Plumas Fora do Armário

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Livro-reportagem

PLUMAS FORA DO ARMÁRIO

Felipe Riela



Livro-reportagem e-book

PLUMAS FORA DO ARMÁRIO Felipe Riela

Centro Universitário Módulo 2014


Considerações Iniciais do Autor “Plumas Fora do Armário” foi desenvolvido durante o ano de 2014. É resultado do Trabalho de Conclusão de Curso realizado no Centro Universitário Módulo para o título de bacharel em Comunicação Social: habilitação em Jornalismo. Composto por um ensaio sobre questões de identidade de gênero, como conceitos de transgeneridade e heteronormatividade, o livro, também, contém reportagensperfis de cinco transgêneros da cidade de São Sebastião, Litoral Norte de São Paulo. As entrevistas aconteceram entre os meses de setembro, outubro e novembro. A obra visa esclarecer o assunto pouco tratado com fôlego pelos meios jornalísticos tradicionais. Além de dar voz aos trangêneros da cidade, contar suas histórias e através dessa aproximação criada por meio do livro desenvolver um grupo que estude o assunto em São Sebastião. Este autor ao longo de seu estudo sobre Livro-reportagem e Jornalismo Literário acredita que o jornalismo em suma tem a missão de retratar a realidade, e incitar a reflexão sobre a mesma, tornando-se assim, ferramenta educadora. Gostaria de aqui prestar meus agradecimentos. Primeiramente, as orientadoras do trabalho, as professoras, Daniella Aragão, e Sandra Mitherhofer. A responsável pela diagramação do livro, Millena Hermes. A jornalista, Bruna Vieira Guimarães, e a professora, Giovana Flávia de Oliveira, que leram trechos da obra e contribuíram para a reflexão da mesma.


Sumário A Porta........................................................................................04 A chave.....................................................................................................05 Cabide: Transgeneridade..........................................................................07 Espelho: Teoria Queer..............................................................................09 Cabide: Heteronormatividade...................................................................11 Fechadura.................................................................................................13 Penteadeira...............................................................................................14

As Plumas..................................................................................17 Vivi............................................................................................................18 Manu em seu Colorido Submundo Psicodélico........................................31 Vida Dura e uma Pele Fina......................................................................47 Arte porque faz parte................................................................................64 Lutas, Escolhas e um Amor......................................................................80

Fora do Armário.........................................................................94 Raio de Luz (Postura Queer)....................................................................95 O Céu.......................................................................................................96 Encontros..................................................................................................98


A porta


A Chave Desafio central do livro é conceituar, esclarecer e refletir sobre os conceitos de transgeneridade e heteronormatividade. Temas esses pouco pautados com profundidade, consequência dos preconceitos enraizados em nossa cultura predominantemente machista e estruturada em padrão binário: masculino, feminino. No meio científico e, claro, muito mais no labiríntico fundo das relações sociais do cotidiano, é notável num grau alarmante a falta de tato — da nossa confusa sociedade que caminha a passos incertos, desenhada por nós, seres humanos imperfeitos — ao tratar os assuntos aqui propostos e conviver com as pessoas que compõem esse cenário que não se enquadra nos padrões dos “grandes teatros” da massa. É comum depararmos com expressões de estranheza, preconceito e omissão no que se refere a esse tabu que se arrasta através dos tempos. Percebendo que na grande mídia o conteúdo desenvolvido é muito superficial, se não, carregado de estigma, foi decidido explorá-lo, pois a população não compreende e até rejeita esse fenômeno encontrado desde a antiguidade — na mitologia grega-romana Vênus Castina é a deusa que se preocupa e simpatiza com os anseios de almas femininas presas em corpos masculinos. Muitas vezes o próprio indivíduo que integra o universo LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, e Transgêneros) desconhece as diferenças de gênero por crescer numa sociedade onde a própria educação não desenvolve o tema. Assim exerce preconceito contra si mesmo exacerbando o preconceito dos outros. Essa falta de conhecimento e sensibilização gerou e gera exclusão social desde o mínimo traço “diferente” encontrado no indivíduo que se apresenta com um comportamento não encaixado aos padrões da sociedade. O descaso e a ignorância velam a injustiça e a violência, restringe o transgênero a uma vida relegada. Mas, os princípios da liberdade e igualdade estão expressos na Constituição Federativa da República de 1988, e pressupõem uma sociedade plural e sem preconceito. É visto outra realidade no cotidiano, uma verdade cheia de estereótipos no qual as pessoas se esforçam para não perturbar a “ordem” se quiserem obter sucesso ou/e sossego. O intuito do trabalho é conhecer as características dos transgêneros, discernir suas singularidades e reconhecer seus traços em comuns através de personagens e suas histórias reais, trazendo a reflexão de suas naturezas, opções, desejos, sonhos, medos. Essas personagens compõem o cenário de São Sebastião onde se pode perceber uma relação mais estreita com uma cultura de contexto pacato e tradicional. 05


Nas grandes cidades as pessoas são encobertas por uma massa. E em uma cidade pequena como matar o passado e construir um novo corpo, uma nova identidade, sem esbarrar nas lembranças e nos julgamentos alheios? Mergulhar nesse universo oferecendo subsídio para a população ter uma compreensão maior do assunto, e poder discuti-lo de uma forma mais inteligente é minha aspiração. É muito fácil julgar outras pessoas através de sua ideologia, isso é egocentrismo. Se não aceita as diferenças ao menos estas devem ser respeitadas. Toda falta de conhecimento e desinteresse da educação e da imprensa, que tratam o tema de maneira simplista, derrama sua visão superficial respingando sua ignorância nas pessoas que não se adequam ao padrão binário, uma vez que elas crescem no seio da cultura padronizada nesse mesmo modelo. Isso pode explicar modos vulgarizados, muitas vezes, dessas pessoas, que cresceram achando que ser o que se é, é errado, feio e anormal. Não se propõem aqui uma educação diferenciada para essas pessoas. Apenas uma educação que não as excluam, que seja pluralista, como a sociedade e a realidade são em essência. Hoje a mídia está mais aberta para o assunto, obviamente, pois esse grupo cresce, e cresce à medida que é mais esclarecido sobre seu direito. Esse público se aceita mais, se respeita mais, mas ainda não é o bastante, pois conforme vão conquistando espaço, grupos contrários e até violentos usam da sua ideologia para impor uma ordem não existente, já que existem diferentes perspectivas de mundo. Apesar da crescente noticiabilidade, pode-se perceber que o valor-notícia dado aos fatos ligados aos transgêneros é ancorado numa abordagem de conflito, curiosidade e tragédia. Apesar de controversos, conceitos de objetividade e parcialidade são empregados no jornalismo convencional, e na maioria das vezes tendem para um discurso heteronormativo. Espero que com essa chave nas mãos possamos destrancar as gavetas escuras dos nossos armários, a fim de, nos esclarecer e poder ajudar tantas pessoas que precisam de apoio, carinho e orientação.

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Cabide: Transgeneridade Há mil formas de se experimentar o corpo! E qual o motivo de tolher essas experiências em códigos de conduta baseadas num regime autoritário apoiado na crença assimilada através da cultura que é da natureza humana ou ser macho ou ser fêmea? Por questões políticas e econômicas, é mais viável para o Estado que haja uma ordem de classificação identitária, assim fica mais fácil a manipulação e o controle dos direitos e deveres do cidadão e cercear a liberdade e a criatividade da pessoa que não produza de acordo com seus interesses. Trata-se de uma simplificação da natureza humana. Trata-se de ignorar diversas possibilidades e limitar a expressão dos indivíduos. É a sociedade, e não a natureza, a única responsável por considerar patologia e estigmatizar pessoas que não seguem a conduta binária como uma determinação biológica, conforme aponta estudos da filósofa Judith Butler. Definição compartilhada por estudiosos, como a doutora em psicologia social, Jaqueline Gomes de Jesus, e militantes, como a psicanalista crossdresser, Letícia Lanz, denomina transgeneridade como condição onde a identidade de gênero de uma pessoa é diferente daquela atribuída ao gênero designado no nascimento. Significa também a transitoriedade de um indivíduo entre os papéis de gênero. Gênero, aqui, entendido como questões de identificação social em relação ao sexo. Há a identidade de gênero que é a realidade interna, o sentido psicológico do indivíduo. Há o papel de gênero que são as manifestações externas da personalidade que geralmente recaem para a conduta esperada. Caímos no velho chavão do ter ou ser. Pense: se sou um homem afeminado, logicamente que minha identidade de gênero, foge do padrão ou masculino ou feminino. Mas posso ir contra minha realidade interna e me ajustar à demanda social que diz: homem é masculino e mulher, feminino. Ter minha identidade de modo que não incomode ninguém ou ser eu mesmo, mas esbarrar nas limitações das normas vigentes. Hein? O indivíduo que vive sua realidade íntima e diverge dos papéis aceitáveis socialmente é um transgênero. Ao vestir-se, maquiar-se e comportar-se como uma mulher o homem viola o padrão estabelecido e já não se enquadra mais no modelo binário. Transgeneridade então pode ser pensado como um grande “guarda-chuva” que tenta abrigar as inúmeras manifestações de identidade de gênero que contrapõem o conceito de ao nascer com pênis, trata-se de um homem, e ao nascer com uma vagina, trata-se de uma mulher. 07


As pessoas nunca couberam num número limitado de orientações de desejos. Vejamos — suscintamente — algumas formas encontradas que contrapõem a convicção de que sexo define identidade. Transexual: Quem tem o sentimento de pertencer a um sexo com que não nasceu. Essa dissonância entre identidade de gênero e sexo genital costuma ser fonte de angústia e ansiedade, pois o indivíduo transexual tem o desejo de viver e ser aceito como sendo do sexo oposto. Travesti: Pessoas que se travestem do sexo oposto. Mas diferentemente dos indivíduos transexuais que requerem ser aceitos como pertencentes do gênero oposto, o indivíduo que se traveste costuma aceitar seu sexo genital compondo um aspecto ambíguo. Travesti é qualquer pessoa que se apresenta socialmente usando roupas e adereços culturalmente definidos como de uso próprio do sexo oposto, pode-se dizer que mesclam os papéis sociais, masculino e feminino, e ainda podem considerar pertencentes a um “terceiro sexo”. Drag Queen: Artistas homens que trabalham travestidos como mulher em espetáculos artísticos visando entretenimento. Drag king: O mesmo que drag queens, só que no caso, são mulheres que se travestem de homens. Crossdressing: Pessoas de orientação sexual não homossexual que se veste e se comporta do sexo oposto, geralmente como “hobby”.

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Espelho: Teoria Queer Eu, quando criança, realmente não podia entender porque meu jeito de ser me levava a ser alvo certo da ignorância alheia apoiada pelo nosso sistema. Chamavamme muito de estranho e bichinha, e eu não entendia, não queria fazer nada que me vinculasse a esses termos, no entanto, continuavam a me chamar assim. Só entendia através da perspectiva do opressor e tinha muita raiva de mim porque não conseguia ser diferente, ou melhor, igual como as pessoas queriam que fosse. Hoje, a Teoria Queer me apresentou um mundo novo, nem mais bonito ou igualitário, mas desmascarou muitas verdades que a gente repete sem maiores esclarecimentos. Queer é uma palavra do inglês. Uma gíria que significa estranho, esquisito, ridículo. Passou a ser adotada como termo pejorativo para denominar os gays, bissexuais e transgêneros. Ou todas aquelas pessoas a margem da sociedade por não seguirem os padrões estabelecidos. A Teoria Queer é uma postura intelectual nascida em fins da década de 1980. Emergiu nos Estados Unidos em oposição crítica aos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e gêneros, que ao menos, até a década de 1990, tratava a ordem social como sinônimo de heterossexualidade. Manifestou-se em departamentos normalmente não associados às investigações sociais como os da Filosofia e crítica literária. Está fundada em um conjunto de ideias construído através de um núcleo de pensamento: as identidades não são instituições fixas e nem determinam quem nós somos. Ninguém nasce homem ou mulher aprende a ser. Gênero, assim como a sociedade rotula como sexo, tem um caráter essencialmente performático, produz significados, controlado muito mais por princípios de “organização” como político-econômico-culturais do que determinações biológicas, como pensa Judith Butler, teórica queer. Essa teoria se desenvolve como marco histórico, tanto em termos políticos quanto teóricos. Surgiu como impulso crítico que repensa parâmetros históricos de organização da sociedade, baseados no binário rígido dos gêneros. Movimento da contracultura abraça todas as pessoas em desacordo com as convenções culturais, com as obrigações impostas em termos de comportamento. Independente do nosso sexo biológico, todos nós temos gestos e formas de fazer e pensar que a sociedade caracteriza como feminino ou masculino. Isso clarifica como as convenções culturais – que variam no tempo e de sociedade para sociedade – condicionam nossa postura diante do mundo. 09


Muitas pessoas são insultadas cotidianamente por não caberem dentro dos condicionamentos em termos de postura exigida pelo sistema. E um olhar queer vem criticar esse modelo que impõem verdades não questionáveis — por falta de vocabulário e expressão — pela maioria. O queer é a recusa dos valores morais violentos. A teoria avança em termos de diálogo e conduta para a conversação sobre conteúdos implícitos auto impostos por força da cultura. São homens e mulheres que carregam nos ombros o peso de seguir os comportamentos estabelecidos para tais e tais papéis. Eu cansei de tentar me enquadrar no estereótipo masculino. E quem constrói a sociedade? A ideia da teoria é, pelo contrário do que vemos por aí, como movimentos de inserção de tal grupo na sociedade, é dialogar com a sociedade de forma com que todos nós que a construímos percebamos o quanto ela é excludente e atende aos interesses de uma minoria que controla o poder. A questão não é descobrir qual a melhor forma de classificar alguém, mas antes questionar esse processo de classificação que gera o insulto. Na perspectiva queer, as identidades socialmente estabelecidas são uma forma de disciplinamento social, de controle, de normalização que relega indivíduos a humilhação e ao desprezo coletivo.

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Cabide: Heteronormatividade Em nossa sociedade a heteronormatividade, termo criado em 1991 pelo crítico literário e teórico queer, Michael Warner, constitui a base conceitual e ideológica de todos os processos de relacionamento humano. Nesse conceito cabem as normas e processos legais e institucionais que confirma à heterossexualidade como monopólio da normalidade sendo o status adequado. Esse conceito reforça as práticas heterossexuais como sendo as “normais” e marginaliza quem não o segue. Nossas concepções de cultura, sexo e corpo estão emporcalhadas com conteúdos heteronormativos: vemos mais, se não só, casais heterossexuais em campanhas de publicidade e livros didáticos. Somos criados para ser heterossexuais. Violências atualmente chamadas de homofobia não são praticadas apenas para atacar os homossexuais, mas todo aquele que não segue o padrão heteronormativo. Muitas vezes o que chamam de homofobia, que caracteriza uma aversão irreprimível aos homossexuais, define-se adequadamente ao termo transfobia, que se refere à discriminação aos transgêneros, pois o que leva às atitudes de preconceito não é necessariamente o fato da homossexualidade. E sim, o que é coibido é quando sexo e gênero se discordam em determinada pessoa. Há casos de homofobia provocada, por exemplo, por um beijo ou até mesmo um abraço entre pessoas do mesmo sexo. Já a transfobia cabe mais quando não há evidência de homoafetividade (relação afetiva entre pessoas do mesmo sexo), e sim, homens que apresentam feminilidade e mulheres masculinidade, independente da orientação sexual. Heteronormatividade então é um modelo social regulador das formas como as pessoas se relacionam, não escolhe sujeitos, se impõem a todos. São ideais coletivos construídos e que se fazem valer através das convenções culturais. É a ordem sexual do presente fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo que se impõem por meio de agressões simbólicas e físicas. Se heteronormatividade é uma convenção social preestabelecida, heterossexismo é a convicção presunçosa de que todos são, ou deveriam ser heterossexuais. Outro termo que ajuda a compreender o funcionamento do sistema binário é a heterossexualidade compulsória caracterizada pela imposição do modelo das relações amorosas e sexuais só com pessoas do sexo oposto. Esses termos explicados nos faz compreender a cultura hegemônica heterossexual. Enriquece nosso vocabulário tão aparentemente escasso de palavras que possam descrever e refletir determinadas condutas que fogem a regra. 11


Podemos refletir e entender melhor nossa sociedade e a forma como ela exerce seu poder referente Ă s identidades de gĂŞnero atravĂŠs da Teoria Queer, amplamente discutida nos tempos atuais.

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Fechadura Ao observar a sociedade percebemos que mulheres e homens possuem diferentes papéis, ou seja, possuem gêneros distintos. Quando o ser humano nasce seu aparelho biológico acaba por determinar seu comportamento por meio da seguinte regra: macho (pênis), logo homem, fêmea (vagina), logo mulher, instaurando uma condição que é imposta desde a infância pela família que segue regras tradicionais de normalização. No entanto, para a ciência biológica o que determina o sexo de uma pessoa é o tamanho das suas células reprodutoras (pequenas: espermatozóides, então macho; grandes: óvulos, então fêmea). Biologicamente isso não define o comportamento masculino ou feminino das pessoas. O que faz isso é a cultura, a qual define alguém masculino ou feminino, e isso pode mudar de acordo com a cultura de que falamos. O discurso predominante dissemina que mulheres e homens possuem características distintas por ser da natureza humana. Entretanto, a doutora em psicologia social, Jaqueline Gomes de Jesus, em seu Guia Técnico, intitulado "Orientações sobre Identidade de Gênero: Conceitos e Termos" enfatiza, "a diferença entre homens e mulheres é construída socialmente mesmo antes de o indivíduo nascer - no caso de hoje, onde o sexo é identificado pela ultrassonografia. Logo, o enxoval do bebê é formado pela cor rosa ou azul segundo seu sexo”. Jesus, então conclui, “Sexo é biológico, gênero é social. E o gênero vai além do sexo: o que importa, na definição do que é ser homem ou mulher, não são os cromossomos ou a conformação genital, mas a auto percepção e a forma como a pessoa se expressa socialmente. Se adotamos ou não determinados modelos e papéis de gênero, isso pode independer de nossos órgãos genitais, dos cromossomos ou de alguns níveis hormonais”. O estudo da transgeneridade e heteronormatividade repensa o papel do indivíduo como agente histórico cultural e suas relações e implicações na sociedade. Sobretudo, reflete sobre os conceitos de cidadania, democracia, e as ideias dos Direitos Humanos, que no artigo 3º declara: toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Antes de qualquer coisa, o estudo faz questionar: de quem é o meu corpo? E qual é o direito do outro de decidir por mim o que devo fazer referente o que é meu? A criação do indivíduo aponta para uma negação de toda identidade de gênero ou sexualidade diferente da considerada normal e natural. Adultos transgêneros, e muito mais as crianças, sofrem por não terem uma orientação, se tem, na maior parte dos casos, ela não respeita a individualidade da pessoa. 13


Penteadeira Eu não passei minha infância dentro de um regime autoritário, como o instaurado em 1964 e se desenrolando – num carpete vermelho de sangue para quem assistia ao filme de olho aberto – até 1985. Com consequências profundas nos dias de hoje refletida numa autocensura. Richard Miskolci, sim, ele viveu, leia-se, sofreu, com o golpe militar que manchou a interioridade de diferentes indivíduos, com diferentes motivos que os levaram a opressão de suas manifestações singulares. Miskolci, doutor em sociologia, em passagens de seu livro, "Teoria Queer: Um Aprendizado Pelas Diferenças" relata brevemente, experiências na escola que acompanhava – era controlada – pelo fazer político da época. “Ainda me recordo como, ao acordar, colocava meu uniforme e seguia para a escola. Era final de 1970... No pátio, tínhamos que formar fileiras: duas para cada sala de aula, uma de meninos, outra de meninas. Começavam aí as "brincadeiras", nas quais os meninos mais robustos empurravam os mais frágeis para a fila feminina, espaço desqualificado por si mesmo. Só sossegavam diante do sinal para o hasteamento da bandeira cantando o Hino Nacional. Depois entrávamos em sala, de forma ordenada, marchando feito soldados em miniatura. Por fim, levantávamos em sinal de respeito, esperando pela entrada da professora, uma senhora rabugenta e conservadora." ... "Nunca vi a utilizar tal régua, mas a ameaça de usá-la era suficiente para manter uma sombra temerosa sobre os estudantes, como se uma punição estivesse sempre à espera. Medo que se somava a outros, ainda maiores, como a de se tornar a vítima das brincadeiras cruéis dos meninos mais violentos, sempre a espreita para exercitarem sua valentia...”. Hoje a coisa mudou, né. Melhorou bastante, a repressão é exercida subjetivamente, muitas vezes, auto imposta. Minha professora não tinha régua, mas tinha sua postura inflexível apoiada no conteúdo dos livros disponibilizados pelo Estado. Algo que nunca mudou — e quando vai mudar? — são os valentões da escola que se aproveitam da aparência frágil de colegas para exercer poder. Eu era um desses coleguinhas. Cantávamos para merendar: CO-LE-GUI-NHA, CO-LE-GUI-NHA, vou comer, vou comer pra ficar fortinho, pra ficar fortinho, e crescer, e crescer. 14


Na minha cabecinha, a música poderia ser cantada assim, inconscientemente: CO-LE-GUI-NHA, CO-LE-GUI-NHA, eu vou TE comer, vou TE comer, pra ficar fortinho e crescer. O coleguinha mais fraco é presa do coleguinha mais forte. Eu era muito magrinho, branquinho, baixinho e calado. Alvo certo dos "valentões". Tinha medo de apanhar, tinha medo de falar, pois eles eram sempre os saudáveis, os participativos, e brincadeiras desse tipo são normais, estão enraizadas na cultura heteronormativa. Já ouvi pais ao ver seu filho tristonho porque tinha apanhado, dizer: — E você fez o quê? Tem que bater também! TEM QUE BATER. Aposto que você também já ouviu isso. Eu cresci amigo da parede. Eu cresci pelos cantos — e pra dentro —, não me faço de vítima. Toda minha experiência me rasgou, me marcou, me conscientizou, e me costuro desde então com muito amor. Vou te contar um segredo. CHIIIU! Mais respeito, se não, não conto. Tenho vergonha. Foi humilhante... Estava na 5ª série, era aula de Educação Física, disciplina que eu me dava mal. Mas estávamos praticando corrida. Em correr eu era bom, me dava à sensação de liberdade. Caso algum babaca quisesse me bater, eu corria. Corria também porque achava que era assim que os humanos podiam voar. — Mas correr!? Correr é coisa de covarde! Já ouviu isso também. Veja como meu relato está cheio de expressões arraigadas dentro de um contexto machista. Pronto, explicitei. Agora, vamos para a parte que interessa: a história. Tínhamos uma prova, e essa seria uma competição de corrida. Sabia que poderia ganhar, ia ser a primeira vez que me destacava nos exercícios. Sabe... eu era sempre um dos últimos escolhidos para os grupos de qualquer coisa que seja. E dessa vez poderia mostrar um pouco de mim. E fiz. Ganhei em 3º lugar. Meeeu fiquei tão feliz, mas tão feliz, que não sei o que fiz para TODO O MUNDO começar a rir da minha cara e me chamar de não sei o que. Não podia ouvir, fiquei aturdido. Eu só fui espontâneo, e paguei minha "própria honra" com isso. Sabe o que é a sala 15


inteira GARGALHAR alto e APONTAR O DEDO e repetir diversas vezes: MULHERZINHA, GAY, VIADO, FRUTINHA, BAITOLA. Ou sei lá o que, não lembro exatamente o termo empregado — o povo é tão criativo para criar expressões pejorativas. Fiquei vermelho de raiva, confuso, com medo, com vergonha, triste, estremeci. Queria a morte de todos eles. A professora sem graça, não fez nada, gritou para cessar o agito daqueles que me ofendiam de não sei o que. O que é ser essa coisa? Gay! Porque eu tenho que ser gay, eu sou gay? E porque isso assim tão cruel? Por ser gay? Na minha cabeça, só havia: ??????????????????????????????????????????????????????????????????? Não sei como não saí correndo. Aguentei firme como o macho deve aguentar. Rígido, duro, sem demonstrar sentimento. Mas meus olhos ardiam e minha garganta presa de ódio queria gritar, minhas mãos queriam acabar com minha própria vida. Fui para casa ciente que como minha professora não fez nada, minha família também não faria. Eu era o errado. Quem poderia entender? É algo tão "normal". Esse tipo de cena já havia se repetido na minha vida, se repetiu muitas vezes mais lá na frente. Comigo e com tantos outros. E se repetirá muitas vezes mais, infelizmente. Em casa chorei uma vida — vida pequena e abundante — na companhia só dos pontos de interrogação. Nessa cena que descrevi houve agressores e testemunhas. Todo mundo viu, todo mundo vê e ninguém quer sofrer, ninguém quer ser rebaixado à "merda". Assim, através dessas experiências que se repetem enquanto você lê, é que o sistema cultural controla seus desejos. Porque quando o governo controla o que você faz entre quatro paredes, é muito mais fácil manipular tua conduta em sociedade. Essa cena se repetiu muitas vezes comigo, e vi repetir com outras pessoas. Lembra-se de sofrer bullying? Já viu alguém sofrer bullying, leitor? Faça um esforço para recordar e lembrar, e se tiver uma gota de compaixão e sensatez perceberá o quanto o sentimento de desamparo é desolador. Mesmo que você seja heterossexual, você se reafirmou heterossexual para não ser alvo de agressão, para não ir contra a "natureza". Mas trair o íntimo, não é trair a natureza?!?!?!

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As plumas


Vivi: — Tem uma frase que gosto muito da Marylin Monroe: “Não ligo de viver no mundo de um homem, desde que eu possa ser uma mulher nele”. — Há alguma personalidade transexual que você se espelha? - Eu perguntei. — Eu, assim, eu não sei as outras, mas eu acho que toda trans se espelha numa mulher. Eu gosto muito da Nina Dobrev, uma atriz internacional. Meu sobrenome no Facebook é por causa de uma personagem dela: a Katerine Petrova Pierce. Admiro muito Cleópatra, ela soube dominar o Egito. Mais alguma pergunta? — Você pode começar a falar da sua infância, como era sua relação com seus amigos. Havia mais amigos meninos ou meninas, como era seu comportamento... — Eu sempre tive mais amiga. Na escola, na rua, eu sempre gostei de brincar de casinha, nunca gostei de brincar de bola, nunca gostei de brincar com os garotos, sempre gostei de brincar de boneca. E... ah, sempre sofria bulling desde muito pequena. As pessoas faziam piadinhas, tipo: bichinha, boiola, mulherzinha, e por aí vai. Eu não entendia o porque eles falavam isso de mim. Eh... eu achava que era diferente, entendeu, dos outros garotos por não ter os mesmos gostos que eles. Eu sentia essa diferença por causa das brincadeiras. Eles brincavam de bolinha de gude, eu detestava. Gostava mesmo era de pegar as bonecas da minha irmã. O nome de Vivi é Viviane Natacha Alves Caetano. Nasceu em 21 de outubro de 1996. Neste ano de 2014 ela completará a maioridade e terminará o Ensino Básico. Caso você tenha se perguntado qual o nome que consta no RG dela, eu sei, mas não vou falar. Ela não gosta muito. Não gosta nada. Também não gosta de ver suas fotos do passado. Eu vi uma, uma única que fica na estante da sala. A foto está no porta-retratos e carrega um pouco da sua história. Congela o tempo em sua infância quando ainda era o bebezinho da mamãe. Ela não implica daquela foto estar ali, pois não denuncia sua identidade de gênero que a caracterizaram quando nasceu. Na imagem parece um ursinho fofinho e assexuado. O ursinho cresceu sempre a carregar dúvidas e mais dúvidas em sua cabeça. Quando era criança não sabia que poderia vir a se tornar mulher, isso não era uma possibilidade. Não sabia que existiam as transexuais ou a transgeneridade. Só sentia uma aflição, um desajuste, que na escola e na rua, as pessoas insistiam em exacerbar. Tinha conhecimento da homossexualidade. Mas ela já sentia que tinha algo a mais. Não sabia o que era. Seu vocabulário não encontrava expressão para o que se passava no seu íntimo. Desde pequena ser tratada no masculino não exprimia o que nela 18


era um “algo” que se passava, e ao mesmo tempo, permanecia. Algo que ninguém a contou, pelo contrário, esconderam, ou então, explicitaram de forma vexatória. Você sabe, não é leitor, deve ter visto muitas cenas dessa: reprimir pelo condicionamento ou condenação. Não é preciso dizer que sofrer bulling era e é uma rotina em sua vida. Muitas vezes, Vivi corria ao se deparar com os xingamentos da sala inteira que gritava e ria do seu jeito de ser. Fugia da sala. Sua professora nunca fez nada efetivamente para evitar tal situação. Isso ocorre até hoje, é menos regular, em menos intensidade. Parece que a lição de sua história é aprender a lidar com o outro, um estranho que não a conhece, e sem motivos pode vir a agredi-la. Ela cresce e aprende a não se auto anular em vista do julgamento do outro. Hoje com 1.78 de altura, e quilos de vaidade - disse que não sabe seu peso, eu insisti, mas realmente ela diz não saber - mora com sua mãe, única irmã— alguns anos mais velha —, a cadela Mel, e o gato Salem. Seu pai mora em Suzano. Eles se falam raramente pelo telefone. “Umas duas ou três vezes esse ano, no máximo”, disse se fazendo de indiferente. Seus pais se separaram ela ainda não tinha nascido, mas ele acompanhou a vida de sua filha até seus dois anos de idade. Sobre a transformação dela, “para ele tanto faz, não critica, nem admira, também não me faz falta, assim como ele me vê eu o vejo: é um estranho”. Viviane gosta de cozinhar, sobretudo doces, sua paixão. Adora fazer cookies, brownies, bolos, mas sabe fazer arroz, feijão e tudo mais. Esse ano desistiu do curso de cozinha que fazia na ETEC (Escola Técnica Estadual de São Paulo) da cidade. Parou no primeiro módulo porque queria fazer algo voltado para doces, embora prepare o almoço em sua casa algumas vezes, gosta mesmo é da comida de sua mãe. Viviane e eu fizemos ballet juntos em 2012. Não tínhamos muito contato, mas encaramos e dividimos o mesmo palco, e isso torna as pessoas mais próximas. Apresentamos “O Guarani”, éramos índios de peito nu e uma tanga cor da pele, e com a pele pintada e uns penduricalhos fomos para a cena. Não atingimos o objetivo da professora de viver o índio. Nas aulas de ballet ela era um rapaz calado e compenetrado nos exercícios. Sua alma feminina já, claramente, desenhava seu corpo com gestos delicados. Usava roupas curtas, se preocupava muito com o cabelo, se olhava muito no espelho, tinha vergonha de tirar a camisa, e às vezes, reclamava de sua forma física. 19


Foi uma surpresa quando vi que ela era ela. Eu a vi toda produzida na rua. Uaaaau que mulher linda! Antes sempre sentia Viviane desajustada, acuada, na defensiva. Depois de iniciar sua transformação conheci uma mulher mais segura, e satisfeita consigo mesma. Quando decidi escrever este livro pensei em fazer uma reportagem sobre ela. Será que aceita? Meio desconfiada, aceitou. Foram meses de conversas rápidas pelo Facebook. Falei sobre a intenção do meu trabalho e como o faria e ela relatou suas inseguranças. Uma vez me procurou por inbox, não estava legal. Queria desistir da escola, não aguentava a agressividade com que foi recebida ao mostrar sua decisão de assumir o que é. Além disso, a escola não a deixava entrar no banheiro feminino, e ir ao banheiro masculino, era — penso eu — como entrar no campo inimigo em clima de guerra. Nós conversamos, e senti uma aproximação positiva em que ambas as partes eram beneficiadas, no sentido, de experiência enriquecedora. Com 11 anos Cookie — apelido que se deu antes de criar seu nome social —, já pedia para a mãe comprar roupas mais justas. “Eu queria usar o que as garotas da minha idade usavam, então sempre preferia algo mais unissex porque tipo, eu sabia que minha família iria me impedir”. Aos 14 anos sua mãe soube que “o filho” que acreditava ter gostava de garotos. Foi quando Cookie ao deixar seu MSN (programa de mensagens instantâneas) aberto deixou espaço para que a mãe lesse uma conversa, “e ela ficou muito looouca”, falou contendo a risada que, sem querer, escapou e veio timidamente. — Ah, tá você falou porque ela perguntou? — Foi. Não tinha como. A conversa que ela viu dava pra saber. Aí eu disse: sou! — E nessa idade você achava que só seria homossexual? — Não. Eu sabia que tinha algo mais. Só que tipo... minha mãe ela... ela sempre foi assim: tá bom se assumiu gay, mas para por aí. Falava: você pode ser gay, mas não precisa se vestir de mulher, não precisa ser extravagante, você pode usar roupa de homem como qualquer outro, porque você é só gay. Só que tipo... ela... ela sabia que isso uma hora ia acontecer. Sabia que eu já tinha uma afinidade por coisas de mulher. Então, pra ela, sei lá, acredito que, me aceitar transexual foi mais rápido do que me 20


aceitar ser gay, porque quando eu assumi que gostava de garoto, ela foi mais dramática, (falou com naturalidade). Não igual agora, por que agora, ela me entende mais, entendeu. — Como foi à aceitação dela quando descobriu que era homossexual? — Ah, foi difícil, foi muito difícil. Ela começou a cortar coisas, que tipo, eu usava, como chapinha. Nessa idade eu já usava maquiagem, mas usava escondido dela, porque ela não gostava. Então sempre foi uma coisa assim: eu saía me maquiava, e chegava de mansinho para lavar o rosto, e ela não perceber. Coisas assim, entendeu. — Vocês discutiam muito? Demais. Ela sempre falava... porque estava percebendo que eu queria mudar, (imita a mãe): ah, você pode ser gay, mas você não precisa, não precisa... avançar mais. Sem a compreensão da família, Viviane ia se descobrindo, se revirando, e escondida, se encontrando sem ter com quem conversar sobre sua confusão. Sozinha foi abrindo espaço, e aos poucos conquistou a si mesma, e assim, vem conquistando a aceitação de seus familiares, colegas da escola, e de estranhos que a “toleram” nas ruas.

— Você tem bastante amigo?

— Não. Nem amizade com gays ou trans. Na verdade eu tive um amigo gay, só que ele me decepcionou muito. (Exaltada) Um dos motivos deu ter parado de falar com ele, foi porque me traiu. Ele falou pra minha mãe que eu comecei a me... hormonizar, falou contra minha vontade. Sem falar que ele contou outros segredos meus para minha mãe que eu não gostei nem um pouco. Desde então eu acho que esse povo... (muda o tom de voz para mais brando) esse povo não, porque são pessoas normais. Mas acho que rola muito inveja, muita inveja, muitas pessoas querendo uma acabar com a outra nesse meio. — Nesse meio, é... GLBT? — É. A gente devia ser mais unido. Existe muito uma querendo acabar com a outra trans, tipo (fala debochada): porque você é mais bonita, porque você é mais feia, porque você tem a bunda maior, ou tem o cabelo grande. (Reflexiva) Tem muito isso. Tem também muita rixa entre gays, porque você tem um anel que brilha, porque você tem status, é mais famoso. Devia ser o contrário, a gente devia ser unido, mas não é não. — Você não tem nenhuma amiga trans? 21


— Não. Assim, eu tenho de: oi e tchau, mas amiga pra contar, não.

Vivi roubou um selinho do coleguinha da creche. Como assim?

— Eu abracei o menino e dei um selinho nele. — (Deduzindo) vocês estavam brincando, não tinha ninguém... — É. Não tinha ninguém. Foi dentro da casinha de madeira da creche. É aqui perto a creche até. (Estávamos na casa dela, no bairro Canto do Mar). (Rimos) — Que romântico! E como foi a reação dele? — Ah, ele não contou pra ninguém. Depois disso eu também já beijei outros garotos na creche. (Rimos) — Mas como que acontecia isso? Você roubava o selinho e eles não falavam nada? — Ah, acontecia! — Você percebia que seu coleguinha queria e... —Ah, tipooo, eu nunca forcei ninguém. — Mas você dava o selinho e saía ou... — Ahan (expressão afirmativa). — E depois já voltou a dar selinho no mesmo menino, ou não? — Já. Em dois que eu sempre dava... Mas então, por isso eu acredito que a homossexualidade não é uma coisa que vira, mas que já nasce. Apesar de se relacionar desde muito nova, ela contou que nunca amou ninguém. Nesse ano se envolveu muito com um homem. Eles chegaram a se relacionar, mas ela não quis mais. Ele não aceita a condição dela. “Falei: eu não quero ser um objeto pra você, pra você me usar e... me dar um fora. Eu quero ter um companheiro. Eu quero ter um companheiro”. 22


“É complicado porque ele liga muito para o que a sociedade pensa. As pessoas podem até falar que não, mas geralmente quando estão namorando pensam mais em status do que amor”. Viviane já, diferente dele, experimentou muitas formas de amor, até chegou a beijar meninas. A primeira vez ela tinha “uns seis anos” e estavam brincando de casinha. A última menina que beijou tinha 12 anos. Nunca sentiu atração, desejo, vontade de ter relação sexual com mulher, tanto que nunca teve. “Foi só uma experiência — a do beijo — e não vai acontecer de novo”. Ela, provavelmente beijou as meninas em busca da heterossexualidade tão exigida. Sua primeira experiência sexual foi cedo. Aconteceu com o vizinho de 14 anos. Eles consideravam-se primos, eram muito amigos. Amizade que nasceu da proximidade de suas famílias. Sempre ficavam juntos. “Eu falava para minha mãe que ia na casa dele jogar vídeo game, ficar no computador, coisas do tipo. Mas pra ter noção... assim, era aquela coisa (fala como se fosse ele): você não fala comigo na escola e nem eu com você porque todo mundo sabe que você é... gosta de homem, entendeu. Então para não misturar as coisas: oi, tchau, a gente só se fala em casa”. Depois de um tempo, o garoto começou a namorar uma menina e os dois se afastaram. É assim até hoje: os homens uma hora se afastam, ou continuam, mas não assumem a relação. “Eu tenho a esperança que não são todos os caras que são desse jeito. Sei de poucos exemplos, mas sei de heterossexuais que assumem o parceiro trans”, frisou o final da frase com entonação esperançosa. Vivi, sabe que é mulher e que tem que aprender a conviver com seu pênis. Dá graças a Deus de ter começado a tomar hormônios, mesmo contra a vontade da mãe que agora pediu — e ela aceitou —para ir ao médico e saber melhor como lidar com seu corpo. Ela não sente aversão ao seu órgão masculino, mas sente sim, certo incômodo e não pratica a masturbação, como muitas transexuais. “Eu me sinto chateada por olhar no espelho e ver que não tem uma vagina ali”. Depois que passou a tomar hormônio — ela mesma aplica a injeção intramuscular, pois as farmácias não aplicam sem atestado médico — está mais contente com seu corpo. Com 21 anos Vivi quer já ter feito a cirurgia de transgenitalização para readequação do sexo. Por isso há “uns três meses” começou a fazer terapia com um psicólogo do SUS (Sistema Único de Saúde) através de um encaminhamento da es23


cola. Quando completar 18 anos daqui a alguns meses, ela poderá ser encaminhada para um psiquiatra e psicólogo especializados no assunto para começar o processo — longo — da operação. Por mais que tenha certo receio do que falar ou não ao psicólogo, vê nele uma esperança. Quer colocar silicone nos seios, “no bumbum eu não sei, tenho 108 cm, ainda tô feliz com o tamanho”, expressou contentamento. Tem vontade de tirar a costela e fazer a plástica de feminização do rosto. Viviane acha mais difícil ser transexual na cidade pequena em que nasceu e cresceu. Acha que aqui as pessoas falam muito uns da vida dos outros. “Aqui eu vou ser sempre lembrada como menino, tem muita gente maldosa que faz isso propositalmente”. Ela não tem vergonha de dizer que é transexual, mas é muito mais que isso, e as pessoas sempre param por aí: no pré-julgamento. Quer sair de São Sebastião e ir para um lugar que ninguém a conheça. “Deixar tudo para trás, ter tudo novo, corpo novo, vida nova”, seus olhos brilhavam com a alegria desse sonho. Por mais que seus 18 anos estejam batendo na porta, ela não tem pressa. Considera ser muita responsabilidade que ainda não tem. Tem medo da vida adulta, sair debaixo da saia da mãe e conquistar seu próprio espaço implica no enfrentamento de muitas incertezas, requer muita coragem, e é isso que ela busca: coragem. Foi no caminho “incerto” que ela se descobriu. Desistir da escola é algo que passou em sua cabeça diversas vezes. Houve uma grande discussão em torno se ela poderia ou não usar o banheiro feminino — que usava, até acabar na boca da diretoria. Chorou muitas vezes por causa desse fato, que se desenrolou e não mudou: agora ela pode usar o banheiro dos professores ou o masculino. Após o término dos estudos Cookie quer procurar emprego, e já está ciente da dificuldade que terá que enfrentar. Sabe também que o caminho de muitas transexuais é a prostituição. Ela não quer isso para sua vida. Conversou com a mãe, que não aceitaria, por isso mesmo quer um emprego e mostrar que é uma pessoa com qualidades e defeitos como qualquer outra. Como acaba de iniciar sua transformação ela incomodou muita gente. Acharam estranha sua mudança, no entanto, aos poucos, as pessoas começaram a se acostumar. Já não sofre tanto preconceito na escola, e nem nas ruas, que às vezes, passa 24


despercebida como se fosse uma mulher nascida com vagina. Moça mais introvertida, carrega um ar de timidez em seu olhar que se você olhar ao fundo vê, que feminina e sensual, ela se confronta com ela mesma de forma mais leve. Porque agora sabe quem é — com todas as contradições do ser humano. Sabe que apesar de tudo tem o apoio da mãe e da irmã. Sabe que como ela há muitas, e por isso procura saber das experiências de pessoas que compartilham o mesmo destino: não se trair, e assim, suportar a dor de quem não se aceita, se revolta contra o outro que mostra sua condição limitada pela cultura heteronormativa. Viviane fica muito na internet. Gosta de interagir nas redes sociais. Aos fins de semana não saí com frequência. E para sair demora muito a se arrumar. Gosta de assistir filmes e séries, como Diário de Um vampiro, e ouvir música como as da Lana del Ray. Antes de começar sua transformação, fez ballet, e até chegou a apresentar no teatro a peça “O Guarani”. Fazia um índio, que sem camisa dançava com pudor do próprio corpo de menino. Então, decidiu parar de dançar. Nessa época da transformação não queria — e não quer chamar muita atenção. Não quer ser reconhecida como “a trans”, e sim, ser a mulher que é. Morando numa cidade pequena foi complicado encarar os primeiros olhares distantes, frios, e confinadores. Porque ser gay, tudo bem, desde que seja discreto, mas daí ultrapassar os limites das convenções sociais, é demais! Ela foi e disse: “EU NÃO SOU GAY, SOU HETERO, SOU MULHER E GOSTO DE HOMENS. E HOMENS QUE GOSTAREM DE MIM SERÃO HETEROS PORQUE ESTARÃO SE RELACIONANDO COM UMA MULHER”. Viviane é uma mulher, mesmo singular como todas, compartilha de um desejo comum: ter marido e filhos, uma família para cuidar e ser cuidada.

Devaneio do narrador embebido na reportagem Antes de me tocar, rapaz! Jogue tudo fora: O que aprendeu nas ruas, nas escolas, apenas... esqueça as horas e se perca na luz da lua. E tua boca quente e alma nua

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na noite crua vende os segundos para continuar em mente de frente com, mas... aprender e ensinar antes de tudo, é sentir. Ir de encontro ao coração vão do mundo: verdadeiro e fundo mergulhar nos mistérios da a-cei-ta-ção. meio preso ao chão meio que perto do céu Eu não sou o meio eu não sou aquilo. Sou possível, existo. Se ao me ver parece embaraçoso para você, a mim, normal. Pode doer, e quando dói não há governo que governe. Não há autoridade que martele. Eu sei que a liberdade é bússola, busca, cá aqui assim. 26


Fotos: Arquivo Pessoal

Ela n達o gosta que tirem foto dela, mas gosta de tirar selfie.


Ela, muitas vezes, quando bem produzida, anda na rua como mulher sem olhos alheios para dizer o contrรกrio.


Vivi é romântica, gosta de histórias de amor e quer viver uma.


Postou a foto no Facebook para comemorar um ano de tratamento hormonal.


Manu em seu Colorido Submundo Psicodélico As travestis em sua maioria se prostituem para sobreviver. Por quê? Simples! É fato que a sociedade e seu mercado de trabalho não estão abertos a recebê-las. Sendo assim, seu meio social comum de convivência é o submundo, onde são procuradas e “acolhidas”. Transformam-se e se expressam de forma a incomodar a comunidade civil normatizada. Enfrentam pré-conceito, por agirem corajosamente e assumirem seus desejos. Há homossexuais que acreditam que a postura extravagante daquele que se traveste afeta negativamente a sua imagem. No entanto essas pessoas são sinceras consigo mesmas. Diferentemente de gays enrustidos, "presos no armário”... Ali ficam no escuro, e mal respiram. Muitas vezes, essa gente é de boa educação e poderia influir melhor no combate ao preconceito. Mostrar que o compromisso entre pessoas do mesmo sexo é igual, e ao mesmo tempo singular, como toda relação entre qualquer casal. Se o mercado de trabalho estivesse aberto para empregar um maior número de transformistas será que estariam arriscando suas vidas nas boates e avenidas? Não sei. Acontece que talvez seu papel social seja exatamente este: pertencer ao submundo, pois aí tem seu valor e seu espaço de atuação. Todos os excluídos, vão para esse meio, que, aliás, é procurado por quem os excluem. O submundo: lugar próprio para perversão, transgressão, libertação dos desejos reprimidos... Tudo pode acontecer. É o grito louco dos oprimidos! Hoje se podem notar travestis passeando e desfilando nas ruas. Não só à noite, mas também de dia! Enfrentam seus medos e aos poucos ganham admiradores, ou ao menos, são mais respeitadas, ou melhor, são menos agredidas. Uma minoria que existe e resiste há tempos. Identifica-se a personificação de Deuses e a celebração de cultos a deidades andróginas e travestidas em mitologias antigas. O tempo passa. Elas mostram a cara pintada e se expõem. Haverá o dia em que essas pessoas serão vistas como qualquer outra — de forma que é igual e singular — com coragem e sem receios de mostrarem sua personalidade. Eu já conhecia Manu. Moramos no mesmo bairro desde a infância. Nunca nos falamos. Via passar quando ainda não pensava em ser tratada no feminino, creio eu. Sim, o vi desde pequeno e sempre foi um garoto afeminado. Acompanhei de longe sua transformação. Conforme seu comportamento ficava mais ousado e sem pudor, 31


os vizinhos chocados não falavam de outra coisa. Víamos superficialmente e julgávamos. Sou curioso, e intrigado para discutir sobre temas pouco abordados. Espontaneamente brinco de buscar entender. Decidi ir atrás da Manu que me atendeu gentilmente. Falei com ela algumas vezes antes de marcar uma entrevista formal. Fui numa noite na boate onde trabalha e esclareci sobre minhas intenções e fiz o convite para participar do livro. Tudo certo. Tinha minha personagem para escrever a reportagem, que, aliás, adorou a proposta. Voltei no dia seguinte à tarde para fechar a data do nosso bate papo. Manu não tinha dormido ainda. Seu desgaste era visível: maquiagem borrada, roupa amarrotada, cara amassada e voz rouca. Chegou o dia da entrevista. Queria deixá-la o mais tranquila possível para que pudesse abrir sua mente e seu coração. Do nosso trabalho colher bom fruto: conhecimento. No caderno de anotações havia temas a serem desenvolvidos. Nada de roteiro com perguntas prontas. Deixar o diálogo fluir o mais naturalmente possível era minha intenção. Em minhas mãos um instrumento intimidador: gravador. Esclareci que era para documentar, registrar, assegurar a qualidade da informação. Falei sobre os valores jornalísticos para minha fonte que estava com uma feição de curiosidade positiva, mas com um “pézinho atrás”. Quando perguntei seu nome inteiro, a entrevistada ficou encabulada e perguntou se era mesmo necessário. Expliquei que era preciso. Relutante, consegui que me confessasse seu nome depois dela perceber que a conversa não ia adiante sem essa informação, ainda brincou, “só não vai colocar meu nome na macumba!”. Rimos. Perguntei o porquê eu faria isso, e então me disse amedrontada, “levei um tapa de uma travesti macumbeira uma vez, tenho trauma dessas coisas”. Manuel Quintana Perez de Souza, assim foi registrada quando bebê. Não tem religião, no entanto, acredita em Deus. Sabe que a vida da prostituição não é para sempre, entrou nessa por necessidade. Como ia ser aceita pela sociedade? Questão essa que a perturbava e oprimia seu ser que desde a infância brincava de bonecas e sempre sentiu atração pelo mesmo sexo. Manu é uma jovem de 25 anos. Terminou o ensino básico e pretende futuramente estudar para ser cabeleireira como sua avó. Seus sonhos, segundo ela, não 32


incluem um grande amor, e sim, um homem que a sustente. Todo seu jeito de mulher confunde os homens. Em cima do salto se equilibra melhor que muita madame. Vestidos curtíssimos marcam um corpo nem magro demais, nem gordo. De pele morena, olhos castanhos e cabelo escuro avermelhado pelos ombros, solta uma voz mansa para conseguir o que quer, mas não queiram vê-la irritada. Sem prótese de silicone, disfarça com sutiã de bojo e sabe-se lá o que tem dentro para preencher o vácuo. Vazio esse que existe em toda pessoa que não se sente em si mesma, aflita se procura. Mesmo sem apoio foi corajosa e transformou sua realidade. Doses e mais doses de hormônio feminino intramuscular a ajuda. Consumista assumida adora fazer compras e ir ao cabeleireiro. Precisa se sentir bonita para estar bem e confiante. Trabalha na Rua Amazonas, uma das ruas mais movimentadas da pequena São Sebastião, nas madrugadas de fim de semanas. Aqui funciona a zona da cidade. É onde Manu faz programa e cuida de uma boate. Enfim, lá estava eu na zona para entrevistá-la. Nosso encontro foi num domingo às 14h no seu local de trabalho. Cheguei no horário. Chamei do portão do estabelecimento por seu nome. Ninguém me atendeu. Então, gritei. E a entrevistada apareceu na porta acabada de acordar, descabelada, estava apenas de calcinha e sutiã cor vermelha. Pediu para que eu a esperasse, ia se arrumar e já voltava. Depois de meia hora de espera ela aparece. Com cara de sono, mas com o cabelo bem arrumado e maquiagem leve. Vem em minha direção em cima do salto e vestida com um de seus vestidinhos. Esse era cor e estampa de onça, tão curto e justo que consegui ver as estrias próximas às nádegas que quase ficavam a mostra. Com a disposição de quem pouco dormiu era visível o cansaço em seus olhos ainda baixos e vermelhos. Abriu o portão, e me desejou bom dia. Entramos na boate escura, suas luzes dançantes estavam apagadas e pouco do sol penetrava no espaço. Sentei em um dos sofás velhos da casa. Senti-me a vontade. Estava ansioso para começar o bate papo. Falei tudo que já tinha dito antes, sobre o livro, a proposta, e pedi para que me autorizasse a fazer uso de suas palavras. Manu disse que não tinha nada a esconder. Tenho certeza que o processo de comunicação estabelecido ali fazia minha entrevistada refletir e se questionar. Percebi certo desconforto em relação a alguns questionamentos. Houve momentos pesados na entrevista. Nosso encontro propor33


cionou uma reflexão profunda sobre sua caminhada. Algumas vezes não conseguia se expressar e isso acontecia comigo também. Não queria parecer invasivo, porém, era meu interesse conhecê-la além da linha horizontal. Ela disse que seria sincera. Confirmei nos seus olhos sua afirmação. Só não citaria nome de cliente. Estava nervosa, era visível na sua fala, algumas vezes gaguejou. Natural, falar sobre si é tarefa difícil para muitos — quiçá todos. Quando descobriu que gostava de homens? Foi minha primeira pergunta depois de um bate-papo descontraído. Respirou fundo e começou a falar. Desde criança tinha desejo — reprimido — pelos garotos. Brincava com as meninas e mantinha em segredo seu sentimento por meninos. “Isso não se descobre, acontece naturalmente. Quando percebi já sentia prazer olhando para algum garoto”, contou. Praticou sexo anal pela primeira vez com 17 anos, após três tentativas. “A primeira vez que dei, doeu muito. Ardeu. Eu era garoto ainda e não sabia direito o que era sexo”, reviveu o passado. Sentiu-se desamparada quando sua família descobriu sua sexualidade. — Há! Pra minha família? Foi um choque! A maioria dos meus parentes é evangélica. Meu pai é muito rude, ele não me deixava sair de casa pra nada. Quando descobriram que eu era “homossexual” e tudo, foi... foi bem difícil! Me levaram para o psicólogo. Minha vó queria que eu fosse para igreja. Pensavam que isso era um problema. No final das contas, viram que não tinha jeito. Na adolescência comecei a ter desejos mais assim... gulosos! Meu pai tem uma oficina de carros e eu trabalhava com ele. Até o dia que ele me pegou com um bofe lá, e me expulsou de casa. Manu perdeu sua mãe ainda criança, “é difícil ser gay e não ter uma mãe”, disse com os olhos tristes. E como se não bastasse ainda tinha uma madrasta que não gostava dela. Relata entusiasmadamente sua época de escola, onde em suas palavras, revolucionou a moda gay. Devido seu comportamento extravagante foi vítima de agressão física. — Na época da minha adolescência comecei aflorar mais. Já tinha minhas opiniões. Morava com meu pai e minha madrasta. Quando eles compravam minhas roupas, eu nunca gostava. Guardava na mochila as peças que eu cortava para ficar mais curtas. Antes de chegar à escola passava em algum bar ou restaurante para colocar a roupa que eu mesma estilizava. Minha transição começou por aí, né. Até que uma vez minha madrasta descobriu e me deu uma surra. Com 16 anos ela ganhou de uma amiga sua primeira calça jeans feminina. Começou 34


a passar maquiagem. Descobria-se cada vez mais feminino, transformou-se. Naturalmente foi se tornando uma travesti, assim se sentia bem. “Quando estava maquiada e com roupas curtas me sentia tuuudo! Comecei a me montar antes mesmo de dar pela primeira vez”. Seu primeiro contato com a zona foi como homossexual. Teve medo. Ficou assustado a princípio, entretanto, deslumbrado com a noite quis voltar. — Com meus dezessete anos, e o ensino médio completo, eu já estava quase montada. Achava que estava podendo: trabalhava numa Lan House, e ia para todo lugar, inclusive para o serviço, de shortinhos curto e baby look. Até que o patrão me mandou embora. Minha vó falou para eu colocar uma roupa de homem, fazer um currículo e procurar um emprego. Eu não queria aquilo pra mim. Aí foi quando eu caí na noite. Tinha achado o que queria. Uma fonte de renda onde eu posso ser quem eu sou. Manu caiu na realidade: a sociedade não aceita travestis. E como ia ser aceita se ela mesma ainda não se aceitava. Era tímida e envergonhada. Repetidamente usou a palavra “sofrimento” na nossa conversa para se referir aos seus sentimentos. Emocionava-me à medida que a entrevista ia fluindo numa dinâmica agradável. A entrevistada se entregava e tentava organizar seus pensamentos e lembranças, ao mesmo tempo, em que, dela emergia conteúdos que tinha dificuldade de expressar. Contou extasiada como se encantou com o submundo. — No começo tinha medo de vir para noite. Ficava assustada. Depois que vim pela primeira vez com uma amiga, quis voltar. Passei a frequentar com meus amigos gays. Quando vi já estava enturmada. Virado vício! Não conseguia mais deixar de vir. Aí eu comecei a me prostituir. Muitos de seus amigos se afastaram ao descobrir a mulher que cantava no coração do jovem. A canção vinha gritada. Seu lado feminino queria ser concebido em toda plenitude. O interior transbordante tomou forma exterior. Relembra com tom triste seu início como garota de programa. “Era normal os homens fazerem brincadeiras e as mulheres falarem mal. Eu ficava muito magoada, sem jeito. Não tinha o poder de olhar e encarar”. Com esse relato pude ver uma personalidade tão viva, se enegrecer. Solitária, só queria se resguardar de todo mal que pudesse atingi-la. A humanidade é perturbada pela sua própria memória. Há um fundo em cada ser humano, ninguém quer ver, muito menos, mostrar. Nele emerge a doença e a cura, a ferida e o remédio. “Nesses momentos que eu ficava mal, procurava pensar que não precisava de ninguém só de mim mesma. E assim fui me transformando”. Nesse momento num gesto inconscien35


te ela balançou a cabeça para alterar seu astral melancólico. A travesti se conhece na noite. A mulher de Manu é alimentada nessa pouca luz. Do mundo do sexo sem compromisso, das drogas. Pode até parecer divertido para alguns, mas sua adaptação não foi nada fácil... — Aaii (dolorosa)... No começo eu sofri. Quero ver alguma travesti falar que não sofreu com preconceito. Todas vivem com dificuldade. Eu tinha saído da casa do meu pai. Estava ralando para conseguir me manter. Minha vó não quis me ajudar. Sem a ajuda de ninguém, a vida é muito mais difícil. Foi duro no começo, no entanto, uma coisa eu sempre tive e levo comigo para onde for, é a fé. Mal vestida e não sabendo se comportar direito — na zona, muitas vezes se comportar direito não é relacionado à boa educação, e sim, se portar para não ser ofendida e humilhada, para tanto, dá-se o mesmo tratamento — conheceu uma garota de programa que se tornou sua melhor amiga. “Uma puta fina, de luxo e experiente”. Que a ensinou travestir-se melhor e a lidar com a clientela. Hoje essa amiga não faz mais programa. Mora em São José dos Campos e se casou com um cliente. Manu sabe que a vida da prostituição não dura por muito tempo. Uma hora, mais cedo ou mais tarde, terá que ganhar dinheiro de outra forma, e não será como um homem de família. Quer ser cabeleireira, porque acredita ser um ramo que pode ser mais aceita. Apesar de querer um cara que a “banque” e dizer que os homens não prestam, após perguntar-se a si, respondeu-me que sim, que largaria a vida da noite por amor. E afirma, “e quem é que não se sente carente nesse mundo!?”. Seu pai a proibia de sair, deixando-a triste e irritada, mas contrariada, o obedecia. Agora que está liberta dos julgamentos alheios, só quer aproveitar. Quer que sua cidade a conheça e a respeite como ela é. Acha que está cedo para largar a prostituição e quando parar será definitivo. Quer aproveitar a juventude para ganhar dinheiro. Sonha em viajar pelo mundo, mas sente medo. Manu tem planos de colocar prótese de silicone nos seios no ano que vem. O que a atrapalha é a dificuldade de juntar dinheiro. “Ser travesti gasta muito, buscamos a beleza, temos que cuidar da pele e estar bem vestida”. Ela gosta de uma boa comida e não gosta de andar a pé, o que é compreensível, já que a qualquer momento pode 36


sofrer agressão. Mora e arca com suas despesas, sozinha. Seu círculo social são as pessoas que frequentam a zona. “Tenho poucos amigos, não se pode confiar nas pessoas. Quando você menos espera leva uma facada nas costas. Aqui é cada um por si, Deus por todos”. Ela diz ter conquistado respeito na zona, e isso despertou muita inveja, mas não se importa, apenas ignora os invejosos. Falou com satisfação, que as prostitutas ficam loucas quando o homem a prefere. Comporta-se como menina mulher, inocente e sapeca, como o cliente quiser. Sua gargalhada ecoou no espaço. Reflete e concluí, “me respeitam na minha frente porque trabalho duro. Não estou aqui só pra curtir, pra ‘noia’ — palavra pejorativa usada para caracterizar usuário de drogas — sei que por traz falam mal. Normal”. Manu dá valor para o que conquistou. Gosta de “curtir”, mas “dá duro no serviço”. Hoje trabalha numa boate, o que é mais seguro e lucrativo, pois também é balconista. Mas já correu perigos, como trabalhar em avenidas. Ela me falava sobre seu trabalho enquanto preparava macarronada com molho vermelho acompanhado de calabresa em rodelas. Nossa entrevista começou na pista e depois fomos para a cozinha da boate. — Como decidi o preço do programa? — Vendo meu corpo, e isso é meu ganha pão. Tenho pensamento de puta: gosto de dinheiro! Aqui não tem preço fixo. Eu já fui por 800 reais. 1.200 foi meu máximo. E já fui por 30 reais. Varia. Eu tô aqui pra ganhar dinheiro. O que eu puder arrancar do cara eu pego. Se o cara só tiver trinta, eu arranco os trinta. Agora, se o cara tiver mentindo e tiver com a carteira cheia eu vou arrancar o que tiver na carteira. Agora se o cara tiver falando a verdade e só tiver os trinta reais. Então, triste história. Ela nunca passou necessidade. Mas enfrentou batalhas. Dá graças a Deus de estar viva até hoje. E comemora gastando, que é seu maior divertimento. “Aqui é assim: quando tem dinheiro, tem. Quando não tem você tira o suficiente, que tem. Cada dia é um dia”, fala como se a vida fosse uma aventura. Não pensa em ir para fora do país, mas pensa em ir para uma cidade grande. Está esperando colocar a prótese de silicone para poder competir com as outras. Gosta de onde vive: São Sebastião. Aqui se sente mais segura e tem uma boa clientela. “Não saí daqui porque quando não venho trabalhar o patrão liga dizendo que tem um monte de homem atrás de mim”, disse com malícia nos olhar. 37


Quem acha que vai chegar ao íntimo da Manu através do sexo pago está muito enganado. Sei também: uma entrevista não é o suficiente para conhecer uma vida. Fui algumas vezes sem compromisso até a boate e lá ficava observando Manu “atuar”. O segredo dela é dançar! É assim que atiça os pensamentos dos homens no meio da pista: através do movimento sensual. Com seus olhos pequenos e escuros de olhar penetrante, está sempre atenta, apesar de criar ar de descontraída. Empina a bunda, rebola, e requebra até o chão. Quando olha. Olha fixo. Pela sua expressão dá para traduzir seu pensamento: quero sexo, tem dinheiro? Na boate toca de tudo, desde funk até forró. Manu gosta de pop, principalmente Lady Gaga e Britney Spears — ama a música Toxic. É só tocar o cd da Gaga que — se sentindo a la Britney — ia para pista. Sabe que entre tantas pessoas, chama atenção e gosta disso. Acaricia o corpo, passa a mão entre os cabelos. Há aqueles que olham sem medo e os que tentam olhar discretamente a travesti indiscreta. Hoje não tem vergonha de ser ela mesma. “Temos que nos aceitar como somos e usufruir disso”, ergueu o queixo e disse como se sua afirmação fosse óbvia. Um dos últimos questionamentos que propus foi sobre se ela pensava em ser transexual. Pareceu-me não ter uma opinião definida sobre o assunto. Seu raciocínio era quase ilógico. Mas depois disse que não seria uma boa ideia, pois se sente bem com seu órgão masculino, e 80% de seus clientes querem ser penetrados na relação sexual. Tem prazer com seu pênis, entretanto confessa o que não é segredo: na cama gosta de exercer o papel passivo. Enganou muito homem bêbado dizendo que ia penetrar e penetrava um pênis de borracha e não o seu próprio porque esse não enrijecia. Mas com o tempo aprendeu a exercer o papel ativo para garantir seu dinheiro. — Aprendeu como? — A primeira vez que penetrei foi num coroa rico, bonito, charmoso e estava pagando bem. Eu gostei. Depois disso aprendi, que quando poderia estar com alguém que não me despertasse esse desejo, eu tinha que apelar para as fantasias mais loucas e gostosas da minha cabeça. — Antes do programa esclarece o que faz e o que não faz no sexo? 38


— Eu falo que faço de tudo. Homem que procura travesti é porque se atrai pelo exótico. Não é nada bom começar com restrições se não sai perdendo. No meio das putas tenho que ser melhor que elas. — Rio sonoramente. Manu das vezes que amou, foi correspondida uma única vez. Foi intenso. E como todo amor destruído... Ficou com o coração partido. Pelas palavras que usava para expressar seus sentimentos parecia que seu coração nunca mais se juntara. Pelo seu tom de voz conheci uma menina meiga que espera um grande amor. — Apaixonou-se por algum cliente? — Ah... Não foi cliente. Assim... Ah, a gente é muito carente. Até as pessoas que vivem na noite precisam de carinho. Eu não tive mãe e nunca me senti à vontade com meu pai. Faço muito sexo, mas sou carente. Sempre que um cliente começa a me tocar, a me beijar, sem ir logo à penetração sabe... Quando o homem queria me satisfazer já me derretia toda. No começo era assim, hoje em dia não. Pra mim tudo é a mesma coisa. Se o cliente começa com muito carinho, mando me comer logo — tomou fôlego e continuou — mas já me apaixonei e sofri demais. Foi uma vez também. Uma vez pra nunca mais. Esse amor não agiu reciprocamente. Pegou esse tal “ficante” no quarto com outra travesti. Falava enraivecida concentrada em cortar as rodelas de calabresa que logo ia para o óleo quente. "Ele devia gostar de mim. Passava o natal comigo. Ficava comigo... ia sempre me ver. Ai... não era meu namorado, mas era uma coisa a mais. Uma coisa fora da zona. Foi um choque ver ele com outra”. Ficou mal por um tempo, porém se recuperou. Machucou-se muito e ficou cicatriz. “Eu já tinha um trauma dos homens. Meu pai foi minha figura masculina. Eu vi ele trair minha mãe e minha madrasta. Então sempre vejo o homem como uma figura que não presta”, sua voz transmitia amargura. Drogas. Um assunto difícil de ser encarado. Falei com naturalidade, pois ela mesma já havia dito que fazia parte da realidade da zona: — E o contato com as drogas? Como é que é? — Não deu, saiu meio sem jeito. Manu gesticulou a boca sem omitir nenhum som. Lendo os lábios dela, li: eu não uso drogas. Insisti. — Então você não usa drogas? — Ela deu risada e abriu o jogo comigo. Falou que 39


todas as pessoas, em sua grande maioria, que trabalham na noite usam drogas para aguentar a pressão do serviço. Expressa nojo “o público que a gente é obrigada a lidar... Tenho que fazer coisas que eu nunca tinha pensado em fazer, como puxar assunto com um velho horroroso ou bêbado só porque tem dinheiro”. — Você se sente mais confiante quando usa drogas? — É... por atitude. Pra entrar no espírito da rua! Porque esse é o espírito daqui. E assim: é difícil eu andar com as travestis, com o pessoal daqui, sem usar droga (cocaína). Iam me deixar de canto no começo se não usasse — falou com ar de menina inteligente —. Porque a maioria do pessoal aqui se droga, tanto as putas como os clientes. E eu era daquelas que queria me enturmar me juntar, ser amiga de todo mundo. Foi assim que comecei: o povo ia (usar droga) e me chamavam. A gente fazia o negócio (usar a droga: no caso da cocaína é chamado popularmente como “cheirar pó”) e ficava conversando, assim fui me enturmando com o povo. — Agora que está enturmada pensa em parar? Manu gaguejou e se perdeu na fala. Não disse nem que sim e nem que não. Disse que não é igual à antes que se sentia obrigada a usar droga. Usa para "curtir" com os amigos. “Uso quando tô afim. Quando eu quero e quando eu... tenho necessidade”, termina a fala com voz bem baixinha. Percebi que não queria mais tocar no assunto. Era nítida a confusão dela. Estávamos comovidos. Foi como se ela estivesse numa montanha russa — isso simboliza o emaranhado de sensações que estava sentindo. Eu era o "operador" dessa mesma montanha russa. Não queria que o carrinho dela saísse dos trilhos e se machucasse ainda mais. Afirmou que não teve tempo de conhecer o lado romântico da vida. Saiu da casa do pai e caiu na noite. Falou quatro vezes durante a entrevista a palavra “trauma” para se referir o que sentia em relação aos homens. Repetidas vezes falou que no começo foi difícil e que sofreu muito. Teve dificuldade em entender o negócio (prostituição). Ela tinha vergonha, era reprimida e não conseguia se insinuar para o cliente. Não sentia que fazia parte desse cenário. "E homem que vem para zona é porque quer mesmo loucura", deixou claro. A droga foi um meio de ser inserida na zona e se desinibir mais. “O cara que vem pra zona procurar uma travesti puta, é porque gosta do extravagante. É uma fantasia que ele está realizando”. Só não aceita sexo sem o uso de preservativo. Hoje se sente mais experiente. “Os clientes olham pra mim e já veem na minha cara, no meu olho que eu quero realizar a fantasia dele, quero curtir com ele, mas também eu quero dinheiro”. Falou que na zona de São Sebastião como em qualquer zona só 40


não ganha dinheiro quem não quer trabalhar. — Sofreu agressão física no trabalho alguma vez? — (Segundos de silêncio. Manu fala cautelosamente) Olha... Pelo que eu lembre, eu tive sorte em relação a isso. Quase já sofri agressão porque fui para o quarto com o cara e ele achou que eu era mulher, mas não chegou a me bater. Já apanhei de outra travesti. Eu era a novinha que estava chegando e estava saindo com um cliente que costumava sair com ela. Rolou aquele recalque básico que até eu se estivesse na idade dela na rua, no lugar do meu ganha pão, e aparecesse uma novinha folgada pegando o meu cliente. Ficava louca, né. Mas eu tenho muita sorte, me livrei de muitas. Quando eu cheguei na noite, eu tinha uma educação. Mesmo que eu reclame do meu pai, devo agradecer porque ele me pôs e me soltou no mundo. Me criou e fez eu acabar os estudos. Então eu cheguei aqui com uma educação, eu não era do mundo desde pequena. Por isso quando acontece alguma coisa eu consigo dialogar e resolver a situação. O fetiche que mais realiza no quarto é quando os homens pedem para ela introduzir no ânus algum material com o mesmo formato de pênis, tanto nela, quanto no cliente. Uma vez saiu com um casal de “velhos” e o senhor queria que Manu deixasse a senhora, insaciável, satisfeita. Foi o que fez. “Eu sou obrigada a realizar de tudo, né. Hoje em dia não fico mais surpreendida com nada. Eu apenas fecho os olhos e tô lá fina”, falou rindo. É raro ela se excitar quando está com o cliente. Só se o cliente for muito bom. — Já que tá no inferno abraça o capeta. Tem que unir o útil ao agradável. Mas tem vezes que é impossível unir o útil ao agradável. Tem vezes que tenho que sair com um carinha caindo aos pedaços, mas que tá com o bolso cheio da grana. Às vezes, tenho que ir com velho, sentir aquela barba roçando no meu corpo, tendo que fazer cada coisa que eu... que você vê que o cara é pervertido pelas coisas que ele faz. E você tem que aceitar. Ele tá pagando. Mas mesmo assim eu fico com cara fechada, não me solto. Quando eu gosto, eu me solto. Mas quando tenho nojo do cara, que assim... é raro. Mas tem uns caras que são nojentos. Aí fico com a cara fechada. Sou seca. Eu não escondo que sou seca. Mas também quando eu quero ganhar dele mais dinheiro faço de tudo. Eles gostam. A fantasia mais estranha que realizou foi ter que se vestir e imitar uma menininha. "Eu fazia a filha e ele o pai". Contava, mais ou menos, a história com ódio nos olhos — esquivos de vergonha. Suas palavras traziam imagens sujas e pesadas. "Vai entender o ser humano. Você pensa que sua cabeça e a do seu amigo são sujas. Mas têm pessoas que tem a cabeça mais suja ainda”. Para diminuir a energia pesada própria do local — e ainda mais acentuada pela nos41


sa conversa — perguntei: — O que gosta de fazer na cama? — Gosto de fazer sexo com mais de um parceiro, o número ideal é dois, mas já fiz sexo com três ao mesmo tempo. Conheci uma grande pessoa que luta dia a dia por seu espaço. Vive o hoje como se fosse o último. Vive intensamente... Encara seus medos e o preconceito da sociedade com batom vermelho. Busca viver sua vida em harmonia. Terminamos a entrevista e tudo a nossa volta, a boate, a zona, e a cidade, tinham ganhado mais significados através do nosso bate papo que nos fez refletir sobre a capacidade do ser humano de se transformar e ser agente histórico no meio social. Despedimo-nos com um beijo no rosto. E ela foi se preparar para a noite de trabalho.

Fantasias a Parte O corpo é meu território. Desde que eu não te fira. O que te importa se uso calcinha!?

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Fotos: Felipe Riela

Manu ĂŠ tĂ­mida, mas aprendeu a ousar para atrair clientes e ganhar respeito na zona.


Manu n達o gosta de jogar sinuca, mas adora fazer pose de quem joga. Acha sexy.


A boate é a segunda casa dela. Conhece todo mundo e está adaptada ao serviço.


Ela gosta de trabalhar com o pĂşblico. Se sente mais financeiramente estĂĄvel como balconista.


Vida Dura e uma Pele Fina Carlos Augusto Oliveira Nyaradi, o Carlinhos, como é mais conhecido, tem 35 anos e durante toda sua trajetória de vida vem num embate agressivo consigo mesmo quanto a sua identidade. A busca por uma identidade, essa somatória de signos, referências e influências que construímos através do nosso contato com o mundo, marcou profundamente esta personagem tão real. E que caminha numa linha tênue, entre realidade e imaginação, numa expressão de si mesmo desenhada por conflitos carregados desde sua infância. Sua história é marcada pelo preconceito e falta de orientação quanto sua inclinação ao comportarse dentro dos ditames do gênero feminino. Nasceu em Ilhabela, mas veio bebê para São Sebastião. Passou boa parte de sua vida no bairro da Vila Amélia, região central da cidade. Com uma irmã mais nova e um mais novo, Carlinhos foi o que mais deu trabalho para seus pais. Não lembra a idade exatamente, mas lembra muito bem do encantamento pelas transformistas que via no programa do Silvio Santos quando criança. Seu pai ao ver o menino vidrado no programa mudava de canal propositalmente, Carlinhos não falava nada, mas pensava: um dia vou ser igual elas! Desde muito cedo percebeu- se atraído por meninos e teve sua primeira relação sexual com um amigo ainda na infância. Com 15 anos, pela primeira vez, se vestiu de mulher para participar da quadrilha na festa junina da escola. Só dois pares, dos 18, havia trocado os gêneros, o que foi consentido pela diretoria do colégio que avisou o restante dos alunos e viu tudo como uma brincadeira. Conta com brilho nos olhos e um leve sorriso: —A sensação foi ótima, foi magnífico! Eu me senti uma mulher pela metade. — Estoura numa gargalhada penetrante que marca sua personalidade, que oscila entre melancolia e entusiasmo. Continua reflexivo — mas uma mulher completa porque eu estava realizada como uma, e metade, porque faltava o corpo. Foi algo inédito na escola. As pessoas brincavam muito com a gente, acho que acharam a gente até mais bonito. Depois desse episódio na escola Carlinhos passou a se aceitar mais, isso refletia no seu comportamento mais livre que o habitual para as pessoas “quadradas” do sistema heteronormativo. Chocou sua mãe e deixou seus dois irmãos sem palavras ao começar usar shorts jeans justo e curto e uma baby look, às vezes, alisava o cabelo. Incomodou.

Escutava palavras duras em casa. Apanhou muitas vezes de seu pai que dizia 47


preferir ter um filho ladrão, traficante, drogado do que ter um filho gay que ainda se vestia como mulher. Essas brigas deixavam sua mãe preocupada e ocasionavam discussões entre o casal. O adolescente não queria ser motivo de briga e nem queria brigar com ninguém, mas também não podia conter sua disposição natural para o feminino. Fugiu de casa. Sua família acionou a polícia. Agora o garoto estava de volta ao lar. E por determinação da Vara da Infância e Juventude do Fórum fora encaminhado para assistência social e avaliação psicológica. — Minha fuga gerou muito assunto, estava tudo muito difícil. A assistente social e a psicóloga da Vara da Infância e Juventude perguntaram se eu queria ir para Casa da Criança. Eu pensei em ir porque depois que saísse de lá eu ia poder ser o que quisesse. Mas eu não aceitei porque gosto muito da minha mãe, e lá era só uma visita por semana. Depois disso tudo, de escolher ficar em casa, eles passaram a tolerar que eu andasse de shortinho, botinha e baby look, mas mais feminino do que isso, não. Após uma discussão com seu pai, sempre por causa de seu comportamento feminino, saiu e encontrou um amigo que fumava maconha. Foi então que usou drogas pela primeira vez. Passou a sair com os amigos desse amigo, e logo, estava fazendo uso regular de maconha, passando em seguida para outras drogas. Carlinhos, que já carregava o fardo do não entendimento, ao experimentar cocaína e crack se sentiu rejeitado pelos amigos que usavam maconha, porque junto com as drogas pesadas vieram também amizades perigosas. As brigas em casa só faziam com que Carlos Augusto ficasse cada vez mais rebelde. Sua família se sentia envergonhada de suas amizades e pelo seu ritmo de vida noturno. Frequentava a zona da cidade e fez amizades com travestis, traficantes e até gente que praticava pequenos furtos. Quando saia ia antes para casa de um amigo pegar suas roupas femininas. Mas se trocava ao voltar para sua casa, ficava vestido como queriam seus pais. Se prostituiu algumas vezes, mas pelo fato de não poder investir numa figura mais feminina por causa do repúdio de sua família, nunca lucrou muito na noite. Até já quis colocar prótese de silicone e pensou na possibilidade de fazer a cirurgia de transgenitalização (cirurgia de redesignação sexual). Chegou a vender drogas, mas não ficou muito tempo no tráfico. Não se sentia bem. Numa certa manhã, na Avenida da Praia, o pai de Carlinhos passou por ele, mas não 48


o reconheceu. Estava com uma roupa muito bonita e uma peruca com cabelo 100% natural, como relatou a personagem. Geralmente usava shortinho ou saia e uma blusa colada de manga comprida. Não gostava de mostrar os braços que não depilava por causa dos pais. Carlinhos caminhava depois de uma madrugada inteira na zona, sua sorte é que seu pai o viu de costas. Chegou um momento em que não era mais possível esconder. Tinha 17 anos quando o pai ameaçou colocá-lo na rua se soubesse que ele estava metido com drogas. Ficou 21 dias dentro de casa, mas ao saber que o pai tinha saído e a mãe estava ocupada passando roupa, Carlinhos ateou fogo em suas próprias pernas para desespero de todos. Ateou fogo nas pernas porque acreditava que ficaria de cadeira de rodas, e isso sensibilizaria seu pai. Assim fariam um acordo: ele pararia de usar droga, mas ganharia um terreno com um monte de animais: galinhas, coelhos, pintinhos, gansos... Foi enfático ao afirmar que não sabe assegurar com precisão dados objetivos como com quantos anos ocorreu tal e tal fato. Toma mais de cinco remédios diariamente todas as manhãs, tardes e noites. Foi diagnosticado após o acidente com transtorno esquizoafetivo, doença em que há a perda de contato com a realidade típica da esquizofrenia, bem como um transtorno afetivo. Pode ser caracterizada por episódios simultâneos, ou alternados, de transtorno de humor e psicose. Com aproximadamente 22 anos ateou fogo em sua casa e fugiu. O caso foi noticiado no jornal regional do Litoral Norte, o Imprensa Livre. Carlinhos agora estava foragido da polícia. O juiz havia expedido um mandado de prisão. Ele que era inimputável, isto é, não poderia ser responsabilizado por um fato punível, por não ter faculdades mentais e a liberdade necessária para avaliar o ato praticado, estava sob a curatela de sua mãe, ou seja, ela estava incumbida de zelar pelo filho. Com medo que ateasse fogo de novo na casa, e sabendo da recusa de Carlinhos que não queria ser internado numa clínica, não encontrando alternativa, a mãe autorizou sua prisão. Após sua prisão, foi internado algumas vezes, em clínica psiquiátrica e também para recuperação de dependentes químicos, pois a droga agrava seu quadro clínico. Aceitou as internações, não aguentava mais ver sua família sofrer. “Sabia que era um drogado e quando eu voltava para casa depois das noitadas eles davam graças a Deus por eu estar vivo. Caí em mim e percebi que a droga estava me derrubando e que eu podia morrer. Mas é apanhando da vida que se aprende, e eu aprendi muita coisa”, falou respirando profundamente com pesar. 49


— E o que você aprendeu? — Aprendi que com mãe não se brinca. Depois que eu vi ela chorar dizendo pra minha vó e tia que não são elas que passavam pelo o que ela passava de ver o filho volta e meia sendo internado. Ela não chorou por mim. Eu fiz ela chorar. Foi isso que eu entendi, então levei meu tratamento mais a sério. Me internei, novamente. Me internei para tirar a droga do sangue, do organismo, fiquei lá por três meses. — Como você se sentia na clínica? — Eu já tinha ido pra lá várias vezes, mas sempre quando saía, caia em tentação. Eu sentia que tinha que ser mais forte que a vontade de me drogar. Quando não se vê a coisa e tem remédio para tirar a vontade você muda. Se você quiser continuar mudado fora da clínica tem que fazer uma série de tratamentos aqui fora. — Por que, por muitas vezes, mesmo querendo parar de usar droga você não conseguia parar? — Eu usava para anestesiar a dor, fugir da dor, fugir de toda essa situação que vivia: das brigas em casa, de não saber quem eu sou, mas a dor estava sempre ali. Fugia, mas quando voltava via que o problema tava ficando cada vez maior. — Me explica essa dor que você sentia. Dizia que usava droga para anestesiá-la, que dor é essa? — A dor de ter alguém me acusando, falando, e eu não poder me defender porque eu já estava usando droga. A partir do momento que usa perde a razão. A dor de não poder ser como eu queria ser. Acho que as drogas foi consequência da não aceitação da sociedade por eu ser gay e querer me comportar como mulher. Para se travestir, muitas vezes, ia para as cidades vizinhas, Ilhabela ou Caraguatatuba. Não queria confrontar ainda mais as verdades de sua família. Mesmo que quisesse não teria argumentos, não teve estudo, e se refugiou certamente nos braços de sua mãe que cuidou do filho — embora existissem discussões — com todo o afeto que só mãe sabe dar. Não concluiu a escolaridade. Parou na 8ª série pelas complicações de sua doença e, embora tenha trabalhado em uma estamparia e uma lanchonete, não ficou mais de um mês e depois disso não trabalhou mais. Hoje não se traveste mais, disse que não está com o corpo apropriado e, principal50


mente, não quer ver sua mãe triste. “Tenho dó dela porque mãe é... se ela for embora daqui, morrer triste comigo, eu também me mataria”, nesse instante senti o coração do entrevistado profundamente sincero e cheio de amor. Sua voz em tom baixo me comunicava uma dor mansa e delicada. Suas palavras me comoveram de forma indescritível. Senti meus olhos produzirem certa umidade. Era uma noite fresca. Estávamos na Praça do Coreto da Igreja Matriz, lugar em que o entrevistado se sentia a vontade até notar que havia um casal rindo da nossa conversa. Não sei ao certo se estavam rindo da gente, em todo o caso, conforme Carlinhos pediu nos distanciamos um pouco mais. Queria me contar uma historia. Uma aventura. Enquanto contava fiz perguntas por que ele era muito sucinto na conversa. Ele começou: — Há uns quatro anos, falei para minha mãe que minha vida era ser travesti e que eu ia me matar se não fosse uma. Disse que queria ir embora pra Bahia, mas minha mãe não teve dinheiro para eu chegar até lá. — Porque você queria ir pra Bahia? — Porque lá tem todo um movimento, eu gostava de fumar maconha e beber. Mas não tinha dinheiro para ir pra Bahia, então fui para Minas Gerais que dava o dinheiro. Fiquei em Itajubá. — Você viajou com qual objetivo? — Ser travesti e me prostituir. — E você falou pra sua mãe isso? — Falei. Ela comprou todas as roupas que eu queria e sandália de salto alto. Leque e maquiagem para tampar minha perna que é queimada. E fui pra Minas. — E como foi a experiência? — Eu parei de tomar remédio no tempo que fiquei lá. E comecei a beber cerveja todo dia. — Isso se travestindo? — No bar. Eu fiquei num hotel e ia pra um bar. No último dia que eu já tava vindo embora porque estava em depressão sem a mãe, o dinheiro já tava acabando, eu ia ficar com uma mão na frente e outra atrás. Meu tio me mandou dinheiro do hotel, o 51


que sobrou comprei presente para minhas amigas e no dia que tinha que vir embora, já estava com a passagem paga, apareceu um cliente para fazer um programa. Eu não quis porque ia perder a passagem e talvez não aparecesse outro cliente para pagar o hotel que tinha que ficar. Então... eu meio que... desisti dessa ideia e voltei para São Sebastião. — Quanto tempo ficou em Minas? — Cinco ou seis dias. — Então você foi tentar a vida lá e não deu certo... — É, porque eu me achava inferior. Achava que não ia ganhar dinheiro. Só no último dia apareceu um cliente que quis sair comigo, mas eu já tava pronta para vir embora. Pensei em ficar e fazer o programa, mas achei melhor voltar e ficar perto da mãe. O pai de Carlinhos faleceu há alguns anos atrás. Ele sente falta da presença paterna, no entanto, deixou claro que os momentos que o pai estava em casa não eram momentos muito agradáveis. Hoje, ele conta com o carinho da mãe a quem estima muito. Curou-se das drogas por causa dela. Tem dias que ela está brava, mas há dias que os dois brincam juntos. Carlinhos gosta de dançar e cantar, e sua mãe, entra na brincadeira também. Ela aceitou que Carlinhos pegasse uma cadela vira-lata, a Haney, para cuidar, o que o deixou feliz. A mãe já aceitou a natureza íntima do filho, embora não goste que ele saia por aí com vestido, — e nem ele se sente preparado para tal situação, pois acredita que cairia nas drogas novamente — ela, às vezes, o chama de mulher. “Quando estou histérico, é mulher na TPM”, contou soltando sua gargalhada peculiar. Carlinhos gosta mesmo de dançar! Fez questão de fazer um mini show para mim. Dançou uma coreografia de sua autoria com a música Ex My Love da Gaby Amarantos, conhecida por esse hit, cujo estilo musical é o tecnobrega. Ele dança, canta e interpreta despojado como um artista profissional. Com alma solta e leve, mas uma composição gestual mais densa e movimentos marcados e descoordenados vive a cena intensamente. Já fez teatro, mas não ficou muito tempo, inclusive, foi nas aulas que o conheci quando eu tinha 16 anos. Sempre foi divertido e carinhoso. Não sabia sobre sua vida, só sei que conquistava todo mundo com seu jeito brincalhão. Com essa reportagem conheci outro Carlinhos, mais forte e verdadeiro. 52


No seu dia a dia fica mais em casa. Assiste TV Aparecida e Canção Nova com a mãe que é católica, entretanto, não frequenta a igreja. E sozinho, escuta em seu quarto música evangélica. Quando sai, vai passear com a Haney. Eu dei um passeio com os dois. A cadela é bem inquieta, é difícil colocar a coleira nela para sair, se mexe muito e quer morder. Carlinhos até levou uma mordida, mas não se machucou. Ele ainda tem seis periquitos e três canários em casa. Gosta da companhia dos animais, embora tenha confessado que é a mãe que mais cuida dos bichinhos. Sabe nadar, mas pegou medo do mar por causa dos cações. Falaram para ele que tem muito cação na cidade e ele não soube explicar direito, mas agora tem esse medo de entrar no mar, só molha o pé. “Quero levar minha cachorra para molhar o pé também”, disse num estalo como se estivesse encontrado uma ideia ótima. Faz muitos anos que Carlinhos frequenta o Narcóticos Anônimos e o Caps AD (Centro de Apoio Psicossocial – Álcool e Drogas), no entanto, sempre parava o processo de reabilitação e tornava a usar droga. Mas, certa madrugada, na zona, ao flertar acabou por arranjar encrenca. Os amigos do homem com quem flertava queriam bater nele. Ficou assustado. Depois de se salvar da cilada refletiu e chegou à conclusão que não queria mais se arriscar no mundo da noite como travesti. Também, decidiu novamente tentar largar as drogas e se internou mais uma vez. Foi preciso na data de sua última internação: dia oito de outubro de 2013. Saiu por volta de dezembro do mesmo ano, ou em janeiro de 2014, não lembra exatamente. Mas comemorava, pois logo faria um ano longe das drogas. Está determinado. Desde que saiu da clínica leva a sério o tratamento, e se sente muito bem com o apoio do Caps — onde participa de reuniões, faz terapia, tem aula de cerâmica, exercícios físicos, entre outras atividades — e do Narcóticos Anônimos. São lugares que frequenta com regularidade. Já namorou duas vezes com mulheres numa tentativa de negar para si mesmo sua homossexualidade. Não houve relação sexual e duraram poucos meses. Nunca namorou um homem, mas me contou que umas duas vezes levou rapaz de madrugada na sua casa escondido da mãe. Seus relacionamentos com os homens sempre foram efêmeros. Desde que saiu da clínica não se relacionou sexualmente nenhuma vez. Na primeira entrevista disse que tinha se tornado assexuado. Depois o encontrei e tinha mudado 53


de ideia, não era mais, e depois, ficou na dúvida. — Na primeira entrevista disse que tinha se tornado assexuado, como está essa situação? — A situação? — Falou rapidamente perguntando a si e respondendo cautelosamente para ele mesmo procurar se entender. — Parece que não sou assexuado. Eu tenho assim... vontade de ficar com uma pessoa que eu ache bonita. Mas eu olho assim e falo comigo: enquanto não for um que pode me manter e ser só meu, e me manter como um homem manteria uma mulher dentro de casa, ser um homem capaz de fazer uma revolução na minha vida. Porque tem uns que só querem oferecer porcaria e merda. Expliquei que o assexuado é a pessoa que não sente atração sexual, e que no caso dele, confirmado por ele, não era bem assim, pois sentia atração, mas preferiu se abster das práticas sexuais, viver em celibato. Carlinhos acredita que se relacionar agora não seria uma boa decisão. Poderia não conseguir lidar com as emoções e assim, daria chance para o azar e cairia nas drogas. Considera estar muito melhor agora. Se sente vitorioso por ter abandonado as drogas. Antes, qualquer questão mal entendida era pretexto certo para largar o tratamento. Atualmente consegue lidar melhor com suas emoções e se conscientizou da importância de sua cura. “Eu só estou vivo por Deus”, falou com uma firmeza delicada, e devoção. Comemora firme no tratamento e leva uma vida nova, sem noitadas e “amigos” que poderiam levá-lo a se desvirtuar do seu processo de cura da dependência química. Lamenta não poder se travestir, porém, prefere assim, pois evita discussões familiares e conflitos que possa vir provocar no meio social. Mas, no entanto, não abandonou de todo seu impulso para o feminino. Em nossas entrevistas, embora sempre esteja vestido com trajes masculinos, ornou seu cabelo, que quer deixar crescer, com uma tiara prateada e discreta. Não é porque se esforça para manter um comportamento como o determinado pelo conceito de gênero masculino para quem tem o sexo masculino, é que deixa de ser transgênero. Mesmo não assumindo uma postura queer, ainda assim não se identifica de todo com a sua identidade de gênero atribuída na infância. Então, mesmo que em grau menor pode ser considerado transgênero. Durante toda entrevista tive que ficar muito atento para compreender o raciocínio do meu entrevistado, dono de ideias flexíveis. Em certos momentos havia ruídos em nossa comunicação, ele mudava de assunto repentinamente. Para “esgotar” determinada questão e nos ajudar a entender sua história eu fazia uma mesma pergun54


ta de diferentes formas. Ele se confrontava e refletia suas convicções que percebi, nitidamente, que se mistura com a ignorância da maior parte da sociedade quando o assunto é sexualidade e identidade de gênero. Muitas vezes também — transparecendo sua falta de certeza sobre se o que pensa é porque ele mesmo acredita, ou se é fruto da influência dos outros — era monossilábico evitando uma confrontação entre si e a opinião dos outros. Carlinhos disse que se não tivesse experimentado vivenciar sua homossexualidade ainda na infância, talvez hoje pudesse ser heterossexual. Perguntei: — Você acha que se não tivesse experimentado não gostaria, é isso? — Isso. — Você descobriu na infância que era homossexual brincando com o colega? — Isso. — Como é que foi? Você lembra? — Ah, ele falou para eu por nele, depois ele punha em mim, e eu gostei. Agora, não sei se é por isso que sou homossexual, ou se não tivesse acontecido isso eu seria um homem. — Você preferia não ter experimentado? — É. — Mas por quê? — Pooorque — Pronunciou a palavra de forma arrastada procurando encontrar a resposta para a pergunta e expressá-la do melhor jeito. Foi direto. — Toma conta de você. — E não te faz bem? — Às vezes, não é se faz bem ou não, é que é tão julgado, tanto na religião como no dia a dia. — Então preferia não ser homossexual, e deixou de se travestir-se por causa dos julgamentos dos outros? 55


— É. — Respondeu sem titubear. Sobre sua homossexualidade ser resultado de experiências quando ainda muito novo, contrapôs essa ideia ao pensar melhor no assunto. E chegou a conclusão que, talvez, não seja por isso, pois já havia uma identificação com o gênero feminino mesmo antes da experiência homossexual. Exemplo disso era como ficava extasiado ao ver as transformistas no programa do Silvio Santos no SBT. Carlinhos já frequentou igreja evangélica, a filosofia oriental Seicho-No-Ie, e o centro espírita. Hoje não vai a nenhum desses lugares, mas acompanha programas religiosos que passa na TV e escuta música gospel. Tem sonhos clarividentes e prevê determinadas situações sem o seu controle. — Descobriu como? — Isso já vem no meu caminho há muito tempo. Só que agora eu tô descobrindo que tenho que viver minha vida sozinho, sem religião. Tenho um altar em casa e a TV para ver os programas que gosto. Inclusive, num programa católico que eu assisti, dizia: se a pessoa é gay, tudo bem, só que se ela não está no ato com a pessoa do mesmo sexo, ela não tá pecando. Ela estando, tendo uma relação, ela está pecando. Quis saber mais sobre a clarividência e premonição, e sutilmente adentrei no assunto, tão delicado. Mas é algo muito particular que ele não consegue explicar direito, eu percebi, ele não encontrava as palavras e se sentiu desconfortável. Eu compreendi e respeitei sua decisão quando decidiu encerrar o assunto, talvez por pensar na reportagem, por pensar que tanto eu quanto os leitores pudessem fazer uma leitura de sua fala voltada para seu transtorno. Mas não me cabe julgar, e acredito que seu transtorno pode ser sim, talvez, resultado de uma sensibilidade espiritual não desenvolvida, no entanto, também, nesse momento, não cabe entrar no mérito das minhas crenças pessoais. Então quis saber sobre o que pensava sobre o que viu no programa de TV. — Você concorda com o que ouviu no programa? A prática da homossexualidade é pecado? — É pecado. — E aprendeu isso como? 56


— Eu aprendi isso com a vida porque já me estrepei muito, e com a TV. Não com as drogas, mas com o fato de me comportar como feminino. Também, quando eu tinha um homem e depois não tinha mais. Então, eu fui sentindo que o homem que é homem ele quer uma família, e mesmo que faça sexo com outro homem, mas isso não é permitido, é pecado. — Você já amou? — Já amei sim. Eu tinha meio que um relacionamento com um negão de Ilhabela e a nossa história foi muito linda, não vou contar, mas foi um ato muito lindo dele pra mim. E quando ele ficou na rua sem ninguém eu fiquei um tempo com ele, mas depois não quis ficar mais, era muito difícil. Não falou mais nada sobre seu antigo amor. No início de nossa discussão sobre educação sexual nas escolas afirmou que tem que haver mesmo. — Tem que ser ensinado que o menino enfia o negócio na menina e faz criança para ela entender como é que é. Porque, às vezes, você não quer ir para o lado do homossexualismo, mas na brincadeira de moleque o menino gosta, tem muitos que já aconteceram isso. Um gay com um gay nunca vai gerar filho. Adotar é um ato bonito, mas não é sangue do teu sangue. Mas Deus deu o livre arbítrio e eu fiquei nessa vida por muito tempo. Hoje eu sou gay, mas não saio com ninguém. — Explicitou sua opinião conforme o aprendido dentro dos ditames da heronormatividade. Mas, ele mesmo voltou atrás e chegou à conclusão que se deve falar sobre orientação sexual nas escolas. Acha que a falta de orientação é o caminho para as drogas. E que combater o preconceito é o meio para ajudar as pessoas que sofrem quando na verdade não tem opção. Carlinhos quis deixar um recado para pais e jovens. Concentrou-se e começou o discurso sensível: — Queria falar para os pais que não julguem com preconceito seus filhos. Coloquem seus filhos no caminho do bem. Não ajam com desprezo porque a droga e a prostituição são onde eles encontram refúgio. — No ar havia uma atmosfera de compaixão. Estávamos emocionados. Continuou compenetrado em sua mensagem: — Queria pedir para os jovens não usarem droga, nem bebida, porque uma coisa puxa a outra. Tem gente que não tá preparado para beber e não sabe, às vezes, é 57


uma predisposição da família. Também, não se prostituam e nem troquem de parceiro direto. Escolha a pessoa certa para você. Viva o casal. Isso de trocar muito de parceiro, você usa a pessoa. E você tem que amar a pessoa. Você tem que amar as pessoas! Obrigado pelo ensinamento, Carlinhos.

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Ferida, cicatriz Pus fogo no meu corpo para queimar as verdades que dilaceravam minha alma presa num estado lógico confuso à massa batida, fermentada na qual eu me misturo. Sujo, matei os desejos hora regozijando-os, hora negando... Ao final do dia com a cabeça no travesseiro meus anseios não encontram fadas para orientar o voo da borboleta ainda num grosseiro casulo A vida é um espetáculo, minha gente. E a gente paga cena a cena com uma bela gargalhada Mesmo que só reste um coração ferido. No Amor de Jesus Cristo tudo cura!

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Fotos: Felipe Riela

Pedra da Cruz do Pontal, lugar onde Carlinhos gosta de ficar pensando na vida.


A cadela Haney, ĂŠ uma das companhias preferidas de Carlinhos.


Carlinhos passeia com sua cadela Haney quase todos os dias. O passeio faz bem para os dois.


Muitas vezes, ao sair do Caps AD, ele dĂĄ uma passada no pĂ­er para ver o mar e fumar um cigarrinho.


Arte porque faz parte Paulo e eu caminhávamos entre as ruas de Juquehy, bairro na Costa Sul de São Sebastião, onde ele mora há pouco mais de dois anos. Duas meninas vinham em nossa direção, uma delas ao ver Paulo correu até ele toda “serelepe” e o abraçou. Os dois com as mãos em sincronia brincaram: bate, rebate, finge que bate, faz carão! E riram: kkk... Achei engraçado. Foi tudo muito rápido, Paulo trocou algumas palavras com sua pequena fã que foi embora com a amiguinha. João Paulo Bittencourt dos Santos nasceu em quatro de março. Tem 19 anos. É um artista. Um artista amador. Não fez nenhum curso de artes, no entanto, a arte cumpriu seu papel na vida do rapaz que é justamente transformar vidas num processo profundo de aceitação. Ele criou sua única personagem até agora: Titia Paula. Mas Titia Paula pode ser qualquer pessoa, “ela até pode ser uma lagarta qualquer dia desses”, brincou. Nascida de suas conversas em voz alta consigo mesmo, Paulo transformou tudo aquilo que as pessoas falavam dele e o fazia mal, para dizer o contrário. Se o chamaram de feio, sua personagem diria que ele era lindo. Não há uma separação clara e definida de quem é quem. São diferentes sim, por exemplo, ele é tímido, ela é extremamente ousada e desbocada. Quando precisa ser mais desinibido “veste” Titia Paula, por exemplo, na escola, ele é mais Titia Paula do que Paulo. A vida é um palco para ele, um palco que por muitas vezes foi difícil de pisar. Sua criação e atuação como personagem de início era uma brincadeira, não que não seja ainda, no entanto, esse faz de conta mostrou para Paulo que ele poderia sim conseguir a fama que tanto almeja. Fama que conquistou graças à rede de compartilhamento na Internet, pelo site Youtube, onde posta seus vídeos que viraram virais atingindo 48.311 visualizações e levou ao quadro Fenômenos do Youtube, do Programa Eliana, no SBT. Tudo começou com as falações de Paulo para consigo mesmo. “Adoro parar na frente de um espelho e ficar conversando. Eu sempre tenho as respostas pras minhas perguntas. Acho muito engraçado. Também falo um monte de besteiras, coisas que me façam sorrir”. Até que um dia estava com uma câmera fotográfica na mão e resolveu gravar a si. Paulo nasceu em Salvador, Bahia, mas aos 13 anos morou alguns meses com sua irmã no Rio de Janeiro. Foi nessa fase que se filmou pela primeira vez. Aproveitou a parede rosa, o vestido rosa, e de repente... Play! Assim. Simples, assim. Porque segundo o provérbio popular: baiano não nasce, estreia! Ele dançou, “nem era uma dança, era uma loucura, coloquei uma música da Beyon64


cé, uma que o clipe é todo rosa, sabe?”. Mas nem tudo é rosa, não é verdade. O que é a cor rosa para o menino? Fiquei intrigado não pelo fato dele ter feito o vídeo, mas postado. — O que te fez colocar o vídeo na internet? — Ha! Tinha webcam, tinha internet... Tinha tudo ali, então botei. — Rimos muito. Eu continuei: —Mas alguém viu esse vídeo? — Esse vídeo teve mais ou menos 20 mil visualizações. Minha irmã viu por isso foi à primeira da família que soube que eu era gay. Mas o que mais me chocou foram os comentários do pessoal, eles acabavam comigo. Achava engraçado as pessoas falarem tudo aquilo de mim sem nem me conhecer. Eu dava muita risada. Depois desse vídeo ele só viria a gravar outro já em São Sebastião, que foi onde a Titia Paula nasceu. Paulo sempre foi um menino afeminado. “Desde muito cedo. Tenho imagem na cabeça de mim na casa da minha sobrinha brincando com as bonecas e as meninas, pegava a Barbie e ficava fazendo penteado”. Ele sempre foi o “viadinho” do bairro. Só aceitou sua homossexualidade com 18 anos — isso faz um ano — hoje tem 19, e acredita que a demora em se aceitar vem dessa “zoação” toda que sofria e o fazia acumular raiva em seu coração. O coração de um ser humano. De um cidadão que desde a infância trabalhou duro para ajudar em casa. Aos nove anos Paulo foi a São Paulo morar com o pai que tinha ido para a "cidade das oportunidades" buscar melhores condições. Mas antes disso, aos sete anos, vendo que seu pai mandava pouco dinheiro, o menino se viu na obrigação de trabalhar para ajudar a mãe. "Comecei a vender produtos de limpeza para uma amiga dela. Eu ganhava um real por dia. Passava o dia inteiro no sol para vender os produtos e achava aquilo o máximo. Eu dava o dinheiro para minha mãe e ficava muito feliz". Já em São Paulo conseguiu um emprego numa farmácia com 14 anos. Mentiu sua idade para conseguir a vaga, disse que tinha 16. "Hoje, pensando, acho que a dona da farmácia sabia que eu tinha menos de 16, acho que dava pra perceber, acho". Nessa fase Paulo já pensava em como seria sua primeira vez, o que acabou por 65


acontecer com seu colega de serviço, o farmacêutico. A experiência não foi nada boa. Depois da relação sexual o farmacêutico começou a ignorá-lo. Sua voz transpareceu ressentimento. Batia no meu ouvido com tom amargurado: — Ele começou a me tratar mal depois. Eu discuti com ele. Fiquei muito puuuto porque tava me tratando estranho. Daí ele falou que ou ele saía ou eu, falou isso para o patrão. Daí o patrão me mandou embora. Acho que foi uma primeira depressão talvez, que tive. Fiquei com muita raiva. Pensava: e agora como é que vou ajudar em casa? E tipo, pra mim foi horrível transar com ele porque depois eu me senti um lixo. — Sua mãe já sabia que era homossexual nessa fase? — Não, eu ainda não tinha assumido. Eu assumi, justamente, depois que tentei suicídio. — Por quê? — Disse um pouco exagerado, mas tentando manter um tom mediador de jornalista com aquele velho discurso de isenção. Por dentro estava abismado com a notícia da tentativa de tirar sua própria vida, no entanto, não queria exacerbar ainda mais a ferida que havia exposto. — Tentei suicídio nesse mesmo dia que fui mandado embora. Na minha cabeça veio o seguinte: agora eu sou um inútil! Como é que vou poder ajudar em casa!? Sou gay, e não posso ser gay. Então comprei um potinho de chumbinho para matar ratos. Subi em cima da laje e tomei. Antes disso eu avisei, mostrei para um irmão meu e para os vizinhos da parte de cima da casa. Ninguém achou que eu teria coragem. Mas aí eu fui e escrevi uma carta que eu não lembro o conteúdo. Guardei no meu bolso, subi pra laje e tomei do frasco do chumbinho... e o gosto é horrível, (argh! Como se fosse realmente muito ruim o gosto) dói depois, dóóói muito. Fiquei sentindo muitas dores. Hoooras sentindo dores. Pra você ter noção o dia estava claro, e só foram me ver de noite. Eu só tomei porque um vizinho meu tomou, e no tempo que a mulher dele foi ao supermercado e voltou ele tava morto. Então pensei que seria rápido, não queria sofrimento. A dor era tanta pra você ter noção que eu CA-GUE-I (argh!). O menino havia explodido, era uma bomba relógio! Estava cansado de carregar o estigma que desde a infância foi lhe alimentado por terceiros. Não havia pedido para nascer com voz fina e um corpo franzino. Não podia entender porque era alvo de repúdio. Não podia entender o porquê não conseguia ser diferente do que era. Continuou seu relato brutal. — Daí meu irmão do nada resolveu pular lá na laje pra me procurar. Ele já sabia que eu ia tomar, mas ele foi justamente na laje. Que bom. Ele chegou e eu já não enxergava mais. Enxergava só embaçado. Daí eu falava: não dá mais tempo, já era, 66


tipo, não falando, sussurrando mesmo (imita o sussurro): já era não dá mais tempo, acabou. Era muita dor, acho que naquele momento eu queria mesmo morrer. Daí ele correu, e chamou o vizinho. O vizinho me colocou no carro e me levou para o hospital. O médico falou que eu não morri porque tomei de mais (riu). Meu organismo rejeitou, porque eu vomitei muito, todo o tempo. Por isso não morri, porque meu organismo rejeitou. Interessante né? Logo após a recuperação de seu físico foi encaminhado a um acompanhamento psicológico. Foi transferido para outro hospital. No trajeto que percorreu de ambulância esteve na companhia de mais quatro pessoas que tentaram o suicídio. Um deles teve um surto ao passar pelo psicólogo. Foi internado para desespero de Paulo que soube do destino de seu colega e temia acabar do mesmo jeito. Na sessão foi questionado sobre sua vontade de morrer. Ele mentiu, inventou uma história que nem se lembra, só queria sair dali. Disse que não tentaria se matar de novo, mas na verdade ia sim. "Você acredita que fiquei com essa ideia por muito tempo na cabeça, mas dessa vez ia me jogar na frente do metrô, aí não ia ter jeito", falou com uma voz cavernosa e olhar sombrio. Deveria ficar mais alguns meses no tratamento, mas foi só uma vez com a mãe porque era obrigatório, e nas outras vezes que podia ir sozinho, não foi mais. Saia de casa dizendo que ia, mas ia para qualquer outro lugar. Titia Paula faz o público cibernético rir com seus vídeos, todos produções caseiras. O “Conselho Para as Bichas Feias” tem 48.511 visualizações. “Recado pras Recalcadas” tem 42.178 visualizações. E outros tantos com um número menor de visitas. Paulo aprendeu que fazer rir deixa o outro receptivo, é uma ótima estratégia de defesa e de ataque. Se sente realizado quando alguém elogia seu trabalho. Seus vídeos são de humor sarcástico e até assustador. No “Bicha Boa é Bicha Morta” , de 52 segundos, Titia Paula manda um recado para aqueles que fazem maldade com alguma "bicha". Ela fala para essas pessoas aguardarem porque “bicha” boa é “bicha” morta. Sua voz é sinistra, "saiba quérida que se ela está quieta, se ela não está se vingando, aguarde. Bicha viva é bicha má. Aguarde que minha vingança vem a cavalo". “Como Colocar a Camisinha com a Boca”, tem 4.980 visualizações e quase 5 minutos de gravação. Titia Paula com uma peruca e um short jeans curto, uma blusa curta colorida marcando seu corpo magro e comprido, ensina a colocar o preservativo convencionalmente, mas ensina também a colocar com a boca, ela mesma demonstra 67


como. Quer saber, leitor? Entre no youtube. Ela ainda enfatiza: "Em caso de sexo oral você também use a camisinha porque no 'chups' você também pode contrair DST´s (Doenças Sexualmente transmissíveis)". Mesmo fazendo sucesso nas ruas de seu bairro, e até na cidade, e ganhando cada vez mais amigos nas redes sociais chegou uma fase que Paulo desanimou. Passou a se autocriticar e percebeu que seus vídeos faziam as pessoas rirem, mas não tinham muito conteúdo crítico, ou pelo menos, as pessoas não viam dessa forma. Era sempre uma risada vazia. Dois amigos seus o estimularam a continuar com as gravações. Então ele decidiu usar a Titia Paula para protestar. Um vídeo que ganhou bastante repercussão e que abriu seus olhos para fazer de sua personagem uma indagadora do sistema foi um que ela pula no Hospital Municipal de Boiçucanga ainda em construção — mesmo após a data de entrega oficial — e faz um escândalo apontando o descaso do cenário político da cidade perante a saúde dos munícipes da Costa Sul. Com uma camisa do Brasil cortada na parte de baixo deixando sua barriga a mostra, uma peruca vermelha e um shortinho, começa. "22 de janeiro de 2013, data da inauguração do hospital, só que não né viado!"... Ela entra na construção muito longe de acabar, tira a roupa de Titia Paula pega bloco de construção e começa a “trabalhar” indignada. "Vou trabalhar por São Sebastião já que Ernane que é o prefeito não faz nada". Grita, "cadê você Ernane!!! Intimida, "E aí Ernane a gente aguarda uma resposta”, e segue... Esse vídeo foi postado em agosto desse ano, 2014. Recebeu ligações de alguém que não se identificava e pedia para ele tirar o vídeo do ar. A voz falava que sabia onde ele morava e quem era seu pai. Essas ligações não o intimidaram, embora ele tenha ficado receoso. Paulo já organizou manifestação, também fez outro vídeo denunciando mais um compromisso não cumprido pela administração municipal na data planejada, dessa vez se tratava de uma quadra da escola da Costa Sul que já deveria ter sido entregue em 2012 como consta na própria placa situada na construção. "A Titia Paula sempre é uma vilã", explica a tamanha revolta expressa na maioria dos vídeos. — Porque você faz dela uma vilã? — Porque eu sempre gostei mais dos vilões do que dos mocinhos. Tipo eu tô assistindo uma novela: a mocinha é uó, ela é chata, insuportável. E a vilã é ótima, ela 68


solta as melhores frases, dá as melhores risadas. Tipo o que seria de uma novela sem uma vilã? Eu sempre quis ser uma. Adorava a novela “A Usurpadora” (repete o jargão da vilã da novela como se fosse a própria): sou Paola Bracho! Ha ha ha! (Ri sarcasticamente como Paola). Aos 15 anos Paulo namorava uma menina. Ele dizia para si mesmo que era bissexual, "não aceitava que era gay" disse como se ser homossexual fosse um peso. Saia com sua namorada mais falava para mãe que ia à casa do Grégori, seu amigo bem gay do bairro — como ele mesmo definiu — e voltava sempre após o horário determinado pela mãe, 23 horas. Sua intenção era que ela já lidasse com a possibilidade dele ser como Grégori. Para ressaltar as dúvidas dela ele ainda falava sempre, "tenho uma coisa pra te contar", mas nunca dizia o que era. Até que um dia quando ele voltava depois das 11 horas, sua mãe cansada, e já estressada com a demora do filho, explicitou a dúvida, que provavelmente a corroía: "O que você é do Gregory!?". Ele deu muita risada, talvez de nervoso. Havia chegado a hora: "Não tenho nada com o Gregory, mas sou bissexual", quando lançou no ar a palavra BISSEXUAL despertou a fúria de sua mãe. Ela ficou alguns segundos, chocada. "Depois falou que eu não podia ser assim, que eu tinha que ir para a igreja. Falou: ‘Você quer mudar, não quer? Eu sei que você não quer ser assim’. Eu falei: ‘não, eu sou feliz assim, eu não quero mudar’. Ela: ‘Mas não pode tá na bíblia que não pode’. Eu até peguei raiva da bíblia por causa disso. Como assim você vai dizer que não pode???", narrou o diálogo puxando-o da memória. Até seus nove anos Paulo frequentou uma igreja evangélica. Seu pai era pastor, mas largou o ministério. Passou a beber muito e batia na mãe e nele. Hoje o jovem tem certo problema para lembrar-se de compromissos. Acredita que como forma de defesa apagou muitas cenas de sua memória para seu próprio bem, e esse “exercício” de esquecimento, tornou-se hábito. Não lembra porque seu pai o batia. "Mas era por besteiras, ficava nervoso fácil" falou enquanto em seu rosto lia que ele ainda procurava uma causa para as agressões. Hoje ele está desempregado, no entanto, faz "bicos" junto com o pai que é pedreiro. Mas o que gosta mesmo é de trabalhar diretamente com o público. Já trabalhou em pousada e como barman na Costa Sul de São Sebastião. Nesse último Réveillon passou na praia. "Vendi cerveja, água e refrigerante, dava mór show. Comecei muito tímido, daí as pessoas passavam, olhavam e seguiam 69


caminho. Eu ficava muito puto. Aí eu comecei a gritar, mas gritar como? Eu falava alto (imita acentuando ainda mais sua voz naturalmente feminina): ‘Olha a cerveja, água, refrigerante e hot dog!!!’ Pronto. Todo mundo dava risada e vinha. Duas horas depois eu tinha vendido tudo. E consegui curtir muito o ano novo. Usei muita droga, bebi, usei maconha e ‘balinha’, mas não faço uso dessas coisas com frequência”, esclareceu. Gosta do seu pai e sente dó dele. Hoje divide o mesmo teto com uma mulher viciada em crack. Não se dá bem com a madrasta que sempre está sob o efeito da droga e quando não está fica com sinais claros de abstinência. Até chegou a agredir seu marido. Paulo atualmente mora com Diego, seu melhor amigo, numa casa nos fundos da casa onde mora seu pai, sua madrasta e mais dois filhos dela. O relacionamento com a mãe — que reza para esquecer o pai de Paulo, no passado rezava para tê-lo de volta, entretanto viu que não tinha jeito, ele é um homem de muitas mulheres — é bom, mas os dois morando na mesma casa não dá muito certo. Sua mãe que está morando em São Paulo tem medo quando sabe que o filho vai sair. Acha que o mundo está muito perigoso e que pode ser atropelado ou assaltado. Por isso ele decidiu vir morar em São Sebastião. Além do que dava muito trabalho para a mãe que não dormia enquanto o filho não chegasse. "Aqui posso fazer o que quiser. Meu pai nunca se importou mesmo", deu de ombros. Pensava que não ia conseguir ficar longe da capital, mas ama a praia. Gosta de liberdade. Quer viajar e tem sede de conhecer pessoas novas e sentir tudo novo em sua vida. Está pela segunda vez no 2º colegial, também repetiu a 5ª série. Na 5ª série tinha acabado de chegar a São Paulo. Sofria bullying não só por ser feminino, mas também por causa do sotaque nordestino e suas roupas surradas. Nessa fase de sua vida não gostava de falar com pessoas, só sozinho. Tinha um humor depressivo — com ideias de suicídio na cabeça — que perdurou até seus 18 anos, idade que se assumiu gay, abandonando de vez o discurso bissexual. Mas antes de isso acontecer, contou para seu pai que seu estilo de vida não seguia a heteronormatividade. — Como contou para seu pai? — Eu vim pra praia assistir uma chuva de meteoro. Aí eu bebi muito, chapei muito e fui pra casa de um amigo. Aí chegou meu pai lá, isso no dia seguinte, era uma hora da tarde, ele tava puto, fez ooo show lá. Daí cheguei no meu pai muito puto porque ele tinha feito aquele show. E falei que era bissexual. Daí ele fez as malas dele, falou que ia fazer um barraco no meio do mato, mas que não ia morar comigo. Eu fiz pouco caso. Falei: “pode ir, tudo bem, eu posso ficar” (riu). Mas ele não foi embora. E ficou 70


uma semana sem falar comigo. Foi horrível isso (tristonho). Há uns quatro meses Paulo procurou uma psicóloga do Posto de Saúde da Costa Sul. Gosta das sessões e acha que o faz bem. "É como uma melhor amiga que você conta tudo e ela não vai contar nada a ninguém, ainda te aconselha", exemplificou para eu compreender seu relacionamento com a psicóloga. Nossa entrevista aconteceu na costa da praia de Juquehy, lugar preferido do entrevistado. Onde reflete sobre a vida, cria vídeos e fala sozinho sem medo do que vão pensar. Paulo é afrodescendente, alto e magro, tem o cabelo raspado — não completamente —, é espontâneo, seus gestos são delicados e rápidos, gosta de gesticular com as mãos e tem o rosto muito expressivo. Foi para a entrevista com sua blusa preferida, uma cor de rosa, e estava na companhia de Diego que foi embora antes de começar nossa conversa, mas ajudou seu amigo a ajeitar a peruca e arrumar o vestido da Titia Paula para a bateria de fotos. No início da conversa Paulo estava nitidamente nervoso. Sua voz saía meio trêmula e seu corpo vibrava quase imperceptivelmente. Conforme fomos nos conhecendo, ele ficou aparentemente mais calmo, no entanto, gotículas de suor emergiam da bolinha de seu nariz, num dia nublado, e com vento fresco da praia. Tem um jeito em si ambíguo que oscila, e também une um tom dramático e divertido. Coisa de artista. Sabe jogar com o drama, como se a vida fosse assim naturalmente — um drama — que vai suportando, pesando e se desfazendo. Em meio a dificuldades acha diversão. Paulo narrou o que me parece não ser novidade: desde sua infância sofreu bullying por ter características femininas. Nasceu em berço evangélico. Na escola nunca foi o aluno dentro do estereótipo exemplar. Seus irmãos e colegas caçoavam do seu jeito de ser. Lógico que isso o entristecia muito, o confundia porque ele era uma criança, não tinha pedido para nascer feminino, e não sabia como se comportar porque vivia sobre repressão, o que fez reprimir a si. "Na igreja diziam que ser como eu sou hoje, é errado", disse enredando para um diálogo sobre a existência de Deus, frisou “Acredito numa força superior, mas questiono esse Deus que pregam por aí com ódio nos olhos”. Uma vez ele brincava com uma menina de esconde-esconde e roubou um selinho dela. "Contei para minha mãe e ela me bateu, disse que aquilo era errado", falou exprimindo a confusão que faziam na sua cabeça onde tudo parecia ser errado. Mas beijar menina parecia bem menos pior que beijar menino. Sentiu isso na pele. 71


Algum tempo depois, lá pela 2ª, 3ª série, teve sua primeira experiência homoafetiva. Ele ficava trocando olhares com seu colega da turma. Um dia depois da aula os dois foram para trás da escola brincar e deram um selinho. “Não me lembro direito como isso aconteceu, só sei que EXATAMENTE no momento do beijo apareceu alguns meninos e nos pegou no flagra. Pareceu cena de filme. Foi questão de mínimo tempo para que todo mundo do colégio soubesse do beijo. Neguei até a morte”, contou com ar de revelação. Alguns meses atrás uma cena bem parecida aconteceu. Trocava olhares com um colega de sala desde o ano passado, até que se beijaram atrás da escola. Esse rapaz tem namorada e pediu para que não contasse nada a ninguém. Acho que Paulo no fundo gosta dele. Diego disse que é difícil ele “ficar” com alguém. Saem à noite aos finais de semana e... "Acho que eu sofro da síndrome de cinderela. Espero que o cara chegue a mim pra falar que quer. Não eu ir atrás. Que não tá dando certo", disse sorrindo e me fez rir. Rimos. Perguntei se já havia namorado, ele respondeu que não, nunca namorou a sério, só menina no tempo que não se aceitava. É difícil ele gostar de alguém, mas quando gosta, gosta mesmo, e é extremamente ciumento, até com amizades. Semana passada ele saiu com um rapaz só que não foi nada legal. Estava um pouco bêbado e os dois foram para uma rua não movimentada. Ele ficou com medo, sem motivo aparente, no entanto, em sua cabeça só passava um caso noticiado pela mídia e que chocou a sociedade gerando protestos por parte da comunidade LGBT que exigia esclarecimentos quanto à morte do jovem homossexual, João Donati. Esse jovem foi brutalmente assassinado, em Inhumas, Goiânia. A mídia inicialmente divulgou que na boca do corpo do rapaz de 18 anos havia um bilhete, nele estava escrito: "Vamos acabar com essa raça maldita". A existência do bilhete foi negada pela polícia e o caso segue em investigação. Colunista da revista Veja, Rodrigo Costantino, lamentou a morte de João e afirma em seu texto publicado em 13 de setembro de 2014 no site do veículo. "Pelo visto, João foi morto por se relacionar com um total desconhecido em um local perigoso. Talvez um ato irresponsável fruto da promiscuidade maior no mundo gay, que ninguém pode citar para não parecer preconceituoso". Mais um comunicador com sua opinião centrada no senso comum que não reflete profundamente a situação. Como Constantino tem muitos, ele provavelmente nunca ouviu falar de heteronormatividade, heterossexismo e heterossexualidade compulsó72


ria. É mais fácil repetir o discurso predominante que gays são mais promíscuos. Se são, porque são? São mesmos? Enfim, esse caso mexeu tanto com Paulo que ele saiu correndo e no outro dia pensou: "porque eu fiz isso?”. Por quê? Imagine então a violência contra os bons costumes que Paulo já cometeu ao sair umas cinco noites como travesti, em meio há pessoas, independente da sexualidade delas, com o intuito de se divertir, entrando possivelmente num ciclo de autodestruição, exemplo comum, é a utilização de drogas. Imagine então Paulo frequentando por meses a escola também como travesti. Ele que não impôs que ninguém colocasse vestido, e que nem olhassem para seu corpo. Mas ele comete atentado contra deus (com d minúsculo mesmo) e os bons costumes sem nem falar de Deus (com d maiúsculo mesmo). Sem nem ter sido criado dentro dos padrões dos bons costumes, como boa educação e base familiar. Bons costumes, tanto prezado pelo Estado, não se fizeram na vida de Paulo. O Estado não se fez presente na vida desse jovem, de família pobre, negra, marginalizada, logo esquecida pelos pregadores dos bons costumes. Por isso que, enquanto não houver uma política de educação nas famílias e nas escolas, haverá muita promiscuidade na alma de qualquer indivíduo que cresce com medo e sem atenção seja qual rótulo carregue. No Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que segue em vigência, está expresso: "para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil". ... Ao decorrer do extenso documento, já no capítulo VII, o artigo 226 expressa: "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Parece que não é muito bem o caso da família de Paulo e de tantos outros indivíduos, não? 73


Em sua escola e no seio de sua família ele sofreu e sofre preconceito — JURA?? — Quando o Paulo se veste de mulher como ele se sente? — Então, eu me sinto bem. Eu gosto de parar no espelho e ficar me olhando. Se me deixar uma hora, eu vou ficar uma hora me olhando no espelho sempre conversando comigo. Mas eu não sei se tenho coragem de virar travesti, não sei. Não tenho nenhuma vontade de por peito, mas faria show de Drag Queen sem problemas. Ele se inscreveu no quadro do Programa da Eliana. Já tinha esquecido isso quando recebeu uma ligação da produção. Disseram que ligariam para confirmar sua participação e não ligaram. "Daí entrei no twitter falei um monte pro diretor do programa. No outro dia a produção me ligou e me disse: o que você tá fazendo Titia Paula? Aí eles confirmaram, e disseram que só estavam escolhendo o vídeo”, explicou. — E como que foi a gravação? — Foi no começo desse ano. Estava muito tenso. Você não sabe qual a pergunta que a Eliana ia fazer em momento algum, não tem tipo, uma preparação. Ela pergunta o que ela quiser, o jurado pergunta o que quiser e você tem que fazer alguma coisa lá na hora. Eu sou tímido então eu tentei no máximo driblar isso. Todo mundo gostou, mas eu não gostei porque o vídeo que eles escolheram eu não gosto. Agora ele tem o contato do programa e pode ir uma vez por ano segundo regulamento do quadro. Está super animado e quer produzir muitos vídeos para ter um bem legal e ir de novo à Eliana. — Qual é seu maior sonho? — Ir à lua. Eu tenho muita vontade ir à lua, que ousado, né. Eu amo olhar o céu, amo de paixão. Fico com dor no pescoço de tanto olhar pra cima esperando cair uma estrela cadente. Eu peguei esse costume aqui, de vir na praia e ficar olhando pro céu. É liiindo porque quando a noite tá completamente limpa é muita estrela. E estrelas cadentes. Eu sempre faço um escândalo, mas não é porque eu quero, é porque eu tô assim olhando e cai uma. Eu fico tão maravilhado que eu grito e pulo. Daí tem uma pessoa assim do lado tipo: “você nunca viu uma estrela cadente?”. Mas eu fico fora de controle (sorriu com ar de inocência). Também sonho em dar uma casa pra minha mãe, e ter uma casa própria logo. Mas profissionalmente: eu queria trabalhar na TV, ser ator ou apresentador. Paulo quer ser livre, pode?

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1, 2, 3, gravando Vesti uma personagem para rir das amarguras e dançar sem censura. Criei coragem para enfrentar as ruas e preencher a lacuna do meu coração selvagem e fundo. Quem sabe não é brincando a melhor forma de enfrentar o escuro. Quem sabe não é se reinventando a melhor forma de se encontrar no mundo.

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Fotos: Felipe Riela

Paulo gosta de ficar nessa pedra, ĂŠ onde reflete sobre a vida e toma decisĂľes.


Gosta de se vestir como mulher e estar perto da natureza. Se sente livre.


Em momentos de introspecção, Paulo pensa muito em Titia Paula, tão presente em sua vida.


Em meio as pedras, Titia Paula encontrou uma rosa e n達o perdeu a oportunidade de fazer pose com ela.


Lutas, Escolhas e um Amor Laysa Minnely, 34 anos, nasceu Rodrigo, mas não se reconhecia como homem. Se vestir como um homem, trabalhar como um homem, a incomodava, ou seja, o papel que lhe fora atribuído na infância a partir de sua realidade física não comportava suas necessidades íntimas. Ela simplesmente não conseguiu reproduzir o comportamento que sua educação havia condicionado. Logo no início da entrevista quis saber como ela se enxergava, perguntei: — Você se considera transexual ou travesti? — Travesti. Já mudei o corpo. Tem uns seis anos que estou mudando o corpo. Tomo hormônio e coloquei silicone nos seios. Mas eu não me considero uma transexual. As pessoas dificultam esse entendimento hoje em dia e não conseguem classificar. Muitos acabam julgando gays como travestis, travestis como transexuais, e existe certa diferença. Então, eu classifico transexual como uma mudança completa e eu ainda não cheguei a fazer isso. Pretendo. Hoje em dia me classifico como travesti mesmo. Me classifico como travesti porque ainda não fiz a mudança de sexo. Mas quanto à feminilidade tenho todo o perfil. Laysa é transexual. É muito comum, que nas ruas o público faça essa diferenciação entre travestis e transexuais pela intervenção cirúrgica: fez a cirurgia de transgenitalização é transexual, se não, não é, logo, não é completamente mulher. O senso comum propaga a ideia — equivocada — que a identidade de gênero está atrelada ao sexo do indivíduo. Para mim, e estudiosos do campo, chega a ser engraçado você ser definido e limitado pelo seu órgão genital sabendo das possibilidades inalcançáveis da mente. Alguns médicos cirurgiões costumam disseminar essa diferenciação da identidade de gênero pela “mudança” de sexo, no entanto, sociólogos, psicólogos e psiquiatras, acreditam que a questão está mais na cabeça. O transexual feminino, aquele que nasceu menino, mas sente e pensa como mulher, é uma mulher, independente do órgão e orientação sexual. Minha personagem é uma transexual porque rejeitou todo o estereótipo masculino. Ela, de natureza introspectiva, com voz suave e tom explicativo coerente aos seus gestos comedidos, com as pernas cruzadas e, logo após, passar as mãos entre os cabelos, educadamente, perguntou se eu me importava que acendesse um cigarro, disse-lhe que não. Delicada pôs fogo no palito que contém mais de 4.700 substâncias tóxicas. Deu o primeiro trago, soltou a fumaça para o alto de modo que não viesse em minha direção. E começou a falar sobre as dificuldades que superou para fazer sua transformação. 80


— Nasci e cresci aqui na Topolândia. Sofri muito no início, a cidade é pequena, e as pessoas estavam acostumadas a me verem vestida de homem, trabalhar como homem. Aí quando eu comecei a encarar minha realidade interior, comecei a me sentir constrangida com as roupas masculinas. — As roupas masculinas... —É. As roupas de homem começaram a me incomodar muito. Aí eu comecei a usar uma coisa aqui e outra ali, feminina. Já sofria preconceito antes, mas depois que comecei a assumir minha feminilidade o preconceito aumentou. Só que, até então, eu não tinha mudado o corpo. Estava indo devagar para ver como a sociedade ia encarar. Até que decidi tomar hormônio escondido da minha família. Depois de seis meses de tratamento hormonal sem consulta médica, minha família começou a notar as transformações no meu corpo. De repente, caí em depressão. Me senti desrespeitada e não aguentava a pressão de todo mundo fazendo piadinhas ou críticas duras sobre mim. Desisti da ideia, parei de tomar hormônios e cortei meu cabelo que já estava grande. Consegui um emprego no Fórum de Ilhabela, fazia serviços administrativos, e fiquei lá por um ano. Só que o desejo de ser eu mesma continuava. Comecei a trabalhar num escritório de advocacia, mas o modo masculino continuava a me incomodar. Me deixava bastante angustiada porque não era aquilo que queria pra mim. Laysa me contava sua história sem traços de grandes traumas. Narrava como uma mulher vitoriosa, embora tenha se machucado muito até se aceitar. Hoje é agradecida porque durante sua trajetória descobriu uma força que reverberava de dentro dela e mostrava o caminho para descobrir sua identidade. Seguiu a luz no fim do túnel: — O que eu acabei fazendo foi desistir de lutar comigo mesma e falei: preciso procurar uma área em que eu possa trabalhar independente da sociedade aceitar ou não. Uma área que sei que é mais fácil pra conseguir um emprego. Então, decidi ser cabeleireira, assim poderia trabalhar por conta própria. Essa foi a minha ideia, porque, até então, eu achava que ninguém ia me aceitar. A entrevistada considera que por São Sebastião ser uma cidade pequena, é muito difícil o transgênero viver sua transformação. Queria saber sua opinião sobre o assunto e instiguei. — Por quê? — Existem muitas pessoas que tem essa vontade de se travestir, mas não consegue 81


ter essa coragem. Por quê? Por que ela sabe que vai enfrentar uma sociedade que não dá muita chance pra gente... A maioria da população aqui no topo é evangélica. Que mais? Em cidades maiores é mais fácil encontrar trabalho, aqui é bem difícil. Então, a pessoa que quer virar travesti tem que procurar atividades que ela sabe que poderá se manter sem depender de ninguém. Laysa é heterossexual. Porque é uma mulher e se sente atraída por homens. Mas todo transexual quando se defronta com seus desejos sexuais sem assumir sua postura transgênera, se considera homossexual, porque ignora sua identidade de gênero abafada pelo padrão binário, masculino ou feminino, segundo sua conformação genital. Com 14 anos ela começou a ver certas diferenças entre ela e os meninos “comuns”. Em sua rotina as atividades masculinas não a atraíam muito desde sempre. Preferia brincar com as meninas, principalmente de casinha e boneca, assim se sentia à vontade e feliz. Seus pais já foram chamados na escola pelo fato dela, na adolescência, não conseguir desenvolver atividades masculinas, como jogar bola na aula de educação física. Chegou a fazer trabalhos extras para passar de série, pois se recusava a executar os exercícios que exigiam um contato com os meninos como menino. Para ela, ser como era, era algo normal, natural. Não forçava a identificação com as meninas, porém, entre piadinhas e agressões, até físicas, percebeu-se diferente. Preferia considerar ser apenas uma fase. Recusava o confronto com sua realidade íntima. Não queria aceitar o que seus desejos apontavam. Aos 16 anos começou namorar uma menina. Foi seu primeiro relacionamento. Queria tentar ser heterossexual, deveria ser um, era a sua vontade. E o desejo de se vestir como a namorada causava-lhe uma dor lancinante. Não conseguiu se relacionar sexualmente com a menina. Passava mais tempo com as amigas do que com ela. Logo houve o término do breve relacionamento e a perpetuação das dúvidas e medos. Sua tentativa de concretizar as expectativas do gênero masculino fracassara. Os colegas da escola não davam trégua. Já foi trancada na sala algumas vezes, e a intimidavam sem nenhuma provocação de sua parte. Ir à escola era sempre humilhante, e logicamente que isso interferiu em seu processo de aprendizagem, no entanto, ela sempre procurou dar o melhor de si e ignorar ao máximo quem queria ofendê-la. Abraçou, então, uma oportunidade oferecida pelo tio: de ir morar, e trabalhar com 82


ele, como decorador de festas em São Paulo. E aos 17 anos, Laysa, ainda Rodrigo, conheceu a capital e passou a conviver com o tio homossexual. “Viver com ele me fez enxergar meus conflitos com mais naturalidade. Ele levava os amigos em casa e esse contato desertou algo em mim”. Afirmou sem o embaraço dos pensamentos confusos que tomavam sua cabeça, cotidianamente, na adolescência. Foi em São Paulo longe dos olhares de sua família, vizinhos e colegas, que beijou o primeiro rapaz. Encontrou-se com ele casualmente durante um mês. Rodrigo começava a expressar sua natureza feminina sem receios. Já não achava que ser feminino lhe desqualificaria como um ser humano íntegro e um cidadão decente. Mas ao retornar a São Sebastião o medo do julgamento de sua família fez ela, novamente, se retrair, e omitir sua “homossexualidade”. Já em sua terra natal começou a se envolver com teatro amador na escola. Inicialmente trabalhava com cenografia e depois aprendeu a dirigir e passou a dar aulas juntamente com a professora. Apaixonou-se por um colega do teatro e passaram a namorar escondidos. Passavam o dia inteiro juntos como amigos. A mãe de Rodrigo começou a perceber que havia algo mais do que só amizade entre os dois, e após tudo ficar muito claro para ela, pois o pai desse rapaz descobriu o caso e o levou para outra cidade para tristeza de Rodrigo. A mãe resolveu ter uma séria conversa com o filho. Laysa mesmo nervosa durante a entrevista mantinha um semblante de aspecto tranquilo próprio de seu temperamento. Fosse o tique de pressionar bem os olhos ao piscar, poderia dizer que ela tem experiência em falar de si mesma sem dificuldades. Narrou a conversa com a mãe sem inflexões na voz que acusasse algum ressentimento ligado ao fato. — Para minha mãe foi um choque a certeza da minha orientação sexual. Ela sentou e conversou comigo. Disse: “olha, eu por minha parte preferia que você não tivesse essa escolha devido ao que vai passar. Se for isso que você quer, então, aprenda a lutar contra o preconceito. Aprenda a lidar com tudo que vai ouvir”. — E você reagiu como? — Foi quando eu me assumi homossexual. — E chegou a contar para seu pai? — Meus pais são separados desde os meus quatro anos. Me apoiei e vivi mais com minha mãe. Quando ele ficou sabendo, não por mim, continuou a me tratar normal. 83


Nunca tocou no assunto. — No começo da entrevista falou sobre o início da sua transformação. Como seus pais lidaram com a mudança? — Meu pai parou de falar comigo. Achava que seria ridicularizado se vissem ele com o filho que virou mulher. Ficou assim mais de um ano. Minha mãe também não aceitou no começo, por quê? Porque ela achava, tipo: “ah, a pessoa pra ser homossexual não precisa vestir roupa de mulher na rua, por quê? Porque querendo ou não muitas vezes essa pessoa é motivo de piada”. Quando ela começou a perceber que as pessoas estavam agindo normalmente, foi então, que por incrível que pareça, se eu fosse numa loja comprar uma roupa ela que escolhia. Muitas das minhas roupas é ela que dá. Passou a me aceitar. Sempre fala: “é minha filha. Eu tinha um filho que decidiu virar moça, e hoje, é uma mulher”. Laysa exteriorizou a mulher que é com 22 anos. Foi quando se informou por meio de travestis amigas e pela internet como tomar hormônio. Ela não se arrependeu porque estava certa que queria a transformação, porém teve medo do que teria que escutar nas ruas. O tratamento hormonal leva a consequências que de modo, regular e contínuo, reproduz mudanças físicas e fisiológicas. Essa intervenção, no caso do transexual feminino, gera o crescimento de tecido da mama, amaciamento da pele, redução dos testículos, diminuição da fertilidade até a esterilidade, crescimento lento dos pelos, e redistribuição de gordura para regiões tipicamente femininas. São mudanças irreversíveis. O tratamento se feito de maneira errada torna-se um risco para saúde, por isso, é recomendado auxílio psicológico e consulta com médico endocrinologista para começá-lo. Desde 2008 o SUS (Sistema Único de Saúde) baixou uma portaria que garante o tratamento hormonocirúrgico, garantindo assim a redesignação sexual, conhecida vulgarmente como mudança de sexo, do transexual tanto masculino, quanto feminino. O transexualismo, diagnóstico para o transexual, enquadra-se entre os “Transtornos de identidade de Gênero” no CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) da OMS (Organização Mundial da Saúde). Mas a nova versão do CID, conhecida como CID-11, que está prevista para ser lançada em 2015, já gera muita polêmica, pois o transtorno de identidade de gênero deixaria de ser um transtorno mental. Laysa já faz tratamento psicológico no SUS para conseguir os medicamentos necessários e está pensando seriamente em fazer a cirurgia de redesignação sexual. Este ano conseguiu alterar seu nome para Laysa Minelly. Estávamos num clima de alegria 84


pela vitória quando contava: — Mais ou menos há uns quatro meses, consegui fazer a troca de nome na justiça. Consegui esse direito de ter meu nome social no registro. Meu advogado pediu foto de biquíni pra colocar no processo como prova que eu venho fazendo a mudança do corpo. Ele perguntou se eu estava tendo acompanhamento médico pra fazer a mudança. Eu já estava passando seis meses com uma psicóloga para conseguir hormônio no Posto de Saúde. Tive que arrumar duas testemunhas que falassem sobre meus quatro anos de transformação. Foi onde o juiz então falou: “como é isso mesmo que você quer, vou fazer a troca do seu nome. Porque a lei lhe garante isso”. — Como escolheu seu nome social? — Lá pelo começo da minha transformação eu tinha visto na televisão a respeito de uma artista chamada Laysa Minnely, e já estava pensando em que nome teria. Foi onde eu decidi esse mesmo. Coloquei no orkut e com o tempo acabaram descobrindo que era o Rodrigo. Mas as pessoas se acostumaram com Laysa, então eu decidi que ficaria com ele. — Acha interessante o tratamento psicológico? — Acho. Foi preciso. É como eu consigo pegar os medicamentos para fazer a feminização (que significa assumir características de mulher). Eu passei por um clínico geral, expus minha situação. Ele falou que não podia fazer isso porque eu tinha que passar pela psicóloga. Existe um direito que te garante isso? Existe. Só que você tem que procurar uma psicóloga pra ela ter certeza que você quer fazer a mudança. Praí você conseguir a medicação. Assim, comecei. Tenho que continuar devido ao hormônio, porque eu já tenho certeza do que quero que é fazer a cirurgia, e me aceito como sou. Sempre morou com a mãe, mas ao iniciar sua transformação e começar o curso de cabeleireira, sua mãe preferiu que ela se mudasse. “Achou que minha irmã e minha prima, pequenas, que moravam na mesma casa, não entenderiam minha situação. Mas ao mesmo tempo em que me pediu pra sair, ela deu toda força pra eu poder me estabilizar. Me ajudou com o curso e com a casa”, falou com sentimento de liberdade e gratidão. Após assumir sua identidade feminina, Laysa era alvo constante de piadas e percebia que sua presença nos lugares gerava certa instabilidade nas pessoas, ficavam incomodadas e a excluíam socialmente. Então, passou a frequentar a zona onde se encontrava com as outras travestis, se sentia mais confortável para conversar e beber. 85


Tinha começado o curso de cabeleireira, mas não estava trabalhando ainda. Quando por dificuldade financeira pensou no caminho da prostituição, mas ao estar frente a frente com seu primeiro cliente, ela não se sentiu bem. Desistiu e concluiu que não era preciso fazer isso, pois contava com o auxílio da mãe. Prestes a terminar o curso começou a exercer seu ofício em casa e conquistou seus primeiros clientes, os colegas. Laysa acredita que é preciso ter muita coragem para seguir o caminho da prostituição. Acha uma vida cheia de riscos em que se está sujeito a diversas situações desagradáveis. Considera, também, uma solução para o transgênero que não tem apoio familiar. “Em São Sebastião não tem espaço profissional para a travesti, aí o que acontece: esse é o meio para se sobreviver. Mas tudo depende de pessoa para pessoa, de pensamento e modo de agir. Eu com o tempo consegui impor respeito e é o mais importante”, disse ao expirar forte como se dispensasse uma carga pesada dos ombros. Chegou a manter um contato amigável durante oito meses com um senhor que a ajudava financeiramente. Ele estava apaixonado. Mas ela tinha deixado claro que não haveria nada entre os dois, não havia “química”, só amizade e respeito. Não usa drogas ilícitas, entretanto, desde a adolescência gostava bastante de beber, principalmente cerveja. Sempre teve amigos envolvidos com drogas. Nunca foi contra. Deixava bem claro que só bebia e fumaça cigarros. Certa vez, ao chegar de uma balada às três horas da manhã foi tomar banho e começou a se sentir mal. Foi para o Hospital, e após exames, o médico constatou que era princípio de infarto. Laysa, então, com 27 anos, parou de beber. Parou porque o médico disse que era preciso, mas outra motivação também a ajudou: seu marido tinha tendência a abusar das bebidas alcoólicas. Os dois juntos superaram o vício.

— Mas me fala do seu relacionamento.

— No começo foi muito difícil. Por quê? Porque ele queria estar comigo e ao mesmo tempo, pra manter a aparência pros amigos, pra família, ele queria tá com uma moça. Foi bem difícil aceitar essa condição. — E ele fez isso, ficou com uma moça? — No começo sim. Mas chegou uma hora que falei, não! Depois de uns três meses que a gente tava junto, ele até já tava morando comigo. Eu cheguei, sentei com ele e falei: “ó, não dá pra continuar assim, se você quiser viver comigo vai ter que esco86


lher, ou vai viver comigo ou vai viver com quem quiser”. Falei: “faz um teste, vê como as pessoas vão reagir”. Foi o que acabou acontecendo. Ele deixou essa moça com quem ele convivia. Ele também sofreu porque ia parar no ouvido da família dele que ele tava comigo. A família, várias vezes, trancava ele dentro de casa pra não poder vir me ver. Foi onde ele decidiu vir morar comigo e acabar com esse problema. E deixar rolar o que tiver que acontecer. Foi assim, tudo muito intenso e rápido. Não se casaram no papel, no entanto, o casal mantém há quatro anos um relacionamento estável. Só após um ano de relacionamento é que seu parceiro assumiu o casamento com Laysa. Tudo começou através das trocas de olhares pelos encontros casuais na Topolândia. Até se conhecerem por meio de amigos em comum. A intenção dele de início era diversão, mas com o tempo, se apaixonou por ela, e isso gerou um grande conflito dentro dele que nunca tinha se relacionado com uma pessoa transgênera. “Foi devagar, e com muita paciência da minha parte, que ele passou a ver que o que ele sentia por mim era mais forte que o julgamento da sociedade”, contou ao falar do processo de auto aceitação de seu parceiro, que hoje tem 19 anos, e é web designer. — Como foi ajudá-lo a enfrentar o preconceito? — Foi difícil em relação a isso, por quê? Porque ele não andava comigo na rua. Quando andava, eu só era a cabeleireira dele, e não esposa. Pra “ajudar” ele é de família evangélica e ia à igreja. Mas você sabe como é né, cidade pequena. Chega uma hora que as pessoas percebem, e não tem pra onde correr. Foi quando chegou para o pastor e disse que estava comigo mesmo e impôs o direito dele de estar dentro da igreja mesmo assim. Então, ele ainda ficou um tempo frequentando. Só que como a pressão da igreja foi muito forte, há uns dois anos ele saiu. Sofria muito preconceito. — Mas, o que falavam para ele? — Que o modo como estava vivendo era errado aos olhos de Deus. E por isso, não ia para o céu. Falavam isso o tempo todo. Ele tocava guitarra no grupo, mas excluíram ele dessa atividade, e de outras também, por causa de mim. Então, ele acabou parando de ir pra igreja há uns dois anos. Mas tá quieto no canto dele comigo — ao terminar de falar sorriu com olhos de mulher apaixonada. Atualmente a família do parceiro de Laysa, ainda, não aceita muito bem o relacionamento dos dois. A mãe dele a trata bem, mas não é de muita conversa. Uma não frequenta a casa da outra, pois os irmãos dele não aceitam de forma alguma a condição dela. Ela não se importa em casar no papel, não se prende a burocracia. Também, porque 87


a família dele encararia o enlace no cartório como uma afronta aos bons costumes. O casal não quer ter filhos. “A vida a dois já é difícil, imagina com uma cria!”, riu descontraída. Eles pensam no preconceito que a criança iria sofrer na escola. Mas, Laysa admira a coragem e disposição do transgênero ou homossexual que adota uma criança. “Um casal homossexual pode educar muito bem, porque vai ensiná-la a não ter preconceito contra o diferente, vai saber dar e valorizar o amor porque sofreu muito na vida”, concluiu com convicção. Depois que passou a viver com seu parceiro, ela teve seu ritmo de vida alterado. Tinha uma vida social muito agitada. Antes gostava muito de balada. Todo o final de semana caia na noite para curtir com os amigos. Ele, já é um rapaz mais tranquilo. Então, apesar de hoje sair, às vezes, ela teve que saber ceder para evitar discussões por motivo de ciúmes. Os dois gostam de passear. Preferem programas como ir ao cinema e restaurante. Vão também visitar a mãe de Laysa que se dá bem com o rapaz, o pai dela também, agora, lida com mais naturalidade o relacionamento da filha. Ela está feliz com o que conquistou. “Mas sempre é preciso pensar lá na frente e não deixar as pessoas te rebaixarem. Lutar pelos meus direitos faz com que eu me sinta inteira e contente, porque não é uma questão minha, se um se pronuncia aqui, outro ali, o “diferente” ganha força. Não quero ofender ninguém com minha condição, porém também não vou ficar calada e escondida. A vida é pra ser vivida”, encerrou, numa postura firme de guerreira Amazona.

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Se transformar para voar Segui meu caminho. Aquele que eu sentia latejar dentro de mim, e se não o seguisse, eu não seria eu. Seria, apenas, Um corpo sem conformidade e uma alma, Vendida para o Estado. Vi as possibilidades, Quando a vida me perguntou: Você é um homem ou um rato? Eu disparei, desde então: Sou mulher, Sou o que quiser. E não vou tolerar mais maus tratos.

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Fotos: Felipe Riela

Laysa é séria e enigmática, passou muitas vezes por esse portão da escola, no ensino médio, cabisbaixa.


A personagem reviveu os tempos de escola quando se voltava mais para os livros do que para os colegas.


Ao entrar na escola muitas lembranรงas vieram a tona. Antes de sair, lavou o rosto e saiu feliz.


Estudar foi a solução para conquistar sua independência e superar o preconceito.


fora do ARMÁRIO


Raio de Luz (Postura Queer) Para o sociólogo Richard Mikolci, uma perspectiva queer reflete sobre as experiências que foram historicamente subalternizadas, buscando superar as bases pouco sólidas do tradicionalismo. Isso leva a repensarmos o modelo de sociedade em que vivemos. A educação sempre foi um dos grandes investimentos biopolíticos do Estado e instituições para normalizar, disciplinar a população. A sexualidade, compreendida como um aparato permitiu esse controle por meio daquilo que o filósofo Foucalt denominou "pedagogização do sexo", que significa a condução do processo educacional a um discurso que desencadeia padrões aceitáveis de comportamento. A proposta Queer é de superar a “pedagogização do sexo” e, "transformar a posição da educação não mais como subserviente aos interesses estatais e biopolíticos, mas muito mais comprometida com as demandas da sociedade civil", nas palavras de Miskolci. Começar o diálogo, abrir espaço para o "estranho" se expressar, dar-lhe orientação, é o caminho. Na visão de Miskolci, as demandas sociais são de reconhecimento da diferença, ou seja, de inserção do diferente no meio — e não a margem — social. Mas o filtro político as traduz na linguagem da tolerância da diversidade. Tolerar é diferente de reconhecer o outro, de trocar experiências com esse outro. A concepção de diversidade não promove um diálogo transformador, não questiona o sistema vigente. A Teoria Queer se volta para o diferente através da política da diferença, e crítica à retórica da diversidade. Porque é necessário ir além da tolerância e até da inclusão. Para se fazer a mudança da cultura como um todo por meio da incorporação do diferente, do reconhecimento desse outro, como parte de nós, não basta tolerar. A política da diferença aos olhos dos Queer, se aplicado ao sistema educacional permitiria a mudança do próprio processo de educação, que não seria mais usada para forçar as pessoas a se enquadrar no modelo de comportamento requerido. Mas, sim, de pensar na possibilidade de transformações desse processo para uma experiência mais democrática. Desconstruir as convenções tradicionalistas, que violentam nossos desejos e mesmo a humanidade, é um primeiro passo para a transformação cultural. Porque a experiência daquele que é qualificado como "anormal", como a sociedade o fez crer ser, pode suscitar o que há de pior nesse indivíduo através do sentimento de desvalorização que o conduz no meio social. 95


O Céu Plumas que Encontrei no Armário nasceu de uma inquietação pessoal. Surgiu do meu estranhamento quanto à “nuvem negra” que parece pairar na cabeça de toda pessoa que sofre por não atender as expectativas das convenções culturais tradicionais. Nunca vi sentido nas diferenciações, tão taxativas e inflexíveis, entre os gêneros masculino e feminino, na nossa sociedade. Nunca pude entender, por um raciocínio lógico convincente, porque meninos ao se atraírem pela cor rosa, são estigmatizados. Desde muito cedo me identifiquei com a cultura andrógina. A postura de artistas como David Bowie e Ney Matogrosso sempre me fizeram enxergar a magia da realidade e as possibilidades de expressão criativa e contestadora. Andrógino é aquele que dialoga com sua própria ambiguidade. Mistura características dos gêneros masculino e feminino, por isso, não se enquadra nem no papel de homem nem de mulher, brinca com os dois papéis. Refere-se mais a uma qualidade estética, muito explorada pela moda. Quando você encontra traços marcantes dos dois gêneros em uma pessoa, e fica difícil determinar qual seu sexo, esse é um andrógino. O livro foi escrito por uma mão, e muitas vozes entre abafadas e gritadas. Por meio do conhecimento adquirido, e do contato com os transgêneros, pude perceber, ao observar o cotidiano, o quanto é necessário, e extremamente delicado, tratar sobre o tema. O estudo sobre identidade de gênero surgiu a partir do meu contato com uma personagem travesti, a Manu, para o experimento de um livro-reportagem produzido no 2º semestre da faculdade, em 2012. Ao pesquisar sobre travestis encontrei todo um universo, os transgêneros, que une todos os grupos de pessoas que não se identificam com sua identidade de gênero designado na infância. Decidi, então, não mais falar só das travestis, e caracterizá-las numa massa homogênea. Mas, me acendeu o desejo de abarcar em meu projeto todo aquele que se sente desajustado, que é marginalizado e incompreendido. Esse estigma que essas pessoas sofrem é que é consequência da ida para o consumo das drogas, o estabelecimento da depressão, e da prostituição como subsistência. Constatei por meio dos estudos da Teoria Queer, que se estendeu sobre o conceito de heteronormatividade, o quanto nossa sociedade é nociva às pessoas que não se 96


adequam ao sistema vigente. E pude encontrar essa nocividade em todos os relatos de minhas personagens, em maior ou menor grau. Ao longo do ano compreendi a necessidade de promover o debate sobre o assunto tratado na obra. Pude perceber que todo preconceito que as pessoas sofrem, ou a falta de entendimento sobre suas formas de se apresentar ao mundo, é fruto de uma cultura formada para relegar a expressividade dessas pessoas. Da criação do livro surgiu a ideia de criar um grupo que estude transgeneridade em São Sebastião. O grupo de estudos é uma iniciativa que visa promover leituras abertas e debates. Assim, fomentar a discussão na cidade por meio da difusão de conteúdos sobre o tema em suportes alternativos, como o blog e o fanzine. Ao conversar com educadores e jornalistas entendi o quanto é difícil tratar do tema. Os educadores esbarram no empasse do que a família e a diretoria poderiam achar, e jornalistas enfatizam as interferências do processo jornalístico, como a falta de interesse e proximidade da população com o assunto. Tanto educadores, quanto jornalistas, afirmaram a importância da produção de conteúdo de caráter orientador sobre identidade de gênero. Nas conversas com colegas sempre foi constatado a falta de conhecimento sobre o assunto, e quem achava que sabia muitas vezes estava equivocado. Uma das minhas personagens mesmo repetiu um erro comum, quanto à diferenciação de travestis e transexuais. Por meio de toda a trajetória percorrida até aqui, concluo que meu projeto beneficia tanto os transgêneros, que poderão procurar caminhos para se orientar, tanto para o público em geral, que ao ler o livro entenderá mais dos processos que culminam no preconceito e possível exposição de comportamentos autodestrutivos desses indivíduos. A obra colabora para uma abertura de diálogo e permite uma leitura que rompe a ideia de patologia que exacerba a violência praticada contra os transgêneros.

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Encontros De início todas as personagens, com um ponto de interrogação na cabeça, aceitaram participar das entrevistas. Após explicar o projeto todas acharam interessante a proposta do livro. Mas para concretizar os encontros já foi tarefa mais árdua. Parece-me, que inconscientemente, todas as personagens tinham certo receio do confronto direto com suas histórias. A exposição e o contato com conflitos passados deixaram as “plumas” flutuantes demais. Com o tempo conseguimos nos encontrar e as entrevistas transcorreram ora de forma mais descontraída, ora com emoções fortes vindas à tona. Os encontros aconteceram em lugares comuns das personagens, na casa, na escola, na praia, na praça. O importante é que se sentissem a vontade. Pude conhecer a vida das entrevistadas, e no caso da Viviane, Titia Paula e Manu, mantemos contato pela rede social. Questões como identidade de gênero tocam no íntimo das pessoas e, geralmente está atrelada, à sexualidade. Assuntos tabus, que ainda geram desconforto na sociedade, porém estão em voga e ganham produções com discursos acadêmicos, não acadêmicos, fundamentados em estudos ou em experiências, ou estigmatizantes por reproduzirem as convenções sociais heteronormativas. O caráter delicado do tema foi um desafio tanto na captação de conteúdo das histórias, quanto na produção delas. Qual a melhor forma de perguntar, qual postura tomar, como escrever as histórias sem cair no sensacionalismo, como explorar os relatos sem ofender a intimidade de ninguém. Eram questões que exigiam de mim atenção, sensibilidade e ousadia. Desde o início das entrevistas tentava tornar a atmosfera agradável e optei por uma postura receptiva. Sempre com a audição atenta preparada para captar o que era transmitido, o que as personagens queriam transmitir — e o que não queriam. O desenrolar das entrevistas foi um processo catártico para entrevistados e entrevistador. A imersão nas histórias trouxe recordações recalcadas, e isso proporciona libertação de emoção ou sentimento que sofre repressão. A exposição de fatos leva a autoanálise, reflexão, pois sempre quando revivemos na memória determinados fatos, eles ganham novos contornos conforme as transformações inegáveis que o tempo traz. O drama de todas as personagens envolve a transformação de si mesmo. A não adequação da identidade conforme o sexo e o preconceito muito presente em suas vidas são características marcantes encontradas em todos os relatos. Mas cada "pluma" é uma. Cada ser humano é único. 98


A empatia esteve presente em todas as entrevistas. As reportagens são consequência da narração das próprias personagens com o objetivo de perceber como elas se veem como elas enxergam o mundo, e como lidam com suas trajetórias. Também podemos perceber, se aplicarmos o que foi aprendido na primeira parte do livro, o quão a heteronormatividade pode limitar as possibilidades e relegar a margem quem não se adequa ao seu modelo. Mas podemos notar, como no caso de Laysa e Viviane, que é possível conquistar espaço no meio social. E a popularidade de Titia Paula comprova cada vez mais o contato dos transgêneros, mesmo como entretenimento, com a população em geral.

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Bibliografia BENEDETTI, Marcos Renato. Toda Feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. BERNINI, Lorenzo. Macho e fêmea Deus os criou!? A sabotagem transmodernista do sistema binário sexual. Disponível em: <www.cchla.ufrn.br> Acesso em 5 de maio de 2014. COSSI, Rafael Kalaff. Corpo em Obra: contribuições para a clínica psicanalítica do transexualismo. São Paulo: nVersos, 2011. COSTA, Elusa. Palhaços de Luxo: A criatura pelo Criador. Disponível em <www.teianoticias.com> Acesso em 12 de junho de 2014. GROSSI, Mirian Pillar. Identidade de gênero e sexualidade. Disponível em <www. observem.com> Acesso em 25 de agosto de 2014. JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Disponível em <www.sertao.ufg.br> Acesso em 18 de abril de 2014. MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. 2 ed. São Paulo: Autêntica Editora, 2012. PELÚCIO, Larissa Maués. Travestis, a construção do feminino: gênero, corpo e sexualidade em um espaço ambíguo. Disponível em: <http://www.revista.ufpe.br> Acesso em 23 de abril de 2014. VENCATO, Anna Paula. Confusões e estereótipos: o ocultamento de diferenças na ênfase de semelhanças entre transgêneros. Disponível em <www.segall.ifch.unicamp.br> Acesso em 27 de julho de 2004.



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