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Uma pequena coletânea de textos Caro amigo, esta é uma coletâ-nea de textos de minha autoria, sobre temas diferentes – na ver-dade, escrevi mais de 300. Alguns deles estão aqui para cumprir mais um papel: permitir que você conheça meu estilo. Outras fontes são os livros Cria-tividade e redação. O que é, como se faz – Edições Loyola, São Paulo – 6ª edição; A conquista. Um desafio para você treinar a criatividade enquanto amplia os conhecimentos – Qualitymark, Rio de Janeiro; Câncer de mama. Vitória de mãos e mentes [escrito sob encomenda para um cliente] – Totalidade, São Paulo. Por favor, dê uma olhadinha no que vem a seguir. Enquanto isso aguardo a oportunidade de fa-larmos a respeito. Obrigado. Rubens Marchioni
Acordado. Uma carta para a Célia Célia, querida. Logo depois que conversamos por telefone me veio à memória o dia em que você nasceu. Nasceu fazendo barulho, tirando a rotina do lugar. E me acordando. Você nasceu de madrugada. Ou na “madrugada do Guaripú”, que por não ter energia elétrica se permitia ter suas madrugadas quando bem o desejasse, sem se importar se já havia terminado ao menos o programa “Altas horas”, que a Globo só apresenta depois de ter absoluta certeza de que todos já adormeceram. De repente, sou acordado por um barulho, um grande tumulto na casa. Motivo: a dona Carolina, que hoje conhecemos pelo nome técnico de parteira, havia acabado de “entregar”, ou “dar” você para a mãe. E isso tudo acontecia sem ninguém me perguntar se àquela hora eu, da altura dos meus quase cinco anos, desejava ser acordado, ainda mais sem agendamento prévio. Mas um sujeito chamado Carl Sandburg disse que “Um bebê é a opinião de Deus de que a vida deve continuar”, e isso me tirava qualquer possibilidade de argumentar ou esboçar reações de protesto. Então, que venha a Célia, idéia criativa de Deus – depois entendi. À época eu não tinha noção de que a profecia se realizava: “Se vivir es bueno, / Es mejor soñar, / Y mejor que todo, / Madre, despertar.”, como cantou Antonio Machado em suas Novas canções. Eu dormia, mas era preciso abrir os olhos. O convite para a vigília, o apelo para deixar o pequeno canto do sono não tem hora pra chegar, e sagrados são os lábios de quem anuncia a urgência de despertar. - Mãe, a primeira tarefa realizada pela Célia no minuto número 1 de sua existência aqui na terra foi me despertar. E desde aquele 15 de setembro de 1957 ela não deixou de fazer seu trabalho. A. P. Tchekhov, escritor russo, afirmou, sem saber de nada, que “Nas certidões de nascimento escreve-se onde e quando um homem vem ao mundo, mas não se especifica o motivo e o objetivo.” Pois que não haja dúvidas sobre os motivos e objetivos que levaram o Criador
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a escolher seu ventre para trazê-la até aqui. Quanto a você, sinta-se orgulhosa pela assiduidade com que a filha cumpre mais essa tarefa. Obrigado, mãe, pela grande obra. Célia, espero que a leitura dessa breve reflexão, que surgiu assim espontaneamente, tenha feito tão bem para você quanto foi gratificante para mim ter colocado essas palavras por escrito. Beijos com afeto do seu irmão, Rubens 07.03.07
Paróquia São Miguel Arcanjo Belém – São Paulo SP
Carta aberta à população Caro leitor, cara leitora. Sabemos que todas as acusações que estão sendo colocadas sobre seus ombros do Pe. Julio Lancelotti são consequência clara do seu jeito de ser padre. Ele leva a sério a mensagem cristã de amar ao próximo como a si mesmo. Acredita que Isaías 61,1-2 e João 10,10 são propostas de vida pelas quais se deve dar tudo. Inclusive a própria vida se preciso. Por causa disso, se dedica de corpo e alma àqueles a quem a sociedade virou as costas. E confia neles. Afinal, ele é dos poucos que ainda acreditam que o ser humano merece confiança e respeito, qualquer que tenha sido sua história de vida – histórias se reescrevem, se refazem, que o diga o Evangelho de Jesus Cristo. Ora, esse jeito envolvente de trabalhar provoca reações que não ficam no meio termo. Fazem com que ele seja muito amado por alguns e odiado por tantos outros. No mínimo porque seu ministério não é “morno”, qualidade que em Jesus provocaria vômito, como está em Apocalipse 3,16. Na sociedade do mais ou menos, ter uma temperatura acima da média e, sobretudo, a favor dos pobres e esquecidos é, no mínimo, desconfortável para quem prefere a omissão geradora de um falso conforto. Apenas para lembrar um caso, há algumas semanas um programa dominical de televisão exibiu o depoimento de uma “enfermeira” que teria trabalhado na Casa Vida. Na ocasião, ela informou ter visto o Pe. Julio adotando um comportamento pouco ético em relação às crianças que a instituição abriga. Pois bem. Cada um a seu modo e por um motivo diferente, muitos de nós estivemos com frequência com o Pe. Julio na Casa Vida. Lembrete importante: daquele local ele tem todas as chaves – das portas da instituição e do coração de cada pessoa que lá se abriga ou trabalha – menos do cofre ou da conta bancária. Vimos como trata as crianças. Nossa primeira reação certamente pode ser traduzida assim: “Se hoje tivesse pequenos os nossos filhos, nós os abraçaria desse jeito”. Porque sentimos que o padre não abraça, ele acolhe, o que é muito mais forte do que o abraço, que por vezes pode ser um gesto mecânico e interesseiro.
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Diante de nós, vemos a imagem de dois braços que se convertem em útero materno para aquelas crianças contaminadas pelo vírus HIV – ora, útero materno só faz bem ao filho. Não fosse por isso, a ciência não estaria trilhando pelos caminhos da chamada “Terapia do abraço”, prática com efeito curativo comprovado. Julio Lancelotti, padre-terapeuta. Pena a nossa sociedade saber cada vez menos sobre abraço, ternura, e mais sobre modelos de metralhadora e de balas perdidas. A despeito do repentino surgimento da “enfermeira” e seu depoimento – felizmente a imprensa brasileira é livre – gostaríamos também de apresentar aqui a nossa manifestação de repúdio não apenas por esta, mas por todas as injustiças que vêm sendo cometidas contra um homem que não faz outra coisa senão dedicar seu tempo à edificação do ser humano em todas as suas dimensões. Por isso deixamos aqui nossas palavras, impressões que sairão gritando caso não as coloquemos no papel e à disposição de todos. Se a “enfermeira” falou sobre o que pensa que viu, preferimos ir além: acreditamos ser mais honesto falar do que temos certeza que presenciamos, não uma vez, mas durante anos seguidos. Quando vemos o Pe. Julio celebrar a missa ou falar com as pessoas da comunidade logo sentimos que o conhecemos de algum lugar. E logo a gente se lembra: nós o conhecemos da atitude de alguns profetas, de apóstolos e do próprio Jesus, pessoas com quem nos encontramos durante tanto tempo de leitura das Sagradas Escrituras. Algo semelhante à cena em que os discípulos reconhecem Jesus quando, estando com eles depois de ter ressuscitado, o Messias faz o simples gesto de partir o pão. O jeito do Pe. Julio partir o pão do sorriso, do abraço, tudo nele é diferente, característico, nos remete àqueles dias em que Jesus venceu a morte. No Pe. Julio, pregação e prática se fundem – difícil saber o que é uma coisa, o que é outra [Tg 2,14-17]. A pregação, lúcida, coerente, sólida, instigante, equilíbrio perfeito entre denúncia do mal e possibilidade de conversão. Na prática pastoral, o retrato do homem apaixonado pelas coisas do Reino, mãos firmes no arado, sem olhar para trás [Lc 9,62], nem mesmo para quem desdenha de seu profundo envolvimento com pessoas à margem da sociedade. Falamos em paixão. Em cada celebração eucarística, no momento da consagração vemos o olhar de encantamento apaixonado do Pe. Julio dirigido ao cálice e à hóstia. Aquilo nos marca, convence, converte. E fala alto sobre um homem íntegro, transparente, comprometido com o Reino. Mas poderíamos ter, sim, a respeito do Pe. Julio, uma restrição. Que motivos o teriam levado a carregar essa enorme cruz sem permitir que suas comunidades – São Miguel e São Judas – levassem ao menos um pedacinho dela ao seu lado? Gostaríamos de ter sabido dessa situação enquanto ela acontecia, mas entendemos que acima de tudo temos de respeitar seu direito à privacidade. Claro, sabemos por que ele agiu assim. Na base de seu comportamento estava o desejo de nos poupar. O mesmo desejo de poupar a quadrilha que o extorquia. Pais que amam de verdade são assim: adiam para amanhã o castigo que hoje dariam ao filho. No lugar da atitude agressiva, preferem uma conversa, certos de que palavras de acolhimento e advertência podem provocar a esperada mudança de atitude. O Pe. Julio deve ter lido as palavras de São Francisco Xavier – o santo afirmava que é mais fácil conquistar um enxame de abelhas com uma gota de mel do que com um barril de vinagre. Por legítima defesa, e com o respaldo das leis brasileiras, o padre poderia ter lançado mão do vinagre logo no início do processo de extorsão. Mas preferiu esgotar seu estoque de
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mel – comportamento que tem procedência na sabedoria divina e por isso mesmo às vezes inatingível à nossa compreensão. Por tudo isso, de uma coisa temos certeza: nesses dias de turbulência para o querido Pe. Julio, lá no céu deve estar acontecendo uma grande, uma enorme festa. Deus, Pai, todo feliz e cheio de sorriso, estará dizendo para todo mundo algo como “Vejam, é meu filho, invenção minha, tenho muito orgulho desse menino”. E nós participamos dessa festa, apresentando-o como nosso irmão, seguidor do irmão maior, Jesus Cristo. Parabéns, Pe. Julio, por ter seu ministério presbiteral aprovado de maneira tão eloquente, embora nem sempre compreendida. Sim, porque quem não incomoda não paga por isso, vive tranquilo. Que bom que você incomoda. Que bom que a sua fé e compromisso têm uma dimensão assim tão grande e capaz de abalar a segurança falsa de tanta gente. Que bom que pudemos conhecê-lo pessoalmente e ter a oportunidade de nos colocar à sua disposição. Fique com nosso apoio, nosso carinho fraterno e nossas orações. Amém. Paróquia São Miguel Arcanjo, 02 de novembro de 2007, Dia da Ressurreição
Chama o Tonho
Algum tempo atrás, quando minha filha mais velha vivia comigo, resolvi testar sua habilidade para lidar com uma eventual situação de emergência. Perguntei-lhe: — Filha, o que você faria se, por acaso, acontecesse alguma coisa grave comigo, durante a madrugada? Esperava por uma resposta óbvia, do tipo “Eu ligo para...” Não foi o que aconteceu. Espontânea, minha querida menina respondeu: — Eu chamo o Tonho. Para ela, aí estava a segurança em situações de emergência. Durante mais de 20 anos, essa foi a saída, no Condomínio Vila Helena, quando tínhamos algum problema desses que exigem a atuação imediata de um amigo e profissional comprometido com as pessoas. Mas agora nós ficamos com a inexplicável sensação de vazio. O Tonho já não está entre nós. Certamente algum problema sério e urgente aconteceu no Condomínio da Vida Eterna. E Deus, sábio e cheio de saudade do seu filho querido, aproveitou a oportunidade e chamou o Tonho. Como recompensa, deu-lhe nada menos que a ressurreição. Amém. Rubens. Amigo e admirador – 26.05.12
Como São Francisco de Assis
14.01.2008 – Vez por outra eu ia àquela casa. Tudo começava na recepção: gente recebia
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gente como gente deve ser recebida. Não era preciso apresentar comprovante de tempo de convivência, que isso não decidia a qualidade da acolhida – os critérios eram outros, infinitamente mais nobres. Minhas credenciais de ser humano, e ainda mais de um quase membro da família, me habilitavam a receber todo tipo de gentileza, da chegada à despedida. Acomodado na sala me vinha à mente a metodologia de evangelização empregada pelo poverello de Assis. Nele, os gestos garantiam tamanha eficácia ao trabalho a ponto de poder dispensar o som das palavras. Aluno observador que sou, prestava atenção silenciosa aos pequenos atos daqueles cuidadores e cuidadoras empenhados 48 horas por dia em garantir o conforto merecido pela nossa querida Tia Cidinha. Minha reação imediata, vendo tanto carinho, dedicação e competência, era de admiração, medo e impotência. Admiração que se tem pelos mestres quando estes exercem seu ofício diante de nós; medo e impotência por saber que jamais alcançarei tal nível de perfeição. Naquela casa, um discípulo será sempre um discípulo. E a idéia de um dia superar os mestres é pouco menos que uma grotesca e descabida pretensão. Paulo não supera Jesus. Porque se o primeiro tem a disposição da vontade, o segundo tem a insuperável divindade. Ora, o que eu assistia com meus olhos terrenos era divino, impossível de ser alcançado. Voltava daquela visita experimentando um encantamento questionador e sem resposta para a pergunta se um dia eu seria capaz de pensar e agir como aqueles cuidadores: tão fraternos com as visitas e entregues de maneira tão intensa ao trabalho de cuidar da Tia Cidinha. [Meus Deus, sei que hoje minha mãe precisa de mim. Terei aprendido o suficiente sobre essa arte que requer tanto envolvimento?] No último final de semana, tive a aula magna de encerramento desse intenso processo de evangelização. Numa grande festa que aconteceu no céu, Deus inaugurou a nova casa da Tia Cidinha – o Pai devia estar com uma imensa saudade da filha e decidiu que havia chegado a hora da sua garota voltar. Numa hora dessas ela certamente estará brincando com os anjos e ouvindo de Gabriel a história de anunciar à Maria que ela fora a escolhida para ser a mãe de Jesus, enquanto outros santos se distraem com tantas delícias a serem desfrutadas por uma eternidade nos jardins do Paraíso. Por aqui ficou a gostosa mistura de aprendizado e saudade. Por aqui fica a minha gratidão por ter convivido com pessoas que deixaram em mim a cons-ciência de que não sou mais que um discípulo desses cuidadores, e a von-tade de ser melhor. Só os santos con-seguem produzir tais milagres. Amém.
O homem perfeito O homem perfeito é aquele que guarda sua amada dentro do nome que ele carrega. Com ternura. 6
O homem perfeito é aquele que sente saudades da sua amada há décadas e a procura por toda parte. Porque ele sabe que a gente sempre sente saudades da mulher que um dia sonhou encontrar. O homem perfeito é aquele que suporta a vontade de beijar sua querida só porque ela pediu para ir devagar. Sem poder ir além, beija o desejo da sua amada, certo que é ela que recebe tantos beijos. O homem perfeito é aquele que é fiel à sua amada. Mesmo que ela esteja no outro extremo do universo. O homem perfeito é aquele que fica com o coração acelerado quando está diante de quem ama. Essa é uma das suas poucas rotinas. O homem perfeito é aquele que é generoso com sua amada. Mesmo naquilo que ele tem de menos. O homem perfeito é aquele que mistura toda sua amizade pela mulher amada a uma dose de amor sem medida. É que ele já perdeu a noção de grandeza e pensa que tudo ainda é insuficiente. O homem perfeito é aquele que muda de atitude só para poder merecer a mulher amada. Quem sabe assim ela não se muda definitivamente para a vida dele? O homem perfeito é aquele que respeita a individualidade da mulher amada. Mesmo quando a impressão que se tem é de que parecem ser apenas um. O homem perfeito é aquele que toma vinho com sua amada nas noites frias, mas aquece seu coração com o calor que vem da própria alma. O homem perfeito é aquele que só está feliz se vê nos olhos da sua amada dois riachos de serenidade, aquecidos por pequenos raios de sol que nascem da “alegria” de uma vida feliz. O homem perfeito é aquele que é amigo dos amigos da mulher amada. Afinal, um dos melhores pedaços do mundo se concentra aí. O homem perfeito é aquele que espera sua querida assimilar tudo que ele sente por ela. Ele sabe que os melhores pratos são feitos para serem saboreados aos poucos. O homem perfeito é aquele que não cria expectativas em relação à sua amada. A não ser a de superar o que ela espera. Sempre. O homem perfeito é aquele que não sufoca sua amada. Na casa onde ele a coloca só tem as paredes que ela quiser e enquanto desejá-las. O homem perfeito é aquele que até aprende a dançar. Só para conduzir a mulher que um dia tomou pelas mãos e tirou para a grande festa da vida. O homem perfeito é aquele que faz para a sua amada o melhor de todos os seguros: ele lhe dá a proteção do seu bem-querer. O homem perfeito é aquele que se encanta ao ver a blusa de sua amada levemente aberta, porque sabe que lá dentro se esconde um dos mais belos versos dessa poesia que se fez carne. O homem perfeito é aquele que ouve de longe os gritos e percebe o sussurro de sua mão ao encontrar a mão da sua querida. Apenas não sabe do que as duas falam por meio de tantos símbolos mágicos e códigos indecifráveis. O homem perfeito é aquele que penetra os olhinhos de sua amada quando os olha de perto. Ele não tem controle sobre o peso da artilharia de sua devoção. O homem perfeito é aquele que ouve cada palavra que sai da boca de sua amada como quem ouve a mais linda melodia, só executada uma vez. Ele só tem medo de entrar em transe quando está em local público. O homem perfeito é aquele que procura na internet algum lugar onde se ministra
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curso para aprender a ser ainda melhor com sua amada. Em todos os lugares. Em todos os sentidos. Afinal, ela quer um homem que seja ao menos... perfeito! O homem perfeito é aquele que adora dar banho de mangueira em sua querida. Normal. O amor transforma gente grande em criança sapeca. O homem perfeito é aquele que vai longe, bem longe, só porque lá existe aquele doce de que ela tanto gosta. E quando a encontra saboreia com os olhos a degustação que acontece na boca de sua amada. O homem perfeito é aquele que fala de sua querida em todas as situações, sempre a chamando pelo nome, porque acredita que respeitar sua identidade é algo sagrado. O homem perfeito é aquele que fala de sua querida em todas as situações, porque de nenhuma outra coisa sabe falar tão bem e com tamanha certeza e propriedade. O homem perfeito é aquele que é extremamente decidido. Principalmente quando se trata de decidir apenas o que vai tornar sua amada ainda mais feliz. O homem perfeito é aquele que cobre bem sua querida nas noites de inverno, para que ela não sinta frio; beija sua alma serenamente e fecha a porta devagarzinho para que nada lhe perturbe o sono e o descanso. O homem perfeito é aquele que visita o corpo da mulher amada como um devoto ou um perdido. É que o amor o conduz a isso e ele nada sabe de recusas. O homem perfeito é aquele que cria uma campanha em poucos minutos só para falar de seu amor com todas as letras. E com todos os silêncios. Mesmo sabendo que uma campanha composta por 30 textos dife-rentes não significa mais do que um teaser bem-intencionado.
Carta à TV Record Caro Pe. Julio Escrevi uma carta à TV Record, na verdade um repúdio ao conteúdo da reportagem mostrada domingo passado no programa Domingo Espetacular. Nela, procurei ser estratégico ao máximo. 1. Não ataquei a emissora, que logo de cara criaria uma predisposição negativa ao meu comentário e ele ficaria queimado. 2. Sem ser explícito e invasivo, apelei ao direito de manifestar minha opinião. 3. Não ataquei a tal enfermeira, que não sei quem é e menos ainda que ligações tem com a emissora a ponto de se prestar a dizer o que disse. 4. Mostrei o olhar de uma pessoa crítica e bem informada, que deixou de lado o ceticismo depois de ver seu testemunho de vida. 5. Ao invés de cobrar, criando antipatia, exaltei o serviço que a emissora presta ao público ao mantê-lo bem informado, ou seja, permitindo-lhe ouvir outra versão. Agradecer a alguém antecipadamente por aquilo que ela pode fazer dá mais resultado do que simplesmente pedir, inclusive porque o agradecimento já sugere que o que estamos pedindo será atendido. Detalhe: esta carta só se justifica se for um instrumento a seu favor, não pode ser um exercício de tagarelice irresponsável de minha parte só por causa da amizade, admiração e respeito que tenho por você. Se no texto aí embaixo tem alguma coisa que não deve ser dita ou algo a acrescentar, fique à vontade para mexer, alterar. Outra coisa: TV é tempo, o programa do próximo
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domingo já está sendo preparado; seria adequado que no caso de se optar pela remessa, essa carta seja enviada o mais rápido possível, a fim de que já pegue carona na reunião de pauta do programa de domingo que vem. No mais, disponha sempre. Fique com o abraço fraterno do seu irmão, Rubens À TV Record – São Paulo
Departamento de Jornalismo Senhor Editor Vi domingo, no programa Domingo Espetacular, uma matéria sobre o desagradável incidente envolvendo a pessoa e o trabalho ministerial do Pe. Julio Lancelotti, especialmente a extorsão de que ele foi vítima. O problema todo é consequência do jeito de ser padre adotado pelo religioso. Ele leva a sério a mensagem cristã de amar ao próximo como a si mesmo. Acredita que Isaías 61,1-2 e João 10,10 são propostas de vida pelas quais se deve dar tudo, inclusive a própria vida se preciso. Por causa disso, se dedica de corpo e alma àqueles a quem a sociedade virou as costas. E confia neles. Porque faz parte do pequeno grupo que ainda acredita que o ser humano merece confiança e respeito, qualquer que tenha sido sua história de vida – histórias se reescrevem, se refazem, que o diga o Evangelho de Jesus Cristo. Ora, esse jeito envolvente de trabalhar provoca reações que não sabem ficar no meio termo. Fazem com que ele seja muito amado por alguns, e odiado por tantos outros. No mínimo porque seu ministério não é “morno” [Ap 3,16], qualidade que em Jesus provocaria vômito, segundo o Filho de Deus afirma em um dos Evangelhos. Na sociedade do mais ou menos, ter uma temperatura acima da média e, sobretudo, a favor dos pobres e esquecidos é, no mínimo, desconfortável para quem prefere a omissão geradora de um falso conforto. O Domingo Espetacular exibiu o depoimento de uma enfermeira que teria trabalhado na Casa Vida, ocasião em que, segundo ela, o Pe. Julio teria adotado um comportamento pouco ético em relação às crianças que a instituição abriga. Pois bem. Mais de uma vez estive com o Pe. Julio na Casa Vida. Bom observador que sou, vi como trata as crianças. Minha primeira reação foi: “Se hoje tivesse pequenas as minhas filhas, eu as abraçaria desse jeito”. Porque senti que o padre não abraça, ele acolhe, o que é muito mais forte do que o abraço, que por vezes pode se transformar num gesto mecânico como o daquela pessoa interessada em vender o que não desejamos comprar. Diante de mim, vi a imagem de dois braços que se convertiam em útero materno para aquelas crianças contaminadas pelo vírus HIV, e útero materno só faz bem ao filho. Não fosse por isso, a ciência não estaria trilhando pelos caminhos da chamada “Terapia do abraço”, prática com efeito curativo comprovado. Julio Lancelotti, padre-terapeuta.
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Não vou questionar o surgimento da enfermeira e seu depoimento – a imprensa brasileira é livre. Mas, e justamente por isso, gostaria também de apresentar aqui meu depoimento – o outro lado da história. Depois de oito anos de seminário, da ordenação como Diácono e mais de vinte anos de afastamento da Igreja, tive a oportunidade de conhecer o Pe. Julio enquanto celebrava missa. E vi que o conhecia de algum lugar, só não sabia de onde. Depois me lembrei: eu o conhecia da atitude de alguns profetas, de apóstolos e do próprio Jesus, pessoas com quem me encontrei durante tanto tempo de leitura das Sagradas Escrituras. Algo semelhante à cena em que os discípulos reconhecem Jesus quando, estando com eles depois de ter ressuscitado, o Messias faz o simples gesto de partir o pão. O jeito do Pe. Julio partir o pão do sorriso, do abraço, tudo nele era diferente, característico, nos remetia àqueles dias em que Jesus venceu a morte. Nele, isso venceria a morte em que havia se transformado o meu distanciamento de tantos anos. No Pe. Julio, pregação e prática se fundiam – difícil saber o que era uma coisa, o que era outra [Tg 2,14-17]. A pregação, lúcida, coerente, sólida, instigante, equilíbrio perfeito entre denúncia do mal e possibilidade de conversão. Na prática pastoral, o retrato do homem apaixonado pelas coisas do Reino, mãos firmes no arado, sem olhar para trás [Lc 9,62], nem mesmo para quem desdenhava de seu profundo envolvimento com pessoas à margem da sociedade. Falei em paixão. Cético que era, vi o olhar de encantamento apaixonado do Pe. Julio dirigido ao cálice e à hóstia, no momento da consagração. Aquilo me marcou. Assim como foi dado à enfermeira, obrigado por me permitir o direito de colocar aqui minhas palavras, impressões que sairão gritando caso eu não as coloque no papel e à disposição de leitores e telespectadores. Mas ainda não terminei. A enfermeira desligada a tempo da Casa Vida resolveu falar sobre o que pensa que viu. Falo do que tenho certeza que presenciei muitas vezes. Depois de oito anos de seminário, da ordenação como Diácono e mais de vinte anos de afastamento da Igreja, eu, então um cético, decidi que devia voltar. A atitude desse padre, agora acusado de demonstrar uma coisa para a sociedade e ser o oposto da imagem que “vende”, teve força suficiente para quebrar meu ceticismo e me trazer de volta. E isso não é pouca coisa, se levarmos em conta que sou suficientemente informado [três cursos superiores e uma especialização], um tanto arredio a qualquer prática que induza alguém à conversão pelos caminhos simples, alienantes e descomprometidos de uma simples emoção ou promessa de encontrar emprego. Ter me especializado em propaganda e trabalhado tanto tempo como redator me ensinaram muito sobre caminhos fáceis para mudar comportamentos até então irredutíveis. Se mudei foi porque tive uma razão muito forte para isso. Mas tive, sim, a respeito do Pe. Julio, uma restrição. Que motivos o teriam levado a carregar essa enorme cruz sem permitir que suas comunidades – São Miguel e São Judas – levassem ao menos um pedacinho dela ao seu lado? Gostaríamos de ter sabido dessa situação enquanto ela acontecia, mas entendemos que acima de tudo temos de respeitar seu direito à privacidade. Claro, acho que sei porque ele agiu assim. Na base de seu comportamento estava o desejo de nos poupar. O mesmo desejo de poupar a quadrilha que o extorquia. Pais
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que amam de verdade são assim: adiam para amanhã o castigo que hoje dariam ao filho, substituindo-o por uma conversa na qual coloca toda sua esperança de que aquelas palavras de acolhimento e advertência, podem provocar a esperada mudança de atitude. O Pe. Julio deve ter lido as palavras de São Francisco Xavier, para quem é mais fácil conquistar um enxame de abelhas com uma gota de mel do que com um barril de vinagre. Por legítima defesa, e até com o respaldo das leis brasileiras, ele poderia ter lançado mão do vinagre logo no início do processo de extorsão. Mas preferiu esgotar seu estoque de mel – comportamento que tem procedência na sabedoria divina e por isso mesmo às vezes inatingível à nossa compreensão. Por tudo isso, de uma coisa tenho certeza: neste momento, lá no céu deve estar acontecendo uma grande, uma enorme festa. Deus, Pai, todo feliz e cheio de sorriso, estará dizendo para todo mundo algo como “Vejam, é meu filho, invenção minha, tenho muito orgulho desse menino”. E nós participamos dessa festa, apresentando-o como nosso irmão, seguidor do irmão maior, Jesus Cristo. Obrigado, senhor Editor, por ter feito justiça e lido até aqui o meu depoimento, outro olhar, oposto ao da enfermeira de domingo passado, que por meio de sua emissora pôde falar a tanta gente. E viva a liberdade de imprensa. E viva o público bem informado – isso é serviço. Disponha sempre. Rubens Marchioni
A coragem e a técnica
O escritor português José Saramago, que nas horas vagas recebe prêmios como o Nobel de Literatura, lança um desafio intrigante. Ele afirma que todos somos escritores, com a diferença de que alguns escrevem e outros não. Para engrossar o caldo um colega argentino confirma a tese. Se não me engano, é Jorge Luís Borges. Para ele, escrever é um trabalho que não requer maiores esforços: você começa com uma maiúscula e termina com um ponto; no meio, coloca ideias. Se é tão simples, por que diabos parece tão difícil falar por escrito? Não, escrever não é difícil. Para dizer a verdade, é muito fácil. Quem é do ramo, garante que escrever não é nada mais que falar no papel. Ora, se é assim, a atividade exige apenas que saibamos articular pensamentos. Coisa que fazemos diariamente. Nada misterioso, portanto. E então voltamos à pergunta inicial: por que a dificuldade? Resposta provável: falta iniciativa de quem se candidata à redação. Talvez possamos dizer que antes disso há que se ter a oportunidade, o ambiente favorável. O que faz muita diferença, claro. Hoje, por exemplo, ensinando Redação Publicitária para uma turma do 4º ano de Publicidade e Propaganda de uma universidade da Capital, tive uma gostosa experiência. Os alunos – que palavrinha
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mais detestável! – foram incumbidos de escrever uma carta destacando o valor da propaganda para empresas de todos os portes. Mais precisamente deveriam contar uma história bem humorada sobre o fim de uma empresa hipotética pouco acostumada a anunciar. No início, nada. Depois, para aquecer as turbinas, fizemos uma rápida sessão de brainstorming. Tempestade de ideias, com a devida liberdade para pensar e dizer absurdos – absurdos usualmente escondem soluções incríveis. E então chegou a hora do texto. Mais um truque, infalível. Insisti para que escrevessem a carta a uma pessoa real, um grande amigo, talvez. O resultado não poderia ter sido melhor. Textos vigorosos, engraçados, com algo de trágico, um trabalho de gente falando para gente – como, aliás, deve ser a propaganda. Assim, resolveram dois, quem sabe três problemas num só. Porque a carta que escreveram hoje servirá de material para ser gravado quando entrarmos no tema do rádio e da televisão. No final de tudo, uma aula rentável, graças a um grupo disposto a experi-mentar e à oportunidade, ao clima necessário para isso. Como disse o premiado Saramago, todos escritores. Só que lá, todos escreveram.
Fabricar X criar
Os dois profissionais tinham idêntica missão: criar um anúncio publicitário para um produto cujo briefing acabara de pousar em suas mesas. O primeiro ficou tenso. Vestiu a máscara de gesso de criador de propaganda. Estudou o briefing – estudou não é bem o termo, esquadrinhou-o. Até que enfim teve uma ideia, que logo pôs no papel. Uma ideia engessada, meio cópia de briefing, transpirando todo o peso da obrigação de criar. Ficou correto o anúncio do rapaz. Apenas correto. No mais, uma peça com “gosto de subnitrato de pó-de-nada”, como dizia minha ex-professora. Por certo o cliente a aprovaria. Mas nada além do ato de assinar embaixo de uma ideia corriqueira, com a dureza de uma pedra milenar e sem força de emocionar o leitor. Logo, sem poder de venda ou de contribuir para o fortalecimento da imagem de marca. Para o criador, nenhuma emoção, tudo muito longe da experiência mágica e quase mística de criar o in-esperado. Apenas a sensação fria e correta do dever cumprido. O gosto insosso da lei no lugar do sabor festivo e alegremente brincalhão do amor e suas surpresas. Criou um anúncio “fabricado”, foi isso. O segundo profissional também colocou a mão na massa. Mas não entendia muito de levar-se a sério. Jamais seria um acadêmico, nunca escreveria nem defenderia teses. Começou a brincar. Pegou no ar a ideia, uma imagem qualquer. Destas que ficam vagando pelo espaço, à espera de alguém que as apanhe e desnude para encontrar lá dentro o ouro puro que esconde. Uma vez no papel, ele fez cortes. E cortou mais alguns elementos, tanto do texto quanto da imagem. Como que um gesto inconsequente – artista sabe tudo sobre a arte da incon-
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sequência necessária como primeiro passo para gerar entretenimento – acrescentou o que parecia absurdo. Olhou para o resultado e pensou-o como algo possível. Teve uma atitude de humildade inteligente: deixou que o conjunto de sua criação falasse. E gostou do que ouviu e do que seus olhos perceberam. Uma forte mensagem estava ali escondida, calada, apenas esperando o momento de poder falar. O cliente admirou o trabalho, como de resto foi a reação de toda a agência de propaganda. Tratava-se de um anúncio “criado”. Uma vez na mídia, cumpriu seu papel: vendeu. O cliente assinou o contrato renovando seu vínculo com a agência. Mais do que vender, a peça publicitária ganhou espaço na imprensa, não só a especializada. Um case, que estudantes e profissionais estudavam. Só que muitos o faziam engessados como o primeiro profissional de nossa história. Tudo muito sério, sem deixar que o fato abrisse a boca. Textos engomados e sóbrios foram escritos sobre o episó-dio. Que logo caíram no esquecimento, sem vida e emoção. Enquanto isso o anúncio seguia seu destino: vender. De quebra, ganhava prêmios.
Sobre a arte de escrever
Propaganda criativa: este assunto já criou todas as polêmicas. Acirrou discussões – inclusive porque o conceito de criatividade não é nada objetivo, falta-lhe concretude. Provocou exaltações e euforia. Isso, sem deixar de levar este ou aquele ao desânimo e consequente abandono da profissão. Exaltação e abandono: dois ingredientes típicos do ser humano. E deixar algo para trás nem sempre representa derrota. Pode ser uma forma de começar um caminho novo. Ou de retomar a mesma estrada, agora com olhar diferente. Em tudo, a oportunidade. E isso é o que conta, no final das contas. Aqui ou ali, tenho lido textos publicitários que exalam o calor de um cadáver. Natureza morta no seu melhor estado. Do primeiro ao último parágrafo, sinalizam para a dificuldade de transpirar calor humano em suas palavras e em cada frase. Em quase nada lembram, ao menos de longe, que o redator conheceu o pensamento do papa da propaganda. sr. David Ogilvly. Tivesse alguma intimidade com os caminhos percorridos pelo criador do império chamado Standard, ao falar sobre um produto ou serviço não o faria sem imaginar uma pessoa real, sentada ao seu lado e pedindo-lhe informações e sugestões sobre o que comprar. Ogilvy fez o que ensinava. Obteve resultados. Ganhou clientes, prestígio e, mais do que o glamour ilusório e passageiro, o direito de entrar para a história da comunicação mercadológica. Escrever é o mesmo que falar no papel. Escrever profissionalmente não é escrever, portanto, é conversar. Com-versar. Versar-com, comunicar-se. Interagir. O que só os vivos conseguem fazer. Porque, ao contrário dos mortos, são capazes de reações, expressões de sentimentos. Afirmam. Perguntam. Mostram indignação. Vibram diante de cada benefício oferecido. Se não for exagero afirmar, pode-se dizer que uma parte, uma pequena parte do redator vai junto ao texto. Como o ator que, tendo incorporado com tanta intensidade um personagem, chega a precisar da ajuda de especialistas para livrar-se dele.
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Escrever não é fácil nem difícil. Escrever é apenas o que acontece quando o pretendente tem algo a dizer. Aceita-se a si mesmo. Não tem a atitude que sugere algo como “desculpe-me por eu ter nascido”. E por causa deste conjunto de sentimentos e disposição, permite-se se expor, com toda naturalidade, dialogando com o leitor. Sendo humano, sem restrições. Se tudo o que eu disse corresponde à verdade, fica pouco espaço para aqueles textos que mais se parecem com arremedos de cópias do briefing de criação, este, um mero instrumento para orientar redator e diretor de arte. Quando bem escrito, o leitor dispõe-se a ler um anúncio. Um briefing reescrito, nunca. Assim como fica restrita a possibilidade de justificar um texto que em tudo lembra um edital, daqueles que se pode ler nos Diários Oficiais, obras com o mais puro sabor de “subnitrato-de-pó-de-nada”, como dizia uma antiga professora. Mais do que jogar informações no papel, escrever significa não precisar explicar nada, apenas deixar que as palavras, com vida, provoquem as reações que se espera do leitor. O que vem com o tempo e muito treino e uma vontade intensa de vencer. Vontade e treino: aí está a diferença. Quem se dispõe, chega lá.
Ricardo Ramos. E ponto final
Tive uma dessas oportunidades que se tem poucas vezes na vida. Fui aluno do mestre Ricardo Ramos. À época, o homem era professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing, a ESPM. Ensinava nos cursos de graduação e especialização. Escritor, Ricardo Ramos vinha de uma longa passagem pela agência de propaganda número 1 do mundo, a McCann Erickson. Apoio cultural, árvore que explica em parte o sabor do fruto: seu pai era nada menos que o escritor Graciliano Ramos. O curso foi lá mesmo, na ESPM. Curso rápido. O assunto era exclusivo: redação. Nas carteiras, somente os interessados em dominar a técnica de transferir para o papel o que o pensamento já havia desenhado. Veio-me à memória nossa inegável filiação divina. Redatores, também somos criadores. José Saramago, que guarda um Prêmio Nobel de Literatura, lembrou-nos de que todos somos escritores, com a diferença de que alguns escrevem e outros não. Redatores repetem o gesto de Deus Pai ao gerar o Deus Filho. A metáfora é inevitável. No Evangelho, João lembra que “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”. Um pouco mais à frente, o evangelista conclui: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós...” No princípio da tarefa de escrever, tudo é palavra, é verbo. Acomodado em algum lugar da nossa mente, gestando em silêncio, enquanto aguarda o momento de vir à luz. De habitar entre nós, acampando no papel, na tela do computador... No princípio é gravidez. Criança, ela precisa de uma força amiga que a liberte e faça andar. Sem tentar transformá-la enquanto vem ao mundo – talvez Ricardo Ramos estivesse referindo-se a este desafio quando nos ensinava a escrever sem síntese. Precisa de alguém que se preocupe com ela e, sem tirar-lhe a personalidade e tudo mais que a diferencia, apenas caminhe junto, frase após frase, parágrafo após parágrafo, até que ela, a palavra, transforme-se naquilo que desejar: um poema, um relato, uma crônica, um livro, um anúncio, um filme, uma carta de amor... Claro, os 14
textos, como nós, também são dotados de vocação. Nosso direito mais sagrado é o dever de respeitar seu caminho. Ainda que tenhamos nas mãos a rigidez do briefing de criação, com todas as suas recomendações, ou o formato preciso de uma coluna como esta. Com Ricardo Ramos aprendemos sobre o uso de instrumentos como substantivo, adjetivo, síntese, ritmo, pontuação etc. na construção do texto. Transformamo-nos em parteiros de ideias, colocadas no papel com criatividade e adequação – cada uma tem seu destino e não nos cabe forçar-lhe a natureza. Falei em criatividade e adequação. Duas coisas possíveis apenas a quem se permite transformar em texto o que, no princípio, era apenas o verbo dançando em nossa cabeça, pronto para tomar corpo e tornar-se público. Porque de que adianta a comunicação se ela não se torna comum, disponível, em forma de ideias para serem vistas e lidas por alguém que deseje entrar neste diálogo? Ricardo Ramos trabalhou por esta causa, hoje mais importante do que nunca.
A palavra é sua
As palavras não têm um sentido fechado, absoluto em si mesmo. Nas páginas dos dicionários, são como esqueletos, sem vida. Elas precisam das nossas experiências, nossa relação com o mundo e a vida para reviver. Falam ou significam alguma coisa somente em contato com a visão de mundo do seu usuário, seja ele emissor ou receptor. Parece-me que aí entra um elemento importante desta relação. Estou falando de algo delicado como a auto-estima. Bem resolvida, ela acostuma-se a ouvir com mais facilidade o grito das palavras apontando para oportunidades. Mal-resolvida, a simples expressão “desafio” aparece como uma ameaça. Na criação do mundo, ela é a grande ferramenta na boca do Criador. No Novo Testamento, mais precisamente no Evangelho de João, o destaque fica novamente por conta da palavra – “No principio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”.Nos dois momentos mais importantes da história do mundo – criação e redenção – a palavra confunde-se com os acontecimentos. Em forma de boatos ou mentiras, ela tem o poder de uma rebelião. Depõe e instaura governos e sistemas políticos. Dois séculos atrás, alguém já chamava a atenção para o fato de que “Com palavras governamos homens”. Na política como na propaganda, a palavra é a ferramenta que constrói imagens e convence multidões à adesão ou recusa por pessoas, produtos ou serviços. Apenas para lembrar mais um caso do que ela é capaz, convém destacar sua capacidade de criar ou reforçar paradigmas. Acompanhe. Quando um dos grandes meios de transporte ainda era o cavalo, com sua sela que o tornava menos desconfortável, alguém inventou a bicicleta. Na hora de pensar no banco do veículo de duas rodas que competiria com o de quatro patas, seu criador foi buscar na sela a inspiração para construir o que seria chamado, por derivação, de selim. De saída o resultado já foi doloroso. Claro, porque o tal assento era bastante desconfortável, chegando a provocar leves ferimentos nos seus usuários mais frequentes. 15
Apesar da boa vontade para resolver o problema, um obstáculo falava mais alto: a palavra sela, impedindo os engenheiros de enxergar outra possibilidade que não fosse um selim melhorado. Era a força do paradigma, aprisionando a criatividade. A esse respeito, diz a história que a barreira foi rompida apenas quando conseguiram isolar o que seria um assento de uma sela ou selim. A palavra continua aí. Ela pode ser uma ferramenta poderosa para que pessoas, empresas, instituições etc. forjem relacionamentos fortes e dura-douros. Ou o caminho mais curto para criar distâncias e comprometer uma imagem criada ao longo de muitos anos de trabalho. Com a palavra, o leitor.
Vai ser bom, não foi?
Mais do que em outros tempos, hoje o leitor vive um triste drama: a desatualização. As informações, os conceitos, tudo fica velho num movimento cruel que tenta superar a velocidade do próprio tempo. A publicação especializada com data de fabricação em 2001 está com prazo de validade mais do que vencido. Já não é apenas o jornal diário, e num segundo plano a revista mensal, quinzenal, que tem a marca do que é perecível. A obsolescência programada ou não, que antes era privilégio de certos produtos, hoje é uma rede que lançada ao fundo do mar de tantas publicações, atinge até mesmo as revistas de caráter científico. O que ler, então? Que estudos podem ser assimilados sem cairmos na vala do anacronismo? Pense num livro. Um livro daqueles que você e eu usamos como fonte de pesquisa em nossos estudos e levamos como parâmetro para a prática nossa de cada dia. Um livro escrito, por exemplo, nos Estados Unidos, fonte inesgotável das últimas verdades, em papel sobre temas como administração, marketing e vai por aí afora. Quanto tempo seu autor teria gasto para escrevê-lo? Estou falando daquelas obras que exibem algo em torno de quinhentas páginas, talvez para ir um pouco mais perto do fundo do poço. Não, não é conversa de final d feriado prolongado. O assunto é sério e mereceria talvez outra obra, mesmo que sem o mesmo fôlego, para aprofundá-lo um pouco mais do que faz essa rápida Coluna. Volte comigo e pense no momento em que o autor conclui a última revisão do texto, obrigatória antes da entrega dos originais à editora, os conceitos emitidos no início do trabalho podem, em maior ou menor grau, terem perdido o prazo de validade – já pensou nisso? Mas o assunto não termina aí. Sim, porque ainda que o autor seja um guru dos mais aclamados em nível internacional, seus originais ficarão algum tempo na editora. Porque primeiro ela vai analisar a viabilidade da publicação. Depois o texto será revisto por no mínimo dois profissionais, quando então será finalmente transformado em livro que deverá esperar o devido tempo até que o mercado o conheça. Parece que a via-sacra terminou. Parece. Porque ainda falta aquela parte em que a tal obra precisa cair nas mãos 16
de outras editoras, em outros países. Enveredarão por um longo caminho até conseguir os direitos de tradução, fazer com que o texto fale o idioma do país interessado, revisar, publicar, distribuir, vender... depois desta longa caminhada nós, usuários, chegarmos à livraria e darmos de cara com a “novidade” sobre determinado tema. Tudo bem, se alguns conceitos podem ter perdido a validade já no instante em que o autor conclui a redação da obra, imagine agora o estado de decomposição avançado em que talvez boa parte daquele produto editorial se encontre no momento em que preenchemos o cheque ou entregamos o cartão de crédito. Agora acelere esta cena que você acabou de ver. Acelere bastante. Pronto. Já temos a situação equivalente, só que para algo bem mais frágil: jornais e revistas especializados. Aqui, o texto publicado na semana passada, quinze dias atrás, sobretudo se marcado pelo caráter informativo acima do dissertativo, já é muito antigo para que dele nos ocupemos ou o tomemos como referência para discussões, orientações etc. Não, eu não tenho a resposta para todo esse questionamento. Até porque, nessas alturas – ou, na velocidade em que as coisas voam – conseguir detectar um problema já nos parece uma tarefa de bom tamanho. Tentar resolvê-lo sugere heroísmo, o que nem sempre está à nossa altura. Sei lá, de repente no momento em que esse artigo acabar de ser lido a dificuldade já pode ter deixado de existir. Vai ser bom pensarmos no assunto, não foi?
A aventura de criar
Se tivesse de definir criatividade, usaria poucas palavras. Diria que é a arte de pensar de maneira diferente para encontrar caminhos in-esperados. A escultura está escondida bem lá dentro da pedra. Ela é caprichosa, e só se revela se o candidato a artista acreditar. E crendo assim, aventurar-se rocha adentro, tirando os excessos e fazendo a obra enfim aparecer. Embora esperada, a ideia original sempre aparece quando menos esperamos. E mesmo sabendo que ela vem, não a recebemos sem certo gosto de surpresa e espanto. Remendo novo em tecido velho não dá certo, desde os tempos de Jesus. Se a mente não estiver preparada para recebê-la, não vai suportar o incômodo da novidade. Em casa, na empresa ou na escola, gerar resultados pode depender somente de saber usar a criatividade. Age com inteligência estratégica quem começa planejando o próprio tempo. Um pouco de pressão não chega a ser um mau negócio, ninguém morre disso. Mas não tente encontrar uma grande ideia quando você tem apenas meia hora e está espremido entre duas atividades extremamente exigentes. Preveja um período maior, de mais de uma hora, no qual você possa dedicar-se efetivamente ao assunto. Pense primeiro em você - não é pecado, senão contra a eficiência. Busque o conforto físico e mental. Prefira as roupas e calçados que não apertem. Consuma alimentos saudáveis -
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não por acaso, o aparecimento de uma ideia brilhante requer algum consumo de energia. Abasteça-se, através de uma alimentação calculada. Assim você vai dispor de resistência na medida certa para o desafio que enfrentará. Particularmente, acredito muito na força que os símbolos têm em nossa vida. Como as roupas, por exemplo. Elas informam o nosso inconsciente e os olhos dos outros sobre o que estamos fazendo. E podem ser um sinal eficaz de que agora você está envolvido com algo muito especial, um projeto exigente que não permite que o tempo e a atenção sejam divididos sob qualquer hipótese. Antes de seguir em frente, desfaça-se de alguns mitos que giram em torno da inspiração, pintada como sendo um momento mágico e gratuito em que anjos dourados transmitem ideias brilhantes a quem sabe ficar sem fazer nada. O pensamento do velho Thomas Edison alertando para o fato de que um bom trabalho é feito de apenas 1% de inspiração, ficando os outros 99% por conta da transpiração, já foi muito utilizado para este fim. Mas continua sendo o melhor antídoto contra este mito paralisante. A esse propósito, o escritor William Faulkner insiste no valor da experiência, da observação e da imaginação para quem deseja entregar-se à arte de escrever. Indignado com esta conversa mole, ele diz que nada sabe a respeito de inspiração, sequer sabe o que é - já ouviu falar sobre ela mas nunca a viu. Faulkner não é o único membro desta galeria que abomina tais crendices e tem certeza de que a única coisa que produz resultados é o trabalho árduo. Portanto, acredite em você e não espe-re por milagres. Abasteça sua mente e tome cuidado para não enferrujar. Treine sempre. Tome algumas deci-sões, e seja disciplinado para cumpri-las: seja seletivo, faça anotações e esboços, leia biografias, leia livros que ensinem a fazer coisas, seja o que for, leia revistas de variedades, leia ficção e não-ficção, pense muito. Deixe a mente aberta para o novo. Assim, quando menos esperar, uma grande ideia vai aparecer.
Isso é muito sério
Gente séria não é criativa. A afirmação pode causar espanto. Mas quem vive de “cara feia” sofre uma enorme dificuldade para pensar e dizer algo verdadeiramente novo. O inusitado e diferente tem a ver com a irreverência. Nasce do bom humor, do riso, da brincadeira. Essas atividades mágicas, que têm o poder de revelar o inesperado. Exatamente porque ele brota do rompimento momentâneo das barreiras colocadas pela censura. Isto sim é ser criativo. E com a mais absoluta seriedade. Na prática a teoria é exatamente essa. As grandes agências de propaganda que o digam. Afinal, elas sabem o valor da criatividade para se manterem nos primeiros lugares do ranking. E a saída mais inteligente é fazer do Departamento de Criação o tempo do alto astral, da piada e, sobretudo, do entusiasmo. Porque, como diz o catecismo ensinado na igrejinha da cidade ou na catedral da metrópole, “um santo triste é um triste santo”. No
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mundo da propaganda também é assim. E que assim seja pelos séculos dos séculos, amém. Às vezes, a melhor maneira de aprender é observar quem faz. Diante da pessoa em seu processo de criação, compreendemos cada etapa de uma tarefa. Acompanhamos o surgimento da ideia, o momento em que ela vai para o papel, ainda na forma bruta de matéria-prima. Sentimos seu aprimoramento, as correções, o fazer-de-novo. Na produção do texto, acompanhamos a mão do redator que o rabisca, reescreve, briga com ele e o vence pela força da insistência e pela estratégia no uso da palavra exata. Pena a gente não poder estar próximo dos grandes escritores quando esculpiam suas obras. Mas tudo bem. Nós dispomos ao menos da possibilidade de ler entrevistas que ficaram na mídia em todo o mundo. E então sentarmo-nos ao lado dos grandes nomes da literatura para a pergunta adiada: de onde você tira as ideias? Como escreve? Os escritores, publicado em dois volumes pela Com-panhia das Letras, é um ótimo lugar para o encontro com estes mestres da palavra.
Escrever não é decorar e repetir
Muita gente pensa que é. Quando decide que quer se tornar redator, logo compra uma boa gramática. Na era do consumo, parece que tudo dá em gôndolas ou nasce pendurado em displays - é só uma questão de passar recolhendo os frutos. Sem desejo, técnica e disciplina, nem todos os livros publicados no mundo podem salvar alguém de jogar tempo e dinheiro no lixo. Não demora para que o resultado apareça. Chega o momento de cobrir o cheque especial e quem o preenche é alguém que apenas não erra escrevendo “hum” ou “treis”. A gramática, pobre coitada, já vive seus dias de apoio para a porta que fica batendo com o vento. O resto é só frustração. Que maravilha seria se o melhor mecânico de automóveis fosse também e justamente por isso, o melhor motorista. Mestres e doutores no assunto seriam anjos e santos nas ruas e estradas. Mas só conhecimento, sem atitude, não resolve nada. Se informação ajuda, atitude faz acontecer. Ter a gramática na ponta da língua e limitar-se a isso não garante nada além de que o texto ruim de antes continuará ruim agora, apenas com menos erros de português. A propósito: você já somou o número de anos em que estudou Língua Portuguesa, desde o curso primário? Se tudo isso não o levou a escrever, por que acreditar agora que a solução do problema passa por aí? Decorar regras gramaticais não transforma ninguém em redator. Saber localizar modelos, menos ainda, sem contar que isso não exige qualquer talento. Apenas o desejo de escrever pode fazer o milagre da transformação. É preciso ter paixão pela arte, que neste caso, além de bela, dá um trabalho danado. Diante de um texto bem escrito, o redator sente-se tomado de encantamento. Mas ele não pára por aí. Porque aos poucos esta sensação se transforma na inveja santa e construtiva que leva primeiro à admiração, depois ao trabalho. Inconformado com qualquer resultado que não seja no mínimo ótimo, sai em busca de vencer-se e, de quebra, superar os profissionais da escrita.
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“O melhor é o melhor”, dizia Walter Clark, autor do copiado padrão global de televisão. A atitude é inteligente, perspicaz. Mais do que isso: é elegante, chique. Poucas coisas merecem tanta apreciação e respeito quanto um trabalho bem feito - uma bela obra sempre diz muito sobre seu criador. Isso requer abertura e mudanças no conteúdo e na forma de dizer. Substituir modelos superados de correspondência comercial por uma linguagem própria, original, com personalidade. Ter domínio sobre as principais técnicas de comunicação contemporânea, estas sim muito mais importantes que os compêndios de gramática. Só com essa autonomia é possível desenhar o texto segundo as necessidades específicas de dizer ou calar. Privilégio e direito apenas de quem é senhor da arte de criar, nunca dos escravos dos manuais de cartas para todas as ocasiões, capazes apenas de copiar. Nos meus cursos de redação empresa-rial criativa desfaço estes mitos que mais paralisam do que realizam. Pouco a pouco os treinandos mudam o foco das atenções. Já não se preocupam em decorar se pode escrever Vossa Senhoria com “s” minúsculo ou se a data fica do lado esquerdo da carta. Percebem que não vale a pena gastar dinheiro num curso apenas para saber o que já está bem respondido nos ma-nuais - e existem boas obras do gênero no mercado. Descobrem o gosto pela ideia de tornarem-se redatores, criado-res, não copistas. Porque sabem que em tempos de marketing um a um, personalizar a comunicação da empre-sa, quebrando toda dureza desnecessá-ria e tornando-a eficazmente simpática, é o melhor caminho. É a vitória da criatividade sobre a repetição.
Lição de casa
Se tivesse de resumir em duas palavras o caminho para quem deseja escrever melhor, diria rápido: ler e escrever muito. Não falo daquela leitura a esmo, sem objetivo. Essa leva a quase nada. Um investimento de tempo e energia cuja relação custo-benefício não compensa. Insisto, ao contrário, na leitura que faz investigação. Lê por traz das palavras e entende o que só foi insinuado. Essa atividade requer a postura da criança que, movida por uma saudável curiosidade, desmonta o brinquedo para ver como funciona por dentro. E tem a coragem de fazê-lo sob o olhar severo dos adultos, que a recrimina por estar destruindo-o. E quanto a escrever? Aqui penso no atleta, que no treino exige o máximo de cada músculo. Nada a ver com simples passatempo. O que prevalece é o compromisso consigo mesmo. O objetivo bem-definido, a meta de fazer como fazem os mestres. Vale uma sugestão prática? Que tal começar lendo, por exemplo, as colunas de Joelmir Beting, Armando Nogueira, João Ubaldo Ribeiro, Inácio de Loyola Brandão, Carlos Heitor Cony, publicadas em jornais como O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo? Ou ainda os escritos de Otto Lara Resende, que antes de ser requisitado para fazer textos no céu deixou-nos um belíssimo trabalho, todo ele recheado com o sabor de suas frases curtas e tiradas surpreendentes. Ele não está mais aqui. Mas uma parte de sua obra ficou, agora também reunida nas páginas de Bom dia para nascer, coletânea de seus melhores trabalhos publicados como articulista na Folha, editado pela Companhia das Letras. 20
Já para quem desempenha o papel de professor nesta área, está desembar-cando nas boas casas do ramo outra obra que merece ser lida: Linguagem e liberdade, de Celso Pedro Luft, publi-cado pela Editora Ática. Neste livro o autor defende a necessidade de um ensino menos repressivo e com mais espaço para o espírito crítico. Segundo Luft, esta é a base para uma participa-ção social livre e consciente.
Novela não é clone
Contexto é um “conjunto de elementos que condiciona de um modo qualquer, o significado de um enunciado”. “Um contexto literário é um grupo de palavras, incidentes, ideias, etc. que em dada ocasião acompanham ou circundam aquilo que dizemos ter um contexto...” As duas definições que você acaba de ler são irmãs. Estão no conhecido Dicionário de filosofia, de Nicola Abbagnano, Editora Martins Fontes. E são importantes para a compreensão da proposta da novela como gênero literário. Roteirista, acabo de ler numa importante revista quinzenal um texto em que o articulista acusa as novelas de serem mal-informadas sobre a vida empresarial. Mudando a posição da câmera, damos de cara com a dramaturgia, que entra na conversa como quem deseja usar do “direito de resposta”. E sem fazer drama, que ela não precisa disso, pois já está no mercado há séculos e séculos, garantindo sempre o merecido sucesso de crítica, bilheteria etc. Tome-se uma novela, por exemplo. Em seu Manual do roteiro, Syd Field declara que “O roteiro é uma história contada em imagens, diálogos e descrições, localizadas no contexto da estrutura dramáticas”. Um pouco à frente, ainda na mesma obra adotada pelas melhores escolas do ramo, informa que “A estrutura dramática do roteiro pode ser definida como uma organização linear de incidentes, episódios ou eventos inter-relacionados que conduzem a uma resolução dramática”. Syd Field deixa claro: uma narração dispensa detalhes que não contribuam, como peças de um jogo, para transmitir o conteúdo total da mensagem alojada na cabeça do roteirista. Eles não são necessários. Afinal, nossa mente dispõe de mecanismos capazes de juntar cada fragmento, colocando-os numa ordem tal que a história inteira se revele pela simples concatenação de imagens e sons. O mesmo acontece com as biografias. Ou com os evangelhos, para ir mais longe – por acaso alguém leu que às tantas horas de tal dia John Kennedy foi ao banheiro? Ou que em determinada tarde Jesus Cristo tomou banho em certo rio? Não leu. Isto por acaso implica em que eles não faziam estas e outras coisas? Também não. É que estes detalhes não são significativos quando se pretende revelar o cerne da vida e mensagem de alguém, seja ela quem for. Fosse assim, não existiríamos senão naqueles momentos em que por alguma razão fomos fotografados, filmados, desenhados ou coisa assim. Primeiro define-se o texto. Depois se busca o contexto – pretexto adequado - dentro do qual ele se faz “carne e habita entre nós”.
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Quando uma novela mostra algo da vida empresarial não se torna omissa ao deixar de lado situações como o dia-a-dia corrido de seus diretores, a chegada de clientes, satisfeitos ou reclamões – não se trata de um vídeo empresarial, nem de um documentário, mas de uma história que, para acontecer, precisa daquele cenário. O gênero é outro. A principal preocupação do roteirista não é mostrar a empresa. É contar um drama que para se desenrolar precisa de um cenário, o qual pode ser... a empresa. Portanto, quando deixa de lado certos detalhes, isso quer dizer apenas que não precisa destes contextos para levar ao telespectador o recado que pretende transmitir. Assim, um Lobato no ambiente empresarial, demonstrando fragmentos específicos de sua vida atribulada, é suficiente para mostrar como sente e age um profissional tomado pelas drogas e pelo álcool. Ora, a novela nunca se propôs ser um retrato fiel, branco-e-preto, das 24 horas do dia numa organização, ninguém se engane. A empresa tem seu dinamismo interno, é claro. Mas nenhuma novela promete retratá-lo na íntegra, o que a tornaria enfadonha. As imagens servem apenas como pretexto. Recurso que permite contextualizar a questão que o autor deseja sugerir para reflexão do telespectador. Importante: a imagem está a serviço da mensagem. Novela não é clone de nenhuma em-presa, nem pretende ser. Portanto, não convém fazer drama com o que serve apenas como entretenimento – o pú-blico já entendeu isso. Por isso já não se atrapalha diante de conceitos como ficção e realidade.
Os caminhos da redação
Um novo texto para a Coluna. Trabalho que faço com prazer, apesar do compromisso. Não é o que importa. Prazer é amor; compromisso é lei. E o primeiro sempre venceu o segundo, com uma vitória espetacular. Segundo o teólogo Leonardo Boff, vivo minha “opção fundamental”. Escrever é algo que vem de repetente, erupção de ideias. Fazê-lo sobre o tema preferido, isso transcende o essencial. Daí a insistência. O garimpo, em busca das ideias e das palavras – o substantivo, o adjetivo, o verbo... Até que o texto se dê por vencido, apareça como produto. É na pesquisa que tudo começa. Ela é a gênese do escrever. Em outras palavras, isso significa que é nela que tudo termina também. Ou melhor: torna-se possível. Seja olhando pela janela, vasculhando o jornal ou os livros especializados ou, ainda, remexendo o subconsciente - é daí que vem a luz apontando o caminho. Eureka!, a ideia chegou. É mágico. Mas não é magia. Criar tem um preço. A primeira prestação é paga com a vontade, que segundo Luiz A. Marins Filho, Ph.D. gravou em
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seu vídeo Motivando para vencer I – Commit – ,é mais importante que a inteligência. A segunda reúne a arte de colocar a bunda na cadeira e concentrar-se, interrompendo a atividade apenas para a busca de novas informações que enriqueçam o texto. Pronto, a ideia tomou forma, no papel ou na tela do computador. Agora, de malas prontas, vai começar a viagem. Via postal ou por Internet; o jeito não importa. Ela tem de chegar ao destinatário – ou transforma-se em tralha, sem utilidade. Produto estocado apodrece, antes de atender às necessidades do consumidor. Perde o sentido de existir. Pensando nisso, chegou a hora de enviar a Coluna. A distribuição, que vai colocá-la no ponto-de-venda – jornal, revista... – acessível ao leitor. A logística já está montada. Só falta imprimir e embalar. E, é claro, esperar que o leitor sinta-se atendido e torne-se fiel. Para voltar na próxima semana, e na próxima, e na próxima... Mix de marketing: você o viu aí em cima? Não, não foi coincidência.
“À nível” de cada um...!!!
Venho por meio desta sugerir que você, leitor, enquanto pessoa individual e a nível de você mesmo, continue lendo estas mal-traçadas linhas que doravante redijo a partir do título em epígrafe. Entendo que existem elementos atuando na imprensa que nem sempre se preocupam para que você esteja recebendo informações que possam estar ajudando-o a estar tendo informações com qualidade, muito embora o companheiro esteja consciente dos seus direitos enquanto cidadão que se insere num contexto onde estar sendo tratado com o devido respeito significa o primeiro passo para se estar vivendo mais próximo da verdadeira cidadania. É compreensível, mas não aceitável – esta recusa é a condição sine qua non para dar um basta a esse regime que está aí, pois ele tem grande dificuldade na hora de estar olhando com o devido respeito para as pessoas a nível individual ou social. A propósito, reitero aqui a verdade insofismável de que para boa parte destes empregados e patrões, os leitores formam apenas uma geração elementar massificada, massa de manobra marcada pela anomia étnico organicista, em que o dado fatorial hierárquico já se esvaiu nos meandros e por conta de uma sociedade calcada numa clientela feudal integrada – estou certo de que tal estado de coisas está claro para todos nós, razão pela qual posso dizer sem sombra de dúvida que quero que um raio caia em minha cabeça se eu estiver mentindo. O preclaro leitor já se deve ter se deparado, na mídia escrita e falada, com matérias e reportagens cujo fato relatado é vítima de uma pauta editorial sensacionalista, mesclando chamadas telegráficas para prender a atenção de um público desinformado por conta dos interesses da oligarquia e seus costumes pequeno-burgueses reforçados pelo neoliberalismo ianque e opressor – (nota do colunista: - Ufa!, agora me superei).
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A verdade, doa a quem doer, está aí, todos os dias desfilando ante os nossos olhos cuja sensibilidade já se embotou, motivo por que às vezes fazemos vistas grossas frente aos desmandos deste poder corrupto mantido por nós, os contribuintes. Mas voltemos ao que certo tipo de informação carrega em seu bojo. Trata-se de material que não raro limita-se a denúncias factuais distorcidas, forjadas a partir de fontes tendenciosas e com opiniões parciais, que não raro resultam em reportagens com alto índice de rebuscamento, capazes de nos roubar qualquer possibilidade de vir a estar entendendo o que o texto quer estar passando, o que, ademais, é muito chato, pôxa...!!! Claro que a mídia, enquanto produto para consumo, acaba sendo atingida no seu ciclo mercadológico delineado. Sobretudo em situações em que o segmento em que a mesma atua encontra-se saturado, fato que a coloca como alvo fácil do concorrente oligopolista, pronto para atuar em busca de novos nichos hipoteticamente não explorados – por falar nisso, os gurus de plantão têm colocado muito bem a questão que envolve a coisa do predatório no contexto da mercadologia. Sabe-se de cases e mais cases em que em que pese o posicionamento de um composto suficientemente macro equacionado, o universo situacional não suportou as investidas de produtos feitos sem levar em conta o fato de que o target objetivado não se deixa levar por promessas vazias. E agora uma palavrinha à guisa de conclusão. Algures e alhures, pode-se eventualmente encontrar escrevinha-dores, os mais respeitáveis e bem-intencionados, que ainda apostam nes-te jeito de dizer as coisas. Pois que o amigo leitor não incorra em dúvida quanto a isso, todavia.
CDF
Pouco tempo atrás, passando por um treinamento sobre consultoria, um dos professores, made in Fundação Getúlio Vargas, fez uma pergunta no mínimo preocupante. A certa altura ele sapecou nada menos que um torpedo do tipo “Quem aqui lê 40 livros por ano?”. Sentados em nossas cadeiras, desconfortáveis com a interrogação, tínhamos a vontade de nos esconder ou sairmos correndo, não necessariamente nessa ordem. Conformado com o quadro que revelava sintomas de pouca intimidade com os livros, propôs um negócio menos exigente: “Tudo bem, e 30, quem lê?”. Resposta: “nada a declarar”, dizia aquele silêncio que enchia de um tormentoso barulho as nossas cabeças. E o consultor baixou suas expectativas para 20 livros. O que também resultou na mesma reação típica das perguntas anteriores. Até que demonstrou dar-se por satisfeito caso alguém ali dissesse algo em torno de cinco a 10 títulos. Alguns braços levantados, timidamente surgiram uns poucos acenos positivos. Foi quando concluiu destacando que não apenas os consultores precisam ler no mínimo cinco bons livros por ano. De outra maneira, segundo ele, seremos apenas iguais à média, um “eu também” no meio de uma multidão em busca de um destaque no mercado que certamente nunca chegará.
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Preocupante. Definitivamente preocupante a observação do professor. Porque diante da pilha de livros que repousa – mentira, uma pilha de livros nunca repousa, ela apenas finge-se de morta – sobre nossa mesa, sentimos o peso do débito que temos atrás de nós, sem que nada interrompa seu crescimento. Tudo bem, podemos negociar a dívida. Talvez uma proposta de parcelamento, quem sabe, com um contrato de assiduidade. Algo como ignorar a cama feita e o sono que insiste em nos aliciar. Dar pouca importância ao relógio quando nos avisa que já passamos para o outro dia e estamos bem longe da fronteira que separa o ontem de hoje. E também tem os sábados e os domingos. E os feriados. E os dias-santos-de-guarda. E o intervalo comercial, durante o jornal, a novela, o filme, o jornal... – tive um professor, exegeta de primeiríssima linha, para quem o tempo de um break comercial era o espaço ótimo para ler mais alguns versículos do Novo Testamento, presença absoluta em seu previsível paletó preto. Será por isso que à época ele assessorava nada menos que o Cardeal Arcebispo de São Paulo, já havia publicado vários livros e sua agenda lembrava uma Avenida 23 de Maio por volta das 17hs? Destino ou sorte, isso eu sei que não era. O problema aí é o velho paradigma segundo o qual fomos feitos para produzir de segunda a sexta, no horário comercial. Esta verdade, que nos torna prisioneiros das ciladas que cultivamos sempre que não podemos inventá-las, tem algo de demoníaco. Principalmente porque ela nos é inoculada no mais profundo de nossa mente, envolta numa embalagem feita de “esperteza”. Quem nunca ouviu alguém dizendo que sempre estudou ou trabalhou, sim, mas nunca foi um CDF? E o pior: narra-se o fato como se ostentasse a maior das conquistas de que alguém é capaz – motivo de orgulho supremo. Nem um, nem outro. Na verdade, mais uma derrota. Algo como se dizer vitorioso porque fez uma “viagem” ao consumir droga ou por ter dado um tiro no próprio pé. Resultado: aprendemos e ensinamos a ter vergonha de atitudes como persistência, determinação e coisas do gênero. Certos de estarmos fugindo das estruturas que nos aprisionam, sem perceber nos tornamos CDFs da incompetência institucional. O que, sem dúvida, é ainda mais trágico. Algumas pessoas chegam lá. Destino? Sorte? Não. Trabalho e vontade.
Curso de Escrita Criativa: formando novos escritores Consultor: Rubens Marchioni
O Curso de Escrita Criativa nasceu da pura necessidade pessoal de descobrir que mistérios envolvem o trabalho de criar e escrever. Da experiência prática de criar e produzir textos publicitários, editoriais, de ficção, dentre outros. E do propósito de dividir esse aprendizado com outras pessoas, companheiros de caminhada.
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O que veio primeiro foi o desejo de obter respostas para desafios que por vezes pareciam mais fortes que eu. Havia o desejo de saber. Precisava saber. Sentia-me forçado a entender o que havia nos bastidores daqueles textos muito bem escritos com os quais me deparava constantemente. Seriam frutos de uma vocação especial dos seus autores? Talento? Inspiração? Dom? Coisas, enfim, que independiam de mim e estavam reservadas apenas aos outros? Não podia ser. Tinha de existir uma explicação. [Hoje sei que essas são bobagens imensas, verdades falsas criadas para desestimular principiantes.] Movido por essas questões e impulsos, saí para descobrir a resposta. Li. Estudei. Desmontei textos – precisava entender os mistérios da sua construção. Juntei peças. Com muito trabalho, a figura, nesse quebra-cabeça, foi se revelando. O que descobri? Que escrever é, antes de tudo, um ato criativo – juntar palavras, frases, orações, de um jeito diferente, até que tudo isso se transforme em texto, com uma ou 420 páginas. E que criar a gente aprende, é técnica. Como tal, existe um caminho a ser percorrido – quem insiste em queimar uma etapa acaba anulando o efeito de todo o trabalho. Ao contrário, quem se permite percorrer o caminho se deslumbra ao descobrir que é criativo. Uma experiência tão democrática quanto fantástica, que vivo e vejo acontecer com frequência. Não é exclusividade minha, mas assim como outros escritores, encontrei um mapa bastante confiável. Eu o apresento em meus Cursos de escrita criativa. Também descobri que escrever nada tem a ver com saber gramática, assunto que decididamente não me proponho ensinar. Que o digam as editoras, com seus profissionais especializados no trabalho de revisão gramatical, prontos para ler, reler e corrigir textos, inclusive de autores renomados. No meu caso, essa é uma tarefa que delego a outra pessoa, com a competência necessária para isso. Fazendo uma comparação, revisores sabem pegar porções de açúcar, farinha, fermento etc., colocar cada uma delas sob as lentes do rigoroso microscópio e identificar a composição química de cada elemento, número de calorias etc. Quanto a mim, não sei nada disso. Escritores sabem tomar esses mesmos ingredientes e, a partir deles, criar um bolo gostoso de ver e saborear. Um trabalho completa o outro. Não ensino gramática; ofereço instrumentos práticos a quem deseja se descobrir escritor. Sempre dá certo quando não damos atenção ao medo nem ao impulso de trapacear. Descobri ainda que escrever é falar no papel, ou seja, quem fala, escreve. A propósito disso, um escritor afirmou que todos são escritores, com um detalhe: alguns simplesmente não escrevem. Outro, concluiu que não existe escritor; existe reescritor. Até mesmo os premiados com o Nobel de Literatura reescrevem, geralmente, dezenas de vezes algumas partes de suas obras. Trabalho duro. Inspiração? Não. Trabalho duro. Sobre o assunto, Luis Fernando Veríssimo, escritor de sucesso, confessou: “Minha musa inspiradora é meu prazo de entrega”. É pegar ou largar. O mais-ou-menos não serve, não leva a lugar nenhum. Sem contar que provoca uma frustração insuportável. O Curso de Escrita Criativa é oferecido em dois módulos: no primeiro, o treinando experimenta, na prática, como ter ideias criativas, interessantes. No segundo, descobre como transformá-las em textos bem construídos e convidativos à leitura. Simples assim.
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Candidatos à descoberta de que são criativos e escritores colhem bons fru-tos desse programa. Bastam apenas dois passos: fazer a inscrição e entre-garem-se, sem reservas, para esta via-gem tão produtiva quanto deliciosa.
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Rubens Marchioni Especialista em Publicidade e Propagan-da. Atua como redator free-lancer e ghost-writer. Publicou artigos no jornal O Estado de S. Paulo e na revista Mercado Global – Rede Globo. Foi colunista e ro-teirista de programa de televisão. Publi-cou Criatividade e redação. O que é, co-mo se faz – Edições Loyola, São Paulo – 6ª edição; A conquista. Um desafio para você treinar a criatividade enquanto amplia os conhecimentos – Qualitymark, Rio de Janeiro. Escreveu o romance Câncer de mama. Vitória de mãos e mentes [sob encomenda para um cliente] – Totalidade, São Paulo. Tem mais de dez anos de experiência como professor universitário em escolas como Metodista, PUC de Campinas, Senac e Faap, onde recebeu o título de “Professor do Ano” no curso de pós-graduação. 11 | 2374 6941 | 99377 6941 www.rubensmarchioni.com.br | rumarchioni@ yahoo.com.br