Capítulo inicial do eBook "Carne e Unha"

Page 1

I

ESPEREI SENTADA, que nem uma vovozinha. Nenhum sinal de dantes e tampouco de navegantes. Queria só aquele cara que poderia me fazer feliz pra muito que se imagina. Estava interessada nesse negócio aí mesmo que tanto falam, de vida a dois, que preenche a alma destrambelhada de tão oca carência. Romântica, o escambau! Eu não tinha nascido pra esse tipo de nhenhenhém, não. Mas queria o Persona porque ele era meu par. Quem vive uma bela história de amor, tem direito a sonhar. Crescer os olhos da tesão. Que nem fica a doida da minhoquinha quando cavocada por dedinho de criança. Aqueles grossos dedos crivavam o teclado de computador com fúria, e o ânimo me havia incendiado. Uma labareda saindo pelas narinas finas quase seda do meu torpe narizinho. Torpe porque eu cheirava. Não pó, mas ambição, um desejo louco de possuir alguém debaixo de mim, acima de mim, a meu lado, às minhas costas, a vulgar ubiqüidade sacana da cobertura. Um sonho estratificado de luxúria. Uma coisa assim sem controle quem nem acidente na madruga com boizinhos cheios de mé. Ninguém, nem mesmo mamã entenderia essa fogueira ardente que centigra tudo que é parte do meu corpo, e um gosto de mel parece adocicar ainda mais fundo o meu desejo. Talvez só o Persona pra me tirar desse delírio esquizóide, baixar esse fogo e me deixar que nem maria-depois-do-banho. O grande problema é que o galã dessa história não gostava muito de aparecer. Estranho isto, mas é verdade. Persona era daqueles camaleões estúpidos que confundem ubiqüidade com mutabilidade. Se ele soubesse que eu estava aqui à sua disposição, cagava pra mim. Um filho-da-mãe egocêntrico cheio de se achar dono da história. E eu – como é que fica? Cresci o cangote e endureci a crista. Porque se não... Gozado que o barulho do teclado fazia um ritmo gostoso. E isso me animava cada vez mais. Era sinal claro que Persona tava por aparecer e me levar. Já não agüentava ter que olhar o mundo sozinha como num monólogo grotesco de tristeza. Sim, porque todo monólogo é triste que dá gosto. Fica aquele ritmo de viola de uma corda só, batendo no mesmo ponto mesmo que se mude a posição dos dedos. Ninguém gosta daquela choraminguela forjada. Eu quero é distância disso. Não demorou muito pra ele aparecer. Aquela coisa de aparição esbranquiçada de fantasma fazia era sombra diante do jeitão viçoso que Persona chegou. Quer dizer, entrou na história. Disse que era camaleão, mas já estou achando que ele tem poderes sobrenaturais. E quando quis primeiro antegozar o momento com um olhar carregado de debruce, o danado me agarrou por trás e cráu! - Péra! Que que cê ta fazendo!... Olhei virada assim pra ele com a cabeça formando um ângulo de uns quarenta graus. - O ar doce de seu narizinho veio até mim. – Sua era voz lânguida e carregada de sedução barata. Se ele tivesse na mão um produto da 25 de março, acharia que era pra disfarçar aquele misto de cafajestagem e humildade sem graça. Não estava a fim de ficar dando muita trela praquele conquistador barato, porque, do jeito que tinha pêlo na cara, tinha também prepotência para transformar em realidade os presentes da 25 de março. Ele estava metido numa calça ferrugem, de mau algodão. A camisa era alaranjada, com colarinho curto e bolso avantajado. Mais um pouco e ele me poria ali dentro, pô! E até que gostaria de desaparecer por entre aqueles pêlos negros e macios, mas não apertada num bolso de uma camisa cafona. Ele ficou assim me olhando, um par de olhos grandes, com cílios de mariposa. Eu estava com vontade de saltar sobre ele, mas seria fazer do orgulho, capacho grosso de sujeira. E outra: havia coisas que até o criador duvidava de mim. Acho que ele pensou muito quando me fez. Mulher é tudo igual, eu sei, mas não no meu caso. O meu ar era meio blasé, a cintura afinada, a traseira rechonchuda. Tipo coxas grossas e belas ancas. Sim, normal também, mas havia algo que me caracterizava de maneira especial: tinha uma cara no traseiro. Sim, uma cara mesmo, não precisa abrir a boca. Que é que tem demais? Não, também não era uma tatuagem qualquer, uma estampa, ou qualquer coisa do gênero. Era uma cara mesmo. Se eu sorrisse, a cara também sorria. Se eu chorasse, a cara idem. Se eu ficasse brava, ela rangia os dentes. Sim, dentes mesmo. A cara tinha dentes no meio das nádegas, guardando o buraco negro. Por isso, o criador devia duvidar de mim. Quer dizer, de sua aberração tornada criatura, mulher de protagonista camaleão.


O barulho do teclado havia cessado. Imaginei que meu criador estivesse cansado de tanto escrever. É uma trabalheira do inferno se meter a besta com as palavras. Elas têm poder criador, são espertas, fogem, aparecem, distorcem, significam, enganam e mais um montão de coisas. Detesto quando tenho de falar coisas que não são verdadeiras, mas tal como o meu ofício, nada é verdadeiro, encarno alguém, falo por intermédio de alguém que existe apenas na mente de um deus mental que se desfaz em letras e palavras que se organizam e formam frases, diálogos e ações. Eu já não sei pra que tanta existência alfabética se a vida vive por órgãos que se juntam e correm dentro de um espaço de tempo para sofrer o descalabro de estar vivo aprendendo a não ser isso e aquilo. Eu não me entendo e nem quero me entender. Persona continuava com aquela cara de tacho. Só que tinha um risinho maléfico vaporizando um ar cínico que me deu vontade de fazê-lo em picadinho. - Por que você está tão arredia? Eu vim, estou aqui. Realidade em papel. Persona sabia ser falso e sério ao mesmo tempo. Como se fundisse vários “eus” numa só frase, seu ar era de astro movido a impostura galante. - Eu estava esperando por você desde o começo da história. – Pigarreei logo depois da última sílaba, e “história” saiu “histórria”, e isso parece ter provocado nele um recuo estratégico. - Aquilo é um roteiro, você devia saber – disse ele algo receoso. – Mas o mentesão sabe muito bem o momento de fazer os heróis aparecerem. Olhei de soslaio para ele. Havia um aspecto racional naquele camaleão. E isto ia de encontro ao significado do próprio. Camaleão gostava de plástica, de metamorfose, de ludibriar os sentidos. Nada assim coordenado pelo intelecto. Era bicho esperto que derramava astúcia de suas formas impalpáveis e plastificadas. Persona queria dizer com mentesão que a invenção era matéria mental de artesão. Quem mente mente com a mente. Quer dizer, fabrica mentiras com a imaginação, e o criador daquela história era um roteirista. E chato porque mentalizava demais e fazia de menos comigo. Ao contrário de Persona, que queria aproveitar o sono do criador para fazer as pazes com o amor das páginas em branco. Sim, porque ainda não havia acontecido a nossa história de amor. Não quis conter o gemido quando ele me apertou. Sabia o que me esperava a partir de agora. Uma lâmpada se apagava, mas a minha libido se acendia. Será que conseguiria agora tirar aquelas duas caras de desencanto de vez? Duas caras enfeadas, que estavam sendo apertadas e entrando em ebulição. Seria a minha perdição? Talvez, sim, não, uáh!, tira a mão daí!, vem!, não!, sim!...


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.