E
u não tinha certeza de nada, mas estava no olho do furacão. Ali na minha frente, o rei Gustavo de Alcântara e alguns de seus correligionários tinham os olhos em chamas, como se pudessem do meu corpo fazer cinzas em pleno altar real, para alcançar a verdade que se escondia na minha alma. E em cada olhar eu podia ver uma necessidade: a de que eu não fugisse um instante sequer do foco daquelas tremendas luminárias vertidas na minha direção, mesmo sabendo eles que eu estava ali falando sob a gravidade de um juramento. - O que você está me dizendo não faz o menor senso - falou Amadeus Cristófilo, um dos correligionários mais encarniçados do rei. - Era sabido por todos que o conde era solitário, mas não louco. Isto ele não era. - Mas eu juro. Juro por tudo que me é mais sagrado, por toda planta que nasce e floresce em nosso reino - eu tentei apelar. - Nosso, vírgula! - Cortou o rei Gustavo, enrugando a testa. - Quando que aqui uma mísera folhinha de erva-doce foi sua hein, Damião? Me fale. Quando? Eu fiquei olhando para ele, estático. Como podia pensar daquela forma troglodita o maioral da realeza. Devia ser o pioral, ou será o menoral. - O que quero dizer é que quando fui informado do incêndio, jamais imaginei que fosse lá no castelo do conde Josué - disse. - Foi uma terrível coincidência. - Eu não entendi ainda - interpelou Armando Correntes, outro correligionário do rei Gustavo. - Quem chamou vosso serviço para o castelo do conde, afinal de contas? Fiquei nessa um bom par de horas, respondendo a interpelações encarniçadas, e já não aguentava mais ter de explicar a forma como tudo tinha acontecido. O fogo é que eu estava sendo metralhado e, a esta altura, até minha respiração me faltava. Ninguém deles queria ouvir de verdade, a menos que eu dissesse o que eles queriam ouvir. Que lhes importava se a morte do conde Josué tinha sido uma fatalidade das mais ardilosas. Nunca que me acorreria a hipótese de me ver diante de um incêndio tendo de lançar mão de um salvamento, mesmo que eu tivesse me apresentado também como um apagador de incêndios. Conde Josué tinha ele próprio pedido socorro mas só depois de perceber que o fogo já estava em suas barbas, ou, corrigindo, lambendo seu cavanhaque, e isto, infortunadamente, era bastante tardio. É necessário explicar que, quando cheguei ao castelo do conde, este já estava com setenta por cento do corpo queimado, e eu simplesmente nada mais podia fazer senão rezar para que o que sobrara dele pudesse logo se queimar e virar cinzas. Dessa forma, bastaria assim uma vassoura, uma pá, e um réstia de ar para assoprá-las bem na direção do vento leste, que, agora, batia friorento no meu queixo. Esse assoprador dos infernos só ajudara a espalhar as chamas rapidamente, deixando-me atônito e alardeado com o acontecimento. O que fiz posso jurar que você faria por um semelhante: tentei apagar o fogo que torrava vivo o pobre conde, depois de acorrer com dois baldes de água que consegui retirar do poço cartesiano que havia ali próximo. Sem sucesso, por sinal. Ao contrário, só fiz engrossar as coisas para o meu lado, pois fiquei com as marcas do sinistro em minhas roupas, mãos, rosto, e a acusação contra mim era de ter armado todo aquele incêndio enorme que acabou com o castelo e com o conde Josué Demóstenes Figueira. Justo eu, um homem que mal não faria nem a uma mosca. Mas eu preciso voltar no tempo e contar, à machadiana, um pouco da história do conde Josué, de como ele vivia. Ele que era um homem de sangue azul, de muitas posses, mas de uma avareza notável. E isto se estendia em larga escala, visto que nada escapava de sua inescrupulosa e insaciável cobiça de amealhar tudo que lhe assaltava o espírito por assim dizer. Quando cheguei ao castelo do conde, somava trinta e oito anos, e ele logo disparou quando me viu: - Eu não pensei que sua pessoa já fosse tão passado da idade. Aqui para servir-me, é preciso ser um bofe jovem, de queixo quadrado. Como pensa em compensar isto? Fiquei tão atônito com o que ouvi, que, agora, ao lembrar o fato, penso: “como alguém pode falar o que vem na telha assim sem qualque pejo!”. - Mas para o trabalho de separar as contas do conde para levar ao comércio do porto, eu tenho vigor - respondi, dando um ar quase humorístico, que deve ter destoado da seriedade que tentei empostar a minha voz. Só vi o conde soerguendo os sobrolhos ao vento de sua lépida pestana, pousando em seguida seus olhos nos meus. - Como sabe dessas informações sigilosas? - ele perguntou.
Eu respondi que Mafalda Cristina, a mucama do castelo, havia me passado algumas atribuições do cargo, dentre elas, aquilo. - Que mais? - quis saber o conde. - Vossa Alteza quer saber tudo que ela me falou? - Não. Que mais o senhor faz de útil? Tive de me segurar para não soar desagradável ao conde, e procurei manter um tom calmo porém bastante assertivo. - Vossa Alteza poderá atestar os vários ofícios que domino, até mesmo o de apagador de incêndio. Nunca vou esquecer a expressão que o conde fez quando falei tal coisa; sua perplexidade foi de tal monta que tive de me segurar para não gargalhar estrondosamente. - O que o senhor está me olhando - ele perguntou, envolto numa bruma de desconfiança e ira. - Vossa Alteza talvez não devesse se exaltar tanto - falei de improviso, embora o temor fosse a coisa mais falsa que representei diante de um nobre. - Eu preciso de alguém que seja presente no castelo - ele tornou a dizer. - Um homem de temperança, que saiba os dotes da diplomacia, para dispensar qualquer laivo de contendas. O senhor é este homem? Aliás, não me lembro de ter guardado o seu nome... “Voar na jugular” não é bem uma expressão machadiana, talvez até esteja adiante do seu tempo - e também dessa história, que se passa em 1843, em algum lugar chamado Burgos do Sol -, mas esta foi minha real vontade: voar sobre aquele pescoço longilíneo e esmigalhar bem esmigalhadinho aquele homem que talvez estivesse com minha idade hoje, mas implacavelmente mais sórdido que minha real essência, a bem da verdade. - Por que continua me olhando desse jeito - ele tornou a me confrontar. - O senhor tem ideia do que este castelo representa para mim, senhor... - Damião Furtado - respondi descarriladamente, e vi a cabeça do conde erguer-se num “como” tentando a sua maneira se certificar de minhas palavras. - Então é o senhor de que tanto falam - disse ele. - Por que não me disse antes? O senhor é muito bem-vindo a esse castelo - e abriu o sorriso mais denunciador que jamais tinha visto na face da terra. Por alguns segundos, eu pude ler ali naqueles dentes alvos e brilhantes que bem no centro daquele coração morava um homem resguardado. Alguém que buscava referências para se sentir bem em seu próprio castelo. Alguém que se retraía para se proteger de intrusos, ou de quem emocionalmente pudesse lhe roubar energia. - Onde será que anda a minha reputação para que esta chegasse aos ouvidos de Vossa Alteza - levantei ao acaso, balançando os braços. - Seu orgulho é indisfarçável - disse o conde de forma sagaz -, mas atente bem: aqui neste castelo terá de ser guarda, conselheiro, ouvinte e aparador de contendas. Não suporto mais os fuxicos dos empregados falando por aí. Está contratado. Suas medidas serão tomadas hoje pelo alfaiate da corte. Agora, por favor, me deixe sozinho com os meus pensamentos... E foi assim que fui contratado por aquele fidalgo um tanto excêntrico, pois o vi se virando e seguindo na direção do vestíbulo, bebericando vinho verde, como poderia se dizer na região do Basto, onde borbulhavam cintilantes vinhos brancos que atiçaram o meu paladar, principalmente quando vi o conde depositar sua taça sobre a mesa de mármore e subir as escadas íngremes do castelo. Para onde ele iria àquela hora, perguntei-me. Ele parecia muito solitário, não era casado, mas todo mundo na corte sabia de suas visitas noturnas à casa de prostituição do italiano Puccini, o qual habitualmente reservava a mais bela dona trazida da região do sul da Itália, especialmente para o conde Josué vir às socapas e “montar à equina”, como bem gostava dizer o ilustre cafetão. Neste instante de pura visualização, Mafalda Cristina, a mucama, uma belíssima negra de dentes de marfim, entrou sorridente sem que eu percebesse, tocou no meu braço, e disparou sussurrando: - Eu sabia que ele ia te pegar pra trabalhar aqui. Não te falei? Eu olhei para aquele rosto de um negrume reluzente, de onde saltava dois pequenos “caroços” vigorosos nas bochechas. Mas só mudei a posição dos lábios. O sorriso dela me levou longe, talvez ao pé do Quilombo dos Palmares. Nada mais poderia faltar para meu coração bombear mais sangue na presença daquela princesa congolesa. - Por que está me olhando desse jeito? - Ela perguntou, mudando a expressão de repente. - Você também! - Exclamei, muito espantado. - O conde me disse isso duas vezes! - Seu rosto não mente - disse Mafalda, misteriosa. - Está escrito que tem olhos aí dentro, que vê a vergonha dos outros que não quer se mostrar.
- Mafalda! - Eu peguei ela de repente pelos braços e coloquei minha fronte quase colada à da dela. - Eu estou completamente louco por você! Vim aqui por sua causa, senão teria ficado onde estava. Não me interessa trabalhar aqui no castelo sem você. - Não me aperte, senhor Damião - ela fechou o cenho e cresceu os olhos de tal modo, que o branco dos olhos quase me engoliu. - Eu estou prenhe, o senhor não sabe. Não posso ter com ninguém afora o pai dessa criança. - Conte-me quem é o pai - eu pedi. - Vamos, fale. Conde Josué Demóstenes Figueira. O próprio. Ele era o pai, ela acabou dizendo. Pegara-a à força da primeira vez e prometera nunca mais desampará-la, para o resto de sua vida, isto, claro, se ela sempre passasse as noites que ele desejasse com ele. - Isto é coação, não precisa cumprir, ele nunca ficará sabendo. - Eu insisti novamente, puxando-a para o meu lado, tentando beijá-la, mas sem sucesso. Ela chocou-me ao dizer que tinha decidido se dedicar ao filho e ao conde pelo resto de sua vida, mesmo gostando “muito” de mim. - Então prefere sofrer a me amar? - Continuei inconformado, irredutivelmente mortificado. - Prefiro - ela respondeu, grave, com os olhos marejados. - Não sei aonde vou parar, mas é aqui que parei... as teias de aranha não se formam só nos cantos do castelo, na minha alma também. - E baixou a cabeça descolando-se de mim, ao tempo em que foi se encaminhando para a cozinha, depois de passar pelo baú onde o conde guardava alguns de seus tesouros. Eu já sabia. Sabia tudo dele, pois Mafalda havia me contado uma porção de coisas a respeito de Sua Alteza. Aquele dia ficara marcado na minha vida, de duas formas: primeiro, pela lembrança; e, segundo, pela masmorra. Pois foi para lá que me levaram os homens do rei Gustavo agora, pois tinham certeza que eu era culpado pelo incêndio no castelo do conde Josué sinistrado havia pouco mais de uma semana. Escuro. E frio. Assim passei a minha primeira noite naquela masmorra. Em companhia apenas do meu direito de defesa repudiado.