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ensaio sobre a cidade
Trabalho final de graduação em Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo
Fellipe Marcelo Brum Soares Orientação
Maria Cecília França Lourenço Banca
Angela Rocha Vera Imperio Hamburger
FAU-USP
São Paulo, 2015.
Sumário
Ensaio sobre a cidade Lavapés paralaxe99 Diário da fatura 23o Programa Nascente Comentários finais Bibliografia
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Agradecimentos a Matheus Victor e Márcia Helena Brum a Lúcio Soares e Magda Megale aos meus avós Gerolisa e José Brum agradecimentos especiais à Ciça ao Grupo Museu Patrimônio à Vera e à Angela a todos os meus amigos a Bruno Roma, Aline Scátola, Láion Pessôa, Fernando Passetti, Clarissa Lorencette, Coh Amaral e João Mascaro a Lígia Marinho, Gisele Brito, Isadora do Val, Ariana Monteiro, Gabriel Szklo, Paula Montes, Omar Colocci, todo o Funil e a Casa da Mulher a Renata e Nívia Martins a Fernanda de Boer, Sol, Gabriel Ribeiro, Lina Baratay, Dani Julve, Ivan Aranega e Filippo Guasti a todos que me acompanharam, ajudaram e deram sentido à vida a BH e SP
...não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples “signos” destinados a nos trazerem à memória antigas imagens. (Henri Bergson. Matéria e Memória)
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Ensaio sobre a cidade. São Paulo, 2015. Entre caminhos, percursos e derivas por São Paulo observo como a cidade se apresenta àqueles que se movimentam por ela. Nômades, dobramos uma esquina, e os planos dos edifícios se friccionam. O espaço se estria entre público e privado, ordem e caos se entrecortam continuamente. Pego um papel e tento registrar a imagem daqueles pensamentos não-verbais em corte e dobra. Mais adiante a sombra de uma construção desenha no chão uma fresta: o que dizem essas formas? Olho para o lado e vejo outros dentro do ônibus: de que maneira se relacionam com a paisagem em movimento? Desço do ônibus e sigo caminhando. A fricção dos meus pés com o chão da cidade me transporta quadra após quadra. Mais um prédio em demolição, o que surgirá depois? Quase chegando em casa cruzo uma rua. Imediatamente em minha mente salta uma memória. Lembro de uma senhora que está ali há mais tempo me contar de um pequeno córrego onde seus avós lavavam os pés. As águas estão debaixo da terra, sobrepostas em camadas de espaço e esquecimento. Entre as superfícies recortadas e paralaxes da paisagem em movimento se revela algo de imaterial. O que carregam?
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Lavapés. O êxodo rural das populações negras, antes escravizadas no campo, fez com que crescentes contingentes chegassem à cidade em busca de trabalho na virada do século XIX para o XX. É nessa época também que a ocupação das várzeas pantanosas dos rios de São Paulo se intensifica. Esse processo ocorreu intensamente na região conhecida hoje como Glicério: um trecho do antigo Caminho do Mar, que da Rua da Glória descia pela várzea até o Ipiranga e, de lá, para a Serra do Mar, até Santos. A população dessa várzea fazia o percurso em direção à cidade formal. Vinha de várias direções, e, em certo ponto de confluência de caminhos, que coincidia com uma fronteira invisível entre a cidade formal e a não-cidade, lavavam seus pés sujos do barro da várzea para continuar seu percurso e entrar na cidade formal. Naquele exato ponto passava um córrego, o Lavapés, contam os antigos daqui e seus sambas. Com o acúmulo do tempo aqueles caminhos tornaram-se ruas. No cruzamento se delimitou cinco esquinas, construções enterraram o córrego. As únicas coisas que não mudaram foram as fronteiras invisíveis e a vocação desse território para receber populações vulneráveis. Hoje haitianos vêm de um duro exílio com parada no Glicério. 17
1881: Planta da Cidade de S達o Paulo, Companhia Cantareira e Esgotos. 18
1895: Planta da Cidade de S達o Paulo, editada por Hugo Bonvicini. 19
1905: Planta geral da cidade de São Paulo, Adoptada pela Prefeitura Municipal para uso de suas Repartições. 20
1913: Planta da Cidade de S達o Paulo, Cia. Lithographica Hartmann-Reichenbach 21
Os mapas mostram a sequência de camadas que vão formando a cidade ao longo do tempo e esquecendo antigas marcas. O rio Tamanduateí retificado, seus córregos afluentes e símbolos soterrados. Um desses percursos, que vinha da várzea e tomava a colina histórica, se materializou em duas linhas de aço eletrificado, suspensas sobre a rua: a linha do trólebus, antes bonde, que desce o Glicério e segue para o Ipiranga. Essas memórias me chamam atenção por morar há algum tempo próximo às cinco esquinas, em cima do córrego dos Lavapés literalmente, em uma torre cravada no seu leito. Ocasionalmente suas águas tomam de volta seu espaço. Foi assim que as conheci, e fui em busca da sua história, com os netos e bisnetos daqueles que lavaram os pés ali. Intervenção nas cinco esquinas. Mais tarde, em 2013, propus como trabalho de uma disciplina um ensaio de uma pequena intervenção nas cinco esquinas da Lavapés. Pensei em um triângulo equilátero, símbolo da igualdade entre seus lados, uma forma de fazer menção àquela fronteira invisível que carrega paradigmas da constituição de uma cidade inteira. Da intenção veio a inquietação que gerou o desejo de repensar símbolos que reduzem em uma forma geométrica o protagonismo dos verdadeiros protagonistas. Talvez mais sincero seja se colocar na posição de quem passa, do andarilho, e refletir pelos caminhos. Como o nômade, que habita o percurso. Não o habitar sinônimo de morar, mas habitar como exercício dos hábitos. O percurso é uma ferramenta memorial tão potente quanto o ponto. Então alterna-se ponto por percurso: Ensaio de intervenção na Lavapés torna-se Ensaio sobre a cidade. Um não deixa de ser o outro. Todo pela parte, parte pelo todo. Ao lançar-se nos percursos e derivas deve-se ler o território, cada um à sua maneira, mas sempre tendo em mente que, grafadas na forma da cidade, estão codificadas histórias, memórias e hábitos, mesmo 22
que ocultos, à espera de olhares singulares capazes de decodificar esses registros não-verbais, espaços a decifrar.* ... a animação de uma rua, o efeito psicológico de várias superfícies e construções, a mudança rápida do aspecto de um espaço por meio de elementos efêmeros, a rapidez com que a ambiência dos lugares muda, e as variações possíveis na ambiência geral de vários bairros. A deriva, tal como a praticam os situacionistas, é um meio eficaz para estudar esses fenômenos nas cidades existentes, e para deles tirar conclusões provisórias. A noção psicogeográfica assim obtida já levou à criação de mapas e de maquetes imaginistas, a que se pode dar o nome de ficcção científica da arquitetura. (CONSTANT, O grande jogo do porvir em Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade, pág. 99)
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O conjunto dos movimentos, das ações e reações, é luz que se difunde, que se propaga “sem resistência e sem perda”. A identidade da imagem e do movimento funda-se na identidade da matéria e da luz. A imagem é movimento assim como a matéria é luz”. (Gilles Deleuze, Imagemmovimento)
paralaxe99 Proponho uma reflexão pelos caminhos e territórios. A imagem em movimento dos percursos visuais daqueles que se deslocam na cidade é extraída em forma de objetos em paralaxe. O procedimento de corte e dobra foi usado para conformar uma linguagem que é movimento. É o movimento da ação que altera o meio: plano e cidade. E é o movimento das formas que se alteram a cada ponto de vista. Para chegar aos objetos finais, realizei repetidos estudos das potencialidades formais do corte e da dobra, empenhado em encontrar na raiz dessas ações o elemento constituinte da linguagem. O papel surge como meio inicial: um plano. As duas dimensões desse plano se alteram pelo corte, a dobra conforma a terceira dimensão. Acúmulo de reflexões, experiências, tentativas, gestos. O processo criativo começa num tipo de zero. Acumulam-se experiências. 00, 01... 16... 49... 83... 98, 99: um salto qualitativo, uma mutação! E vai-se a outro zero, recomeça-se outro acúmulo, já em outro patamar de uma especie de dialética materialista dos processos de criação. É necessário se entregar ao processo. 25
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Os experimentos se concentraram na composição dos elementos cheios e vazios, na procura de arranjos que potencializassem as paralaxes entre as partes. Em determinados momentos outras linguagens se cruzam, como é o caso das imagens desdobradas dos modelos. Para estas utilizei recursos gráficos para explorar algumas potências nas sobreposições e espelhamentos. Na transição entre o plano do papel e o plano do metal, a raiz da linguagem não se altera. Como maquetes de papel, esses objetos passam a se manifestar como modelos em escala reduzida e se organizam em linguagem projetiva, buscando a execução técnica das peças em metal. O corte de tesoura desdobra-se no corte de plasma, o vinco do estilete, em fresa, a dobra manual ganha a força da alavanca e a precisão dos moldes, dando aos objetos finais formas que se encaixam, empilham, multiplicam, refletem. Linhas que se abrem em planos que se abrem em volumes.
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Diário da fatura. MATÉRIA-PRIMA. Uma vez projetada as peças, comecei a cotação do material. Inicialmente havia pensado no aço, mas a especificidade das dobras me obrigaria a usar uma dobradeira CNC, só encontrada em indústrias de médio e grande porte. Não é fácil convencer uma indústria a executar um serviço pequeno. Decidi, então, pelo alumínio meio duro, mais fácil de usinar. Tudo é um aprendizado, estou constantemente pesquisando, etapa por etapa. Na esquina da Rua Scuvero com a Rua dos Lavapés está a Central de Metais, fornecedor pequeno de chapas metálicas, praticamente no epicentro da cidade: “desde 1945”. É impressionante como a região é conhecida por seus artesãos de madeira e metal. Cenários inteiros são construídos ali. Sem falar na quantidade de ateliês e oficinas. Muitos saberes bem guardados pelos seus habitantes. Lá adquiri uma chapa de 1x2 m e 2,5 mm de espessura. A escolha da espessura tem relação com a proporção das peças, com o empilhamento e com as possibilidades de execução. As escolhas partem de um planejamento. MODULAÇÃO da chapa feita com corte de guilhotina. A chapa inteira de 1x2 m desdobra-se em oito quadrados de 37,5 cm, dez de 25 cm e catorze de 12,5 cm. Quinze quilos de alumínio em quadrados. O acabamento desse corte geral é liso e uniforme. GABARITO do corte. Com o desenho dos cortes e dobras plotados em 1:1, risco com estilete nesses quadrados de alumínio os primeiros gabaritos: dos cortes específicos de cada peça. CORTE. Uma pequena indústria de família italiana está na 87
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Rua dos Lavapés furando chapas para pisos e gradios há 60 anos. Eles têm uma máquina de corte plasma a mão livre, e é possível conseguir um corte razoavelmente preciso, em qualquer direção. Nesta pequena indústria, Luís Margaritelli, aceitou executar aquelas peças sem sentido para ele depois de alguma insistência. Consegui encaixar minha demanda em um período ocioso da fábrica e então o serviço foi executado deixando, como esperado, um acabamento rugoso e irregular, imediatamente incorporado à linguagem. LIMA e GABARITO da dobra. O alumínio, quando cortado no plasma, apresenta um pouco de escória, uma rebarba do próprio alumínio derretido. O processo todo da queima do gás por altas correntes elétricas que produz plasma atinge temperaturas elevadas para fundir o metal, cortando-o. A escória é retirada com uma lima, raspando vigorosamente as arestas deformadas. Depois de preparar as peças, executei o segundo gabarito, dessa vez para a dobra. FRESA. Antes de dobrar é preciso vincar essas peças na marca do gabarito. Ou seja, tirar um cavaco ou calha, como se diz na usinagem, com uma fresadeira. Essa calha funcionará como guia da dobra e também como acabamento das quinas. Essa ideia surgiu durante uma busca em fóruns de mecatrônica. Autodidatas interessados em construir seus próprios chassis dos aparelhos diversos que projetam, difundem informações próprias pela internet, paradigmas dos novos modos de produção. Cheguei a um desses fóruns pesquisando sobre técnicas de dobragem de chapas de alumínio e encontrei um relato da fatura de chassi para amplificador de som. Decidi executar a dobra através de uma etapa intermediária, a fresa, assim como pesquisado. Foi a etapa mais complexa e exigiu também outra pesquisa de técnicas de ferramenteiros. A fresa em chapas metálicas precisa ser calculada: que tipo de bocal e largura, qual a velocidade de avanço, quantas rotações por minuto, quantas idas e vindas até chegar à profundidade desejada. Tudo isso 90
determinado pela dureza Brinell (HD) e a espessura da chapa. O fornecedor me informou que a liga daquele alumínio era 1200H14, e a tabela de dureza Brinell me indicou 32HD. Para a cabeça da fresa se apresentam três tipologias gerais: W, N e H, neste caso, a indicada foi o tipo N. Já a largura da cabeça da fresa é própria largura do cavaco a ser tirado, 2,5 mm. Em outras palavras, a largura da fresa é a mesma da espessura da chapa, e a profundidade é equivalente a um terço desse número, 0,8 mm. Dessa maneira a geometria da fresa, ao dobrar-se em 90 graus, formará uma quina perfeita no lado de dentro. É necessário ter certificação técnica para as máquinas grandes. As fresadeiras podem facilmente causar acidentes graves. A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) possui uma máquina dessas, mas o “plano de demissões voluntárias” demitiu o único técnico em mecânica apto a operá-la. Posto isso, a alternativa seria o Instituto de Física (IF), em que fiquei sabendo haver quatro técnicos mecânicos e três laboratórios experimentais com fresadeiras e tornos. Subi até o alto da colina onde fica o IF e me dirigi à Oficina de Física dos Materiais e Mecânica. Lá conheci Walter Soares de Lima, 42 anos, trabalhando na Física, mestre-artesão que nasceu na Universidade de São Paulo (USP). Seu pai construiu o campus. Walter gentilmente aceitou me ajudar. Encaixou a boca da fresa tipo N de 2,5 mm, ajustou a fresadeira para 4.200 rotações por minuto e determinou a velocidade de avanço em 150 mm/min. Para cada vinco eram três avanços: rola uma vez, cavam-se 0,3 mm; rola de volta, mais 0,3 mm; uma última vez, e o vinco chega à profundidade projetada de 0,8 mm. Trinta e duas peças depois, dois vincos por peça, três idas e vindas a cada fresa, totalizando 192 operações, a etapa estava concluída. 91
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Agradeço a gentileza do Walter e também a dos outros mestres-artesãos Celso Faustino e Carlos Alberto Barioni pelas duas tardes de trabalho. Interessa-me o todo. O onde, o como, o porquê. A ordem, a maneira, quem, quando. A fatura das peças foi um tipo de deriva poética. Partindo da Lavapés, subir as cinco esquinas, refletir, trabalhar com os saberes locais. Depois na Física com a experiência dos técnicos de lá e finalmente chegando à FAU para dar a terceira dimensão às peças. Esse sentido da fatura em consonância com as partes teóricas e as imagens do percurso evocam essências deste trabalho. LIXA. Antes de dobrar, resolvi já executar o acabamento, pois se eu lixasse as peças dobradas não alcançaria as quinas internas e o acabamento ficaria irregular. Lixei no intuito de homogeneizar a superfície que passara por diversas etapas acumulando marcas e riscos. O alumínio risca com muita facilidade. Usei uma tira-teste para experimentar oito tipos de acabamentos, com diversos tipos de lixas e lãs de aço, a seco e submerso, com e sem lubrificante, movimentos circulares e retos, etc. Assim como testei outras texturas não lixadas. A superfície do metal oferece uma infinidade de possibilidades visuais, sendo assim optei por lixar dentro d’água, com lubrificante e movimentos retos para obter acabamento com brilho intenso e pouco espelhamento. Então, lavei as 32 peças, lixando sua superfície dentro da água até encontrar esse brilho claro e difuso, secando-as em seguida. DOBRA. Finalmente aqueles planos metálicos usinados, cortados, limados, gabaritados, fresados e lixados ganhariam a terceira dimensão. É interessante como as peças passam por quase todas as etapas planificadas, ocultando sua tridimensionalidade, para só no fim, e repentinamente, ganharem volume com a dobra. A dobra é a ação que conforma a terceira dimensão. 96
Usa-se uma dobradeira ou uma viradeira para dobrar metais, o problema é que ambas as técnicas produzem uma dobra linear de ponta a ponta. No entanto as peças têm dobras internas que exigem uma quebra dessa linha de dobra em determinados pontos. Algumas dobradeiras mais sofisticadas possuem pentes que podem ser retirados, executando dobras só em partes da peça, mas essas dobradeiras não são de fácil acesso. Por conta disso resolvi executar as dobras manualmente, com auxílio de uma morsa, moldes de madeira, martelos e alicates. Primeiro se planeja a ordem das dobras. Há peças que, caso dobradas na ordem errada, impedem a dobra seguinte. As 32 peças estão divididas em cinco tipologias e três escalas. Nesse planejamento também classifiquei as peças de acordo com três graus de dificuldade da dobra. Três tipologias de peças eram fáceis, duas de dificuldade média e uma de elevada dificuldade. Volto à FAU. Com os moldes de madeira fazendo um sanduíche na peça, tudo prensado na morsa, posiciona-se um terceiro molde livre, este que fará a viração. A força aplicada é a do peso do corpo. Não é fácil, mas o vinco trabalha a favor da dobra manual, potencializando o processo. Eventualmente pode-se usar alicates como alavancas nas tipologias mais difíceis e nas pontas de dobras, onde podem formar bicos, aplica-se o martelo de borracha. O molde de madeira deixa a dobra com 90o ou quase. É esperado um retorno elástico do metal, uma tendência do material dúctil a voltar à sua forma original, então, após dobrar, espera-se um pouco antes de fazer o ajuste fino do ângulo, com réguas, já contando com esse leve retorno. Tudo se conclui com um rápido POLIMENTO, e as peças estão prontas para serem experimentadas. Elas se multiplicam, se encaixam, empilham, alteram-se a cada ponto de vista. São feitas para brincar, jogar e refletir.
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23o Programa Nascente, USP. Inscrevi este trabalho no edital do Programa Nascente, da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, na categoria Objeto, da área de Artes Visuais, e fui um dos 21 finalistas selecionados para expor no Centro Universitário Maria Antônia. Existia uma limitação sobre as peças em série quanto à quantidade máxima, de forma que dos 32 objetos apenas cinco seriam expostos. Enviei as peças grandes, uma de cada tipologia, e decidi pôr sobre uma base de fórmica laca preta, quase um espelho preto, que faz o contraste das peças e amplia a sensação aparente de movimento. A ideia original era deixá-las soltas nessa base, com circulação por todos os lados, possibilitando vários percursos visuais e que essa leitura fosse feita em conjunto com algumas páginas deste livro, que mostra o processo, a linguagem, as imagens da cidade, olhares singulares e toda sugestão visual do Ensaio sobre a cidade que se relaciona com a paralaxe99. No entanto posicionaram a obra junto a uma quina do salão perdendo potências visuais no projeto da expografia, mas ganhando outras subjetividades. A base preta espelhada me remete também à dualidade matéria/memória. A peça se funde ao seu reflexo, formando uma imagem só, em um movimento de desfazer de dicotomias, matéria e memória em uma imagem só. Esta base sofreu uma pequena deformação devido ao calor intenso da sala de exposição. Normalmente a temperatura deve girar em torno de 20 graus, mas acredito que durante uma semana atípica de calor a sala passou os 30 graus, sem ventilação nenhuma. Me pareceu que 105
a sala do segundo andar do prédio principal não tinha nenhuma condição técnica de receber exposições. O piso de taco também não contribui na percepção da obra: seu desenho particular e cor quente entra em conflito com a visualidade das obras expostas. Quanto a recepção, foi interessante observar o público em contato com as peças. Ouvia comentários sobre querer que elas fossem gigantes para poder habitá-las. Outros viam a própria cidade. Agachavam, queriam chegar mais próximo, entrar com o olhar. Procuravam pontos de observação singulares, multiplicavam a imagem, ativavam as paralaxes. No caso das imagens dos livros, também ocorreu a recepção em diversos olhares singulares, difíceis de pôr em pensamentos verbais. Agradeço à minha querida amiga Ana Cláudia Amaral pela ajuda com a montagem da exposição e à João Mascaro pelo registro singular das peças durante a mostra (pág. 108 a 121).
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Considerações finais A universidade pública abre caminhos. O que possibilitou partir de passados emudecidos para chegar à proposição de maneiras sensíveis de olhar a cidade foi a experiência desses anos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. A base que seu conhecimento solidifica na lembrança impregna a percepção do mundo de maneira permanente. É preciso pensar nas cidades subterrâneas, as que estão esquecidas e o porque deste esquecimento, talvez assim possamos produzir um habitat mais humano. O Lavapés representa paradigmas que não são exclusivos dele, mas de toda a cidade. É preciso mudar os pontos de vista, movimentar o pensamento, olhar além do que está dado. O trabalho passou pelos três departamentos - História, Projeto e Técnica - encontrando em cada um deles, e em suas relações, potências e novas sensibilidades do olhar em tempos de embrutecimento e alienação. Essas potências se evidenciam na atenção às lembranças da alteridade, na arqueologia da memória urbana, na deriva, no projetar reflexivo, na experimentação livre, na entrega ao processo criativo e no executar das peças com respeito aos técnicos e seus saberes. Vejo nas peças finais uma síntese dessa reflexão. A cidade, para além do urbanismo que só a vê construída, é um campo simbólico e sua beleza está nessa tessitura que se sobrepõe, se emaranha e está em movimento: a paralaxe representa essa essência.
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Bibliografia citada BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Trad. de Paulo Neves. Martins Fontes, 1999. DELEUZE, Gilles. Imagem-movimento. Brasiliense. São Paulo, 1983. CONSTANT, O grande jogo do porvir em Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade / Internacional Situacionista: Paola Berenstein Jacques, organização; Estela dos Santos Abreu, tradução. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Rio de Janeiro, Gávea, 1984. 126
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paralaxe99.tumblr.com/