QUATRO CASAS:
desenho e memรณria Fernanda Peralta
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QUATRO CASAS:
desenho e memรณria
Para Maria, Cida, Francisco, Amélia e Elias, meus entrevistados, e suas famílias. Agradeço à Clice, pelas orientações, à minha família, pelo apoio e ao Paulo, pela paciência. À minha mãe, por me fazer gostar de histórias. Ao meu pai, por me fazer gostar de livros.
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As lembranças se apoiam nas pedras da cidade. EclÊa Bosi
SUMÁRIO
Prólogo 9 Amélia & Chico 13 Cida 23 Maria 35 Elias 45 Epílogo 55
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PRÓLOGO Desenho e memória: histórias da velhice paulistana Sempre admirei quem soubesse contar histórias. Aprecio não apenas a capacidade de abrir um livro e ler em voz alta as palavras impressas na página, com ritmo e entonação, prendendo a atenção de quem ouve; mas mais impressionante, para mim, sempre foi quem conseguisse contar histórias de cabeça, resgatando-as direto da memória, este mecanismo da mente tão estranho e de difícil explicação. Foi dessa admiração por ouvir histórias, e da tentativa de me tornar, ainda que por um breve período, também uma contadora delas, que passei o ano de realização do meu tfg pedindo para que me contassem histórias. Me apoiando fortemente nos textos e pesquisas realizadas pela professora Ecléa Bosi, não procurei por quaisquer histórias: fui atrás de fontes que teriam material extenso para me fornecer, e entrevistei cinco idosos que moram em São Paulo há muitos anos. Quatro famílias, vindas de lugares diferentes, residentes em bairros distintos da cidade. Para enriquecer a narrativa que proponho aqui, me permiti, numa livre interpretação, tentar desenhar algumas das memórias que me foram passadas, utilizando para isso principalmente nanquim e aquarela. Posteriormente, e com referência fotográfica, desenhei também meus entrevistados e suas casas. Por se tratar de uma entrevista feita na intimidade da casa, confiei em indicações de amigos e de família para meus entrevistados: acredito que, assim, tenha conseguido pessoas que estivessem realmente dispostas a dividir uma parte de suas histórias comigo. 11
A pesquisa com memória, de certa forma, é um desafio, como o de “remar contra a maré”, nas palavras de Bosi (BOSI, 2003). É preciso fazer esforço para se lembrar, os episódios aparecem misturados na mente; duas pessoas podem relatar de maneiras completamente diferentes um acontecimento que testemunharam juntas. Às vezes, pensamos que determinados eventos que aconteceram em nossas vidas ficarão vivos para sempre e que lembraremos de todos os detalhes; no entanto, com o passar dos anos, não nos lembramos mais com clareza da cor da roupa que usávamos, ou se fazia sol ou se chovia naquele dia. Portanto, para a pesquisa com memória, principalmente de pessoas idosas, é preciso ser paciente; não se pode apressar nem tentar mudar o fluxo das lembranças, que às vezes vem como uma correnteza, clara e limpa, na memória dos entrevistados, e às vezes é como uma goteira numa torneira fechada: esparsa e fragmentada. Às vezes, no entanto, com o devido apoio, estímulo e paciência, as lembranças vêm, e é extremamente gratificante, tanto para mim quanto para meus entrevistados, ver que ainda estão lá, mesmo que difíceis de encontrar por vezes. Este não é um trabalho de levantamento histórico: não me prendi ao registro preciso de datas e não busquei confirmação do que me contavam em fontes bibliográficas ou midiáticas. As histórias aqui reunidas são histórias de vida comuns, e elas não saem nos diários oficiais, nos jornais ou nos livros de História. Mas acredito que sejam de extrema importância para quem pretende se debruçar sobre a cidade e sobre o espaço urbano como objeto de estudo, para que se “recupere a dimensão humana” desse espaço (BOSI, 2003), e para lembrar que ele não é composto apenas por ruas, lotes, edifícios e áreas verdes.
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Nos textos e desenhos aqui reunidos, falo de histórias de vida e do passado principalmente. Falo de diferentes regiões da cidade de São Paulo, de ruas, e avenidas, e praças, e igrejas, e colégios que fizeram parte da vida das pessoas que me contaram suas histórias. É possível ver que essas pessoas se apropriaram, quase que com carinho, desses lugares. Falam da escola em que estudaram como se fosse um velho amigo, introduzindo-a na conversa muitas vezes sem as devidas apresentações. “Quando a gente veio do Ferreira (...)” começa a me contar uma de minhas entrevistadas, falando com afeto do bairro em que nasceu e viveu sua juventude, e eu me pego precisando perguntar o que é o Ferreira, e se fica longe dali. Minha ignorância em relação à cidade em que vivo se revela sem rodeios na hora, pois o Ferreira é o bairro contíguo ao que estamos, a apenas algumas ruas de distância. Mas isso é natural. São Paulo é uma cidade grande. Enorme na verdade. Suas distâncias são gigantes, e seus caminhos, extensos para qualquer um que neles se aventure, principalmente os velhos. Porém, meus entrevistados falam com propriedade dessa cidade; quer dizer, pelo menos do pedaço em que vivem e em que viveram por boa parte de suas vidas. E é isso que é bonito de se ver nessas histórias: as lembranças de fato se apoiam nas pedras da cidade, e essas pedras passam a ter enorme significado na vida de quem detém essas memórias. Foi um prazer e uma honra ter a oportunidade de conhecer essas pessoas, de ouvir suas histórias e de compartilhar com elas algumas das minhas. Espero, com esse trabalho, poder reforçar que “uma história de vida não é feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta, mas existe para transformar a cidade onde ela floresceu” (BOSI, 2004, p. 69). Essas histórias que você vai ler a seguir me foram passadas em primeira mão por quem as viveu; as transmito aqui, na esperança de que encantem e comovam como me encantaram e comoveram, e que nos permitam caminhar pela cidade e ver nela algo além de suas pedras e edifícios: as lembranças que ali se apoiam silenciosamente. 13
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A CASA
N Sé Casa
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A fachada da casa de Francisco e Amélia, no bairro da Pompeia, já muito diferente de como era nos anos 1940.
OS DESENHOS
A HISTÓRIA
p. 13 Amélia e Chico. Nanquim
Francisco e Amélia moram juntos há 57 anos na mesma casa, numa rua movimentada no bairro da Pompeia. Digo juntos porque dona Amélia, que tem 76 anos e é sobrevivente de um câncer de mama, nasceu naquela casa, no quartinho ao lado de onde estamos. No mesmo quarto em que ela dorme até hoje, como faz questão de dizer. “Naquela época não tinha como ter filho em hospital; o Hospital das Clínicas nem tinha sido construído ainda!”. Estamos sentados, conversando na cozinha e não se ouvem barulhos de carros, motos ou ônibus (que passam de vez em quando na rua). Perto dali, um bem-tevi canta durante quase toda a entrevista, e é só isso que se ouve, além das nossas vozes e de um eventual avião passando no alto, longe. Dona Amélia vive desde que nasceu naquela casa, e seu Chico, que está com 87 anos, começou sua história ali apenas depois de se casar com ela, na Igreja de Santa Cecília, no centro da cidade. Mas ele viveu também a vida toda naquele mesmo bairro, e ambos falam com propriedade das mudanças que viram acontecer ali. Os bairros das Perdizes e da Pompeia em São Paulo, pelo que vejo de experiência própria, são bastante verticalizados, e com uma parcela da população já bem idosa, que testemunhou esse processo acontecendo. Meus pais, que
p. 15 A casa. Nanquim. p. 17 A torre da Igreja de Santa Cecília. Nanquim e aquarela. p. 18 Bolas de futebol e de bocha, esportes praticados por seu Chico quando mais novo. Nanquim. p. 19 Os carros que o casal já teve. Nanquim e aquarela. p. 21 O antigo relógio cuco da sala de estar. Nanquim e aquarela.
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nasceram na região também e viveram ali na juventude, viram suas casas de infância e adolescência dando lugar a prédios enormes de médio e alto padrão. Tudo no bairro era diferente, Chico e Amélia me contam: a rua era mais tranquila, os vizinhos, mais conhecidos e amigos, a casa vivia aberta, com seus muros baixinhos e seu portão “de xadrez” e um pequeno jardim dando para a rua, como me descreve dona Amélia. As ruas não tinham calçada nem asfalto; na Avenida Sumaré, que fica nas proximidades, passava um córrego e tinha um campo de futebol, o Aimberê (que só posso concluir que ficava próximo a onde hoje existe uma rua de mesmo nome), praticamente de várzea, e onde só se chegava atravessando uma ponte de madeira. Seu Chico jogava bocha e era goleiro de futebol no time do bairro. Quando precisavam se locomover e ir até o centro 19
da cidade, caminhavam até a rua Turiassú e pegavam o ônibus que passava lá. Hoje, o caminho que fazia o transporte público já não é mais possível: virou contramão. “Quase não tinha ladrão”, seu Chico me diz, “então dormíamos com tudo aberto”. Com os muros baixos, “víamos as pessoas indo e voltando na rua, para ir para a vila”, ele conta, falando de uma vila residencial que fica próxima. Conseguiam comprar tudo de que precisavam ali perto: havia vendinha, quitanda e mercado. Hoje, dizem, os vizinhos não param mais para conversar, e o casal tem medo da violência urbana. Dos filhos do casal, alguns se mudaram para Cotia, cidade da Região Metropolitana de São Paulo, atrás da promessa de uma vida mais calma e tranquila, perto de áreas verdes e longe do centro urbano. Há alguns anos, começaram a insistir para que seu Chico e dona Amélia também se mudassem para lá, para ficarem mais próximos do resto da família. O casal, no entanto, diz que não tem vontade de sair de onde está. “Lá tudo é muito longe”, opina dona Amélia, falando da cidade próxima que, de fato, é muito pouco acessível em termos de transporte público; “precisa de carro para tudo!”. “Estou tão bem aqui”, complementa. E parece estar mesmo. É visível que ambos alimentam um grande carinho em relação à casa em que vivem, pelo que ela representa em suas vidas e em suas memórias; dona Amélia, que sempre trabalhou em casa, conta com orgulho: “eu nasci aqui, me criei aqui, casei, criei meus filhos, casei meus filhos, vi minha neta nascer e cuidei dela até os dois anos, e cuidei de minha mãe, que morreu aos 90 anos, tudo aqui, nesta casa”. Ao mesmo tempo, se identifica no discurso uma visão prática e pragmática das coisas, como é natural. É perceptível que 20
a casa já foi bastante alterada em relação a seu projeto inicial, e eu os questiono sobre isso. Seu Chico diz que não foi só por segurança que mudaram a casa; foi para “aumentar o patrimônio” que ela representa. A casa é para eles um bem material que deve ser cuidado, renovado sempre, e o efeito da passagem tempo deve ser combatido, para que as próximas gerações da família possam também tirar proveito dele. Assim, ao longo dos anos 80 e 90, seu Chico me conta, foram feitas na casa diversas obras, que trocaram revestimentos, acrescentaram cômodos e área construída, levantaram muros; no lugar do portãozinho descrito por dona Amélia no começo da conversa, baixinho e xadrez, agora se erguem paredes de alvenaria, com a fachada pintada de verde e texturizada. Entre a casa e a rua há uma distância de cerca de 50 metros; no entanto, onde antes era um grande quintal com um jardim, na frente da casa, hoje existem outros cômodos, construídos posteriormente, que são alugados para aumentar a renda do casal. Um telhado estreito cobre tudo isso, feito de vigas de madeira escura e telhas onduladas de fibra de vidro translúcidas. A parte da frente da casa, que dá para a calçada, alugam para uma xerox, que está fechada aquele dia, por ser sábado. Caminhando pela casa, vejo que, na garagem, o piso é de caquinhos, presente em todas as outras casas que visitei até o 21
momento. Pergunto se sempre esteve ali, e seu Chico responde que sim, mas que “precisa trocar”. “Não tem mais nada pra construir aqui” ele diz com orgulho, como quem reconhece que completou uma tarefa longa e difícil; vê-se que o casal gastou tempo e dinheiro planejando e executando aquelas modificações. Me levam para conhecer a casa, e visitar seus cômodos: o quarto onde dormem tem móveis antigos, de madeira maciça, de que seu Chico cuida com orgulho, pois “é herança”. Na garagem, ele também fala animado dos carros que já teve: uma Brasília verde, um Fusca marrom, outra Brasília, branca, um Corsa, um Uno. Dona Amélia comenta que tem uma boa memória para números, e que se lembra de todas as placas dos carros que já tiveram. “Das letras não me lembro, mas dos números, lembro de todos...”, e puxa de memórias as placas. Olhamos também em uma enorme caixa, onde estão dezenas de fotos antigas. Seu Chico procura por uma que mostre como era a casa antigamente; não encontra. Mas encontra fotos de viagens à praia e ao interior, de amigos, dos filhos quando bebês, de familiares que já se foram e de quem lembra com carinho. Encontra fotos dele e dona Amélia jovens; me conta que seus pais vieram da Itália e os dela de Portugal, há muito tempo. Me despeço de seu Chico e dona Amélia, grata por ter podido conversar com eles e conhecer um pouco de sua história. Quando o portão se fecha atrás de mim, me viro e, do outro lado da rua, vejo os andaimes e a estrutura de aço de um prédio em construção, parecendo um esqueleto marrom contra o céu, e penso que, assim como se faz com uma casa, também se faz com uma cidade, adequando-a como possível à passagem do tempo, e moldando-a às mudanças inevitáveis da vida.
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A CASA
N SĂŠ Casa
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Aquela que seria a vista da fachada da casa de Cida, se estivesse no mesmo nĂvel que a rua.
OS DESENHOS
A HISTÓRIA
p. 23 Cida. Nanquim.
“É a casa de portão verde desde, pelo menos, 1989”. Foi assim que a neta de dona Cida me explicou como encontrar a casa de sua avó, que fica em uma rua residencial no bairro do Jardim das Palmas, Vila Suzana, Zona Sul da cidade de São Paulo. A casa é uma daquelas que fica bem abaixo do nível da rua, e da calçada oposta só se vê o topo das águas do telhado, e o portão verde característico. Fui visitá-la numa manhã de segunda-feira em novembro, feriado do Dia da Consciência Negra. Um cachorro me recepciona latindo muito quando chego, e Rose, uma das filhas de dona Cida, me recebe no portão. Descemos uma escada de concreto de uns quinze degraus, e estamos no mesmo nível da casa, que é térrea e já tem a porta aberta. Peço licença e entro numa sala onde há um sofá em frente à janela, na esquerda, uma mesa com algumas cadeiras e no canto, ao lado do sofá, uma penteadeira com enfeites. Quando entro, Rose me apresenta sua irmã mais nova, Helena, que já havia deixado em cima da mesa os álbuns de fotografia da família, e separado algumas fotos para que eu olhasse depois. Dona Cida também já estava me esperando, e ouço sua voz vinda da cozinha, nos fundos: “a menina já chegou?” ela
p. 25 A casa. Nanquim. pp. 26 e 27 Vasinhos de plantas da janela. Aquarela. p. 28 Vendedor itinerante como os que passavam na rua de dona Cida. Nanquim. pp. 30 e 31 Canário, bem-te-vi e galinhas. Nanquim. p. 33 Os antúrios de dona Cida. Aquarela.
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pergunta, enquanto caminha lentamente pelo corredor que liga a cozinha à sala em que estamos. Me apresento. Rose e Helena me ajudariam no processo da entrevista com a mãe, e as outras duas filhas de Cida, Rosana e Helenice, se juntariam a nós mais tarde. Delas, Rosana também mora no mesmo terreno, numa casinha nos fundos do lote. Minha entrevistada me pede para que eu me sente no sofá ao lado dela, em frente a uma ampla janela com uma profusão vasinhos de plantas. Cida é uma mulher de 80 anos, mãe de quatro mulheres, bastante lúcida, que já não enxerga tão bem mas ouve sem problemas e se lembra do todas as histórias que suas filhas contam. Veio com 17 anos de Valparaíso, uma cidade do estado de São Paulo que fica a 563 km da capital, perto de Araçatuba, e que hoje tem cerca de 25.000 habitantes. Cida brinca com ironia que “não faz muito tempo” que mora naquele bairro, “só 60 anos”. Quando chegaram, ela me conta, não havia acesso a serviços básicos, como água e luz, e que os moradores do bairro “tiveram que lutar” para conquistar esses direitos. Quem arrumava os buracos das ruas eram os homens das famílias, nos dias que tinham livres. Assim como eram eles, me conta Cida, que furavam os buracos para os poços de água das casas. Com um saril, as famílias puxavam água do poço todos os dias para uso doméstico, e a louça, por exemplo, era lavada do lado de fora da casa. Em época de seca, os poços secavam, e as famílias precisavam buscar água em bairros vizinhos, e usar o córrego onde hoje fica o Portal do Morumbi para lavar as roupas. 29
Não havia padaria, e o pão era trazido de manhã por uma carroça puxada por cavalo, que muitas vezes atolava na lama das ruas quando chovia. A maioria das coisas que a família comprava era trazida assim, esporadicamente por vendedores ambulantes: além do pão, verduras, mantimentos. Mas as carroças não traziam tudo, e quando precisavam de algo mais, tinham de ir à cidade vizinha de Taboão da Serra, onde havia uma feirinha de caixotes no chão, bem simples, segundo dona Cida. Saíam da casa no Jardim das Palmas munidos de sacolas para comprar arroz, feijão, batata. Somente quando a rua foi pavimentada, anos depois, foi possível que peruas e carroças maiores trouxessem sacas de batata e arroz. 30
Uma grande parte do bairro, quando chegaram, estava divida em loteamentos, e era uma chácara, a Fazenda dos Mirandas. Lembro que uma das ruas próximas, em que passei no caminho para a casa, é uma avenida estreita chamada Estrada dos Mirandas, nome que ainda carrega marcas desse passado. Na época, o marido de dona Cida comprou um dos terrenos, e, nos fundos, construíram uma espécie de moradia temporária, uma casa de “cômodo e cozinha”, como ela chama, de chão de terra batida. O material para a construção foi doado por um conhecido, e, aos sábados e domingos, dona Cida e o marido construíam a casa, com água emprestada do poço dos vizinhos. Foi só assim que conseguiram juntar os recursos para erguer a casa da família, essa em que estamos agora. Não tiveram dinheiro para a terraplenagem, para deixar o terreno na mesma altura da rua, por isso a casa fica num nível abaixo no lote. Nenhum deles tinha alguma experiência com construção civil, então, dona Cida me conta, cometeram alguns erros no processo: a casa foi construída sem nenhuma coluna ou pilar, e usaram a medida de meio tijolo apenas para as paredes. O muro externo da casa foi reconstruído diversas vezes também, porque sempre caía. Anos depois, a rua foi asfaltada, e aumentou ainda mais a diferença de nível entre a casa e a rua; a água empoçava na calçada do lado de fora, e o muro caía. Quando finalmente conseguiram construir um muro que ficou de pé, colocaram o portão verde que existe até hoje, e que me ajudou a identificar a casa. Rose me mostra então uma foto da família toda, alguns anos depois de se mudarem para o bairro, posando em frente a uma cerca alta de bambu: o marido e dona Cida com a filha mais nova no colo estão atrás, e as três filhas mais velhas, ainda crianças, na frente. Uma árvore ocupa o canto direito da fotografia, e o chão parece ser de terra batida. Aquela cerca de bambu, me contam, separava o terreno
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deles do da vizinha, dona Geralda, que era conhecida da família e tinha em sua casa muitas plantas e árvores frutíferas que atraiam passarinhos: canário, sabiá, juriti, pomba-rola, beija-flor, joão-de-barro. Era possível vê-los da sala da casa em que estamos agora. Depois da morte de dona Geralda, no entanto, foi construído um sobrado de quartinhos para alugar, e agora a família apenas vê um muro alto amarelado e os corredores que dão para alguns apartamentos. É essa a vista que tenho da janela agora, sentada no sofá do lado de dona Cida: “a beleza já era” ela resume. “Quem vê hoje, não consegue imaginar o que a gente via”. Ela me conta que gosta muito de criação e que, antes, criava galinhas. Vejo que até hoje ela cultiva as mais diversas plantas. Aos quatro anos, antes de se mudar definitivamente para cá, Cida se lembra de seu irmão mais velho atravessando o córrego Pirajussara de canoa, pescando. O bairro tinha muita mata fechada; “na época de frio, era difícil”. Dona Cida conta que onde hoje é o Cemitério da Paz, era antes uma grande área de mata: os cipós eram usados pelas crianças como balan32
ços, e as árvores tinham troncos tão grandes que, para abraçá-los, eram precisos três homens de mãos dadas. A rua que hoje se chama Doutor Luiz Migliano era antes a Estrada da Boiada, porque ali passavam muitas carroças de bois indo e voltando das chácaras próximas. Um dos bairros ao lado era um roseiral, e o outro, uma fazenda de flores que produzia principalmente orquídeas. Com todo esse verde, Helena conta que, quando crianças, pegavam para comer frutas direto das árvores, como amora, pitanga e goiaba, enquanto caminhavam pelo bairro. Como nem todos os lotes estavam ocupados ou construídos, as crianças facilmente caminhavam pelo bairro, passando de uma casa para outra, pedindo pó de café e xícara de açúcar aos vizinhos, quando faltava em casa. As criações de galinhas se misturavam, e ninguém sabia mais de quem eram os bichos, ou os ovos. Pergunto se ainda existe esse sentimento hoje, mas dona Cida nega. Muitos ali moram de aluguel, e quando começam a se conhecer, as pessoas já vão embora. Antes era uma “irmandade”, ela lembra.
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São Paulo não é uma cidade tipicamente associada à natureza. No entanto, muitas das memórias de dona Cida e de sua família são bastante impressionantes, para mim, que cresci numa cidade que sempre foi mais concreto do que verde. Não me surpreende que estejamos cercadas de vasinhos de plantas na casa: há vasos grandes, pequenos, com flores, sem flores, nas janelas, em cima da mesa, no quintal, pendurados nas paredes. É talvez uma lembrança desse passado em que o bairro era mais verde, e as pessoas, mais unidas.
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A CASA
N Sé Casa
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Imaginei e desenhei a casa sem muros ou portões, sem a cobertura onde hoje é a garagem e com a janela coberta apenas por um pano, como me contaram ser na época da construção.
OS DESENHOS
A HISTÓRIA
p. 35 Maria. Nanquim.
Maria me recebeu em sua casa no Jardim Colombo numa tarde de sábado. Uma casa térrea, com dois quartos, uma sala, um banheiro, e onde se entra pela porta da cozinha. Apesar de ainda ser inverno, a semana que passara tinha tido alguns dos dias com as maiores temperaturas do ano, e fazia calor. Era dia 16 de setembro, e, coincidentemente, dois dias antes marcara o dia em que, 52 anos atrás, dona Maria, o marido, José Francisco, e oito filhos mudaram de uma cidade chamada Carvalhópolis, no sul de Minas Gerais, para São Paulo. A família morava na roça, num lugar que até hoje têm dificuldade de apontar com precisão no mapa; eram as terras de outra pessoa, e o marido de dona Maria capinava e cuidava da terra, em troca da moradia e de uma parte da produção. Antes mesmo de ir visitá-la, fui avisada de que dona Maria já não estava com uma boa memória. Ela fizera 100 anos alguns meses antes, e já não enxergava nem ouvia muito bem. Por isso, quando cheguei lá, fui recebida pelas duas filhas, Tereza e Maria, pelo neto, Paulo, e sua cuidadora aos finais de semana, dona Sueli. Eles me ajudariam a conversar com dona Maria, e a, quem sabe, acessar algumas de suas memórias que ainda estivessem ali.
p. 37 A casa. Nanquim. p. 39 Banquinhos de madeira da casa. O da direita, embaixo, foi construído por um dos filhos. Nanquim. p. 41 Sardinhas, como as que eram compradas do seu Juquinha. Aquarela. p. 42 Piso de caquinhos do quintal. Aquarela. p. 43 Bolo de fubá que eu comi na casa de dona Maria. Lápis aquarelável seco.
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A filha mais velha, Maria, veio abrir o portão, e andamos por um pequeno corredor até chegar na porta da cozinha, que estava aberta, calçada com uma cadeira de madeira para não fechar. Foi nessa cadeira em que me sentei, na ponta da mesa, depois de cumprimentar todos. Eu e o resto da família começamos a conversar sobre o que me trouxera ali, as lembranças e memórias que tinham do bairro e da casa. Em cima da mesa, um bolo de fubá recém assado e café. Dona Maria nos olhava conversar, na cadeira oposta à minha na mesa, parecendo um pouco ausente. “A senhora lembra de quando mudou para cá?”, “ah, mudei para cá faz pouco tempo”, ela respondeu, o que fez todos rirem de imediato, pois faz mais de 50 anos que ela vive na mesma casa, aquela casa em que estávamos. “Lembra de quando a senhora veio de Minas para São Paulo?”, o neto reforça. Dona Maria hesita um pouco, antes de responder: “o que passou há tempos a gente lembra; o que passou essa semana, a gente não lembra”. Dona Sueli confirma, diz que dona Maria tem muita dificuldade de lembrar das coisas; que recentemente, numa visita de parte da família, ela não foi capaz de reconhecer um dos próprios netos. Mas que, às vezes, ela desanda a lembrar de coisas, e conta histórias. “De uns tempos pra cá ela deu pra falar que quer voltar pra casa”, uma das filhas conta. Me pergunto em qual casa será que dona Maria pensa quando fala isso. Nessa mesma em que estamos, que, por algum motivo, ela já não reconhece mais? Ou a casa em que cresceu, lá em Minas Gerais, deixada para trás há muito tempo? 41
Percebo então que terei que conversar mais com os familiares, na esperança de que algo atice a memória de D. Maria e ela possa nos contar alguma coisa. Numa conversa prévia com Tereza, ela já havia me contado algumas histórias, e eu sabia, por exemplo, que a casa fora construída pelos filhos de D. Maria, aos poucos. Trabalhavam de pedreiros no canteiro de obra de um tio, e, no fim do dia, depois do expediente, voltavam e trabalhavam na construção da própria casa, com material dado como pagamento pelo trabalho. Enquanto isso, a família morava em uma casa emprestada, em uma rua próxima dali. Foram dois anos desse processo e, em 1967, dona Maria, Seu Zé Francisco e os oito filhos mudaram-se para a casa em que estávamos. Tereza nos conta como não havia porta, nem vidro nas janelas. Eram apenas os buracos. Para proteger, sua mãe colocava panos nas janelas, que ficavam imundos com o tempo. A água era retirada todos os dias, de um poço de sarilho de pau que ficava no quintal, ao lado de onde estamos. As mulheres contam que, às vezes, era difícil puxar o balde pesado, cheio de água, de dentro do poço. Era assim que se tomava banho; com a água puxada do poço, e esquentada pelo fogo de uma lenha que precisava ser recolhida nas proximidades. “Era eu quem ia buscar lenha lá no colégio”, diz Tereza, se referindo ao Colégio Santo Américo, que não fica muito longe da casa. Na época, o colégio tinha apenas dois prédios, e um terceiro estava em construção. Era a madeira que sobrava da obra que servia para aquecer a água da família. Mudaram assim que a maior parte da obra terminou, a casa sem acabamento algum. Não tinha taco, não tinha cerâmica, não tinha porta, não tinha vidro, não tinha estuque no telhado, luz, água encanada, nada. A descarga do banheiro era com balde de água retirada do poço. Dona Maria lavava roupa para outras casas do bairro, puxando água todos os dias. O vendedor de sardinhas, o Juquinha, alguém lembra, passava esporadicamente, e de vez em quando compravam peixe dele. Me contam que, na rua, não havia nem postes de energia quando se mudaram. Os 42
moradores fizeram um abaixo -assinado pra que a prefeitura colocasse poste de luz na rua. “Não tem mais isso, agora tá tudo mastigado pras pessoas” diz dona Maria. Quando Tereza fala das dificuldades de quando foram morar lá, de como a casa praticamente não tinha acabamento, dona Maria parece se lembrar, e comenta: “a gente sofreu pra construir a casinha da gente”. As casas da vizinhança não tinham muros nem portões; era possível andar de uma para outra sem obstruções, o que também fazia com que todos os vizinhos se conhecessem melhor, e soubessem das mais diversas histórias sobre a vida dos outros. Os caminhos percorridos no bairro não tinham barreiras, sem prédios ou muros construídos ainda. Saímos para caminhar pelas ruas ao redor, e Tereza aponta um morro onde algumas pessoas jogam futebol: 43
conta que lá, antes, era um pequeno vale que dava num lago. Tudo foi aterrado, e, onde antes se instalava um pequeno circo algumas vezes por ano, hoje é um edifício residencial, de doze andares e muros altos. Tirar água do poço todos os dias para cozinhar, para tomar banho e para lavar roupa; ir buscar lenha nas proximidades para o fogo; caminhar descalça por ruas que não tinham nem calçamento, nem pavimento. São testemunhos de uma zona afastada do centro, e que me deixam pensando numa cidade que nunca conheci. É dona Maria, agora mais desperta, e participando ativamente da conversa, quem resume muito bem meus pensamentos, ao dizer “nem parece que era São Paulo aqui”. A cidade que era São Paulo, o centro, de fato não havia chegado ali naquela época, com suas luzes, seus prédios, seu comércio, seus serviços. As lembranças de dona Maria e de sua família são essenciais para entender como se deu o crescimento dessa cidade, como, por muito tempo, algumas regiões foram esquecidas e como, até hoje, algumas ainda são.
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A CASA
N Sé Casa
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A fachada do sobrado em que moram seu Elias e a família; omiti o portão alto de madeira da garagem que existe hoje em dia.
OS DESENHOS
A HISTÓRIA
p. 45 Elias. Nanquim.
Era já noite quando cheguei na rua em que moram seu Elias e dona Mércia, na Pompeia, zona oeste de São Paulo. Apesar disso, me encontrei com facilidade pelas ladeiras e curvas acentuadas do bairro; nasci e vivi por alguns anos numa rua muito próxima. A casa, um sobrado que fica numa rua muito residencial, estava com as luzes acesas, me esperando. Seu Elias atendeu o interfone e saiu pela porta da frente para abrir o portão. Da rua, vejo as pedras que revestem a fachada da casa, as antigas grades de ferro cobrindo a janela grande da sala, alguns sacos abertos de cimento no chão da garagem, e vários vasos com plantas. Observo que o terreno do lado é um estacionamento, fechado e às escuras àquela hora da noite. Conhecendo a tendência de verticalização do bairro, e logo imagino que o casal deva receber muitas propostas de venda da casa para construir torres de apartamentos. É um dos primeiros assuntos de que falamos, eu, seu Elias, dona Mércia, sentada em um canto mais afastado do sofá, e meu pai, que conhece o casal há anos, também cresceu na Pompeia e que me acompanharia ao longo da entrevista. Estamos numa sala ampla e bem iluminada, com uma mesa com seis cadeiras e uma cristaleira antiga, de madeira escura maciça.
p. 47 A casa. Nanquim. p. 49 Bonde. Nanquim. p. 50 Relógio da fachada da antiga fábrica da Melhoramentos, na rua Tito. Nanquim. p. 51 Fachada da antiga loja da Sears. Nanquim. p. 52 Bíblia. Nanquim e aquarela. p. 53 Bola de futebol. Nanquim e aquarela.
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Falamos do bairro e de como mudou desde que se mudaram para lá: as ruas não tinham asfalto, eram de terra batida e praticamente só havia casas; falamos dos prédios e de como, de uns tempos pra cá, começaram a surgir muitos, e muito rapidamente. Então seu Elias me confirma que já foi procurado com propostas para vender a casa, mais de uma vez, mas ele recusou. Já se acostumaram com o bairro, e “arrumaram” a casa toda, dona Mércia comenta. Não acham que vale a pena sair: “estamos aqui esse tempo todo”, ele diz. Ela tem problemas de locomoção, e muita dificuldade de se deslocar, por isso, a família adaptou a casa: mudou de lugar a escada que leva ao primeiro andar, e instalou um elevador, do térreo à porta do quarto do casal. Seu Elias e dona Mércia gostam bastante do bairro: acham que é bem localizado, com boa oferta de serviços, já se acostumaram e gostam da vizinhança. Alguns vizinhos ainda são os mesmos de anos atrás; outros, já se mudaram ou já faleceram. Seu Elias é um senhor muito lúcido e muito religioso, tem 83 anos e veio para São Paulo com 17 anos de idade, de Campos dos Goytacazes, uma cidade no interior do Rio de Janeiro a 275 km da capital. Dona Mércia também não nasceu na cidade de São Paulo, e fala menos que seu Elias, mas me conta que veio pra cá quando era bem mais nova, com 5 anos de idade. Ela veio direto pra esse bairro; ele foi para a Lapa, viveu lá por 10 anos, e depois se instalou na casa em que estamos conversando.
A história de seu Elias está bastante ligada à história do bairro e de suas indústrias e lojas. Ele trabalhou na Sears da Água Branca por 36 anos, no departamento de contabilidade, quando ainda existia Sears no Brasil. A enorme loja de departamento ficava no mesmo terreno onde hoje está o Shopping West Plaza, que inclusive aproveitou partes do antigo edifício. Ele trabalhou lá até a empresa ser vendida, nos anos 1980. Ele até hoje trabalha na área, como contador da clínica médica do filho, e diz que acha muito importante manter-se ativo até hoje. Seu Elias também viu parte da história do bairro com as fábricas que se instalaram lá no século passado. Pergunta se vimos o que aconteceu com a antiga fábrica da Melhoramentos na rua Tito, antes composta por um edifício sede administrativo, com sua torre de relógio característico, e um complexo de galpões. Depois de encerradas as atividades da fábrica, há muitos anos, moradores e grupos organizados do bairro reivindicaram o tombamento total da fábrica, mas apenas o edifício principal e a torre do relógio foram tombados. Hoje, a torre e o relógio estão restau52
rados, e, no lugar dos galpões, tapumes, andaimes e placas anunciam que ali está sendo construído um novo empreendimento imobiliário, com duas torres de apartamentos de alto padrão. Seu Elias lamenta, diz que a fábrica era parte do bairro, e lembra que sentia o “cheiro gostoso da madeira” que era usada na produção de lápis. Não é só disso que seu Elias se lembra com carinho. Ele me conta que gostava de pegar o bonde para ir trabalhar todos os dias: “as distâncias eram muito grandes, e parece que o tempo passava diferente”, ele diz. Gostava de ler para matar esse tempo, andando de bonde pelo bairro que quase não tinha prédios, e cujas ruas ainda eram de terra batida, ou de paralelepípedo. O futebol é uma paixão, e o assunto volta à tona diversas vezes durante nossa conversa. Me contam que onde hoje existe
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o bairro planejado Jardim das Perdizes existiam vários campos de futebol, e seu Elias jogava de centroavante ou em “qualquer posição que desse pra fazer gol” no time B do bairro. Ele assistia às partidas do time A, esperando (não desejando, ele brinca) que algum jogador se machucasse, para que ele pudesse entrar. Jogou até os 50 anos, já nos times de idosos; faziam viagens para o interior para competir. Já no fim da conversa, seu Elias me mostra a canela cheia de cicatrizes e marcas dessa época em que “se jogava sem caneleira”. Mas até hoje ele se mantém ativo: gosta às vezes de pegar um ônibus e ir até o Parque da Água Branca, caminhar e utilizar os equipamentos de ginástica ao ar livre. Seu Elias me conta também como a Igreja teve um papel importante em sua vida: foi na Igreja Batista da Água Branca, frequentada até hoje por ele e pela família, em que aprendeu inglês, conseguiu algumas oportunidades de emprego, cresceu e adquiriu muitos dos valores que levou para a vida. Por fim, seu Elias me leva para conhecer a casa: me mostra como adaptaram a escada e instalaram o elevador para dona Mércia poder se locomover; comenta que a estrutura da casa é igual à de quando eles se mudaram para lá, apenas trocaram pisos e revestimentos. Ele brinca que sua casa “é uma for54
taleza”, que resiste há anos. Reflete que viu muita coisa mudar nesse tempo, não só no bairro, mas na sociedade, na tecnologia, nas relações humanas. Seu Elias já não joga mais futebol na rua, em razão de sua idade; mas diante do que me conta, imagino que, mesmo mais novo, tampouco jogaria. “Antigamente”, ele fala, lembrando da cidade em que passou sua infância no Rio de Janeiro, “as pessoas eram muito mais unidas, sentavam na rua à noite pra conversar. As casas ficavam abertas, as crianças entravam e saíam sem preocupação. Agora aqui você tranca tudo, até apartamento. Agora a gente tem medo”. E saio de sua casa ainda mais tarde da noite, pensando como a desunião das pessoas, a falta de vontade de sair e de desfrutar os espaços públicos e o não reconhecimento dos lugares da cidade que antes eram familiares foram narrativas constantes nas histórias de vida de meus entrevistados.
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EPÍLOGO Estas são as quatro histórias que me foram contadas ao longo desse ano de tfg: quatro casas, quatro famílias, quatro histórias de vida, que são, na verdade muito maiores e mais importantes do que representei aqui. O que mostrei foi apenas uma parte, o que me senti capaz de recontar e de ilustrar. Como disse, este trabalho não propõe um esforço de levantamento histórico preciso da cidade de São Paulo e de seu desenvolvimento urbano. Mas creio ser possível ver, nas histórias de vida, sinais bastante claros de uma urbanização que se dá de diferentes maneiras, em diferentes regiões. Há entrevistados meus que passaram as primeiras décadas de sua vida em São Paulo tomando banho com água retirada de poço, e dormindo em chão de terra batida. Outros, não tinham luz elétrica em suas casas. Alguns tinham desde sempre acesso a água encanada, gás, luz e transporte público. Mas acredito ser ainda mais importante ver o que une todas essas narrativas: a união dos moradores de determinada região diante da ausência do poder público; a identidade e o sentimento de comunidade e pertencimento que surge a partir disso, e que se perde com o passar do tempo; o crescente afastamento em relação a uma cidade que cresceu muito, e muito mais rápido do que foi possível acompanhar; o não reconhecimento mais da vizinhança e dos locais que antes eram parte de percursos diários e cotidianos; a perda progressiva da memória própria que pode, em última instância, significar a perda da memória de uma cidade. Espero ter remado contra essa maré, e oferecido, ainda que pequena, uma contribuição para o resgate da memória oral de São Paulo. 57
Este livro foi produzido com as fontes Alegreya e ITC Officina Sans, sobre papel Pรณlen Bold da Suzano, e foi impresso pela grรกfica Ipsis, em junho de 2018.
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Nos textos e desenhos aqui reunidos, falo de histórias de vida e do passado, principalmente. Falo de diferentes regiões da cidade de São Paulo, de ruas, avenidas, praças, igrejas e colégios que fizeram parte da vida das pessoas que abriram suas casas e me contaram algumas de suas histórias. Este livro é resultado de um ano ouvindo e desenhando as histórias de quatro casas e de seus moradores, idosos que conhecem seus bairros há pelo menos quatro décadas. Visitar essas casas e conhecer seus moradores foi um trabalho de recuperação de memória; rapidamente, as mesas se enchiam de fotografias amareladas de casamentos, viagens e festas de crianças, surgiam carteiras velhas de trabalho, certidões de nascimento, de casamento e de óbito. Documentos que relatam a passagem do tempo, e que muitas vezes ficam esquecidos em caixas em cantos escuros. Mas as histórias de vida não foram feitas para ficar guardadas: elas devem ser contadas e recontadas, para que evidenciem, dentre tantas coisas, as transformações urbanas e sociais por que passa uma cidade.