de homem de casacão escuro tirando uma arma; e em um terceiro monitor, o velho sendo atingido pelo vulto misterioso. — Alô! — Doutor Alvarenga Murtinho?


56 — Sim?... — Queríamos lhe agradecer, doutor... A sua entrevista foi um tremendo sucesso! — Ah! Vitor Cruz da TV Satélite? Muito obrigado. Eu é que tenho de agradecer pela oportunidade. Quando vai para o ar? Foi um tremendo prazer dar essa entrevista. Quando precisar, disponha. — O senhor está no ar agora. — Agora?... — Certamente o senhor tem uma tevê na sua sala não é, doutor? — Sim, sim, estou ligando. Que canal mesmo...? — Três. Teve muita repercussão, doutor. Estamos recebendo muitos elogios. Meus parabéns! — Obrigado, Vitor, muito obrigado. — Não é o Vitor não, doutor. Conseguiu sintonizar? — Olha, não estou vendo nada... Quem é que está falando?... — E agora? Um silêncio momentâneo é interrompido por um estampido de tiro vindo do vídeo, em que o velho playboy é atingido e vai desmoronando lentamente. Na sala do doutor Alvarenga, este parece estarrecido. Acabara de assistir a uma cena mórbida, o seu assassinato na tevê. O vulto assassino corre rapidamente através de uma porta e desaparece. Alvarenga quase de instantâneo volta ao telefone, mas paralisa-se ante a um silêncio marcado por uma respiração sarcástica. — Quem é você? O que quer? — Fale baixo doutor. — O que quer? Fale!


57 — O senhor prestou bastante atenção nas imagens não é, doutor? — Você vai dormir! Eu não tenho medo de ameaças! — Escute bem, doutor. — Como fez isso, pilantra? Por que me matou? — Quero três milhões. Traga aqui na estação quatro. Onze de outubro, 66. Daí que o senhor só assiste à entrevista. — Vigarista! Eu vou te matar, desgraçado! — Retire o dinheiro, doutor. E tudo morre aqui. — Quem vai morrer é você! Espere-me! — Não venha pra cá sem o dinheiro, senão... Doutor Alvarenga pulou da cadeira. Seu joelho direito acertou a quina da mesa e ele gritou, penosamente. Uma maçaroca de emoções odiosas agora lhe oprimia a lucidez, a clarividência das coisas. Apenas um ponto de luz escurecido ele via fruto da pungente dor que se misturou à raiva que o dominava por inteiro. Sentiu o coração bater descompassadamente, e, num instante, quis até parar, mas articulou-se, algo rebelde, sem lei, corajoso. Ele se levantou mancando e pegou uma arma de dentro de uma gaveta. E, antes de sair, parou à frente da tevê e ficou vendo a imagem de sua morte, em replay, como se fosse a pedidos. Na ilha de vídeo, as mesmas imagens passavam no monitor central. Um risinho mordaz em meio à semipenumbra do ambiente dava um ar ainda mais estarrecedor à cena. A imagem do tiro acertando Alvarenga no estúdio passava agora em um, em dois, em três monitores, simultânea e seguidamente, quase que num caleidoscópio, e o troca-troca de imagens seguia na alternância de uma corrida de milha.


58 O tempo caminhou muito rápido e já havia se passado bem perto de dois quartos de hora quando o rapaz virou-se e viu chegar a figura do velho Alvarenga que, estacionou ali na entrada da ilha de edição, os músculos contraídos, a expressão de dor, e com uma arma na mão direita enquanto pousava a esquerda sobre o coração. A comunicação eletrodótica entre os dois dava-se pelo brilho de seus olhares; uma palavra a mais seria luxo aquela altura. De repente, um estampido ilumina a vida, a raiva, o instinto. A morte chegava a cavalo; mas, antes, um rumor de desabamento. E ossos aos estalos, ruindo, quebrando o gelo. A cobiça e a morte carnal. E uma mão de velho colada ao coração implodido e agonizante. Imagem que os monitores repetiam de forma alternada.


59 MISSÃO CUMPRIDA, GERALDO!

N

OVAS CORES, NOVA LUMINOSIDADE, NOVO VISUAL, NOVO DESIGN. UM SHOW DE IMAGENS PARA VOCÊ VER O MUNDO. VESÚVIO. ESTA É A MARCA DE SUA TV-

INTERNET. VOCÊ ESTÁ CONVIDADO A ASSISTIR A VIDA CORRER NA SUA FRENTE.

A luz fosforescente do letreiro luminoso refletia bem no centro das pupilas de Geraldo, que, ali na calçada da avenida Presidente Rui Vasconcelos, assistia embasbacado a passagem da propaganda no imenso painel eletrônico colocado lateralmente e ao alto de um grande edifício. Geraldo sentiu tontura. Abaixou a cabeça por instantes e viu pessoas caminhando rápido pela avenida. A vertigem pareceu aumentar e ele sentiu o chão desaparecer sob a planta de seus pés. Um zum zum zum repentino infestou seus ouvidos e ele apagou. Logo procurou se apalpar. Parecia sentir o corpo, a pulsação. Bateu o pé no chão para se certificar de que estava de pé. Olhou para o chão e se viu ali. Como podia isso? O assombro feito cicuta injetada diretamente no seu sangue entupiu-lhe as veias e sinalizoulhe a morte. Voltou-se para o luminoso da avenida. Ele não estava mais lá. Voltou a baixar a cabeça e seu corpo também havia desaparecido. Somente permanecia a sua consciência. Consciência sem corpo. Como podia isso? Com medo, começou a correr pela avenida. Pelo corredor central, que separava as duas pistas. Não sentia nada. Nem chão, nem asfalto, nenhum concreto. Apenas uma luz à


60 frente atraía a sua visão, o seu querer. Essa era a sua moral: correr para a luz. Como podia isso? O seu pensar era atômico agora. De tão rápido e preciso, brilhavam como num concerto parisiense, luzes em forma de perguntas. “Quem sou eu? Para onde vou? Onde está o meu corpo? Quem é aquela luz irresistível ali na frente?” E Geraldo corria sem parar. Ele sabia que era ele, porque tinha consciência disso. Mas o seu corpo não estava ali. Apenas a consciência de que ele era ele. Como podia isso? As imagens que via passando não eram das pessoas que estavam ali na avenida, mas sim de sua vida. Um pot-pourri de lembranças emanava de sua mente como torrentes de luz em forma de fonte. Ele via isso, mas não se via mais. Como podia isso? Fim da linha e uma luz gigantesca tomou a frente de Geraldo, que aportara ali para onde fora compelido. Um novo medo o assaltou. Como podia isso ser verdade? A luminosidade era multiestelar e muito maior do que aquele painel luminoso que ainda espoucava em sua memória. E muito mais prodigiosa do que qualquer outra coisa que vira ou imaginara ver um dia! Uma luz branca verde amarela azul anil! Então Deus era brasileiro, enfim! Essa certeza subjugou o temor de Geraldo. Sentiu vontade de abraçar o Pai. Pena que não tinha mais corpo para vestir a camiseta canarinho da seleção. Seria tão bom estar vestido a caráter! O caminho estava cumprido. A missão também. No Brasil. Como brasileiro. Ao Pai retornava agora. Ao prodígio da luz. E como luz que era. Sem corpo. Mas em espírito. Sem dinheiro. Mas com o valor que dera à sua vida.


61 O abraço durou uma eternidade. Sinônimos da mesma natureza, eles ficaram juntos contemplando a avenida, por onde passavam corpos apressados em busca de desejos e missões a serem cumpridas. E isso era outra espécie de luz, de diretriz. - Geraldo: agora você entende? Geraldo olhou para o Pai. A luz dele era indescritível. E então uma clareza lhe acendeu a consciência por completo. Seu corpo, sua luz, sua consciência era uma coisa só. E de todos aqueles que estavam na avenida também. O manto de luz cobriu-lhe os sentidos. O olhar agora era a única claridade que irradiava de sua mente. Como podia isso fazer tanto sentido agora? Esse era então o poder de Deus Pai: dar luz e clareza a seus filhos. A surpresa foi tão grande que ele apagou. Mas o luminoso continuou a mostrar a propaganda na avenida. Não era mais sobre o “Vesúvio”, TV-Internet, mas sobre uma revista estampando na capa a seguinte pergunta: “Deus existe”?


62

O

OVOS DA PATA sol estava em meu rosto. Insinuante e sinuoso, ele nasceu e começou o dia olhando para dentro de mim. Pelo olho da testa. Um sol. Pisquei os olhos e levantei da cama.

Estava com fome. Saí do quarto e entrei como um bólido na cozinha. A geladeira estava semi-aberta por causa do estrago na borracha de vedação. “Mãe!”, gritei, mas ela não me acudiu. Tomei nas mãos os dois restantes ovos de pata que havia lucrado por ter trocado o botijão de gás para ela. Luluzinha era o nome da pata. Quebrei os ovos. Tirei as claras, enchi duas colheres fundas de açúcar e volvi sobre as gemas. O coração pesou por culpa. Por que a necessidade de sacrificar os ovos da Luluzinha? Da janela da cozinha vi o sol refletir seus raios nos copos e talheres ali espalhados na pia. Detestei-o. “Quem te disse pra brilhar hoje, gema de ovo?” Tinha a língua ácida. Castigo. Deus dá dodói no dia de domingo. Era isso mesmo o que meu rosto refletia no vidro da janela. Dodói. Os olhos caídos desproporcionalmente. Quis pegar dois clipes para segurar as pálpebras. Tudo por causa de quê. Eu tinha certeza que era por isso. Sempre. Sempre que via aqueles dois se olharem daquele jeito ficava assim. Pombinhos apaixonados. Mereciam uma chuva de ovos. Da Luluzinha mesmo. Eu continuava ao deusdará. Eu era só eu. E o sentimento que me envolvia não tinha mesmo valor. Ela não tinha olhos para mim. O ciúme tinha sua lâmina cravada no meu peito.


63 Gema brilhando no céu e na minha mão os cacos dos ovos da pata. O sorriso dela aberto dentro de minha memória. A porta da cozinha se abriu e Luluzinha apareceu. Sabida veio acudir. Grasnou forte. Tive a sensação de ser pego fazendo malvadeza. Senti o sol entrar pela janela do meu peito. Fiat Lux! Renasci agora.


64

LUVAS DE BORRACHA

N

orberto era um homem seco mesmo trabalhando com águas. Digamos que era também ingrato desde o momento em que abria os olhos para trabalhar. Sem muita delonga, tinha de seguir para o trabalho de

supervisor na hidrelétrica de Brasilínea. Pior mesmo era a sua irritação quando chegava na sala de controle da usina e se deparava com a figura sacana de seu auxiliar Everaldo, que, ali postado próximo ao intrincado painel regulador das comportas de água, abria um sorrisinho diabólico, o bastante para fazer explodir a raiva de Norberto. - Vai, Jacaré! Sai da minha frente! Você já checou essa bomba hoje? Então suma! - Bom dia! – sorria o ajudante, com visível falsidade. - O senhor deve ter sonhado com luvas de borracha, né não, seu Norberto? - Tome tento, capacho! Um dia vou me ver livre de você, jacaré! E o supervisor emburrava ainda mais o rosto. Norberto sempre fazia a sua rotina. Aproximava-se do painel e fazia a sua checagem com uma rápida passagem de olhos. Na verdade, Norberto era daqueles homens atormentados com sua carreira profissional. Queria ter estudado alguma coisa que valesse a pena, mas ele mesmo não sabia o quê. Nunca soube, por isso nunca estudou. Queria, porque era cobrado por Dagoberto e dona Florinda. Como filho único, era nele que os pais depositavam todas as fichas de um futuro promissor e, portanto, de uma carreira sólida. Claro, vinte anos trabalhando na maior hidrelétrica do país devia ser motivo de orgulho para ele, mas não. Sentia raiva de estar ali até hoje, de ter


65 perdido os melhores anos de sua vida controlando botões e chaves de barreiras de água. Mas a culpa era só dele. Dele só. – Ooooo... Seu filho de uma égua! – gritou ele de repente para Everaldo, notando alguma coisa ali no painel. - Esta bosta de equipamento quebrou. Você viu essa bomba hoje? Everaldo era um sujeito aparentemente calmo e, como sua pele era fortemente escura, parecia não ter qualquer dificuldade de ocultar traços de humor ou de emoção. Com simplicidade algo sarcástica, afirmou perguntando: - Essa válvula quebrou desde aquela outra vez, está lembrado, seu Norberto? - O que é que está falando aí, jacaré? Velho que fala muito e trabalho pouco tem vida curta aqui, sabia disso? – Norberto virou-se de costas para Everaldo, para verificar alguns sinalizadores do outro lado do painel. Mas “aquela outra vez” a que se referira o seu auxiliar podia agora servir de dissimulação para o que Norberto estava sentindo. Vergonha. Isso sim. Norberto se defendia por esconder uma vergonha cabeluda por ter sido flagrado com a mão na botija. Havia pegado as luvas de borracha de Everaldo para entortar a válvula do pressurizador do nível dois da barragem, para com isso, botar fora sua recalcada bronca daquilo que fazia e, covardemente, ocultar suas digitais imundas. Não cogitara, contudo, que Everaldo o flagrasse. Já estava com a paciência esgotada de todo dia ver aquele rosto insolente do preto velho, e por isso, quis arranjar um pretexto para se livrar dele de um modo pernicioso: demissão por justa causa.


66 Mas, depois do flagrante de que fora vítima, estava sempre a ouvir “liberdades” do velho subordinado, porque, no fundo, sentia medo do que estava por trás daquele sorriso sardônico. Não gostava do tom que Everaldo usava para com ele. Principalmente quando suscitava as luvas de borracha. - A tormenta só castiga povo ruim – disse agora Everaldo em tom de provocativa profecia, no entanto, sempre mantendo aquela expressão quase depravada no rosto. – Tem gente que pensa que pode escapar dela, mas ela é braba que só o vento! O senhor pode sossegar o pito, que eu não sou do céu. - Das profundezas da terra, maldito jacaré! – estourou Norberto. Ele estava agora de frente para Everaldo mirando aquele rosto feliz por ser livre e sem medo. – Essa sua cara de carvão diz tudo. Você foi feito do petróleo. Boneco de piche... Quase automaticamente, Everaldo fechou o rosto e aquele seu sorriso espertalhão como que se demitiu. E ele foi andando na direção de um gabinete de louça, de onde abriu uma gaveta e retirou um par de luvas, balançando para o outro. – Borracha, seu Norberto, borracha. Eu fui feito desse material aqui, ó! – Agora ele voltava a deixar entrever uma pitadinha de sarcasmo. Norberto novamente fugiu do enfrentamento com Everaldo. Parecia não gostar de ver e ouvir falar daquelas malditas luvas de borracha. E Everaldo devia saber muito bem disso, pois voltava à carga com malícia a cada momento que julgava oportuno. E que azar o do Norberto! Como é que ninguém da superintendência da hidrelétrica de Brasilínea não aparecera até então para ver aquela válvula danificada? Aquele seu ato sórdido de usar as luvas de borracha do velho Everaldo servira para quê, afinal de contas?


67 Como ele poderia estar em dia com a sua patológica crueldade, se não tinha como imputar a culpa ao subordinado? Era só um daqueles cucas-frescas aparecer e pronto: o boneco de piche se escaldaria e ele estaria livre! - Vai! Me dá o relatório de controle que quero ver como andam os quilowatts do nível um. – Norberto estava passado completamente. - Melhor ver o nível dois – disse Everaldo oferecendo o respectivo relatório. – O senhor pode reparar na escala, que tem diferenças... – Embora exercendo função simples, Everaldo entendia de variações nos sistemas de energia da hidrelétrica. Norberto arrancou o relatório da mão do outro, e engoliu em seco. Na expressão, o risco de uma perda iminente. A produção de energia havia baixado a índices temerosos e ele imediatamente ordenou a Everaldo que abrisse as comportas relacionadas ao nível dois. Seria preciso agilidade para que o fluxo de água pudesse retomar o nível desejado, e então, a escala se normalizar. - Válvula pressurizadora, Everaldo! – ordenou Norberto, nervoso. – O que está esperando para abrir a porra da válvula. Rápido! Everaldo permaneceu estático mas novamente disse que a válvula tinha estragado desde o dia em que Norberto a entortara com aquelas luvas de borracha. - Você é louco, jacaré! Louco! Louco! - E correu ele mesmo para o painel de controle. Fixamente olhou os níveis das barragens da usina e se estarreceu. Puxou os cabelos loiros para cima com tanta força que parecia ter enlouquecido. Seus grossos óculos de aros pretos caíram pela frente do nariz e se espatifaram no piso frio. Norberto gritou outra vez em desespero. Havia dentro dele um turbilhão crescente, como se seu cérebro


68 estivesse aquecendo e sendo pressurizado por um vapor raivoso. Tentou inutilmente abrir a válvula do nível dois da barragem de Brasilínea e não conseguiu. Temeu que a superintendência aparecesse nesse exato momento e o pegasse ali, feito uma presa fácil. Como um pressentimento vivo dessa imagem, viu a chegada do Novaes, o superintendente regional da barragem de Brasilínea entrar naquela sala. Norberto perdeu-se. Tateou o gabinete à procura do par de luvas de Everaldo. Precisava ser rápido antes que o Novaes visse o desastre iminente. O tempo era seu inimigo agora. Se não abrisse as comportas do nível dois, aconteceria o pior: haveria perda de energia e a decorrente queda em toda a região sul. Virou-se rapidamente para trás e deparou-se com Novaes. Vestiu a luva e saltou ao painel e começou a pressionar a válvula emperrada. Gotas de suor começaram a perolar em seu rosto e a brotar de dentro de sua camisa. O esforço era grande e, o tempo, pequeno. - Vamos Everaldo! Me ajude aqui com isssss... – E Norberto parou de falar. Tudo ali ficara às escuras agora, inclusive as máquinas, luzinhas, computadores e tudo o mais no painel de controle. Ele começou a tatear o painel porque não enxergava nada. Além da escuridão, estava sem óculos. - Doutor Novaes – chamou ele meio que cavernosamente. – Doutor Novaes, o senhor ainda está aí? Everaldo acendeu um isqueiro e Norberto quase expirou de susto. - Ah, não! É você, jacaré boneco de piche! – Norberto via agora a luz maliciosa do sorriso do outro. – Que é que está fazendo aqui, que não foi lá fora ver o que está acontecendo?


69 - Não senhor – disse Everaldo balançando a cabeça calmamente em negativa. Entretanto o sorrisinho continuava ali, indisfarçável. – A tormenta só castiga povo ruim e tem gente que pensa que pode escapar dela, mas ela é braba que só o vento! O senhor sossegue o pito agora, que eu estou indo. – Everaldo acendeu um cigarro com a chama do isqueiro, e virou-se seguindo para a porta de saída, no entanto, antes de atravessá-la, voltouse para Norberto e soltou uma baforada. – Ah! E pode ficar com as minhas luvas de borracha agora. Não era isso que o senhor queria desde o começo? Everaldo saiu e bateu a porta. Enquanto caminhava, ouviu o telefone tocar lá dentro da sala de controle. A cada passo, um toque. E Norberto não atendia a única coisa que estava em funcionamento agora naquela sala. A usina havia parado. E talvez Norberto não quisesse mesmo atender a superintendência com as luvas de borracha. Mas conseguira o seu intento. Everaldo acabara de se demitir.


70 CÃOBINHO, O GRANDE

P

ermitam-me contar-lhes, como se fosse por intermédio de uma teleobjetiva, as aventuras e desventuras de um menino chamado Rubinho, o qual, já faz muito tempo, partiu para outro planeta em busca

de sabedoria...

No entanto, antes de qualquer coisa, vale principiar essa história buscando imaginar, ou mesmo, se for possível, selecionar na memória alguns desenhos animados sobre cães de Walt Disney, sobretudo aqueles do tipo que mostram lindos cachorrinhos vivendo um mundo particular - tal como Banzé e sua trupe -, de modo que deveriam ser vistos como uma comunidade à procura de aprendizado e harmonia constantes. Agora, se você já conseguiu formar na imaginação o desenho animado dessas criaturinhas caninas, já pode vir comigo, senão, de outra forma, sugiro que imagine um mundo composto por cachorros especiais - e digo especiais porque vale trazer à memória a imponência magistral que foram esculpidas ou emolduradas aquelas divindades egípcias da Antigüidade, com rosto de gente e corpo de bicho, conhecidas sob o nome de esfinges com o propósito de se obter aquilo que desejo grandemente da sua atenção: criar junto com a sua imaginação o aspecto físico das criaturas que habitam esse mundo infanto-canino, por assim dizer, que, ao contrário daquele “faraônico”, é-me revelado por intermédio de uma objetiva fantástica, onde esses seres singelos fazem-me lembrar - se é que me permitem agora configurá-los dessa forma - uma comunidade de crianças-caninas, visto que possuem focinhos de cachorros e corpos de gente, e, aqui agora, limito-me a mostrar-lhes esses seres


71 singulares habitantes de um universo no qual, se se pudesse rotular em forma de legenda não seria exagero inscrevê-lo como um planeta infanto-canino multirracial. Cumpre observar ainda que, neste mundo, a vida não acabava, e sim, era demarcada por estágios de longa duração - um ano de vida eqüivalia a aproximadamente cinco anos assim, pois, quem ultrapassasse os doze anos de vida, era transportado através de veículos muito resistentes e super-aparelhados - tal qual um “Trenó Espacial” - para um outro planeta mais avançado, a fim de pôr à prova os respectivos conhecimentos adquiridos, e assim pois sucessivamente, de doze em doze anos, um estágio de vida era cumprido nesse ciclo infindável de “estudo-experiência-prática-estudo-experiência-prática”... A bem da verdade é fácil antever em nosso mundo que há regras das quais não cabe descumprir sob o risco de quebra da harmonia, e para comprovar o que estou querendo dizer, chamo-lhes a atenção para a conhecida norma escolar que estabelece a freqüência às aulas como requisito fundamental para o aprendizado em classe e em casa, já que para lá se levam tarefas e obrigações sugeridas pelos professores. O fato era que, nesse planeta infanto-canino, uma das regras estabelecidas para a harmonia de toda a sociedade era a de que todos os habitantes, portanto, que todas as crianças caninas freqüentassem a escola, contra o que se estaria sujeito a pagar um pesado preço, cujo imposto ia além de ficar preso em um canil de infratores: ficaria proibido terminantemente ao infrator falar normalmente ali, sendo-lhe permitido dar apenas seis latidos por dia - dois em cada período do extenso dia - como se por meio disso, de fato, se pudesse afligir o transgressor impondo-lhe uma volta ao passado longínquo, à irremediável época de seus ancestrais mais famosos - os chamados Uivossauros, cuja forma de vida se reduzia a meros latidos.


72 E quem senão Rubinho do Cão Brito, espécime forte de cãonino, para se atrever ante à espinhosa norma preestabelecida por esse sistema? Vale relembrar de que falei anteriormente sobre o desenho animado de Walt Disney, no entanto, agora, isso deve apenas contribuir à imaginação do leitor - para que possa a ele juntar outros elementos - com o intuito de conseguir configurar a pessoanina de Rubinho, mais conhecido por CãoBinho, cuja aparência lembrava mais a um “Buldog” magro e mal desenvolvido, em cujo semblante se refletia uma tristeza melancólica digna dos mais azarados vira-latas. Imagine o que é ser confundido erroneamente com uma criatura má, e de humor caído, como se fosse realmente uma ameaça a todos na escola - tal era a descompostura que transmitia o coitado do CãoBinho -, de forma que, imagine o leitor, ele transmitia pela forma do seu olhar uma espécie de enfrentamento gratuito, como se, em realidade, não houvesse nele sentimento algum, apenas cara-brava! Sendo assim, vestindo a carapuça do menino tripudiado ou boicotado pelo grupo de colegas na escola, CãoBinho desapareceu dali junto com seus mais ‘justificados’ motivos, razão pela qual ele não perdia por esperar, e, para breve, gente no seu encalço - coisa que de resto não lhe preocupava, já que, no fundo, era um criancão, solitário, carente e magoado, cujo pulsar do íntimo de seu lamentoso coração gania, caninamente, uma dupla dor: a da humilhação e a do abandono. Oh, que tristeza, My Dog, que sofrimento CãoBinho passava. Chutando o graveto seco a caminho de sua casa, tentou mudar o pensamento aflitivo. Tudo que fizera e aprendera até agora fora em vão? Não podia ser que naquela majestosa escola não houvesse


73 verdade! Ele passara o dia inconsolável. Oh minha casa; vou me preparar para uma grande mudança na minha vida. À luz da realidade, dir-se-ia ser um casebre jeitoso e pequeno, porém agradável, qual uma toca feita de massa de argila já bem endurecida e acinzentada. Era ali a morada de Rubinho do Cão Brito, localizada acima de um vale no qual serpenteava uma estrada de terra cercada por uma floresta que, de encantada, apenas tinha a atmosfera reinante que exalava dos pinheirais. Entrementes, o grupo de farejadores de elite já havia posto o pé nessa estrada, sabendo da determinação de localizar CãoBinho, porém dois insuspeitos se intrometeram e misturaram-se ao grupo ali, conhecidos que eram por suas zombarias e peripécias na escola, agora, adiantando e se afastando um pouco do outro pelotão. Um deles, o que tinha o hábito de recuar o corpo ao falar, era conhecido por Prevenildo - e como o próprio nome sugeria - era prevenido e desconfiado. O outro se chamava Rober VauVau que, sintomaticamente, soltava um latido antes de pronunciar qualquer palavra, tal como se estivesse condicionado mecanicamente a um tique nervoso. Este, estranhando a atitude calada do outro, dispara:

- Au, você está bem? - Pensando... - Au, isso eu não acredito! Auh! Auh! Auh!... - Quer parar de rir, VauVau bobalhão; agora eu não tô pra brincadeira.


74 - Au, tudo bem... Au, mas por que você não fala alguma coisa então sobre o que está pensando? - Uma coisa é pensar; outra é armar uma cilada infalível. - Au, sério?! Então, você... - Sim, eu sou prevenido, já se esqueceu? - Au, claro que não, Prevenildo. Au, mas, me diga: o que você armou aí na sua cabeça? - Agora você disse bem, VauVau; está na minha cabeça, mas ainda preciso da chave... - Au, chave? Aqui não tem chave nenhuma... - O quê você falou!? Mas então é isso! Pronto! Consegui, VauVau; encontrei a chave! Só que agora primeiro preciso me certificar que não há ninguém por aqui, de olho...

Prevenildo não era do tipo que bolava uma coisa, não. Pensava em duas três coisas tudo de uma vez, mas tinha habilidade de escolher uma coisa só para pôr em prática sua estratégia, e, por isso mesmo, é que cabe imaginar a facilidade com que ele agiu a partir de então: pegou seu companheiro de ação e foi pela retaguarda, enquanto o outro pelotão do grupo de farejadores ia pela frente, subindo o vale. Embora Rober VauVau caminhasse emudecido, ouvia o seu colega falando agora sobre suas próprias qualidades de visão e faro privilegiados, enquanto seguiam investigando por entre a mata, um pouco sobressaltados pelos ruídos que esta produzia,


75 quando então apareceu uma figura, ao estilo de um super-herói canino, mergulhando do alto de uma daquelas imensas árvores que ali existia e caindo à frente daqueles dois “caras de mamão” embasbacados. Convém dizer que a esta altura, Prevenildo, voltando-se para trás - não como o fazia habitualmente para falar mas apenas para buscar o melhor reconhecimento daquela figura , mudou a direção de sua conversa e desatinou a falar àquele que, à feição de um Super DoberMan, tomou de imediato a postura de um ouvinte elegante, e, fenômeno sem igual, ia ele transformando seguidamente sua aparência, conforme o rumo que tomava a conversa de Prevenildo, até que este lhe sugeriu o nome de Nanci Chou-Chou: Super DoberMan, imediatamente, tomou a forma desta e transformou-se numa maravilhosa garota oriental canina, que, na verdade, era cópia autêntica da formosa e badalada bedel da Grande Escola, para assombro de Rober VauVau. Imagine o leitor que, logo depois de Prevenildo colocar em prática seu plano e fazer com que Super DoberMan se fizesse passar por Nanci Chou-Chou, este voou para o outro lado da aldeia, bem próximo do casebre de Rubinho do Cão Brito, ao passo que Prevenildo e Rober VauVau tomaram então o caminho de volta, convencidos de que aquele magnífico super-herói camaleônico, então na pele de Nanci Chou-Chou, atrairia o fujão de volta à escola como num passe de mágica. Cabe dizer aqui o que mais chamava a atenção na beldade: seu uivinho delicado e dócil, tal qual uma música angelical, como se tivesse ido parar ali por um capricho do Senhor Dog. CãoBinho a viu de longe, pois havia entrado na floresta a fim de preparar a sua fuga por ela. Alguma coisa dentro dele ainda lhe causava um sentimento penoso, mas, naquele


76 instante, uma gota de felicidade verteu em seu coração endurecido, e ele, num impulso de arrebatamento canino, acorreu para junto daquela linda criatura, provavelmente impressionado pela visão que lhe aparecia qual uma semente de luz.

- Eu só posso estar tendo uma visão! Como que você chegou até aqui sozinha? - Ah! Meu queridinho!... Isso eu não posso falar. Vim saber o porquê de você ter sumido da escola... - Eu ainda não acredito que você esteja aqui... - Bobagem, CãoBinho. Eu sou uma menina rápida e determinada. Quando decido que vou fazer alguma coisa, não tem volta... - Não, Nanci, eu não posso acreditar nisso; alguma coisa aí está cheirando muito mal... - Oh! queridinho! Você está muito chateado, eu imagino... - Você não sabe de nada. Portanto, não pode imaginar coisa alguma! - Nossa, CãoBinho! Eu não sabia que você era tão bravo!...

Um ruído logo atrás deles, na estrada de terra de acesso à casa de CãoBinho, interrompeu momentaneamente a conversa de ambos. Imagine CãoBinho, com sua aparência de Buldog - sentindo agora as orelhas afogueadas, ao ver se aproximar aquele grupo de farejadores. Instintivamente, saltou e falou à mocinha:


77 - Traidora! E você querendo me fazer acreditar que veio sozinha aqui, não é mesmo? - Espera, CãoBinho; não é isto que está pensando. Eu não vim com eles, você precisa acreditar... - Nunca! Você também não gosta de mim! - Espera, por favor...

Atitude infrutífera, porque, nervosamente, CãoBinho ignorou-a e correu ao seu casebre, com a pressa de um cachorro perseguido. Sua revolta aumentava junto com seu temor, posto que seus sentimentos o embaraçavam numa rede de grande confusão interior. Ele ficou à janela observando aquele encontro de seus temidos “caçadores”. Eles que não se aproximem daqui, senão prendo todos aqui na armadilha que aprontei, não perco tempo, dizia ele entredentes. Pegou uma corda ali atada à janela e respirou ofegante, pronto a se defender caso fosse preciso. Como acreditar que aquela linda menina da qual jamais esperava qualquer atitude insensata, tivera a coragem de chefiar uma delegação de cães farejadores? Seja quem for, que venham para a briga; estou pronto. Acontece que, surpresa das surpresas, o grupo de farejadores chefiados pelo valente porém justo Bentinho Labrador, voltou-se por onde tinham vindo na estrada, descendo pelo vale em retirada. Nanci Chou-Chou, de fato, houvera convencido-lhes de sua capacidade de menina meiga, e que, salvo qualquer engano, era o que faria Rubinho voltar à escola justamente mediante seu gesto de ternura.


78 A saída de CãoBinho de sua casa foi uma visão digna daqueles “buldogues invocados” que, intrigado com o que achava impossível, se postara ali de lado à entrada da casa, com o semblante carregado de desconfiança, preparado para atacar a delicada Nanci, que agora havia se aproximado dele.

- Não falei, CãoBinho, que você podia confiar em mim... Eles já foram embora. - Bem sei que isso é uma cilada... Por que você não foi embora junto com eles? - Eu vim ajudar-lhe, CãoBinho, acredite! - Ajudar-me, é? Com uma tropa de “marmancães”? - Eles já foram, já disse. Agora, pode vir até aqui e me contar o que está acontecendo. - Não sei se devo... - Poxa, CãoBinho! - Está bem. CãoBinho se aproxima meio ressabiado de Nanci. Ela não se contém e solta: - Já não era sem tempo hein, CãoBinho!... - Foram uns patifes que andaram aprontando comigo na escola... - Ah! eu sabia que havia um motivo forte para deixá-lo aborrecido. - E você acha que não era pra estar? - Oh, queridinho! Não sei. Você nem me contou direito ainda!...


79 - Há um complô de uma gentinha na escola contra mim, é isso. - Tudo bem, mas isso é só uma parte. - Como só uma parte? - Todo complô tem seu chefe. Quem é ele? - Se eu disser que são dois, você vai acreditar? - E por que não? Quem são eles? - O que adianta dizer? Eu não pretendo voltar àquela escola, pelo menos enquanto aqueles dois vigaristas ainda estiverem lá. - Olha, CãoBinho: não se esqueça que você não pode abandonar a escola; isto é falta grave. - Eu sei, eu sei; admito que estou errado, mas a culpa maior é daqueles safados do Prevenildo e do Rober VauVau! - Eu já estava quase adivinhando... - Se quer saber, esses dois debocharam de mim na escola e fizeram os outros debochar também. Eu não tinha mais como ir à escola e ficar quieto no meu canto, ora bolas! - Mas eu não consigo entender a sua atitude de fugir... - Como assim? Você acha que eu deveria voltar lá e engolir tudo que esses canalhas fazem comigo?


80 - Não é isso que estou dizendo, queridinho! Fugir da escola não é a melhor solução; ao contrário, só vai complicar ainda mais as coisas pra você. Volte lá e tire tudo a limpo com esses dois pilantras. - Agora não dá mais; já me preparei para fugir para sempre. - Você é quem sabe... Eu disse para o Bentinho Labrador e seus cãesmaradas que você estava arrependido... - O quê?!... Como você disse uma mentira dessas? - Não importa como; só fiz isso para eles irem embora e o deixarem em paz. No entanto, eles deram prazo até amanhã, para você voltar... - Estou achando que você quer que eu volte à escola e dê uma lição naqueles caras, não é? Mas só que você se esquece de que são dois contra um não é, Chou-Chou? - Eu poderia apostar que você vai encontrar uma maneira de ganhar deles, sim. Volte, CãoBinho, por favor! É muito importante agora você voltar para escola. - Sinto muito, mas não vou voltar. - E se eu lhe disser que foi por causa daqueles dois bobocas que estou aqui, o que você pensaria? - O que está me dizendo aí? Você pirou de vez? - Se fosse invenção minha eu não falaria isso, mas acontece que é verdade! - Agora, breca aí! Nem mais uma palavrinha, senão eu mordo! - Mas, agora, queridinho, quem vai dar uma lição neles sou eu!


81 - Como você é, My Dog?! Chegou aqui trazendo um caminhão de intrigas e confusão... - Nada disso; é você que está se enganando; eu só vim aqui ajudar. - Tá bom, então; quer mesmo me ajudar? Pois fique aqui quietinha enquanto agora eu vou voltar lá e acabar com aqueles dois pivetes! - Mas eu é que... - Você não, vírgula, eu! É a minha honra que está suja graças à malvadeza daqueles dois cães insignificantes... Mas se existe justiça, o nome dela agora é Rubinho Cãostigador Brito. E ponto final!

E lá se foi CãoBinho atrás de seu objetivo, sem qualquer nódoa de vacilação. No fundo, roía-se de raiva por tudo quanto era obrigado a passar por causa de dois “arteiros” Ah, eles não perdem por esperar, mas não mesmo, ruminava ele obstinado. Atirou sobre as costas sua mochila e tomou a estrada de terra rumo à Grande Escola. Seus pensamentos eram movidos por uma vontade férrea de acerto de contas. Só isso lhe dominava o espírito valente. E, depois, com as mãos e o coração limpos, Nanci vai se sentir orgulhosa, sim, ficará ainda mais bonita do que já é, admitiu ele satisfeito. A propósito da bela Nanci Chou-Chou, ou antes, do grande e poderoso Super DoberMan, que ora encarnava as entranhas daquela, vale dizer agora que uma fagulha intencional incendiava-lhe a vontade tal qual um combustível, e logo ponderou que era preciso ajudar CãoBinho no combate diante do qual tudo podia acontecer, achava, razão pela qual decidira ir até ele ainda sob a meiga identidade de Nanci.


82 Podem imaginar as dificuldades com as quais estava prestes a se deparar CãoBinho na descida do vale. Já viram aqueles montes escarpados e movediços ante os quais torna-se imprevisível qualquer caminhada; pois bem, o Vale do Osso Recôncavo tinha essa estrutura, sem chamar-lhes a atenção para os pedregulhos em meio a trilha, nem para as rochas derrapantes, nem mesmo para outros perigos do tipo que pregam os chamados predadores, cuja existência se tem notícia desde que a noção de sustento habita o mundo. Portanto, atenho-me apenas aos perigos premeditados pela natureza canina, isto é, pelas tocaias armadas contra CãoBinho, o qual, inocentemente, via-se atraído àquele caminho. Convém admitir que, naquele grupo de farejadores, havia especialistas segundo as aptidões características de suas descendências Dogmáticas caninas, portanto, é de se supor o grau de perfeição a que poderiam atingir estando cada qual disposto e concentrado no seu objetivo. Sete elementos compunham o grupo espalhados em pontos estratégicos nas escarpas do vale, a caminho do qual podia-se divisar, ao longe, a Grande Escola, estendendo-se em braços que formavam alamedas arborizadas. Na realidade podia-se afirmar seguramente que CãoBinho não meditara sobre todos os riscos a que estava exposto no transcorrer de sua ação em razão de seu objetivo moral maior: castigar seus oponentes a qualquer custo. Assim, numa série quase que automática, o primeiro elemento daquele grupo de farejadores, na forma de um cão de caça, apareceu-lhe de inesperado e, paradoxalmente, à maneira de um felino, atirou-lhe sobre a cabeça um instrumento que parecia um “laça-cãesvadios” e contra o qual CãoBinho precisou usar seus dentes e sua habilidade para se safar, no entanto, mal se libertara daquela armadilha, um segundo elemento canino, na forma de uma raposa traiçoeira, imprimiu-lhe um duro golpe de “kung-fu”, fazendo com que


83 CãoBinho se curvasse e caísse aparentemente prostrado, porém conseguindo forças para, num segundo momento, surpreendê-los e contra-atacar com eficácia, dominando e imobilizando aqueles dois primeiros rivais com uma corda que conseguira retirar habilmente de sua mochila, prendendo-lhes a um grande pedregulho para que eles não fugissem. CãoBinho, de fato, tinha sido surpreendido - e a bem da verdade, a surpresa o deixara ainda mais irritado -, pois que, sem demora, viera um terceiro elemento - este na forma de um portentoso “São Bernardo” - que, de cima de uma imensa rocha, enlaçou o pescoço dele, para depois, arrastá-lo junto ao chão de terra, em direção à beira da trilha. CãoBinho, vendo-se impotente ante aquele ‘cão-jamanta’ imaginou-se na qualidade de um “Popeye”, que, em vez de comer espinafre para encontrar as forças sobrenaturais, comia a terra que sua boca engolia, passando, logo em seguida, a uma reação espantosa contra o grandalhão, conseguindo dominá-lo ao puxá-lo contra si, para assombro do brutamontes, que, à esta altura, quanto mais se aproximava de CãoBinho, mais hipnoticamente incrédulo demonstrava estar, até que teve seu braço torcido contra suas costas e, depois, amarrado à uma árvore. Imagine o leitor agora a aparição de um feérico foco de luz sustado no ar, em torno do qual um anjo esfumaçado surge para caracterizar as formas de Nanci Chou-Chou, cuja forma translúcida e de uma beleza luminosa, assistia a todos os fatos que se sucedem ao nosso herói, mas, chamo-lhes a atenção pela maneira privilegiada que ela o faz, ou seja, através de poderes que lhe conferiam o dom de não ser vista - apenas aquele contorno luminoso poderia ser captado pela minha atenta objetiva enquanto ela sobrevoava.


84 Aquele anjo formoso percebera que as provas contra as quais se deparava CãoBinho eram mesmo difíceis, desencadeando-lhe a cada vez maiores obstáculos, não obstante ela atribuir-lhe meios poderosos para que ele se defendesse à mesma altura de seus antagonistas, de forma que, entre estes, havia ainda quatro restantes daquele pelotão de farejadores emboscados à descida do Vale do Osso Recôncavo, já na direção da Grande Escola, onde então aguardavam a melhor oportunidade para dar o bote final contra o tal do cãonino fujão. Tratava-se, em realidade, de uma batalha semifinal, digamos assim, em que o nosso herói logo à descida do morro torna-se presa fácil da primeira dupla de marmancães, tendo suas patas amarradas em volta do seu próprio corpo, sendo atirado - agora pela segunda dupla de farejadores - em uma casinha na forma de jaula onde, se muito, poderia caber meio cãonino. CãoBinho, sem saber dos recursos daquela jaula, tentou escapar dela logo que se viu preso, porém, para sua surpresa maior, logo que encostou nas grades tomou um tremendo choque, descobrindo de imediato que, ao primeiro contato com seu corpo, aquelas barras emitiam uma corrente de energia contra a qual não havia como resistir, obrigando-o a se manter ali apertado contra a parte inferior daquela casinha em forma de jaula, quietinho. Assim, quando parecia realmente que CãoBinho não poderia fazer mais nada contra aquele sistema de prisão, eis que surgiu uma linda mocinha de longas madeixas louras, qual uma maravilhosa pastora que trazia um pequeno mas poderoso bastonete na mão, contra o qual nada desse mundo canino poderia resistir, sequer esses farejadores de meia-tigela, de modo que sem demora todos eles ficaram imóveis enquanto que, magicamente, a grade elétrica que sustentava a casinha-prisão fora destruída libertando CãoBinho novamente.


85 CãoBinho também estava perplexo; não sabia se ficava mais assombrado com a sua inacreditável e repentina liberdade, ou se estava de fato acordado diante da indescritível beleza daquela fada canina e de seu maravilhoso poder, tal era o seu ar de incrédulo êxtase, todavia, era preciso acreditar que fora aquela magnífica criatura saída das ventanias daquele vale, que lhe franqueara a passagem, dizendo-lhe ser Kaura, a Cãorubinha, protetora dos valentes e dos que tinham sede de justiça, razão pela qual viera ao seu encontro, pois que vocejava pelo planeta para sentir no ar o odor exalado por aqueles que se viam em desvantagem ou em perigo, e que estava ali, ele podia agora acreditar, para ajudá-lo. Ainda arrebatado pela força e energia daquelas vibrações que Kaura lhe transmitia, CãoBinho transpôs o vale e seguiu em direção à Grande Escola, agora, como que sentindo as suas forças plenamente revigoradas pela sublime intervenção daquela querubinha, ou melhor, Cãorubinha maravilhosa, que o havia libertado daqueles “lobos traiçoeiros”, cuja intenção maior, convicto estava, era a de ‘assá-lo’ - como se ele, CãoBinho, fosse transformado em um churrasquinho de cão grelhado - junto aquela grade elétrica a que estava preso. Nossa quanta coisa maravilhosa tem me acontecido nesses últimos dois dias, espantava-se CãoBinho. Como numa corrida de obstáculos, havia ele se superado rumo ao acerto de contas final com Prevenildo e Rober VauVau. No fundo, sentia saudades da escola, mais precisamente da matéria de Ciências da qual tinha verdadeira adoração, também de alguns colegas que, como ele, eram retraídos, e até do muro onde tinha por hábito se encostar no recreio. Sim, parece que o vejo agora à minha frente...


86 Era verdade. CãoBinho chegara à hora da saída da escola e, sem ficar à vista, entreviu Prevenildo e Rober VauVau saindo dali alegres e bem dispostos, e como de hábito, gozando os outros colegas. De tocaia, CãoBinho esperou pelo melhor momento para atacar aqueles dois, e isto aconteceu quando eles entraram na alameda. CãoBinho se atirou contra eles, a princípio, levando a pior pois eles se recuperaram por estarem dupla, mas, logo em seguida, CãoBinho conseguiu morder-lhes os calcanhares até imobilizar-lhes - assim como o fizera na estrada do vale aqueles primeiros cães farejadores - e os prender com cordas aos os portões dos fundos da Grande Escola.

- Au, tire-nos daqui, seu fedelho! - irritou-se Rober VauVau. - ‘VauVau’ latir em outro lugar agora... Ah! Ah! Ah!... - gozava CãoBinho, agora vendo-se vingado. - Você pensa que ganhou a guerra hein, espertinho? Pois saiba que vai cair de quatro sem que espere... - arriscou-se Prevenildo. - Pode reclamar à vontade, seu tolo, porque agora chegou a minha vez. Como é bom poder desmascarar vocês dois. - E que você pensa que pode fazer, se nunca fez coisa alguma que prestasse. revidou Prevenildo. - Isso é problema meu! Agora, os dois tratem de ficar quietinhos aí que vou pensar numa boa surpresa para vocês.


87 - Au, Prevenildo! Você vai ficar aqui olhando esse bobalhão sem fazer nada? exasperou-se Rober VauVau. - Ué! Por que me pergunta isso, VauVau? Se quiser, faça você mesmo, ora essa! - Au, como? Estou preso!... - Calem a boca, vocês dois! - rompeu CãoBinho. - A não ser que queiram ficar aí discutindo o que podem fazer de ‘bão’ amarradinhos, eu vou lá dentro e daqui a pouquinho eu volto. - Au, volte aqui, seu seu... - Isso não vai ficar assim, CãoBinho, porque, enquanto eu me chamar Prevenildo, ninguém é louco de me passar para trás!...

Assim, Prevenildo e Rober VauVau ficaram ali amarrados no portão, enquanto CãoBinho foi procurar a inspetoria de alunos, aproveitando, ainda, para arrebanhar um mutirão de coleguinhas à porta da escola, levando-os até onde estavam os dois patifes. Na verdade, CãoBinho havia exigido uma condição para que todos pudessem ouvir a confissão de Prevenildo e Rober VauVau: ser ele o único a servir-lhes de interrogador, em benefício de uma confissão espontânea, ao que foi aceito por aclamação. Assim que viram toda aquela de multidão de crianças-caninas se aglomerarem defronte ao portão onde estavam presos, Prevenildo e Rober VauVau logo clamaram por socorro, mas CãoBinho tomou à dianteira do grupo e começou uma espécie de acareação com os prisioneiros.


88

- Muito bem, um de vocês dois pode falar: está todo mundo aqui ansioso para ouvir a confissão de culpa de vocês. - Culpa de que, mané? - exclamou com fúria, Prevenildo. - Culpa de terem provocado o meu afastamento da escola - respondeu calmamente CãoBinho. - Au, isso é uma cau, uma cau - uma caulúnia!... - gaguejou VauVau. - Esperem um pouco... Ouçam todos vocês. VauVau está muito nervoso, como podem notar. É claro que somos inocentes; nunca fizemos nada contra ninguém, muito menos gozamos da cara do CãoBinho. - tentou consertar meio sem jeito Prevenildo. - Quer dizer então que o comportamento de vocês sempre foi exemplar, nunca provocando ninguém, nem magoando nem rebaixando, é isso mesmo? - continuou CãoBinho. - Sim, sim... É verdade. Se fossemos ruins outros colegas estariam nos acusando de fazermos a mesma coisa e isso não acontece, não é mesmo? - Pois bem então, agora deixo por conta dos honrados cidacãos aqui presentes: que vocês façam a correta justiça por mim em nome também daqueles que sofreram a mesma coisa do que eu, porque, em minha presença, tenho quase certeza que nenhum desses dois miseráveis irá admitir a maldade que fizeram. Disto isto, afirmo que depois que tudo estiver esclarecido, retomo a minha vida nos estudos normalmente...


89 E assim foi que CãoBinho deixou aqueles dois para serem acusados e interrogados porque sabia que havia outros com o coração ofendido ansiosos por uma chance daquela, e retirou-se com o orgulho da missão cumprida, podendo agora dizer àquela linda cãonina da Nanci, que conseguira vingar a sua honra ‘buldoguesa’. Isso foi o bastante para CãoBinho que voltara à escola no dia seguinte, mesmo quando ouviu de um colega que Prevenildo e Rober VauVau haviam recebido o perdão de todos que foram atingidos por suas malvadezas, inclusive dos inspetores da escola, cabendo-lhes, tão-somente, como uma espécie de tarefa remissora, preparar e entregar uma trabalho sobre o duro fardo de Mister Mastino - o mais antigo e espetacular ancestral do Planeta OssoDuro, o qual teve que se transformar em gato para poder sobreviver. Assim se passaram cinco dias no planeta infanto-canino, os quais eqüivaliam, de fato, a quase um mês, e durante o qual, Prevenildo e Rober VauVau, bem que ruminaram como poderiam voltar à carga contra Rubinho do Cão Brito, porque, agora, também, não somente lhes interessava aquele que lhe ferira o orgulho zombeteiro, como porque queriam igualmente castigar SuperDoberman, o qual, para eles, havia lhes enganado feito cachorros. Entretanto, certa tarde, quando já imprimia os primeiro passos rumo ao seu casebre no alto do Vale do Osso Recôncavo, lá ia CãoBinho a revelar uma renovada aparência diante da nossa objetiva que enquadrava seus passos leves, pois nem parecia aquele mesmo dognino com cara de buldog, mas sim, um radiante e esbelto “protegido” da fantástica Cãorubinha chamada Kaura, quando então ele, ainda que estranhando, depara-se com alguns livros sob uma grande rocha arredondada, aproximando-se pois para investigar, com a fisionomia cismada por não ver nenhuma criança-canina dona daquele material escolar.


90 Mas, de repente, ao retirar aquela pilha de livros de sob a grande pedra rolante, CãoBinho não percebe que esta começa a se movimentar em sua direção, deixando à mostra Prevenildo e Rober VauVau, os quais prevendo que desta vez o nosso herói não escapasse, correm para onde havia outra pedra, à procura de uma posição mais vantajosa. Porém, uma brisa soprou do vento sul e arrebatou CãoBinho da fúria daquela avalanche de concreto, cuja força certamente o faria esmigalhar junto ao solo como o faria a uma folha seca, de maneira que, CãoBinho, agora erguido e sustentado no ar, para assombro e desespero daqueles dois traiçoeiros que, não vendo como pudesse se dar aquilo sem razão aparente, empenham-se em correr desabaladamente a descer o vale, sem voltarse para trás. Passado o perigo, CãoBinho viu-se às voltas novamente com sua protegida Kaura, que, lhe aparecendo em mantos translúcidos, diz-lhe para

procurar o Governador da

Grande Escola, mas com o cuidado de não revelar a ele o que lhe acontecera nesse período, e sim, tentar persuadir-lhe com a idéia de se montar um Colegiado, tal qual um Grande Congresso, no qual deveria se constituir um novo poder - O Poder Infantil dos Remidos composto de crianças-caninas que sofreram perseguições, injustiças e abusos diversos na Grande Escola. CãoBinho, inebriado diante daquela potestade linda e esfumaçada, cujos poderes subjugava-lhe seus mais doces sentidos, concorda em fazer o que ela tão singelamente lhe sugere. E assim se deu que CãoBinho foi recebido por Vossa Excelência Dog Mático logo pela manhã à hora do café para uma audiência, o qual ficou sabendo de tão inusitado pedido, no entanto, embora achando-o de alguma importância, responde-lhe sobre a


91 necessidade de levar o assunto a outros conselheiros da escola a fim de se refletir sobre o pedido de CãoBinho. Entrementes, Prevenildo e Rober VauVau, com visível despeito daquele por quem passaram a odiar, inventam uma história na classe, na ausência de CãoBinho, dizendo aos presentes que, ao passarem pelo vale ontem à tarde, livraram maravilhosamente CãoBinho de ser atropelado por uma rocha por intermédio de um pedido especial com o qual foram imediatamente atendidos. Os presentes certamente acharam tudo muito estranho, mas, no fim, acabaram por ouvir que fora um anjo à feição de pastora das nuvens, que aparecera e desviara a rocha de cima de CãoBinho, o qual nem percebera o perigo que corria. Vale introduzir aqui um novo fato, a propósito do pedido de CãoBinho: na reunião de cúpula na escola, na qual o Governador levou o assunto acerca da composição de um Congresso, tal qual Rubinho lhe confidenciara, ficou-se decidido que, para referendá-lo, seria necessário CãoBinho perdoar os seus principais desafetos - aqueles mesmos que estariam-lhe arranjando ciladas, porque, para que fosse instituído qualquer poder novo naquele Estado, era preciso, em princípio, o mentor da idéia proceder com a mais sábia atitude, isto é, ser o principal modelo e dar um exemplo honroso. Entrementes, CãoBinho voltando pelo vale, deparou-se com Kaura, e esta, com uma voz aveludada lhe disse:

- Meu protegido CãoBinho... Você fez tudo muito bem esta manhã, mas é preciso saber que vai ser exigido, no seu mais profundo “eu”, no íntimo de sua conduta...


92 - Olhe, Kaura: para ser franco, eu não estou entendendo mais nada de tudo isso... - Vai entender, meu protegido, e isso não irá demorar muito. Aí você compreenderá a sua importância, o valor que se tem quando ficamos acima dos nossos gostos pessoais, de nosso terrível egoísmo... - É bom que isso aconteça, francamente, Kaura. Eu juro que não esperava que me acontecesse tanta coisa. - Não há males que não venha para bem; este é o primeiro princípio do qual ninguém consegue jamais se furtar... - Mas o que eu preciso fazer agora, então? - A única coisa que você precisa agora é ser cada vez mais forte, derrubar seu orgulho ao chão, ser nobre e decente para um cargo de prestígio. - Um cargo de prestígio? Para mim? Continuo sem entender... - Mas para isso terá que suportar as dores que porventura lhe advenham, ou, então que lhe forem impostas. - Eu sou forte! Não há nada que eu não possa modificar em mim... - Assim seja, meu protegido, e agora vá descansar, porque amanhã, provavelmente, terá as suas provas definitivas. - Obrigado por sua ajuda, minha santa Cãorubinha Kaura. Que a paz esteja conosco...


93 E quando um sorriso apareceu nos lábios da maravilhosa criatura, a imagem toda se pulverizou na claridade do entardecer, para assombro mais uma vez do valente Rubinho do Cão Brito. No dia seguinte, CãoBinho logo que chegou a escola, ficou sabendo da boca do Governador a decisão a que chegaram durante a assembléia a respeito do assunto levado no dia anterior. CãoBinho sentiu logo o drama do qual havia lhe falado Kaura. Estava inquieto diante do Governador, mexendo as mãos quase sem parar. Ouviu deste as considerações a respeito do perdão, e disse-lhe que não poderia perdoar aqueles safados porque não mereciam, ao que, refutou o Governador dizendo-lhe que era preciso dar um nobre exemplo se ele quisesse reformar o Estado de Direito daquele planeta. CãoBinho lembrou das palavras tranqüilizadoras de Kaura, e quando se fez o cair da noite, sobreveio-lhe tudo aquilo, passando ele logo à reflexão, mas não antes de comunicar à Vossa Excelência a necessidade para tal, concessão dada pelo magistrado que lhe disse para procurá-lo assim que houvesse refletido melhor. Assim, depois de muito sofrimento e acima do que CãoBinho precisou de uma força sobrecanina para sobrepujar a dor que sentia, ele concordou em falar em público, num evento que reuniu toda a escola, inclusive - pode acreditar o leitor - tendo a presença de Prevenildo e Rober VauVau a seu lado, porém, sob a carinhosa custódia do Governador, que estava ali também para apoiá-lo em sua decisão:


94 “ - Eu estou aqui hoje para dizer que cheguei a uma decisão das mais importantes para a minha vida canina, por isso gostaria de pedir um pouco da atenção de todos vocês, porque, mesmo que eu não admita em público, confesso que estou bastante nervoso. “ - Bom... - continuou CãoBinho - o objetivo principal de minha fala aqui é dizerlhes que aprendi a olhar meus colegas da forma que eles são, isto é, cheguei a conclusão de que não posso mudar o comportamento de ninguém, muito menos as atitudes de quem quer que seja, mas posso aceitá-los do jeito que são, aprendendo a gostar de suas características, ou, no mínimo, respeitá-los. Mais: vi que se alguém fizer alguma coisa contra a minha pessoa, preciso ter uma atitude amiga e procurar, da melhor forma, corrigir essa pessoa, seja com um conselho, seja com um sorriso, seja com uma palavra amiga, seja com o simples perdão. E sobre o perdão, uma das coisas mais difíceis de se fazer em nossa infanto-canidade, eu gostaria de dizer agora aqui em público, que, embora sofrendo bastante as conseqüências dos atos desse dois colegas, Prevenildo e Rober VauVau, decidi pôr uma pedra sobre tudo isso e perdoá-los de uma vez por todas!” E CãoBinho continuou seu discurso até ser ovacionado pelo público presente, devido à comoção generalizada que tocou a todos ali. Em seguida, o Governador tomou a palavra e disse que Rubinho do Cão Brito passava a ser o primeiro Senador do Perdão Canino Constituído, razão pela qual ganhou, além de uma imagem totalmente renovada, uma assessora, a linda Nanci Chou-Chou, a verdadeira e autêntica bedel da escola, entre outras regalias e confortos. De fato, CãoBinho parecia outra criança, agora com maior responsabilidade, impondo maior respeito com a sua nova função, ao passo que Prevenildo e Rober VauVau, como num passe de mágica, desapareceram da Grande Escola, sendo por isso escolhido um


95 Grupo de Busca Farejadora - tal qual se fizera para procurar inicialmente CãoBinho quando de seu desaparecimento -, contudo, sem sucesso, pois que somente CãoBinho o soubera posteriormente, fora esse o destino daqueles dois: SuperDoberman, ou Nanci Chou-Chou, ou ainda Cãorubinha Kaura - na verdade, o Pilar Máximo de Sustentação da Harmonia do Bem-Canino -, havia se encarregado de levar aqueles dois para o Planeta Osso-Duro-deRoer, a fim de aprenderem, em outras paragens, como a Lei dos Semelhantes exige o respeito mútuo entre iguais, não dando o menor espaço para qualquer sentimento ruim, egoísta ou invejoso - embora ambos os malvados tivessem sido perdoados -, para triunfo e glória da memória da Grande Escola, a qual para sempre poderá se orgulhar de suas crianças-caninas, sobretudo da memória daqueles dois patifes que devem estar em alguma alcatéia sendo provados pela malvadeza que fizeram, no entanto é preciso reconhecer que, não fossem eles, hoje eu não poderia contar essa fábula, responsável que sou pelo desaparecimento deles nessa época, e, agora, responsável também pelo Museu de História Canina, trabalhando aqui na guarda dos valores caninos para toda a eternidade.


96 O CHEFE ELETRÔNICO

S

ua mesa estava sempre limpa. Claro, nessa era de tecnologia avançada, Estela não podia esperar outra coisa mesmo. Tudo de que necessitava para agilizar o seu trabalho, estava ali, armazenado naquele Dynamic

Data 900, um supermicrocomputador que podia ler as preocupações de trabalho da tão bela loira. De fato, fora um grande presente do seu chefe, cujo interesse, ela podia apostar, não ia além de um desejo de que fosse a mais competente secretária da firma. - Meu irmão trouxe da Inglaterra – disse a ela o presidente da empresa no dia em que a presenteou com o computador. – Tem uma versão do manual em português para você ler, mas posso afirmar que, em resumo, basta você ir para a frente dele, pensar sobre o que precisa gravar e desejar isso com intensidade. Daí que ele grava todos os dados necessários. - Ele é sensível, meu Deus! Quero dizer, vocês dois, claro! – Estela não se continha de emoção. Havia em sua expressão um olhar de espanto que ia além de qualquer descrição. - Não, Estela, espere um pouco – disse Armando percebendo algo estranho. – Você não está pensando em... - Não! Claro que não, doutor Armando! Desculpe-me interrompê-lo, mas é que estou muito impressionada. Nunca havia imaginado que um conjunto de placas eletrônicas pudesse tornar-se algo assim...


97 - Eu não me espanto mais com nada neste mundo – declarou o chefe. – Para mim, cibernética é a nova clonagem dos atos humanos. Veja quanta coisa que gostaríamos de ser e de fazer todos os dias aqui na empresa. Você já parou para pensar nisso? Então, agora, basta você ficar na frente do computador e transmitir a ele tudo o que precisa, ou pretende conseguir, e então, rapidamente ele o faz por você. - Puxa, doutor, desculpe o que eu vou dizer, mas eu preciso dizer... - Faz o seguinte, Estela: procure o Mendonça do setor de sistemas que ele está por dentro de tudo desse equipamento. Daí que não terá mais dúvidas sobre ele. - Não, doutor, não é isso! – Estela estalou um dos dedos, nervosa. – É que agora... Bom, agora... Ninguém mais vai me chamar de loura-burra! Porque muitas vezes as pessoas não compreendem o que queremos aqui dentro da gente, e aí é que erramos porque não sabemos dizer. Mas agora... - Ah bom! Você está querendo me dizer que todas as louras trazem essa carga genética, claro! – Armando abriu um sorrisinho cínico e recostou-se em sua cadeira móvel. – Olha, Estela: realmente muito pouca gente sabe que os cabelos são os neurônios. Sim, pode acreditar. São os neurônios de nossa cabeça, só que visíveis. Nas loiras, o que acontece é que os neurônios dourados são mais frágeis que os castanhos e pretos. Cabelos, estou dizendo. São proteínas que se queimam mais rapidamente do que os mais escuros. - É mesmo, doutor Armando? Eu não podia imaginar que o senhor também fosse um cientista! – Estela estava tão impressionada com isso quanto ficara com o potencial do Dynamic Data. – Muitas coisas que se falam da gente; ninguém procura saber direito; eu me sinto privilegiada de estar aqui trabalhando com o senhor...


98 O telefone direto de Armando tocou nesse instante. Estela sorriu assim meio que sem jeito e gesticulou pedindo licença para sair da sala do presidente. E quando ela virou-se na direção da porta, Armando mirou aquele par de pernas bem-torneadas que sobressaía do conjunto de tweed bege e justo. “Que coxas, meu Deus!” No fundo, Armando queria comê-la primeiro com os olhos, para, depois, invadir sua carne nova e, seguramente, muito tenra. Era exatamente isso que seu pensamento delineava naquele instante. Ao ver o sincronismo do andar frágil daquela lourinha pequena, mas polpuda. Sentia o olhar penetrar os tecidos daquela jovem de vinte e dois anos. Precisava conhecer bem aquele corpo com o seu olhar de perito. E nisso, ele já parecia estar escolado. Desde quando aquela moça havia sido escolhida para secretariá-lo, procurava algumas táticas bem eficientes para amolecer aquele coração burro. “Ou seria ingênuo”? Armando desligou o telefone sem se concentrar muito no que falara João Leopoldo, seu amigo com quem jogava tênis no clube. Ficara até na dúvida quanto ao horário do jogo que haviam combinado. “Horário especial, porque é amanhã é feriado... Feriado?!”. Rapidamente a excitação o dominou. Era um feriado que vinha a caráter, sem dúvida alguma. Poderia convidar Estela para passar um dia em sua chácara a sessenta quilômetros da cidade. Fazer o almoço para ela e depois levá-la para passear no lago, continuar a ver e imaginar o que contém aquele corpo, passar as mãos nos seus cabelos dourados... Seria um preparativo ideal para o dia D que estaria por vir. Armando levantou-se da cadeira e saiu para a sala de Estela. Não a encontrou ali e deduziu que ela já havia saído para o almoço. Era meio dia e meia e ele só estranhou o fato de que Estela geralmente o avisava quando saía.


99 - Você tem certeza de que quer fazer isso? - Lógico que tenho. Vai, pode cortar. - Ah! Eu não sei... - Que foi Rubinho? Está me estranhando? - É que eu gosto muito de você, e eu acho que vai se arrepender. - Eu pensei que você fosse diferente, viu? Já que não quer cortar, eu vou procurar outro. Estela levantou-se da cadeira, pegou sua bolsa e, quando ia sair do salão de beleza, Rubinho a puxou pelo braço e disse: - Tudo bem, santa. Pode sentar. Sou sua serva por completo. Diga como quer deixar o seu cabelo. Estela abriu um largo sorriso. Levantou-se na ponta dos pés e beijou o rosto de Rubinho. Um entusiasmo brotou dentro dela como se tivesse recebido uma autorização para a felicidade! Deitou sua bolsa na poltrona e voltou a sentar-se na cadeira do cabeleireiro. Estava pronta quando viu o seu sorriso iluminar-se no espelho à sua frente. Uma hora se passou depois que Estela deixou o salão de Rubinho. Fazia um escaldante sol e ela parou numa loja de artigos para presentes e escolheu um delicado chapéu, com alguns adereços coloridos que decoravam toda a volta da aba. - A senhora tem certeza de que é chinês? – perguntou Estela à dona da loja. - Sim, craro – respondeu a chinesa. – Artigo de exportaçon. Meu irmon trouxe de Pequim.


100 - A senhora quer dizer “importação”, não é? De lá para cá... - Non. Exportaçon – repetiu a chinesa. Estela pagou o chapéu meio irritada com a teimosia da chinesa, e saiu com o chapeuzinho posto na cabeça. Não parecia preocupada em comer, porque não havia almoçado, mas, ao contrário, sua preocupação era com o novo visual. Ela namorou também um vestido de alcinha na boutique New Fashion, ali próximo da firma, e acabou por comprá-lo sem muita ponderação. Ela estava literalmente com outro aspecto. E isso deveria impressionar os colegas da empresa, sobretudo seu atencioso chefe. Eram três horas quando Armando pisou de volta na empresa. De cada pessoa por quem passava, percebia algum remoque ou um ar zombeteiro no canto dos lábios, e isso o intrigou até chegar a sala de Estela. A secretária não estava ali na mesa e ele foi direto para sua sala. Então, a surpresa. Estela estava sentada em sua mesa, arrumando algumas pastas. No rosto, quando o viu, um sorriso de felicidade se manifestou; sobre a cabeça, ainda aquele chapéu chinês. - Quem é você? – estranhou Armando mirando-a com os olhos parados, ao passo que se aproximava dela. Ela levantou-se e ficou de frente para o chefe. Conservando o sorriso de alegria no rosto, tirou o chapéu e então Armando viu refletir no couro cabeludo de Estela o brilho de sua pele. Estava pasmo e, ao mesmo tempo, impressionado com aquela careca. Como que hipnotizado e mudo, começou a passar a mão por toda a cabeça de Estela, devagar e com tato. À medida que mantinha a mão na cabeça da moça, mais excitado ficava. Percebendo que o chefe não lhe dava ouvidos, Estela começou a ficar com medo do que poderia


101 acontecer agora, porque, Armando, já beijava loucamente aquela careca espelhada, enquanto suas mãos corriam desesperadamente o corpo da loura. Estela então tentou fugir das garras do presidente, mas não conseguia porque ele tinha uma força enorme. E, ela, ao contrário, não tinha forças, porque nem comido havia. Sentia-se completamente angustiada naquela situação, principalmente porque o constrangimento tinha dado lugar ao medo. Começou então a pedir desesperadamente que ele tirasse as mãos dela, mas ele não a ouvia. Ela então passou a gritar, e então ele a soltou, sem contudo perder o olhar catatônico. Aos poucos, entretanto, ele foi regressando à realidade do que estava acontecendo. - Doutor Armando, o senhor está bem? – arriscou-se Estela, que só não estava descabelada porque havia rapado a zero os seus cabelos louros. Armando tinha um ar estranho e o comportamento de um robô. - Tá certo, acho que vale uma explicação – tentou ela de novo. - Eu resolvi cortar todo o meu cabelo depois que o senhor me disse aquilo sobre os neurônios. – Estela deu uma respirada porque ainda não estava totalmente segura. – Eu juro que nunca mais vou deixá-los crescer. É melhor ficar sem proteínas do que tê-las enfraquecidas, não é verdade? Mas fique à vontade, doutor Armando. Se quiser, o senhor pode me dizer o que sentiu ao me ver assim careca, porque senão eu vou ficar assustada. Eu nunca vi o senhor desse jeito comigo. - Perda temporária da razão – respondeu ele, autômato. – Eu sou aquele computador e não a reconheci. - O que é isso, doutor? O senhor, um computador!?


102 - Isso mesmo. Tudo o que você acabou de fazer com si própria eu já registrei porque sabia de suas intenções e pensamentos. É a vez de Estela estarrecer e ficar dura, robótica. Armando enquanto isso começava a se despir. A cada peça tirada, um grito surdo de espanto por parte de Estela. Mas, ao cabo de tudo, ela tinha os olhos tão abertos que mais pareciam dois sóis azuis dirigidos para aquele perfeito robô em forma humana. Já não havia mais aquelas feições de seu chefe Armando, mas sim, um maravilhoso sistema de engrenagem caracterizado em um esqueleto. - Mas então se o senhor não é o senhor e aquele computador não é aquele que me deu... Doutor... Me diga: onde estamos? Estela parou por instantes quando sentiu uma mão pousar sobre o seu ombro. Virouse para trás e viu um homem ali parado olhando para ela e para a tela do computador. Então ele disse: - Ei, Estela. Duas horas já. A hora de almoço acabou. - Seu Armando! – exclamou ela com um brilho especial no cristalino. – Que bom que o senhor está aqui! O senhor já ouviu falar de um jogo chamado “o chefe eletrônico”? - Era isso que estava jogando? - Sim. Uma sensação! Fazemos a estória e os personagens que quisermos. O senhor aqui na minha era um robô, sabia? - Mas que continuava chefe? - Sim. E eu uma loura que tinha os neurônios em forma de cabelos!


103 - E como é que se joga isso? - Senta aqui que eu lhe mostro. Armando sorriu, desejoso. Olhou para os lados, para ver se tinha alguém por perto. E como não havia ninguém, sentou-se ao lado de Estela e então viu na tela a mensagem: REPLAY!!!! START THE GAME AGAIN.


104

ISSO NÃO PODE SER?!


105

FARSA EM 1 ATO Adaptação do Conto “Saliências, Reentrâncias, Ambivalências e Inconstâncias” constante neste livro CENÁRIOS: Quarto e sala – que servirão para as duas famílias, diferenciados então por respectivas músicas que tocarão para cada uma delas especialmente quando estiverem em cena.* Consultório do médico, ambulância, ambulatório e quarto de hospital terão cenas adaptadas tomando como sugestão os componentes do cenário e de objetos ou materiais que possam simbolizar adequadamente esses ambientes descritos nas rubricas. Época – Ano 2002 Personagens: Luana Maria Rita Normanda Eugênia Orestes Dr. Nye Momo (coreuta) Moma (coreuta) Enamorado (figura do sonho de Luana) Enamorada (figura do sonho de Luana) Enfermeira Copyright na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro


106 CENA 1

Abre-se às cortinas com a música da família Reis. Quarto de Luana. Tudo muito simples. Móveis de qualidade discutível, tipo Casas Bahia. Luana, pela porta do quarto, vê e ouve a televisão 20 polegadas na sala, porque a sua cabeceira de sua cama está na direção dela. O quarto está quase numa semipenumbra porque a única luz que vem é a da sala. Luana está recostada na cabeceira da cama e semicoberta enquanto vê dona Normanda sentada no sofá também de olho na telinha. É hora do Jornal da Noite e o apresentador diz que são vinte e duas horas e trinta minutos. Luana tem um bicho de pelúcia ali do seu lado na cama. É incrível os enormes peitos que Luana possui, que começam muito próximo de seu pescoço e saltam curvilíneos para frente em protuberância, grandes em todas as dimensões – cheios, largos e compridos. Luana está visivelmente chateada e pega o bichinho para perto dela. Na cama, começa a se empurrar para baixo junto com o bichinho de pelúcia a fim de dormir, mas tem muita dificuldade de se ajeitar por causa dos seios, contudo consegue se meter debaixo das cobertas e, antes de fechar os olhos, dá um beijo no bichinho. E berra, de surpresa:

LUANA

Essa porta aberta aí, mãe!!!!

Breve pausa. Dona Normanda olha para o quarto e vê a filha já deitada. Faz algum gesto tipo “Ah! Ela pode esperar um pouco!”, e continua a assistir à TV, enquanto Luana, virada para o público, descobre o rosto e começa a falar meio que arrastadamente.


107 LUANA

(monologando)

Uma vez na vida eu devo ter nascido boa. Sou

obrigada a acreditar nisso. Em algum lugar, em outra encarnação os (irônica) “santinhos” do meu pai e da minha mãe devem ter caprichado mais comigo. Cadê a medida certa que tanto falam, que coisa!? (T) Ta certo, a ninguém mesmo foi dado o direito de recusar viver, mas também não desse jeito, né? Olhem pra mim! Pareço uma bufona, isso sim! Também, com essas duas melancias aqui no lugar dos seios, que posso fazer fora ficar assim - assim tão chateada... Meus pais sempre me falam que eu sou jovem e que as coisas ainda vão melhorar muito - mas quando? Quando meus peitos estiverem dobrando a esquina? Não, não, isso é demais da conta. Tenha a santa paciência! Ei, Pai do Céu, alguma coisa poderia ter sido feita por mim, não? Mas ainda tá em tempo: tire esse pesão todo de cima dos meus peitos, por favor! O que eu sou? Que futuro posso ter assim? Ninguém pode saber o que se passa aqui dentro... Eu que já sou tímida, ainda tenho de viver com esses seios fenomenais, dá licença! (T) Já pensaram eu numa pintura: onde ficariam meus braços, pernas e cabeça? Que visão teria o pintor? Desse jeito eu estaria morta! Porque não é possível uma mulher só ter seios, eu não me conformo de estar assim tão deformada...

Normanda levanta desliga a TV e vem fechar a porta do quarto de Luana. Assim que fecha a porta, as luzes se apagam.


108 Pausa. Luana começa a roncar. E quando atinge um gravíssimo em seu ronco, entra em cena um casal de jovens com tôcas ou gorros com as inscrições “MAMA” na moça, e “MOMO” no moço, respectivamente. Luz em foco sobre eles, que estão vestidos ambos com roupas emborrachadas, tipo de mergulhador, só que branca da cor do leite.

MOMO

Ela está no quinto ronco agora.

MAMA

Sentida. Um aperto dentro do peito ela sente. Duuuuro!

MOMO

Coraçãozinho de papel...

MAMA

Eu também tenho vida e me sinto amargurada.

MOMO

Eu, idem. Será que existe algo para me tirar desse túnel escuro?

MAMA

Uma garota e um sonho. Ser mulher e livre. Como?

MOMO

Aqui somos obrigados a conviver com a dicotomia...

MAMA

Tanto faz nascer e conviver com o meu par...

MOMO

... Como tanto fez não ter dia nem noite de felicidade.

MAMA

Mas sou a primeira a ter esperança, por isso vivo do lado esquerdo daquele dócil coraçãozinho.

MOMO

E eu forte, por isso sou destro, para acabar com a solidão instalada naquela infeliz menina.

MAMA

Luana está sofrida e precisa de ajuda!

MOMO

Luana tem mel escorrendo de sua fantasia pura...

As luzes vão se apagando... Blackout.


109 CENA 2

Canto de galo ou de pássaros em uma manhã. Meia-luz em resistência. Sala da casa de Normanda. Orestes, o marido, está de saída de casa. Está parado à porta como que checando tudo. É apenas seu hábito particular. Começa a assobiar uma música melancólica e triste de alguma dupla sertaneja. Uma espécie de lamento pela rotina que precisa suportar diariamente. Pega sua sacolinha, abre-a e retira um marmitex. Recoloca-o na sacola e volta a pô-la por sobre o ombro. Sai. Luz vai enfraquecendo até enegrecer tudo. Breve pausa.

CENA 3

Uma voz de mulher cantando uma música romântica de Bruno e Marrone (que pode ser a “música-tema” da casa da família Reis), dupla de canções românticas. Luzes. A sala da casa de Normanda está totalmente clara, com a janela bem aberta. Normanda aparece arrumando a mesa, pondo canecas, talheres e apetrechos. Normanda vai até o quarto de Luana, abre a porta como que para sinalizar que está pondo a mesa. Ela fala da sala e Luana do quarto.

NORMANDA

Luana! Café! Vem pra mesa. Já!

LUANA

(bocejando) Uááááááhhh... Péra...

NORMANDA

Que mane péra o quê! O café esfria assim...

LUANA

(aborrecida) Não está vendo que tou indo?!


110 NORMANDA

Ninguém agüenta tanta demora toda manhã. Você já devia saber de cor e salteado o horário do café, ou não?

LUANA

Ah, mãe! Cala a boca, pô! Não é a senhora que sofre, né? É fácil só ver o que te interessa. E além do mais, por que então não toma o teu café sem mim, se é só a senhora mesmo esse tal de “ninguém” que não agüenta tanta demora todo o dia de manhã? Eu to com o saco cheio, se quer saber...

NORMANDA

(arrependida) Calma, minha filha, calma. Eu vou aí te ajudar...

Normanda entra no quarto. Está com um sorriso benevolente no rosto. Luana, por sua vez, está carrancuda e não esboça qualquer ato de levantar-se. Normanda vai até ela e a ajuda na cama.

LUANA

Se tem uma coisa que me irrita é acordar todo o dia esse horário. Não tem jeito de trocar esse disco hein, dona Normanda?

NORMANDA

Hora do café não se troca, minha filha. Pense uma coisa: é com as dificuldades que aprendemos. É preciso ser forte e persistente. Uma vez eu ouvi no Programa do “Toninho V de Vitória” que precisamos treinar a vontade. É isso que precisa, minha filha. Eu sei que te incomoda esse peso todo, mas se não se acostumar com isso e modificar o teu humor, sempre vai acordar azeda.

LUANA

Não, não, não! Por mim, era melhor ter nascido homem. To com o saco cheio deles... (pausa, corrige sem graça) Quer dizer, saco não, hê, hê, hê... Peito cheio né?...


111 NORMANDA

(acha graça) Eu adoro quando você brinca desse jeito. Mesmo que não tenha conhecido a tua avó Jurema, você é igualzinha a ela.

LUANA

(enfezada) Você acha graça, né! O que é que há? Então é assim que funciona esse tal de gera-gera: a tartaravó gerou a bisavó, que gerou a vovó que gerou a senhora, e que - (angustiada) gerou a mim?... Ora que desastre foi esse, dona Normanda! Eu não vou gerar mais porcaria nenhuma nessa família, se quer saber! Porque pra mim a senhora só me pôs no mundo apenas pra se divertir às minhas custas! Isso não vale - que goze assim da minha situação... (chora)

NORMANDA

Não, Luana, não é isso, meu bem. Isso nunca passou pela minha cabeça. Que eu saiba em nossa família sempre superamos os nossos problemas. Não precisa se martirizar desse jeito. E nem seja injusta comigo, entendeu? (aumenta o tom tentando despertar a filha) Luana! Olhe pra mim! Será que não compreende que não adianta se descabelar? Porque isso não muda nada a tua situação, compreende? (T) Somos mulheres, querida! E todas nós, desde que Deus fez a mágica da costela, nascemos para ser lindas... Por isso é lógico que também queiramos ficar lindas e maravilhosas... Mas é não é assim tão bonitinho não! Eu, antes de ter você, tinha um corpo violão. Sabe aquele corpão que deixava os homens babando? Pois é. Olha só como fiquei...


112 Normanda levanta-se e dá uma voltinha tentando ser charmosa. Luana a olha meio que timidamente. Pausa. A atitude de Normanda parece acender os ânimos de Luana, que esboça um sorriso. Normanda, então, a ajuda a se sentar na cama.

NORMANDA

Querida! Querida! Você sabe que eu sempre te amei muito. Não me importa o corpo de violão. Já era. O teu pai tocou enquanto pôde tocar e pronto! Se você veio pra esse mundo, foi pra ser feliz. E o resto, aquilo que tinha, mesmo a minha vaidade, não me importa mais. (pausa) Sabe, o teu pai ficou de falar com o doutor Duarte, o engenheiro da obra. Acho que ele tem alguém na família que operou a mama, não sei...

LUANA

A senhora acha que o meu caso é operação?

NORMANDA

Não sei, querida, não sei. Têm coisas que não tenho resposta. Se Deus fez a mágica da costela, hoje os médicos fazem a mágica da plástica. E, se isso acontecer, acho que os teus seios vão ficar lindos!...

LUANA

(com idéia fixa) Mamãe, a senhora está me gozando de novo? Porque eu percebi o tom de sua voz querendo me...

NORMANDA

(corta, impaciente) Chega, chega, Luana! De novo não! Pára com isso, vai. Desse jeito vou achar que os teus seios estão subindo pra cabeça e tomando o lugar do seu cérebro! Acabou!

LUANA

(começa a chorar) Você sabe que não gosto quando dá esse risinho... Eu não sou tonta! Não era melhor logo arrancar essa droga de seios pra mim então? Pelo menos ficaria... (interrompe-se)


113

Normanda, de inesperado, fica séria e abraça-se à filha. Pausa. Um apontamento musical num crescendo inunda a cena e as luzes caem em resistência. Luz em foco em Normanda, que continua abraçada à filha e de frente para o público.

NORMANDA

(em pensamento) Ninguém de nós teve coragem para contar pra ela... O mundo desabaria e, eu acho, que não iria agüentar uma dessas. (T) Ela era tão pequetitica! Estava tão desprotegida ali naquele berçário! Enquanto eu tinha acabado de perder meu bebê... (pausa, chora) ...Depois - eu queria mesmo uma menina. Seria a minha alegria. Nada tão infernal que perder um filho no útero. Ninguém pode imaginar a dor que é isso... (T) Mas se Deus me tirou alguém, me deu Luana. Mas a coitadinha já era tão esquisitinha! Vai ver que foi por isso que sua mãe biológica morreu... (espanta-se com o próprio pensamento; O.T.) Nossa! Que maldade a minha! Me perdoa, Jesus. Por mim não pensava nada disso, mas tem horas que... Xô, Satanás! Fora! Xô. Satanás! Fora! (Pausa) Nenhum médico disse pra mim o que Luana tinha. Mas eu sempre desconfiei que a menina não tinha o corpo muito normal. Somente a mãe verdadeira dela saberia dizer. Mas se ela não tivesse morrido, eu também não poderia ter ficado com a minha pequetitica. Era tão rechonchudinha a minha Luana! Parecia uma abóbora! Desproporcional, é verdade, porque esses seus seios... (T) O que acontece com a minha menina!?...

LUANA

Mãe! A senhora está bem?


114 NORMANDA

(tentando recompor-se) Hã? Ah! Claro que sim, querida. Vamos tomar café agora?

LUANA

Sabe de uma coisa, mãe: a senhora é a melhor mãe do mundo. Se eu tivesse uma outra, duvido, mas duvido mesmo, que ela fosse igual a você! (beija-a no rosto com muito barulho)

CENA 4

Luzes. Passagem de tempo. Dona Normanda está limpando o quarto com a porta aberta. Luana está ao telefone na sala.

LUANA

Não, papai. Eu tenho vontade, o senhor sabe. Sim, pode falar. Mas fala mesmo! (T) Não, papai! Não comigo... Fala com o doutor Duarte. Não é ele que tem uma pessoa conhecida que opera as mamas? A mãe me contou que o senhor iria falar com ele.

NORMANDA

(fala do quarto, alto) Pede pro seu pai não esquecer de passar no Quatro Ases e pegar uma cartela pra esta noite.

LUANA

(ao telefone) A mãe pediu pro senhor não esquecer... (pára bruscamente por instantes; O.T. à mãe) O papai está dizendo que é pra senhora esquecer, dona Normanda! Sossegue a cordilheira dos Andes!


115 Normanda pára a limpeza no quarto e atravessa com severo ímpeto a porta até o telefone. Arranca o aparelho da mão de Luana e desembesta a falar, nervosamente:

NORMANDA

Você não se dirija mais a mim dessa maneira ouviu bem, seu bokomoco! Bunda tem nome, se você não sabe? (brava) E a minha não é uma cordilheira dos Andes! Pros Andes é onde eu vou te mandar passear se não me trouxer a cartela de hoje! Vai abrir com cinco mil reais. (grita) CINCO MIL REAIS, entendeu?

E larga o aparelho na mão de Luana e se retira dali para o quarto com a mesma rapidez.

LUANA

(voltando à carga ao telefone) O senhor me entendeu também né, papai? Fala lá com o doutor Duarte. Por favor! Não custa tentar. Quem sabe hoje mesmo ele já liga pro parente dele, médico... Está bem então, papai. Tchau. (desliga)

NORMANDA

(do quarto) O teu pai tem medo do doutor Duarte.

LUANA

Como assim?

NORMANDA

Medo. Tem medo de falar alguma coisa que ele não goste e ele o mandar embora.

LUANA

Mas o que é que tem ele falar sobre mim pra ele? Eu não mordo...

NORMANDA

Eu sei que você não morde. Mas, se eu conheço o teu pai, ele não vai querer falar logo assim de cara. Ele tem que pensar bem, medir a


116 circunstância, ver o humor do Duarte, aproveitar um outro assunto que não tenha nada a ver com isso. Eu sei como ele funciona. (com inflexão) Medroooso!!!

Pausa. Luana espera um pouco, como se tivesse digerindo as palavras de Normanda. Em seguida, pega o telefone e disca. O RUÍDO do toque de chamada é bastante alto, e fica tocando pelo menos umas oito vezes. Pausa. Luana desliga, frustrada.

LUANA

(sozinha) Por que elas não põem uma secretária eletrônica em casa, droga!

NORMANDAO que está resmungando aí, minha filha? LUANA

Ah! Cala a boca mãe! Me deixa, ta? Me deixa!

As luzes começam a diminuir em resistência. Entram em cena, MAMA e MOMO novamente. Agora eles estão de pijamas.

MOMO

Grande coisa!

MAMA

É uma vergonha ter que me agüentar!

MOMO

Se existe um bom negócio, esse é o da cirurgia plástica.

MAMA

Eu ando muito esgotada, muito esgotada...

MOMO

Quando será o amanhã?

MOMO

Essa vida mamária é grande. Luana que o diga. Puxa...

Eles saem em seguida, rapidamente. As luzes voltam a ficar fortes.


117

CENA 5

Luana lê uma revista de fofoca no sofá da sala, sozinha. Normanda não está em cena. A campainha de casa toca forte e Luana se assusta. Entra Normanda e vai atender à porta e, quando a abre, vê Maria Rita com um sorriso nervoso. Maria Rita está vestida com jeans bem esportivos e usa uma mochila às costas.

NORMANDA

Oi! É você, Maria Rita. Como vai? Vamos, entre. Vem me dizer que também você não teve aula?

MARIA RITA

(entrando visivelmente nervosa) Sim, é, eu estou bem - bem, obrigada, dona Normanda. A Luana está aí? Hoje o professor de inglês faltou na última aula.

LUANA

Poxa, Maria Rita! Eu liguei pra você quase agora! Só que eu não tive nenhuma aula.

NORMANDA

(exagera propositadamente) Na minha época não tinha disso não. Professor ausente era demitido na mesma hora! Onde já se viu garotas como vocês não terem aula? Eu queria ser diretora dessa escola agora... Um absurdo! Um absurdo! E vê se fala pra essa daí (indica Luana) que estudar é bom e não arranca pedaço, viu?

LUANA

Ah! Ta bom, mãe, já sei. Agora, por favor, quer dar licença, sim?

Normanda encrava uma expressão emburrada no rosto e sai.


118 Maria Rita corre para junto de Luana e senta ali no sofá, ao lado dela.

MARIA RITA

Meniiina! Nem te conto!

LUANA

(interessada) O que é que foi? Se você visse a sua cara agora?...

MARIA RITA

(maliciosa) Se eu te contar você cai de costas! (T) Mas minha mãe não pode saber de jeito nenhum. (baixinho) Trouxe a cinta dela.

LUANA

Cinta? Que cinta?

MARIA RITA

Uma cinta esquisita que ela bota no umbigo. (breve pausa) Mas ela é um tesão, você precisa ver só!

LUANA

(estranha, vexada) Queeem?

MARIA RITA

Não faz essa cara, sua boba. Não é minha mãe, não. É a cinta!...

Maria Rita pega a mochila e vai abrindo-a. Retira dela uma cinta umbilical indicada para hérnias. Como um cinturão de cowboy, largo, mas com a diferença que é um artigo especial usado para caroços ou proeminências do umbigo. Maria Rita mostra à Luana a calosidade que a cinta tem no centro.

MARIA RITA

Ta vendo isso aqui, Luana? É de deixar qualquer uma louca!

LUANA

Mas pra que serve isso, Deus do céu?

MARIA RITA

(pondo a cinta nos seios, sensual) Pra deixar a gente pensando bobagem, santa! (T) Vê se me acompanha, Luana: Ta vendo esse calombinho aqui? Imagine então ele no meio de nossas mamas... Ficar assim fazendo aquela cóceguinha... Arrepiando tudo que tem direito! Ai! A gente fica durinha, entendeu agora?


119 LUANA

(perplexa com a safadeza da amiga) Credo!...

MARIA RITA

E isso não é nada. Como dizem as revistinhas: são só as preliminares.

LUANA

Deixe eu ver isso, Maria Rita?

MARIA RITA

(sacana) Hummm! Se interessô né, nega? Ta querendo se arrepiar também, não é?

LUANA

Pára de bobagens e me daqui. Eu quero ver do que é feito.

MARIA RITA

Mas vai logo. Tenho medo de minha mãe voltar mais cedo pra casa e não encontrar a bendita. Ou será a “bencinta”?!

LUANA

(pegando a cinta) Noooossa! Como é dura! Do que é feito isso?

MARIA RITA

Parece aço, não é? Mas veja que tem espuma e couro por cima. Não é bonitinha a calosidade?...

LUANA

(mexendo sem malícia na calosidade) É gostoso - macio...

MARIA RITA

(com malícia) Dá tesão, isso sim; pode falar... (pensa alto) Será que a minha mãe faz isso para - (deduzindo) não é então que a malandrinha?...

LUANA

O que você está falando aí, Maria Rita?

MARIA RITA

Filha de sereia, sereia é, não é verdade?

LUANA

E o umbigo da sua mãe melhorou com isso?

MARIA RITA

Ah! Luana! Que é isso, né? Vem me dizer que acredita nessas coisas? Isso eles fazem pra vender, santa! Vê se me acompanha, pô! Ninguém dá ponto sem nó nesse país! E, se quer saber, tampouco em outro. Agora, se você visse o tamanho do umbigão da dona Eugênia? É quase um pico! (com malícia, O.T.) Eu disse pico, santa, pico! Mas


120 que ele é bem maior que teus peitos, isso ele é. Não o pico – o umbigo! LUANA

(deduzindo, enquanto mexe no calombinho da cinta) Mas então quer dizer que isso aqui serve pra apertar o umbigo e, então, diminuir o tamanho...

MARIA RITA

E eu já nem sei mais se a dona Eugênia não viajou na maionese...

Pausa. As duas estão assim meio que reflexivas. E, quase num impulso, Maria Rita pega a cinta de Luana e a guarda na mochila.

MARIA RITA

Desculpe, Luana, mas se a minha mãe não achar essa cinta em casa, ela tem um troço! Não passa um dia sem pôr isso no umbigo.

Neste momento entra Normanda com uma vassoura de pelo e começa a varrer a sala, mas quando se dirige à Maria Rita, pára de varrer.

NORMANDA

E a tua mãe, como vai? Tem vendido bem?

MARIA RITA

(voltando a ficar nervosa) Sim, dona Normanda, bastante. E sabe que ainda ela reclama.

NORMANDA

Isso é pra atrair mais gente pra loja, eu sei... (T) Mas será que ela tem lá na boutique um baby-doll bem moderno?

LUANA

(estranhando) Pra que a senhora quer isso?

NORMANDA

Ora! Pra que eu quero isso? Isso é pergunta que se faça, Luana. Tenha dó!


121

Normanda encara a filha com um ar desafiador, provavelmente tentando inibir o seu constrangimento por ser descoberta em suas intenções. As duas ficam se encarando, hostis. Mas Normanda vira-se e sai conservando o seu ar imponente.

MARIA RITA

Eu preciso ir agora, Luana. Amanhã eu volto. E vai pensando sobre a cinta. Você gostou dela, não foi? Então eu trago ela de novo amanhã.

LUANA

Não; fica Maria Rita. A tua mãe não fecha a boutique tarde? Então dá tempo pra experimentar a cinta agora. Deixe-eu ver ela de novo.

MARIA RITA

O tempo dançou, já te falei. Minha mãe solta o umbigo pela boca se não der conta dela em casa. E o alvo vai ser a otária aqui, ó!

LUANA

Onde ela comprou essa cinta?

MARIA RITA

Sei lá! Hummmm... Talvez em loja que vende cadeira de rodas.

LUANA

(surpresa) Credo! Será, Maria Rita? (T) Sabe, eu nunca pensei que isso pudesse existir. Uma cinta pra inchaço de umbigo...

MARIA RITA

Inchaços, mamões, e grandezas em geral. (T) Mas agora preciso ir, Luana. Vamos ver então se amanhã a gente testa ela em você. Você gostou dela mesmo?

LUANA

Amei, amei!... Vou esperar você amanhã, Maria Rita. Não vai esquecer, hein?

MARIA RITA

Claro que não. Tchau.

Maria Rita beija Luana e se dirige para a porta.


122

LUANA

(chama alto) Mãããe! Maria Rita ta indo embora.

Normanda entra rapidamente e vai direto para a porta.

NORMANDA

Já, filha? Manda lembranças pra tua mãe. E não se esquece de ver aquilo pra mim.

MARIA RITA

Pódeixa, dona Normanda. Hoje mesmo falo com ela. Vou ver até se trago o baby-doll da senhora.

NORMADA

Não tem pressa, não tem pressa. E as aulas? Não tem aula amanhã de novo?

Não fica faltando na escola que depois não entra na

faculdade... LUANA

Ninguém ta faltando na escola, mãe! O que a gente pode fazer se

aquela bomba não funciona direito? Mas que coisa...

Maria Rita volta a sorrir nervosamente, como se estivesse preocupada. Sai para o outro lado da porta. Normanda sorri para ela, gentilmente, e se despede da garota. Fecha a porta e vê Luana voltar ao sofá, agora com uma expressão feliz, encantada.

NORMANDA

Estranha essa sua amiga, Luana - não pode me ver que treme! (T) Ei, e você: não vai me contar pra onde ele foi?

Luana não responde; está distante. Breve pausa. Normanda a olha por instantes.


123

NORMANDA

(mais alto) Pra onde ele voou, Luana?

LUANA

O que é, mãe? Me deixa, ta!

NORMANDA

Quer dizer então que não vai contar pra mim onde foi o seu passarinho verde?

Luana a olha meio estupefata, mas Normanda sai. Um SOM de passarinho ecoa no palco, suave, doce e melódico. A luz diminui em resistência até uma semipenumbra.

CENA 6

O telefone toca na sala da casa. Normanda atende. Luz em foco.

NORMANDA

Alô. Oh! É você de novo, Orestes! Não se trabalha aí não? Me arranja um serviço desse então... (T) Escuta aqui outra coisa, Orestes: hoje de manhã, depois que você saiu, eu quase tive uma recaída. (pausa) Que recaída de viciada o quê, Orestes! Eu to falando sobre... (fala baixinho para não ser ouvida) Luana. Luana. (T) Ouviu agora? É. Isso mesmo. Quando que você vai ter coragem e contar pra ela logo?


124 Luana do seu quarto está ouvindo a conversa da mãe ao telefone com a porta aberta. Ela fala de lá.

LUANA

Contar o quê pra mim?

Normanda continuar a falar ao telefone, tentando mudar o assunto da conversa.

NORMANDA

Se você esquecer a minha cartela de cinco mil, Orestes... Bom, eu nem te conto, nem te conto! Como se eu vou ganhar, Orestes? Mas é claro, homem de Deus! (intencional) E daí, meu querido, sabe tudo aquilo que temos conversado ali juntinhos no nosso quarto? (fulmina) Vai acontecer! (com inflexão) Eu já tou preparando uma surpresinha pro meu casca grossa! (T) Quê? Que coisa é essa então... Ah é? Então o doutor Duarte conseguiu marcar com o parente dele? É médico mesmo, é? Hummm, que chique! (pega de surpresa) Como agora? Mas está muito em cima...

LUANA

(animada) Eba! Agora, mãe, já! Diga pro papai que ele é o maior pai do mundo! E que eu já o estou esperando aqui! Vou chamar a Maria Rita pra ir com a gente.

NORMANDA

(ao telefone, sem ouvir nada do que a filha falou) Está bem então, Orestes. Vamos nos trocar e pegar um táxi. (T) Ah! Não! Acho que vou desmaiar, seu casca grossa! Como pode dizer pra economizar agora? Eu te castro, Orestes! Ô unha de fome desgraçado! O que são quinze reais a essa altura? É por isso que não quer passar no Bingo e


125 comprar a minha cartela, não é? Vamos, pára de resmungar e passa logo o endereço do médico. (ela anota, quieta) LUANA

(vestindo uma blusa bem justa) Ah! Mãe! A senhora não lavou essa blusa, droga!

NORMANDA

(ao telefone) Você também está resmungando, Luana? (T) Quarenta minutos, Orestes. E agradeça ao doutor Duarte por mim. (desliga)

Luana sai correndo do quarto para a sala, já vestida com aquela blusa justa. Faz isso correndo de braços abertos, como se fossem asas para voar. Isto porque os seus seios estão tão apertados com a blusa que se tem a impressão de que eles são bolhas de ar que se inflaram nas laterais para ajudá-la a levantar vôo. Luana pega o telefone e digita os números com pressa. No entanto se atrapalha com os seus próprios seios, que é obrigada a digitar os números devagar. E enquanto digita, gesticula para Normanda sair de perto, e Normanda sai de cena.

LUANA

(ao telefone, com angústia) Ainda bem que já está aí, Maria Rita! Eu preciso de você agora, amiga! Como não dá? Estudar o quê, se não temos aula!? É que meu pai conseguiu um médico pra agora à tarde. E eu tenho medo de ficar sozinha lá, você entende... (T) Ah! Mas é diferente, né! Minha mãe e meu pai... O que eles sabem que você sabe? Quase nada!... (T) Cê vai? Obrigada, querida! Então pega aí o endereço. A gente se vê lá. Eu adoro você, Maria Rita!


126

CENA 7

Luzes. Consultório do cirurgião plástico. Uma mesa que tem uma tabuletinha escrita com o nome de “Dr. Nye Andersen” separa este da família de Luana. Maria Rita está ali também, mas sentada um pouco mais atrás de Luana. Dr. Nye parece um mestiço meio coreano meio chinês meio sueco. A sua aparência e seus gestos são, enfim, artificiosos e ambíguos. Tem a pele esticada feito plástico, de modo que parece ter a expressão risonha ininterruptamente no rosto. Ele não se veste de branco, mas de salmão, e sempre coloca um “te” no final e no meio das frases, falando de maneira acentuada, progressiva e rápida, como se fosse um tique oriental.

DR. NYE

(alegre) Uma família, te? Luana muito bonita, te! Que idade tem, te?

NORMANDA

Ô doutor... Esse “te” aí que o senhor fala é coreano, chinês ou japonês?

LUANA

(cutucando a mãe, brava) Cala a boca, mãe! Que mania de se intrometer, que coisa! (ao médico) O senhor deixa pra lá, por favor. (T) Exatamente, tenho dezesseis e três meses. Faço aniversário no dia dezessete em setembro.

NORMANDA

(num rompante) Ela anota tudo, viu doutor - é perfeccionista! Virginiana que nem eu.


127 DR NYE

E vai ficar mais perfeita, te. Acreditem, sim. Eu garanto, te. (T) E, por acaso, te, já se consultaram com algum outro médico sobre o problema dela?

ORESTES

Não, doutor te. Quer dizer, já. Ora, ora, que confusão. Nem te nem já. (lendo a tabuletinha) É doutor Ny-ê, não é isso?

DR NYE

(corrige) Ni. Ni, te.

ORESTES

Pra ser sincero, eu gosto de falar como está escrito. Então, me desculpe, eu só vou chamá-lo de Ny-ê, sem te, está bem assim? (T) Então... Faz muito tempo que estivemos no doutor - como era mesmo o nome daquele médico, Normanda?

NORMANDA

Vagner. Mas não importa. Ele já foi. Aliás, eu não gostei daquele médico não, viu doutor Nye. Depois que ele ficou olhando demais para os seios de minha filha, eu achei que ele era mais doente que ela.

LUANA

Ah! Mãe! Cala a boca, pô! Quem disse que eu sou doente?

DR. NYE

Por favor, gente. Calma, te. O sujeito poderia ser pedófilo, te. Mas não devemos acusar ninguém sem provas, não é verdade? Eu só perguntei, te, porque temos muitos médicos por aí. Têm alguns que complicam quando podem resolver anomalias bem fáceis, te. Como é o caso aí da mocinha, te.

ORESTES

Olha, doutor Ny-ê. Se o senhor não parar de pronunciar esse maldito ‘te”, eu vou sair nocauteado daqui, te! Olha, fique o senhor sabendo, além do mais, que viemos procurá-lo porque é parente do Duar - te.

O médico levanta e começa a andar de um lado para outro, lateralmente.


128

DR NYE

Não sou parente do Duar... te; sou eu quem fiz a plástica na mulher dele, só isso, te.

NORMANDA

Ah Doutor! Me lembrei de um outro médico que cuidava de hormônios e glândulas... Ele falou pra gente, isso quando a menina só tinha oito anos, que ela tinha que tomar bloqueadores de hormônios. Estávamos preocupados, claro, a menina já estava com esta idade e os seios bem cheios, sabe, mas eu não deixei. Sete anos já tomando essas coisas é de trucidar com uma menina tão pequena. Não, não...

DR. NYE

Trucidar, te... Fez muito bem, senhora...

NORMANDA

(completa com rapidez) Normanda Reis, doutor.

DR. NYE

Mas é bom eu tentar explicar direito, te. Preciso que entendam que disfunções hormonais podem ter sido o início do problema da Luana - mas vejam que ela já desenvolveu praticamente todo o crescimento feminino, te, e, agora, só podemos fazer o trabalho de reconstrução das mamas. Quando o Duarte me falou sobre o caso, te, eu pensei numa excisão... Porém vendo de perto, te, a situação não me dá outra alternativa senão fazer uma mastectomia, te. Extração total dos dois seios, é isso te?

ORESTES

(com fluência, mas mantendo ambigüidade) Ah! Não! Isso não, doutor te. Terar tudo não, te. O senhor deve pensar em outro método, te, para resolver esse problema. Te ou não te, doutor T? Eis uma difícil questão...


129 NORMANDA

Ela nunca iria se acostumar a ficar sem eles. Estou me pondo no lugar dela...

LUANA

Calma! Calma, mãe! O doutor nem terminou ainda... E então, doutor? Eu vou poder ter no lugar dois seios bem bonitos?

MARIA RITA

Que nem os meus, doutor, ela quer dizer, que parecem duas

perinhas... DR. NYE

Existem coisas que a medicina não faz ainda, te. Mas as que se compromete a fazer, te, os senhores não tem do que temer, te. Eu garanto, te! Fazemos a retirada das mamas e reconstruímos com tecidos que tenho em meu estoque.

ORESTES

(de supetão) Já sei! Já sei de onde vem o diabo do “te” desse homem! Como é mesmo o nome daquele filme, Luana? Edward, o mão de tesoura não é? Era assistente desse doutor T...soura. (em pânico, confidencial) Ele quer é te tesourar, filha! (ao médico, agressivo) Pode mudar o verbo desse te aí, doutor! Com tesoura não tem conversa! E que negócio é esse de açougue? Carne em estoque quem tem é açougue!

DR. NYE

(fica nervoso e começa a gaguejar) Aassim, te, o senhor me ofende, te. Eeeu, que aceitei recebê-los, te, de braços abertos, te, interessado no problema de sua filha, te, não preciso ouvir uma ofensa dessas...

NORMANDA

O doutor não considera muito o que disse o Orestes, não. Ele é contra qualquer coisa mesmo...


130 ORESTES

O que é isso, Normanda? Contra, não! Eu sempre quis fazer alguma coisa por minha filha, mas isso de arrancar os dois peitos, não dá pé.

DR. NYE

Mas que tal ouvir a dona dos seios? Por favor, senhorita. Afinal, te, é ela quem os suporta grandes, te, pesados, te, e incômodos, te. Um corpo tão bonito com seios tão grandes...

Maria Rita está falando no ouvido de Luana, que está dividida entre o que ouve e o que lhe pergunta o médico.

LUANA

(confusa) Sim, sim. Muito incomodada, doutor... Mas na minha cabeça, doutor, eu... bem... Eu nem sei o que dizer. Passa uma porção de coisas... Mas se o senhor me garante que eu vou ficar com os seios pequenos e redondinhos, é só isso que eu desejo.

DR. NYE

E o custo dessa operação - material cirúrgico, anestesista, vocês não precisarão se preocupar, te. O serviço público paga esse trabalho. Pouquíssimo, te, claro! Vocês devem ter notícias disso não têm, te? (T) Mas, segundo o Duarte, sei que não poderiam pagar tal cirurgia, te, mas também podem imaginar os meus esforços e dedicação não é, te? Sou um profissional experiente nessa área, te. E reconhecido também. Fiz mais de quinhentas cirurgias plásticas reparadoras nos últimos cinco anos, te. E acho, te, tenho certeza disso, te, que os senhores saberão recompensar os meus serviços que serão dedicados à linda menina. Não é mesmo doce criança? Digo, te, alguma coisa a


131 título de bonificação, te, já que o que eu recebo do governo é, como diria, te - uma merreca!

Orestes, de repente, se enfeza e puxa o braço de Normanda e de Luana da cadeira. Faz com que se levantem e se dirijam à saída. No entanto volta-se e dispara aborrecido contra o médico:

ORESTES

O senhor é miserável, doutor T. Também com esse nome e com essa lingüinha de cobra batendo a toda hora nos dentes, não devia ser coisa boa mesmo. Por isso que esse país não anda mesmo. Deviam proibir o senhor, e todos desse planeta T, de entrar aqui. Estou sentindo os vermes mexer aqui no meu estomago de raiva do senhor, doutor... (proposital) Ny-ê-te! Nem se tivesse algum dinheiro na poupança, daria ao senhor. Aliás, quero ver as suas credenciais. O senhor nem parece médico com essa roupa cor de abóbora, se quer saber.

NORMANDA

(corrige-o, baixinho) Salmão.

ORESTES

Que seja! Salmão, abóbora, beterraba, merreca, pouco importa.

LUANA

Papai! Papai! É a minha chance, papai...

ORESTES

Que chance é esta, minha filha? Ficar reta que nem uma tábua, é chance? Vamos! Vamos embora! Você também, Maria Rita. E o senhor, doutor Ny-ê. Bem, o senhor pode ver se acha alguém que lhe arranque os testículos! Daí que vai ficar somente com os - stículos!


132 Porque o “te”, doutor T, vai continuar exclusivo no meio desta sua linguinha venenosa. DR. NYE

(agora ele fala normalmente, sem vestígio do “te”) Acho que o Duarte não te conhece direito, seu Orestes. Ele iria ficar decepcionado se o visse assim. Nem tudo que reluz é ouro, é verdade. Tem pessoas que me surpreendem pela esquisitice. Querem um salvador, mas quando percebem que para a cura é preciso mais do que um messias, voltam ao lugar de onde saíram: a eterna ignorância. Por favor, retirem-se. Não há mais nada o que eu possa fazer por vocês. Sinto muito, menina. Talvez o teu pai e a tua mãe encontrem a pior solução: deixar que você seja coberta pelos próprios seios. Ou então, um dia, quando eu vier a encontrá-los necessitados de meus serviços. Daí...

ORESTES

Pode tirar o teu “te’ da Tchuva, porque não vai haver esse dia. (caindo em si, com surpresa) Engraçado... Eu não ouvi o senhor falar mais na língua do “te” agora...

DR NYE

(cínico) Foi o senhor que me curou, senhor Orestes! Não sabia? O senhor tem poderes... E sou quem agradeço a sua presença aqui. Obrigado. Muito obrigado. Agora, por favor - (grita) SUMAM DAQUI!

Pausa. As luzes diminuem em resistência até uma semipenumbra. Todos eles se “congelam” ali.


133 MOMO e MAMA entram em cena. Luz em foco sobre eles, que estão vestidos como clowns.

MOMO

(alegre) É o pai, o grande mártir da família! Sem ele, não haveria ordem no mundo.

MAMA

(orgulhosa) Eu posso dizer que com ele fico grande. Muito grande!

MOMO

A vida sorri para quem preserva a existência. E o pai é primeiro da vida.

MAMA

A gratidão é minha irmã, e nós duas festejamos a vitória do pai. Neste mundo, tem raposa que se camufla sob asas de onipotente.

MOMO

A graça alcançou aquele que sensível percebe fatos encobertos. O perigo já passou.

CENA 8

Casa de Maria Rita. Mesmo cenário da casa de Luana. Um quarto e uma sala conectados por uma porta. A diferença entre uma e outra está na música. Agora, aqui, pode ser um samba canção, ou que se refira à “cinta ou do umbigo de dona Eugênia”*. (neste caso a ser composta) Eugênia está no quarto visivelmente à procura de alguma coisa, quando então Maria Rita chega na sala. A mãe vê a filha e vice-versa, e elas se encontram no quarto.

MARIA RITA

O que foi, mãe? O que está procurando aí?


134 EUGÊNIA

Ah! Só pode ter sido você, Maria Rita! Onde enfiou a bendita da minha cinta? Eu não agüento quando meu umbigo salta pra fora.

MARIA RITA

Ué! A senhora não viu na sala, não? Hoje ela estava lá jogada, e fui eu que guardei ela embaixo da mesinha.

Eugênia corre à sala, segurando o umbigo, como se ele fosse pular fora. Maria Rita fica no quarto e vira-se para o público. Fica só na expectativa, ouvindo o desabafo da mãe.

EUGÊNIA

(achando a cinta) Ufa! Que alívio, filha! Mas, da próxima vez, deixa em cima da mesa mesmo. Você sabe que eu não agüento quando esse umbigo salta. Eu me sinto péssima! Parece que vou dar à luz um ovo! É uma sensação muito esquisita. (pausa) Ei, Maria Rita. Venha cá, minha filha.

Maria Rita vai para sala. Ajuda a sua mãe a pôr a cinta.

MARIA RITA

Achei melhor guardar embaixo da mesinha, mãe. Em cima pega muito pó.

EUGÊNIA

Com pó ou não, ela é única. Você sabia que foi a sua tia Juliana que me comprou? Me disse ela que não tinha mais desse tipo. Foi um dos presentes mais úteis que ganhei na vida. O pior mesmo, Maria Rita (meio baixo, como se temesse falar), é que essa cinta não está adiantando muito. A minha hérnia não diminuiu. (T) Mas ela é única


135 viu, minha filha? Pelo menos engana. A sua tia tem um coração de ouro... MARIA RITA

E intuição também. (T) Sabe, mãe - e por falar em coração, fui com a Luana e seus pais num cirurgião plástico. A senhora já ouviu falar no doutor “T”? O cara é um picaretê! Imagina, ele disse que queria arrancar os seios da Luana, assim sem mais nem menos. E outra, se o cara é só cirurgião plástico, como ele fala em arrancar tudo assim? E o pior é que os pais da Luana nem perceberam a contradição. O “seu” Orestes só se mancou quando viu que o homem tinha segundas intenções. Daí sim, ele tirou todo mundo dali.

EUGÊNIA

Eu nunca sei se o médico é honesto ou desonesto. Pra mim, todos são bons.

MARIA RITA

“Eugeneidade”, este devia ser o seu nome né, mãe! Claro que dá pra perceber quando a pessoa tem outros interesses. Pois sabe o que o descarado queria da pobre família? Dindin! Sempre o mardito. Falou que a cirurgia e o material sairia de graça, pelo Estado, sei lá. Mas que merecia uma grana por fora, porque fez não sei quantas cirurgias plásticas nos últimos anos.

EUGÊNIA

(pensando em paralelo) Infelizmente, eu vou morrer com esse desgosto...

MARIA RITA

Credo, mãe! Que é isso? Melhor assim do que cair na mão de um doutor “T” da vida.

EUGÊNIA

(pensativa) Hummm... Faz o seguinte, minha filha: converse com a Luana e os pais dela, e diz a eles que tua mãe vai tentar arranjar uma


136 médica boa - ouviu bem, Maria Rita? -, eu disse boa, pra que atenda a Luana. MARIA RITA

Ótimo, mãe! Mas será que ela me atende também? Ando com uma vontade de me consultar com alguém assim tão boa...

EUGÊNIA

Não seja debochada, minha filha. (com ênfase) Ela é minha médica! Doutora Estela alguma coisa. Porque o sobrenome dela é de amargar. Ela é também ginecologista. Não sei o que pode fazer por Luana, mas conhece bem o corpo da mulher. Amanhã logo cedo eu ligo para ela e falo de sua amiga, está bom assim?

Maria Rita sacode a cabeça e beija a mãe agradecida; pega uma revista e se estira no sofá.

CENA 9

“Música da casa de Normanda”. Luana está no quarto. O ambiente é de penumbra, e ela dorme profundamente. Foco de luz sobre o rosto sonhador dela. Luzes em outro lado do palco. Acontece a representação do sono de Luana. MOMO e MAMA podem representar um casal de enamorados. Som de “Romeu e Julieta”, só musicado. Clima de poesia.

ENAMORADO

Você é a pérola mais linda e valiosa que encontrei nesse jardim. Que ágape é poder te encontrar, princesa?

ENAMORADA

Então, príncipe, você não reparou em nenhuma diferença em mim?


137 ENAMORADO

O que poderia eu, um filho ingênuo da realeza, notar de diferente numa linda garota, com esse corpo perfeito passeando nesse jardim?

ENAMORADA

Não percebe que eu sou igual à Lua? Que mudo constantemente?

ENAMORADO

(romântico, agacha-se aos pés dela) Você, minha princesa? Então quem era no alvorecer?

ENAMORADA

Um balão...

ENAMORADO

(estarrecido) Não pode ser. O que um balão poderia querer ao cair aqui nesse jardim feito um luar?

ENAMORADA

Ser admirada por seus olhos. Não vê que eu renasci bela?

ENAMORADO

Sim, sim. Você é a estrela mais bela que encontrei perdida nesse lugar.

ENAMORADA

Você jura? Está falando a verdade? Não minta para mim. Eu posso me transformar em qualquer coisa. Em sementes de melão, por exemplo. E crescer com dois deles pendurados no lugar dos seios.

ENAMORADO

(chocado) Oh! Princesa! Que eclipse é essa que quer assombrar agora o teu olhar? Não se fira! Não me fira!...

O casal se “congela” e as luzes se apagam até tudo ficar um breu. Pausa. Um apontamento musical crescente começa agora conferindo um certo suspense. As luzes se acendem e os coreutas MOMO e MAMA aparecem cada um, no rosto, com uma máscara respectiva do tipo “sorriso de felicidade de Silvio Santos”.

MOMA

Que maravilha se tudo fosse um sonho apenas?...

MOMO

... De natureza inocente...

MOMA

Eu estou tão bonita!


138 MOMO

(com topete) E eu um gato!

MOMA

(falando ao MOMO, superdengosa) Sabe que você está erótico? Que você acha de...

MOMO

(a la Zé Bonitinho, mexendo nos cabelos e dando estalos com a língua) Calma, calma, meu docinho. Eu não sou tão fácil assim - que nem mamão com açúcar! Mas já me disseram que eu sou um sonho de valsa...

MOMA

(atônita) Açúcar? Chocolate? Mamão? Sonho?...

Eles se “congelam”. Luz sobre Luana que se mexe na cama, como que se virando. Ela geme e estampa no rosto o estranho sonho que tem. As luzes vão enfraquecendo...

CENA 10

... E se acendendo na sala da casa. Canto de galo ou de pássaros em uma manhã. Meia-luz em resistência. Orestes, o marido, está novamente de saída para o trabalho. Está parado à porta como que checando tudo. Começa a assobiar novamente uma canção melancólica. É apenas seu hábito particular de toda a manhã. Pega a sua sacolinha, abre-a e retira um marmitex. Recoloca-o na sacola e a põe por sobre o ombro e sai. Luz vai enfraquecendo até enegrecer tudo. Breve pausa.


139

CENA 11

O canto de Normanda ressurge agora. Ela canta alguma canção sertaneja famosa. E vai até o quarto onde está Luana dormindo e abre a porta. As luzes se acendem fortemente sobre o quarto de Luana, como se a claridade da manhã também o tivesse invadido. Luana se mexe, incomodada, e esfrega os olhos. Olha para a porta e vê por ela Normanda arrumando a mesa para o café. Luana se ergue na cama com a dificuldade de sempre, pega o bicho de pelúcia que está a seu lado na cama, e atira contra a porta. E grita porque dá mau jeito.

LUANA

Aaaaai!

NORMANDA

(da sala, de antena ligada) Ta vendo como Deus castiga! Vamos, Luana; levanta logo dessa cama. Vai, menina!

LUANA

A senhora é realmente uma mala mesmo! Sabe do que eu tenho vontade?

NORMANDA

De voar, já sei, Luana. Todo dia é a mesma coisa...

LUANA

Mesma coisa é acordar com a senhora batendo essas canecas horríveis aí. Como pode uma pessoa ser um reloginho? Eu, quando ficar velha, arranco o meu se tiver.

NORMANDA

Olha como fala, Luana! Velha é a bicha que tem no estomago!

LUANA

Ah! Cala a boca, pô! Eu não vejo a hora de sair de casa e sumir. Sumir, ouviu bem? Sumir!


140 Normanda pára de arrumar a mesa e começa a rir, debochada. Ela parece conhecer muito bem Luana, que se enfurece de tal maneira, que levanta da cama com surpreendente agilidade e corre para a sala. O telefone toca.

LUANA

(num tom ameaçador, espumando de raiva) Dê graças ao telefone, dona Normanda. Se for o papai conto tudo o que a senhora está fazendo comigo. Isso não vai ficar assim; tem troco.

Normanda volta a rir, provocativa. Ela parece tão infantil quanto à filha.

LUANA

(ao telefone) Oi é você, Maria Rita! Que alegria, minha amiga! Você está vindo pra cá? Ótimo! Mas... (tenta disfarçar de Normanda) Com aquilo, né?

NORMANDA

(com visível mal humor) Menina vadia essa daí - parou de estudar também. Diga pra ela que quem não deve não teme. Que pra ser alguém na vida, é preciso não fugir da escola.

LUANA

(ao telefone) Pêra um pouco, Maria Rita. (O.T. à mãe) O que a senhora ta querendo com minha amiga, hein? Ela estuda sim. Como eu. Só não temos culpa se ninguém pensa em nós. Por que a senhora na vai à escola? Sempre tem reunião para os pais. Reclama lá que a sua filha está ficando analfabeta! (volta ao telefone) E então...

NORMANDA

(surpresa) Não é que ela tem razão? (pausa) Também é de doer, né? Entra eleição, sai eleição, e eles falam sempre a mesma coisa: “a


141 educação é a nossa prioridade!” Sim, claro, pros filhos deles, que não estudam em escola estadual, tem chofer, fazem vários cursos, esportes e o escambau. Acabou! Não voto nunca mais! A menos que me paguem por isto! LUANA

(ao telefone) Mesmo?! Mas a tua mãe é demais, Maria Rita! Obrigada. Muito obrigada...

NORMANDA

(à filha) O que foi agora?

LUANA

(responde à mãe, empolgada) Maria Rita disse que falou com dona Eugênia sobre mim, e a mãe dela vai falar com a médica dela pra me atender. Não é o máximo, mãe?

NORMANDA

(com visível ciúme) Grande coisa!

LUANA

(ao telefone) Minha mãe achou o máximo também, minha amiga! Estou te esperando. E não (baixinho para a mãe não escutar) esquece da cinta... (desliga)

Mãe e filha se encaram, hostis. Como duas rivais prontas a dar o primeiro bote. Pausa. Elas ficam assim “congeladas”. As luzes vão cedendo em resistência, e se acendem em outro ponto.

MOMO e MOMA entram vestidos de cobaias. Estão visivelmente apreensivos.

MOMO

Eu estou com medo.

MOMA

Se você for, eu também vou.

MOMO

Tem coisa que exala... (funga, precavido)


142 MOMA

O futuro é essa coisa perigosa.

MOMO

Vamos combinar uma coisa: não vamos chorar. (e chora)

MOMA

(sacana) Ihhh! Manteiga! Manteiga! Manteiga...

As luzes começam a diminuir de intensidade até ficar escuro. A campainha da casa toca alto.

CENA 12

Luzes na sala da casa de Normanda. Luana está sozinha ali.

LUANA

É Maria Rita! (e sai para atendê-la)

Abre a porta e Maria Rita entra. Elas se abraçam e beijam.

LUANA

(ansiosa) Trouxe ela?

MARIA RITA

Você e minha mãe, hein! Gostam dessa cinta como se fosse um objeto sexual...

LUANA

Credo, Maria Rita! Na realidade, eu só mexi uma vez nela.

MARIA RITA

Ta bom, ta bom. (tira-a da mochila) Tome.

Luana a pega e puxa a amiga pela mão indo na ponta dos pés até o quarto. Olha para certificar que Normanda não está lá e entram as duas. Luana fecha a porta.


143

MARIA RITA

(maliciosa) Vamos ver se você vira uma Drag agora – não é isso mesmo quer, Luana?

LUANA

(sem entender a intenção da amiga) Eu não sou tão boba assim quanto pareço.

MARIA RITA

Hummm, é novas. (T) E então, que tal começar a sentir o duro calombo macio?...

LUANA

Do que você está falando aí, Maria Rita? Eu só quero ver se essa cinta cabe nos meus seios. O que você acha, hein? Se funciona no umbigo, por que não funcionaria nos seios?

MARIA RITA

(empolgada) Só! Vai funcionar! Depois vamos poder esfregar a cinta na cara do doutor T! Burro! Burro! Médico que não estuda, parece? O umbigo de minha mãe diminuiu com isso, ela falou.

LUANA

Sério?

MARIA RITA

(cínica) Sério. Cinco centímetros menos. Então, calcule aí uns – dez pro seus peitões. Já não será de bom tamanho, amiga? Eu devia estudar análise de sistemas volumosos, o que você acha?

LUANA

(ansiosa) Vai, vai então; põe logo ela aqui e chega de contar vantagem. Primeiro, vamos experimentar sobre a minha blusa. Só pra ver o tamanho. Depois você me ensina direito como faz pra tirar a cinta.

MARIA RITA

Está bem.


144 Maria Rita, com muito cuidado, põe a cinta sobre os seios de Luana. Ajeita o centro da cinta para a calosidade ficar bem no meio dos seios da amiga. E a trava em seguida.

MARIA RITA

Ora! Ora! Puta visual hein, Luana? (zomba) Ué! Cadê os seus peitos, sumiram?!

LUANA

Pára de gracinhas, Maria Rita. Isso aqui está me apertando pra burro. Vai, acho melhor tirar. Já deu pra ver que é boa, mas tem de ser um número maior pra mim.

Maria Rita não pára de rir de Luana. Os seios enormes agora foram estufados e achatados, de maneira que os volumes saem lateralmente sob às axilas. Maria Rita está tentando encontrar a melhor maneira de abrir a cinta.

LUANA

(sofrendo o aperto, impaciente) Vaaaai looooogo... Está me apertannndo...

MARIA RITA

(fazendo força sem sucesso) Péra, Luana; eu estou tentando abrir esse trem. Ta muito duro.

LUANA

Deve ter um jeito. Vai logo. Senão vou morrer esmagada aqui dentro.

MARIA RITA

Você tem que segurar a onda aí, Luana. Este troço emperrou. Também, o fecho entrô dentro de suas banhas...

LUANA

(no sufoco) Eu não teeeenho baaaaanha...

MARIA RITA

Ta bom, ta bom. Deixo ver se tenho outra idéia. (fala sozinha) Se isso é de aço... Talvez então...


145 Maria Rita enfia os dedos por entre a cinta e começa a puxar. Luana grita de dor.

MARIA RITA

Shhhh. Quieta, Luana. Você quer que sua mãe venha aqui?

LUANA

(sofrida) Neee - veeer...

MARIA RITA

Agüenta um pouco a dor aí.

Luana suspira, mas do incômodo que está passando. Maria Rita não consegue e se senta na cama. Ela toma um fôlego. E a luz diminui em resistência ali, acendendo em outro plano.

MOMO e MOMA estão grudados e com as cabeças dentro de um laço de forca. Aparentam estar condenados, inclusive nos andrajos que vestem. Ambos falam como se estivessem sufocando.

MOMA

Chegou a nossa hora.

MOMO

Éramos felizes e ela não sabia.

MOMA

Quero viver!

MOMO

Eu também.

MOMA

Burra! Burra! Burra!

MOMO

Eu quero minha mãe! Eu quero minha mãe!

E os dois se abraçam. E todo o palco escurece.

CENA 13


146

O telefone toca na sala da casa de Normanda. Luzes. Normanda vai atender a ligação.

NORMANDA

Alô. Ah! É você Orestes. Mas que coisa, hein! Nada como trabalhar no telefone: deixa o Duarte saber que fica ligando toda hora pra casa... (T) Olha, e é bom se preparar porque você não vai com a gente na médica, viu? Sim, a dona Eugênia arranjou a médica dela pra atender Luana. E eu sei lá que diabos ela é! Eu só sei que o senhor está proibido de ir com a gente. (T) Ahhhh! Quer dizer então que está arrependido, belezura? E preocupado não é a mesma coisa não? É sim. É sim. Eu, por exemplo, quando me arrependo de alguma coisa, essa coisa fica na minha cabeça, portanto, fico preocupada, entendeu agora, Zé Mané? (T) Doutor Tê, doutor tê, não é Ty-ê. (acha graça, de repente) Doutor Teta é demais, Orestes! Ah! Ah! Ah! (muda de repente) Escuta uma coisa, Orestes: é tudo muito divertido mesmo, mas você precisa dar um jeito de ganhar mais e botar a Luana num colégio de gente! Aquela amiga dela também não tem mais aula e as duas ficam agora trancadas dentro do quarto falando ou fazendo sei lá o quê. Ah! E não se esqueça da minha cartela, ouviu? Se eu ganhar, você terá uma bela surpresa, queridinho... (breve pausa) Que viciada, o quê! Viciada é a sua mãe! (e bate o telefone com violência)


147 CENA 14

Quarto de Luana. As duas no quarto penam com a cinta nos peitos de Luana. Deitadas no chão, Luana por baixo e Maria Rita por cima, tentam desesperadamente arrancar aquela cinta que está sufocando Luana. Ambas gemem – Luana de dor e Maria Rita de esforço. Normanda encosta novamente o seu ouvido à porta do quarto e ouve os gemidos. Incontinenti, abre a porta do quarto e vê as duas ali no chão agarradas.

NORMANDA

Mas o que é que iiiisssooo!? Eu não posso acreditar que vocês duas (anda em direção a elas) estejam de sem-vergonhice.

MARIA RITA

Não, não é isso, dona Normanda...

Normanda separa as duas meninas e vê então a cinta nos peitos de Luana.

NORMANDA

(espantadíssima, inspira ruidosamente) Eu não posso crer nisso, Jesuuuuus! Uma alça de balão! (pausa) Escuta: o que vocês duas estão pretendendo com isso, hein? Fugir pelos ares? (possessa) Que porcaria é essa aí nos peitos, Luana? E você, menina, era por isso que ficava tremendo quando me via, é? Tudo premeditado... (T) Vamos, me fale: o que estava pretendendo fazer com a minha filha? Estou esperando.

Luana tem a expressão contraída porque está quase se sufocando na cinta.


148 MARIA RITA

Por favor, dona Normanda, me ajude aqui. Depois eu explico. Agora é urgente. Luana está passando mal.

NORMANDA

Eu mato você, Maria Rita! Onde arranjou essa arma de estropiar peitos? (desesperada) Você e essa máquina assassina! Dupla dinâmica! Dupla dinâmica!

Normanda tenta abrir a cinta em Luana, mas não consegue de imediato. Tenta erguer Luana até a cama, mas ela grita de dor. Normanda fica de pé na cama e levanta os braços de Luana, que resiste.

LUANA

Aaaaaaaaai!

NORMANDA

Cala a boca, pô! Como quer que tire esse troço se não ajuda, Luana!

MARIA RITA

Eu já tentei também e não consegui abrir o fecho.

NORMANDA

Então era essa a médica que a tua mãe arrumou pra Luana é, víborazinha? Se ela morrer, a tua mãe vai se ver comigo.

MARIA RITA

Não, dona Normanda! Vira essa boca pra lá. Luana não vai morrer não... Ah! Tive uma idéia, dona Normanda.

NORMANDA

Guarde-a pra você. Se depender delas, a minha filha vai esvaziar!

Luana está agora com os olhos esbugalhados de medo. Como se estivesse amordaçada, manifesta um rumor escabroso de pavor.

LUANA

Aaaaaaaaa...


149 MARIA RITA

Vamos, dona Normanda! Deite a Luana na cama. Ela não está mais suportando. Precisamos ser rápidas e arrancar a cinta de uma só vez.

NORMANDA

Fique fria, minha filha, fique fria. Essa sua amiguinha aqui é diabólica, mas eu vou tirar você dessa arapuca mamária de qualquer jeito. (tendo um estalo) Já sei. Vou ligar pro seu pai. (corre para a sala e pega o telefone) Não! Ele vai ficar louco se ver isso nos seus peitos. (e corre de volta para o quarto) Ah! A tua mãe vai dar um jeito nisso, sua irresponsável! E pode dizer a ela que não vou comprar mais porcaria nenhuma de baby-doll naquela boutique feia! Ela não lava as vitrines, não é? Mas não importa; ela vai ter que abrir imediatamente essa coleira - isso devia é estar é no pescoço dela!

Luana se ofende com isso e rosna de raiva.

MARIA RITA

Deite aqui, Luana! A tua mãe está muito nervosa, mas agora vai. Você só precisa manter os braços esticados pro alto, acima de sua cabeça. Vamos, dona Normanda; enquanto isso eu aperto as carnes da Luana na altura dos seios dela, e a senhora puxa a cinta com toda força para cima.

NORMANDA

(aflita) Mas desse jeito tudo isso vai virar massa de panqueca, Jesuuus!

MARIA RITA

É a última tentativa, vai!

NORMANDA

Então deita, minha filha. Porque se não der certo quem vai vir aqui tirar essa máquina assassina é a dona Eugênia!


150 MARIA RITA

Não, dona Normanda! Pelo amor de Deus! Minha mãe não pode saber que peguei a cinta dela.

NORMANDA

Aaaaah! Não pode saber, né! Mas vai saber de qualquer jeito e agora! Vamos! Pro telefone imediatamente.

Normanda pega Maria Rita pelo braço, mas Luana a impede.

NORMANDA

Que foi, Luana? Está com os bofes todos pra fora por causa dela e mesmo assim quer protegê-la? Vamos, saia da frente, vamos!

MARIA RITA

Deixa então, eu vou ligar pra minha mãe. Mas antes vamos tentar tirar a cinta daquele jeito que falei. (T) Luana! Deita aí vai. É agora ou nunca!

Luana deita na cama e, enquanto Maria Rita agarra à altura dos seios e enfia os dedos por debaixo da cinta agarrada ali nos seios, Normanda vai tentando puxar a cinta por cima dos braços esticados de Luana.

NORMANDA

Eu quero ver agora se eu não arranco essa geringonça... (no esforço, puxando a cinta) Uuuuuuuhhhh...

MARIA RITA

Eiiiiiiiita...

LUANA

(grita) Aaaaaahhh....

Elas tentam em vão, porque as únicas coisas que funcionam sãos os urros das três.


151 NORMANDA

Me fale uma coisa, Maria Rita: o que sua mãe prende com isso? Porque vergonha escapa de qualquer jeito.

Maria Rita não responde, e é ela quem fica envergonhada. Fica olhando para Normanda com aflição e, como não consegue falar, aponta para a região da barriga. Normanda solta uma gargalhada enorme, assustadora. As duas moças a olham espantadas. De repente, Normanda pára de rir, e volta a olhar o estado de Luana. O clima torna a ficar dramático. Apontamento musical. As luzes vão se apagando...

CENA 15

...E se acendem na sala da casa de Eugênia. Música-tema. Eugênia está procurando a cinta embaixo da mesa, em cima de móveis, gavetas. Corre para o quarto e começa a revirar tudo que encontra.

EUGÊNIA

Aquela mocinha vai se ver comigo. Deixa só eu pegar ela, pra ela ver. Que mania de mexer nas coisas onde não é chamada. Pode uma coisa dessa?

E volta de novo para a sala e pega o telefone. Digita alguns números e fala:

EUGÊNIA

Dona Normanda? Aqui é a Eugênia, mãe de Maria Rita, como vai? O quê? Eu, barriguda? (T) Maria Rita, minha filha! É você? Que está


152 acontecendo aí? Por quê ela me chamou de barriguda? Eu não estou entendendo nada. Onde você pôs a minha cinta? Eu quero saber o porquê dela me dizer aquilo. (T) Olha, Maria Rita, eu ainda te deixo sem dinheiro pra você ir no Shopping por dois meses se não fizer aparecer a droga da minha cinta! Como? Fazer o que aí na casa da Luana? Olha, pela última vez, Maria Rita: onde você pôs a minha cinta? (ficando histérica) Está com você aí? Eu não posso acredi... Fazendo o quê aí? Ahhhh! Então é por isso que essa donazinha me chamou de barriguda, né! E como pôde se atrever a tirar a minha cinta de casa? Me espere que eu estou indo já para aí! Eu te mato, eu juro! (desliga)

CENA 16

Luzes. Breve passagem de tempo. Música-tema da casa de Normanda. A campainha da casa toca. Normanda atende à porta. E Eugênia entra de chofre .

EUGÊNIA

Eu quero uma retratação, dona Normanda. Que história é essa de me chamar de barriguda?

NORMANDA

(aproximando-se da outra desafiadora) Escuta aqui uma coisa: a senhora é doente de quê, afinal de contas? Acho que da barriga não é. Deve ser da cachola porque...


153 Normanda é interrompida porque Maria Rita aparece na porta do quarto, desesperada:

MARIA RITA

Dona Normanda! Mãe! Por favor, venham aqui! A Luana está quase sem ar! Ela vai morrer... Por favor!

As duas mães correm para o quarto. Luana está de pé segurando o armário de roupas com os braços levantados, como à procura de uma posição que a ajude respirar. Dona Normanda estrebucha ao ver Luana com sua cinta nos peitos da moça. E cai no chão, desfalecida.

NORMANDA

Só me faltava essa, Jesus! Quando penso que a situação pode melhorar, que nada; surgem novas emoções... (ordena) Maria Rita: vai lá na cozinha pegar vinagre. E traga o pano de prato perto da pia.

Maria Rita sai de cena, e Luana está literalmente subindo pelo armário, gemendo.

NORMANDA

Mais um pouco, minha filha, por favor. Só vou colocar essa mulher de novo no mundo e logo você estará fora dessa barrigueira.

Neste momento, o telefone toca na sala. Maria Rita entra em cena e vai atendê-lo.

MARIA RITA

Sim! Oi, seu Orestes! (com a voz tremida) Eeeu... nãão posso falar agooora. Não, não. Ela nããão essstá. Também não. Éééé que as duas foram até a boutique de minha mãe ver umas roupas. Dona


154 Normanda disse que queria ver um baby-doll, se não me engano. Éééé – acho que é pro senhor que ela foi comprar. Não! Não! Não! Não quis dizer isto. E por que eu não fui junto? Éééé que... Sabe, seu Orestes. Eeeeu preferi ver umas revistas aqui que ainda não li. Eu juro que é verdade, seu Orestes! E, além do mais, eu não agüento mais ver a boutique de minha mãe. O senhor ri, né? É verdade mesmo... Tá bom então, eu falo. Até logo. (desliga) NORMANDA

(do quarto, berra) Maria Rita! Liga pra emergência e chama uma ambulância. Parece que a barriga de tua mãe estourou!...

Maria Rita corre para o quarto e se aproxima da mãe no chão, depois para o rosto meio cínico de Normanda, e depois ainda para Luana, de pé, segurando o armário com os braços erguidos. Pausa. Apontamento musical. E as luzes se apagam.

CENA 17

Uma sirene de ambulância toca desesperadamente. Luzes. Na ambulância em macas paralelas estão deitadas Eugênia e Luana, respectivamente acompanhadas por Maria Rita e Normanda Maria Rita afaga os cabelos da mãe. Normanda afaga os cabelos da filha. As suas falas são entrecortadas simetricamente.


155 MARIA RITA

Eu prometo que rezo dez missas pra Santa Aparecida, mãe.

NORMANDAEu juro que vou à capela de Santo Cristo me penitenciar, minha filha, pelo que te fizeram...

MARIA RITA

Toda vez que eu lembrar vou rezar trinta pai-nossos e cinqüenta avemarias quando passar pela Igreja da Saúde, mãe.

NORMANDA

(com os olhos fechados) Vou gravar na minha memória que a minha filha nasceu anjo e precisa ser tratada como tal. (enternecida) Você vai ficar bem, minha querida...

A sirene da ambulância cresce ainda mais e as duas abraçam-se às suas respectivas mãe e filha. Aos poucos, as luzes vão se apagando, e se acendendo em outro plano. O som de sirene diminui um pouco, mas se mantém. MOMO e MOMA estão deitados no chão, cobertos por lençóis.

MOMO

Chegou o fim, finalmente.

MOMA

Me deformaram por completo.

MOMO

Tudo termina quando acaba mal.

MOMA

Mal termina quando acaba tudo.

E as luzes se apagam em resistência, e junto com elas, a sirene da ambulância.


156 CENA 18

Orestes chegando em casa. Atira a sacola sobre o sofá e põe a cartela do bingo sobre a mesinha. Sai à procura pelos cômodos da casa, e manifesta surpresa por não ver ninguém. Em vez de ficar preocupado ou ansioso, ele liga a TV e sai de cena, como se fosse à cozinha. RUÍDO de pipoca estourando. Pausa. Orestes volta à cena com uma vasilha cheia de pipoca e se estira no sofá à frente da TV. De repente, vê o vasilhame de vinagre perto do telefone e levanta-se para pegá-lo.

ORESTES

(exclama com a boa idéia) Como é que eu não tinha pensado nisso! Amanhã mostro este vinagre pro Duarte e falo que Luana desmaiou... É claro que ele vai acreditar. Levando a “prova’, ele não vai me encher o saco. Aquela obra não termina nunca, cacete! Mas daí é só falar que ela passou mal e não despertou com esse vinagre e pronto. Fomos para o pronto socorro. A pressão caiu e pum! Levou Luana junto. Ela desmaiou. De preocupação, eu acabei levando o vinagre na minha sacola. (pega a sacola e despeja um pouco de vinagre dentro dela) Tanto é que ensopou a droga da sacola. E ainda peço um vale para comprar uma nova. Gênio! Gênio! O que Deus não dá para que fiquemos em casa?! Se todos pensassem desse jeito o país teria também a sua Casa Branca! Uma imensa casa branca com cento e setenta milhões de presidentes de vagabundos! (pausa; de repente fica sério) Mas se tem uma coisa que eu não engoli foi a gagueira daquela menina... Pode ter acontecido alguma coisa grave com a


157 minha Luana e a amiga dela... (procura a agenda de telefones, ansioso) Deve ter o telefone da casa de dona Eugênia. Vai ver elas estão lá, depois que saíram da boutique.

O telefone toca e Orestes se assusta derrubando o vasilhame de vinagre no chão.

ORESTES

Maldito! Isso é jeito de tocar! (atende gritando) Alô! O que você quer? Eu estou calmo!!! O quê? (dramatiza) Não! Não! Eu não posso acreditar! É o fim, é o fim! Como não é pra dramatizar? (pausa) E o que Duarte falou quando você - (com alívio) Ufa!!! Que bom que você disse que não sabia... (T) Não! Você disse que sabia? E agora, o que eu faço? (pausa) No hospital do Bosque? To indo...

Em desespero, Orestes desliga o telefone, pega a sua sacola, um punhado de pipoca e sai correndo. Na tevê, um calouro canta em um programa de auditório. As luzes apagam-se em resistência e GEMIDOS de dor inundam a cena. MOMO e MOMA passam correndo e se cruzando pelo palco. Gemem alto. A corrida é nervosa, como o é uma dor intermitente. Um mau presságio se anuncia. Aos poucos, tudo fica em blackout.


158 CENA 19

Luz em foco ilumina o ENFERMEIRO que passa correndo empurrando a maca onde está Eugênia. Luz sobre outra maca onde está Luana. Um outro ENFERMEIRO está serrando a cinta presa sobre os seios dela. Pausa. A serra faz muito barulho, mas, de repente, pára. Luz sobre o sofá onde estão sentados Normanda e Orestes. Eles estão na sala de espera do hospital. De repente, Orestes levanta dali.

ORESTES

Sabe de uma coisa: vou sair tomar uma.

NORMANDA

Se sair daqui é melhor não voltar. Você é um homem ou um saco de batatas, Orestes?

ORESTES

O que é que há, hein? Ta pensando que eu não agüento é? É que tomando uma fica mais fácil, só isso.

NORMANDA

Homem sempre precisa de uma, né? Ou é “dá uma”, ou “toma uma”, ou “jogar uma”. Ah! Orestes! Você é um frouxo, isso sim!

ORESTES

Posso ser, mas não esqueci a sua cartela.

NORMANDA

(afoita) Jura? Onde ela está? Onde ela está? Me dá que enquanto isso eu vou preenchendo os números que estão na minha cabeça.

ORESTES

Zero. A sua cabeça é zero, zero - e eu, como fico? Já se esqueceu do seu casca grossa, foi? (insinuando-se) Aquele baby-doll agora cairia bem. Hein? Queria ver você arrasar na cama, minha cordilheira...


159 NORMANDA

Que cordilheira o quê, Orestes! Agora pára de pensar besteira. A nossa filha ta lá dentro presa em uma cinta pra barriga e a gente aqui pensando bobagem.

ORESTES

Se ela ficar boa, eu vou contar...

NORMANDA

Ufa! Já não era sem tempo. (T) Orestes: você por favor tenha muito cuidado em falar sobre esse assunto com Luana. Ela é muito sensível e pode pôr tudo a perder...

ORESTES

A verdade sempre vem para o bem. E Luana é uma garota inteligente; vai saber separar sentimentalismo de reconhecimento.

NORMANDA

Hummm. Quem vê você nessa pode pensar que é um diplomata.

ORESTES

Eu estou aqui; você está aí. Quanto vale? O prêmio da cartela de cinco mil?

NORMANDA

Ah! A cartela, Orestes! Me dá logo, por favor...

Orestes dá uma de difícil balançando a cabeça em negativa. Normanda, querendo se divertir, sobe sobre ele para procurar nos bolsos. Ambos começam a soltar uns gritinhos de cócegas, até que ouvem um pedido de silêncio, alto e assustador: “Shhhhhhhhh!” Pausa. E logo as luzes se apagam.

CENA 20

Luz em foco sobre Luana na maca. Ela acordou. Antes de tentar se levantar apalpa-se pelo corpo até chegar aos seios. Como não sente os volumes ali, levanta-se de chofre e anda pelo


160 palco. Acha um espelho e fica se olhando. Vê como ficaram seus peitos e sorri. Põe o espelho à sua frente e ri com vontade. Não com malícia, mas como se o fizesse descobrindo algo muito significativo - uma auto-revelação, começando devagar e aumentando gradativamente. Com uma das mãos não se cansa de apalpar os seios. Até que pára e fica apreensiva. A luz enfraquece até sumir dela e acender em: MOMO e MAMA entram em cena. Vestem capuzes pretos com grandes buracos nos olhos e nas bocas. Ambos têm os dentes cerrados, em fúria.

MAMA

Eu nunca vou perdoar o que ela me fez.

MOMO

Tudo o que eu queria agora era enforcá-la pra ela sentir o doce amargo da vingança.

MAMA

A minha bela imagem... E agora, quem sou?

MOMO

Eu vou me vingar dela! Eu não posso perdoar quem nunca gostou de mim. Ela não perde por esperar. Voltaremos ao normal...

MAMA

Não voltaremos ao normal, entenda. O que ficou

irremediável,

remediado está. MOMO

O único remédio que nos serve agora é a esperança. Esperança em ver a nossa desforra.

MAMA

Nosso mundo parou...

E eles desabam em cena.


161 CENA 21

A luz se acende sobre Orestes, que cochila na sala de espera do hospital. Luz em foco, respectivamente, sobre Normanda em um canto, ajoelhada rezando, e sobre Maria Rita igualmente rezando. Um severo bater de palmas interrompe a todos ali. As luzes todas se acendem. Uma enfermeira olha para todos e pergunta:

ENFERMEIRA

Quem é a família de Luana Reis?

NORMANDA E ORESTES (juntos, respectivamente) Eu sou a mãe/pai. ENFERMEIRA

Podem entrar no quarto. Duzentos e seis. A garota já acordou.

Como que numa prova de rapidez, Normanda e Orestes correm desabaladamente para fora.

ENFERMEIRA

(à Maria Rita, compadecida) E você filha? Quem é?

MARIA RITA

Como quem sou? A senhora não me viu chegando aqui no hospital?

ENFERMEIRA

Não me lembro. Também não dá pra lembrar de todo mundo que chega aqui. Hospital é mais freqüentado do que balneário de férias.

MARIA RITA

Tem razão, só que aqui a gente sofre e no balneário a gente ri.

ENFERMEIRA

O que não deixa de ser uma boa diferença. Mas então, quem

você tem aqui? MARIA RITA desmaiada aqui.

Minha mãe. Dona Maria Eugênia Floripes Costa. Ela chegou


162 ENFERMEIRA

(conferindo a relação de pacientes) Dona Maria Eugênia... Dona Maria Eugênia Floripes... Ah! Taqui. Ela vai... Deixe-me ver... Para... Também para o quarto 206. Dois, zero, meia. (T) E o caso dela foi considerado grave pelos médicos que a atenderam, contudo ela não pôde ser operada.

MARIA RITA

Por quê?

ENFERMEIRA

Colesterol. (olha o relatório e fica surpresa) Mama mia! Trezentos e oitenta de colesterol! Também a esse nível, só se fôssemos loucos pra operá-la! Ela está voltando para o quarto. E o médico logo logo vai lá falar com os parentes. Só tem você com ela?

MARIA RITA

(lembra-se) Xiiii... Eu não avisei a minha tia! Será que posso usar o telefone?

ENFERMEIRA

Olha, menina, acho melhor você vir comigo e não avisar ninguém. Sua mãe não vai ser operada mesmo, portanto eu acho que ela vai receber alta.

MARIA RITA

Mas como? O caso dela não é considerado grave? O médico do socorro disse que ela teve a hérnia estourada. E, agora, você me fala que ela está trezentos e oitenta de “colerol”...

ENFERMEIRA

Colesterol. Mas não pára por aí, não. Sua mãe, com esse nível de colesterol, pode ter um infarto fulminante.

MARIA RITA

Credo, enfermeira! Só coisa ruim! Me leva até lá então, por favor.


163 CENA 22

Quarto do hospital. Luana, Orestes e Normanda estão de pé abraçados, visivelmente aliviados. Claramente, eles se recuperam de uma carga emocional despendida.

Luz em foco em outro plano, quando entram MOMO e MOMA. Entram com balãozinhos de festa e roupas coloridas. Estão inacreditavelmente felizes.

MAMA

O mundo dá voltas e passa no mesmo lugar. A estação do perdão.

MOMO

É ver para crer. Fatos são fatos. Motivos são motivos. Amor é perdoar. E o mundo gira, gira...

MAMA

O momento da festa chegou!

MOMO

Eu sou só alegria!

Eles se abraçam, pulam, e saem de cena dançando.

CENA 23

Luzes. Breve passagem de tempo. Quarto do hospital. A família Reis está de um lado, e a família Costa de outro. Deve passar a imagem de que estão “rachados”. De modo que, ao falarem, falam entre si e de modo paralelo.


164 ORESTES

Luana, minha filha, depois de tudo isso que você passou, está preparada para ouvir uma bomba?

LUANA

(feliz) Ora, papai! Eu estou resolvida não está vendo? O meu tormento acabou! Graças a Deus...

NORMANDA

(corrige, com pigarro) Rahn, rahn. Você quer dizer graças à cinta não é, minha filha?

Enquanto isso, Maria Rita e Eugênia também falam entre si sobre os outros.

EUGÊNIA

(divertindo-se, vingativa) Ah! Minha filha, querida! Teu pai deve estar soltando fogos no céu por você. A sua idéia de colocar a minha cinta sobre os mamões de sua amiga foi divina! Você puxou mesmo o Tavares. Aquele português era louco pra pegar peças nos outros...

MARIA RITA

(gabando-se) Obrigada, mãe. No fundo no fundo, eu me inspirei no pai mesmo... Achei que ele ia gostar de ver aqueles “mamãozões” virarem vitamina! (e ri, divertida)

Novamente, Orestes tenta contar alguma coisa importante à filha.

ORESTES

Luana, minha filha, ainda bem que está feliz! Saiba que a tua felicidade é a nossa também. Minha e de tua mãe. Por isso queremos te dizer uma coisa muito importante que fomos adiando até hoje por causa de ocasião melhor para contar.


165 LUANA

Ah! Papai! Sem essa, vai! Fazer tipo agora é demais, por favor né! O que quer me contar eu já sei...

NORMANDA

Como já sabe, Luana? Você não faz nem idéia do que seja.

LUANA

Vale o quê então? Eu sei tudo que vocês sabem. Eu nunca fui boba como pensavam.

ORESTES

(fazendo tipo artificialmente) Mas, minha filha! A gente foi obrigado a omitir a verdade pra você, sabe?...

LUANA

(condescendente) Eu sei, papai. Eu não troco vocês dois por nada deste mundo. Foram vocês que me criaram desde quando nasci. A minha mãe biológica morreu, eu sei.

NORMANDA

(extremamente espantada) Mas como você pode saber disso, Jesus?

LUANA

Ora, mãe. A senhora nunca ouviu falar de que quem tem boca, vai a Roma? Pois é, eu sempre quis descobrir o porquê de ter os seios enormes, sendo que os da senhora eram normais.

ORESTES

Mas filha! A tua mãe morreu porque era anã! E você nasceu com quase cinco quilos!

NORMANDA

E como sabe disso, Orestes? Se ninguém me falou sobre isso...

ORESTES

Porque depois eu fui pesquisar quem era.

LUANA

E eu fui com papai.

NORMANDA

(com cara de boba, fala ao público) Até ontem, o último a saber era o marido traído; agora, no entanto, é a tonta aqui... (de volta, dirigese aos dois) Escuta aqui, vocês dois, o que estão querendo com isso? Eu não posso acreditar que fizeram teatro com a minha cara durante


166 esse tempo todo? Eu, eu, eu... Estou derrotada... (ela senta-se na cama, desolada) ORESTES

(à Luana, mudando de assunto) Você devia escolher melhor suas amizades, minha filha. Uma amiga que te faz pôr uma cinta pra barriga nos seios, não deve gostar de você.

LUANA

(sentindo-se culpada) Sei lá. Talvez a culpa tenha sido minha, sabe. Eu também cismei em botar aquela cinta.

ORESTES

Mas também não precisa ficar desse jeito não é, querida? Se imaginar que você tinha dois mamões aí no lugar dos seios, até que a cinta não foi tão infrutífera assim...

De repente, entra o médico com um embrulho. Nada mais nada menos do que o Dr Nye, para espanto de Orestes e família.

ORESTES

O que faz o senhor aqui, doutor T?

DR NYE

Ni! Ni, te! Pronuncia-se “Ni”, ignorante!

ORESTES

(indo pra cima) Olha aqui doutor “Nit”, eu tenho vontade de Nintchê sua fuça isso sim! (Luana o segura) Me solta que esse sujeito vai ver só o que bom pra tosse!

DR NYE

Mesmo sabendo que fui eu, te, que atendi a sua filha aqui nesse hospital?

NORMANDA

(de repente, ressurge levantando-se da cama) O que é isso, doutor, na sua mão?


167 ORESTES

Esse chinês salafrário é blefador...

Maria Rita estranha também a presença do doutor Nye, enquanto Eugênia também tem um ponto de interrogação no rosto. EUGÊNIA

Quem é esse homem afinal, filha?

MARIA RITA

Foi o médico que nós fomos. Lembra-se de quando eu te falei que eu tinha ido com a Luana e os pais dela consultar um médico picareta? Ei-lo...

O médico abre o embrulho e mostra a cinta umbilical cortada no meio. DR NYE

Eis a arma do crime, te. (T) Luana: era melhor, te, que fizesse aquela cirurgia, te, porque agora só resta asfaltar essa região onde a cinta ficou presa. (e ri, vingativo)

ORESTES

(possesso, vai pra cima do médico, ainda seguro por Luana) Ora, ora, seu boneco de plástico! Eu te arrebento!

NORMANDA

(com raiva) Isso doutor T! Manda bala nesse homem que ele merece!

ORESTES

Você está ao lado de quem, afinal?!

EUGÊNIA

Ei, doutor: e a minha hérnia como está?

NORMANDA

(desaforada) A senhora, dona Eugênia! Devia ter mandando um jogador de golfe tacar no seu umbigo. Aposto que ele ia mandar bem longe aquela bolinha!

MARIA RITA

Olha, dona Normanda, vê como fala com a minha mãe... (T) E essa daí que dá frutos? Como é que fica, hein?

LUANA

Cala a boca, sua bruxa!


168 DR NYE

Ei, ei, te! Isso aqui não é o cortiço de onde vieram não, te! Calma lá. (T) A senhora é a dona Maria Eugênia, não é te?

NORMANDA

Em umbigo e osso. (ri em desforra)

EUGÊNIA

(reage à Normanda) Sua pícara!

DR NYE

(novamente surpreende ao falar sem o tique, com jeito de sueco) Olha aqui: se vocês vieram neste hospital tão conceituado e sério para lavar roupa suja, sinto desiludi-los, senhores. Aliás, eu preciso ir ver outros pacientes. Por isso, sugiro que façam as pazes. Vocês se merecem! (T) Agora, dona Eugênia, eu preciso lhe dizer que essa cinta que a senhora usou tanto tempo só serviu para apressar o estouro de sua hérnia. A cinta pressionou tanto o seu tecido umbilical que sorte sua que não voou pelos ares.

EUGÊNIA

Mas não foi isso não, doutor! A minha hérnia estourou depois que vi a minha cinta nos seios daquela garota!

NORMANDA

Mas pelo que eu saiba foi a sua filha que trouxe essa cinta pra Luana.

MARIA RITA

(cínica) Fiz isso pelo bem dela.

ORESTES

A culpa é sua, doutor Ny-ê. (T) Ei, ei pessoal. Vocês não estão notando nada de estranho com esse boneco de plástico, não? Ele perdeu o “te” que falava... Não é mesmo uma gracinha esse doutor te? Venha aqui, bilu bilu... Parece outro médico agora. (debochado) Doutor Têzinho! Que não foi capaz de ajudar decentemente a minha filha antes de ela ter botado essa joça nos mamilos.

DR NYE

O senhor deveria me render graças, senhor Orestes. Eu só tenho ajudado a sua filha, desde aquele dia que foram ao meu consultório.


169 As suas ofensas, inclusive estas de hoje, já foram computadas corretamente e passadas ao Duarte. Se eu fosse o senhor, já ia preparando o que fazer da vida a partir de amanhã. E a senhora, dona Eugênia, como estava lhe dizendo, a cinta, bem a cinta complicou ainda mais o defeito que tinha no umbigo. Recomendo que fique em repouso por trinta dias. (T) Mas ainda bem que a senhora tem uma filha tão prestativa, não é mesmo? MARIA RITA

Então a minha mãe está de alta, doutor?

DR. NYE

(indicando Luana) E a mocinha aí também.

LUANA

Eba!

DR. NYE

E acho que isso merece uma comemoração, vocês não acham?

ORESTES

Esse homem me ferrou!

NORMANDA

(ri de repente) Esse médico é um tremendo gozador! Quer que decoremos a festa com mamões e umbigos... Ah! Ah! Ah!

EUGÊNIA

(fala entredentes) Eu tenho vontade de matar essa sujeita!...

LUANA

E então doutor? Onde vai ser a festa? Aqui mesmo?

MARIA RITA

Se precisar, eu faço brigadeiros...

DR. NYE

Ei, ei, meninas. Calma, calma. (breve pausa; volta a ser chinês) Eu falei em festa sim, te, mas na casa de vocês. Acho que a melhor coisa que podem fazer agora, te, é comemorar toda essa baita experiência lá, te.

ORESTES

Eu não consigo me conformar que esse sujeito seja um camaleão que fale a toda hora com te e sem te...

NORMANDA

Chega, chega, Orestes! Ele é um Tesão, e ponto.


170 ORESTES

(alterado) Como assim?

NORMANDA

Vamos, vamos embora, seu casca grossa. Podemos ir então, doutor Nye?

DR. NYE

(saindo) Depois do almoço. Boas festas a todos. (para atingir) Menos para... O senhor Ores...te (sai).

Pausa. As famílias se olham. Há uma certa hesitação e expectativa no ar. Mas, aos poucos, eles vão se cumprimentando entre eles, retomando o afeto por meio de abraços bem calorosos. Tanto Luana quanto Eugênia também se levantam. Fica evidente que estão sem as suas “saliências”. Apontamento musical pode dar o tom da reconciliação e do reconhecimento do mal entendido. As luzes apagam-se em resistência.

CENA 24

As luzes se acendem em outro plano, onde estão MOMO e MAMA sentados, um diante do outro, com roupas sóbrias. MOMO está lendo em voz alta a “bíblia mamária”, enquanto MAMA escuta interessada.

MOMO

A questão aqui não é: “sede pó e ao pó voltarás. Sois fonte alimentar. Da vida. Do sexo. Da estética. Voltar às origens mamárias é renascer em um novo mundo. Admirável Mundo Novo. Onde não mais haverá eclipses e sóis escuros. Nada poderá impedir a derrota total de todos os males. Sede mamas decentes, sadias e inteiras. Somente mamas


171 íntegras alcançarão o mundo vindouro”. (à Mama, que adormeceu) Ei! Isso é pecado! MAMA

(boceja) Uááááááh... Que sono que me deu!...

MOMO

(com repentino entusiasmo) Eu adoraria participar da festa!

MAMA

Não seja enxerido! Não te esqueça: já voltamos às origens.

MOMO

Eu sei, eu sei. (pausa) Ao vácuo mamário de Luana...

Eles se dão as mãos, conformados, enquanto as luzes vão se apagando lentamente e se acendendo em outro plano.

CENA 25

Música-tema da casa de Normanda. A casa dela está decorada para a festa. Normanda arruma a mesa, pondo quitutes e refrigerantes. Orestes está de pé acompanhando o serviço da mulher, visivelmente nervoso.

NORMANDA

Uma das coisas mais importantes da vida é se divertir, Orestes. Se não fosse assim, os palhaços não curariam os doentes.

ORESTES

Por que está me dizendo isso agora? Não estou doente...

NORMANDA

Claro que está. Olha só o seu jeito. Aí sim ele vai ter motivo para te mandar embora.

ORESTES

Duarte não é desse tipo, não. O problema é outro.

NORMANDA

Qual?

ORESTES

Ele querer fazer justiça pelo primo. O doutor Ny-ê.


172 NORMANDA

Ah! Orestes! Eu não acredito nisso! É mais fácil aquele idiota do doutor Ny-ê, como você mesmo diz, te processar por injúria e difamação, do que se preocupar em falar com o Duarte. O doutor Nye blefa. Desde o começo. Eu fico até na dúvida se aquele homem é real, de verdade...

ORESTES

Já decidi. Vou trabalhar. (tira do bolso uma cartela) Pra você, minha cordilheira. O teu ópio de cada dia.

NORMANDA

(contente, abraça-o) Hoje eu aceito você me chamar de cordilheira, mas não se acostuma muito ouviu? (afetando sensualidade) E mais tarde eu te espero com aquele baby-doll que dona Normanda me trouxe da boutique dela. Vou te deixar louco, meu cascão! (beija-o sedutora, O.T) Mas vai agora, Orestes. E não se preocupe mais.

ORESTES

O emprego me chama, senhora. Hasta la vista... (E sai)

De outro lado, entra Luana, feliz, e com os “peitos sob medida”. Ela está visivelmente espontânea e vistosa.

LUANA

Cadê o papai, mãe?

NORMANDA

Seu pai é um bosta, minha filha. Não liga pra ele, não.

LUANA

(vindo até a mesa) E o bolo, cadê mãe?

NORMANDA

Ih! É verdade, Luana! Já tava me esquecendo dele. (sai rapidamente, acompanhada por Luana)


173 Toca música-tema de Eugênia. Esta entra caminhando devagar, convalescente, amparada por Maria Rita. Tem uma faixa cobrindo a região do abdômen. As duas estão chegando à festa preparada na casa de Normanda. As duas caminham lentamente até o quarto, e, quando param à porta, começam a falar.

EUGÊNIA

Foi aqui então onde tudo começou?

MARIA RITA

Se você visse a tua cara, mãe, quando viu a cinta nos peitos da Luana?...

EUGÊNIA

(começa a rir) Mas é preciso reconhecer uma coisa agora: uma cinta sobre dois mamões até que não é tão infrutífero assim, né!

MARIA RITA

O umbigo da senhora que o diga hein, dona Eugênia! (T) Mas que tal uma chamada de marketing tipo: “Mulheres: preparem as suas frutas que a estação da cinta chegou!” (e ri, divertida)

EUGÊNIA

(pondo a mão no umbigo) Que é isso menina! Não se esqueça do que o doutor “T” me disse: “Lembre-se da ameixa que frutificou uma vez em seu umbigo! (e ri gostosamente)

Entram Normanda trazendo o bolo e Luana ajudando a segurar o enfeite que tem em cima dele: “A CINTA DE EUGÊNIA”, agora remendada.

NORMANDA(alto para as duas ouvirem) Surpresa! Surpresa!

Eugênia e Maria Rita voltam-se para a sala e vêem aquele bolo bonito com um enfeite conhecido.


174

EUGÊNIA

Que criatividade, Normanda!

MARIA RITA

Já sei! Essa cinta agora vai servir para fazer desse bolo, um marco em

nossas vidas?... LUANA

Bolo, não, Maria Rita. BOLÓFE. Bolo das Lombadas Femininas.

Riem, divertidas.

NORMANDA

(rindo) Lombadas femininas... Realmente...

EUGÊNIA

Os homens pensam que só eles carregam volumes, mas nós também temos os nossos! (e ri)

LUANA

E se eles têm cinturão de caubói, nós temos a cinta dos calombos!

MARIA RITA

Abaixo os volumes femininos e viva o BOLÓFE!!!

Estão todas muito animadas. E Luana começa a desfilar, agora com os peitos bem murchos ou achatados. Eugênia se empolga e também começa a desfilar, enfatizando o seu umbigo “chupado”, para todo mundo ver a reentrância que ali ficou. Normanda e Maria Rita se esborracham de rir ali sentadas no sofá. Música-tema toca e as cortinas vão encerram o espetáculo. FIM


175

SOBRE O AUTOR Felipe Moreno nasceu em São Paulo e escreve desde 1986, quando assumiu o sentimento de revelação de que era preciso escrever. Não soube, ou ainda melhor, nunca soube dizer tão bem por quê e para quê escrever, mas entendeu a revelação profunda talvez não com a mesma determinação oracular que ela lhe trazia, afinal tornar-se um escritor acarreta idas e vindas dentro de um processo pelo qual esse devir se sustenta, mas buscou sempre um jeito próprio de entender a vida e fazer dela algo precioso.

Tem livros e eBooks publicados, peças teatrais e roteiros de tevê e cinema produzidos e em produção. Escreve também artigos, ensaios e contos para sites e publicações periódicas. Escreve ainda roteiros e peças teatrais empresariais, para treinamento de pessoal. Atua como professor de criação em diversas orientações ficcionais, como eBook, roteiro, teatro e literatura.

Coordena o site http://www.letrascriativas.com.br onde oferece conteúdo literário, cultural, digital e audiovisual, além de serviços de criação e roteirização de programas de vídeo, cinema, tevê e de esquetes teatrais para empresas, revisão e consultoria de livros, edição e produção de eBooks e de revistas digitais para tablets. Mora em São Paulo, capital.


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