Fernanda Campagnucci
o outro lado do muro UMA VIAGEM À PALESTINA
EDITORA MULTIFOCO Rio de Janeiro, 2011
EDITORA MULTIFOCO Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda. Av. Mem de Sá, 126, Lapa Rio de Janeiro - RJ CEP 20230-152
CAPA e DIAGRAMAÇÃO
Guilherme Peres ILUSTRAÇÃO DA CAPA
Simone Campagnucci
O outro lado do muro: uma viagem à Palestina CAMPAGNUCCI, Fernanda 1ª Edição Março de 2011 ISBN: 978-85-7961-328-9
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A Edna e JosĂŠ, que me ensinaram a olhar o mundo
Sumário
Prefácio
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Breve história de um conflito
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Bem-vinda a Israel “Você logo se acostuma” Mikado
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“Vocês sabem que mapa é esse?”
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“Balance a cabeça e diga la, la”
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“Essa é uma questão estúpida”
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........................................
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Awdah
As laranjas de Jaffa Shereen
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103
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Barracas de concreto
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Oliveiras que choram
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Como uma novela do Kwait Um museu para Khalil
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“O que você quer ser quando crescer”? Hoje não tem aula
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Um pedaço de terra brasileira
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181
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Cuidado com o lixo Cinco
Prefácio
U
m muro tortuoso de quase nove metros de altura, de concreto, parece intransponível. Em 1896, o pai do sionismo, Theo-
dor Hertzl, escreveu que o Estado judeu na Palestina seria “um pedaço de fortaleza contra a Ásia, a sentinela avançada da civilização contra a barbárie”. Hoje, a barreira, real, materializada, que entra como garras nos territórios palestinos além de suas fronteiras, pa-
rece ser a própria barbárie. A Palestina que encontrei em julho de 2007 é uma terra fragmentada, dividida em ilhas, com barreiras, checkpoints, cercas, estradas principais e secundárias, de uso exclusivo para alguns e proibida para outros; deparei-me com uma triste colcha de retalhos: não só a paisagem está em pedaços, mas a rede social também ficou dividida, assim como a vida das famílias. A narrativa dessa viagem não poderia ser diferente: são crônicas das histórias que conheci dos dois lados do muro e que compõem um cenário mais complexo do que o noticiário é capaz de mostrar. O olhar estrangeiro de uma brasileira, que não fala árabe nem hebraico, que não tem ascendência judia ou árabe, é mais um as-
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pecto dessa fragmentação – mas está longe de ser um olhar isento. Daí o texto em forma de diário, em primeira pessoa. Para realizar esta reportagem, juntei-me a um grupo de ativistas internacionais – europeus de diversas nacionalidades, entre muçulmanos, judeus, católicos e ateus –, o que me deu um leque ainda maior de pontos de vistas. Ao ler este livro, o leitor não terá um extenso relatório sobre os tratados desrespeitados, os processos de paz interrompidos, nem um panorama detalhado da evolução do conflito. A intenção de O Outro Lado do Muro é dar um rosto humano às estatísticas e contar a História por meio das vidas de anônimos que são – estas, sim – o núcleo deste relato. Andei por cidades árabes do deserto do Neguev, invisíveis no mapa oficial de Israel, e tomei chá com seus habitantes, de carne e osso, os beduínos. Nas ruas de Tel Aviv e outras cidades de Israel, tentei enxergar os traços da guerra de 1948, que causou o exílio do povo palestino. Ajudaram nessa tarefa ativistas judeus que lutam para que esse drama não seja esquecido por lá. Ouvi, emocionada, a história do ex-soldado judeu Elik, um refusenik, que se recusou a servir o Exército e levar a ocupação adiante mesmo depois de perder uma irmã num atentado terrorista. Senti um frio na espinha ao entrar na casa palestina com paredes cobertas de fotos de um filho morto, e que parecia um santuário. Ao mesmo tempo que vi como os palestinos se estabeleceram nos campos de refugiados eternamente provisórios, ouvi sobre a expulsão tácita dos últimos moradores árabes de cidades
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israelenses, como Jaffa. Visitei a Igreja da Natividade, onde Jesus teria nascido, em Belém (Cisjordânia), e conheci Ahmad, um guia turístico desanimado diante da escassez de turistas desde a construção do muro. O mesmo muro que vi pichado em um vilarejo próximo a Tulkarem (norte da Cisjordânia) e que, literalmente, cortou casas ao meio. Um muro tão acintoso como esse é quase um convite a tentarmos enxergar o que há do outro lado. Com a grande tela cinza que nos impede de simplesmente ver o outro, não parece haver diálogo possível. Mas o muro ainda não é intransponível para alguns, e o jornalismo tem essa função: criar brechas e pontes onde as informações e histórias parecem estar presas, à espera de alguém que as escute e as leve para longe. Espero, aqui, poder transmiti-las.
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Breve história de um conflito
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ano de 1917 é o penúltimo da Primeira Guerra Mundial (19141918) e também o início do mais longo conflito que o mundo
contemporâneo conheceu. Em 2 de novembro daquele ano, o lord Arthur James Balfour, ministro das relações exteriores do poderoso Império britânico, consolida, na chamada Declaração Balfour, algo que já vinha sendo negociado entre o governo de Sua Majestade e o movimento sionista: a promessa da criação, na Palestina, de “um lar nacional” dos judeus. Uma cláusula do texto ressaltava, entretanto, que isso não causaria prejuízo à população local não-judaica. Talvez os britânicos se sentissem no direito de prometer uma terra que não era sua porque um ano antes, em 1916, Paris e Londres 1
haviam assinado secretamente os acordos de Sykes-Picot , em que definiam as linhas da partilha e as zonas de influência de cada uma das duas potências no Oriente Médio – como num jogo de tabuleiro – no caso de ganharem a guerra. Mas os britânicos não se contentam apenas em apoiar a criação de um lar nacional para os judeus. Fazem a mesma promessa a diri1. Marks Sykes e Georges Picot eram dois altos funcionários dos governos britânico e francês, respectivamente.
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gentes árabes. O califa otomano, governador dos territórios do Oriente Médio, havia se aliado à Alemanha e ao Império Austro-Húgaro em 1914. Para derrotá-lo, o governo britânico convence os árabes a se revoltarem contra o Império Otomano, em um levante liderado por Husayn, xarife de Meca. Em troca, Londres promete se engajar na independência dos árabes. Mas, terminada a Primeira Guerra, a região é simplesmente dividida entre a França e a Grã-Bretanha, conforme previam os acordos secretos. A recém-criada Liga das Nações, embrião das Nações Unidas, estabelece um sistema de mandatos no Oriente Médio e, a partir de 1922, o mandato sobre a Palestina é atribuído aos britânicos. Era previsto que a potência mandatária fosse também responsável pela execução dos compromissos firmados pela Declaração Balfour, endossada pelas potências aliadas. Até o fim do século XIX, a imigração judaica para a Palestina havia sido pouco significativa. Uma lei de 1867 concedia aos estrangeiros o direito de possuírem terras no Império Otomano, o que facilitou a aquisição de propriedades pelos sionistas. Quando a imigração se torna mais regular, no início do século XX, começam os primeiros conflitos entre camponeses palestinos e colonos judeus. O movimento sionista tinha duas bandeiras: a conquista da terra e do trabalho. Além da compra sistemática de terras, as lideranças sionistas impõem às colônias a proibição de empregar trabalhadores árabes muçulmanos nos seus estabelecimentos agrícolas ou industriais. Para contornar a situação, as colônias decidem empregar ára-
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bes diferentes – árabes judeus. A leva de imigração de árabes judeus do Iêmen foi a primeira a ser incentivada. Na primeira década do século XX, a Palestina já tinha uma população de aproximadamente 800 mil habitantes, sendo 650 mil muçulmanos, 80 mil árabes cristãos e 60 mil judeus. Até 1939, a Grã-Bretanha favorece a imigração judaica na região. Desde a conquista de Jerusalém, em 1917, instala-se uma administração sionista independente e paralela à administração britânica. O Yishuv – nome dado à comunidade judia instalada na Palestina – começa, assim, a formar seu Estado. É criada a Agência Judaica, que se dedica especialmente a acelerar a imigração, escolhendo os candidatos e cuidando da burocracia. Os imigrantes vinham principalmente da Europa Central e da Rússia dos czares, fugidos dos pogroms, ou simplesmente da miséria. Entre 1919 e 1923, cerca de 35 mil imigrantes chegam à Palestina. Entre 1924 e 1925, com a adoção de uma política antijudaica na Polônia e a restrição da imigração sobretudo nos Estados Unidos, aumenta o fluxo populacional para a região, embora ainda seja pouco significativo: em 1927, por exemplo, há mais saídas do que ingressos de migrantes. Somente a partir da ascensão de Hitler ao poder, em 1933, e da perseguição aos judeus que se seguiu, a imigração se intensifica, agravando os conflitos entre palestinos e judeus, que já vinham se radicalizando desde 1920. Em abril de 1936, os distúrbios locais culminam em uma grande revolta dos palestinos, não só contra a colonização sionista, mas também contra as autoridades britânicas. O movimento dura até 1939,
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coincidindo com o crescimento de um movimento nacionalista antifrancês e antibritânico no mundo árabe. O balanço é trágico: são mortos de 3 mil a 6 mil árabes, 400 judeus e 140 britânicos, além de milhares de prisões e deportações. Em 11 de novembro de 1937, a Irgun, organização militar sionista, lança mão do terrorismo, promovendo atentados a bomba em locais públicos. Em 6 de julho de 1938, na cidade de Haifa, uma bomba mata 21 pessoas numa feira árabe; em 25 do mesmo mês, outra explosão faz uma quarentena de mortos. Diante da situação, a Grã-Bretanha recua. Em 17 de maio 1939, 2
o mandato britânico edita o terceiro “livro branco” sobre a Palestina, que causa grande revolta do movimento sionista. A resolução recomenda um estado binacional, além de restringir severamente a imigração. Em setembro, começa a Segunda Guerra Mundial e o teor do conflito muda. Os jovens sionistas lutam ao lado dos britânicos contra os alemães e a região se transforma em um enorme aquartelamento militar, o que provoca um surto de desenvolvimento econômico na região. O engajamento judeu na guerra permitiu o desvio de armas para as milícias que seriam o embrião do futuro Exército israelense. Em 1947, Londres decide levar a questão às Nações Unidas. O brasileiro Oswaldo Aranha preside a sessão da Assembleia Geral de 29 de novembro, que adotou a resolução 181 – conhecida como plano
2. Em inglês, “white book” : trata-se de um relatório ou guia de ação, emitido por autoridade governamental, que em geral se refere ao modo de encaminhamento de um problema específico. Os “livros brancos” sobre a Palestina expressavam a política oficial do governo britânico para a região. Cada um deles ficou conhecido pelo nome do Secretário Colonial da época; o de 1939 é também conhecido como Livro Branco de MacDonald.
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de partilha da Palestina. Sensibilizados com o Holocausto, os membros da comissão da ONU que analisou o caso previam no texto um Estado judeu, um Estado árabe e uma zona sob regime internacional ao redor de Jerusalém. Os judeus ficariam com 55% das terras e os palestinos, com 45%. Os ataques às cidades árabes começaram um mês após a aprovação do plano de partilha. Em abril de 1948, uma centena de pessoas foi massacrada no vilarejo palestino de Deir Yassin. Outras cidades também foram atacadas. Em 14 de maio de 1948, David Ben-Gurion proclama o nascimento do Estado de Israel, o que causa a imediata reação dos Estados árabes – Transjordânia, Egito e Síria, que, ajudados por contingentes libaneses e iraquianos, invadem o novo país no dia seguinte. O resultado é desastroso para os árabes: Israel conquista ainda mais territórios e se apodera de 78% da Palestina histórica. Cerca de 90% da população árabe é expulsa do território designado como Estado judeu; milícias sionistas destroem mais de 530 vilarejos árabes; confiscam terras e a criam mais de 700 colônias, com o objetivo de absorver novos imigrantes judeus. Em dezembro de 1948, a ONU aprova a resolução 194, que estabelece o direito dos refugiados de retornarem às suas casas e receberem reparações. Em 1949, um armistício é assinado por Israel e seus vizinhos árabes, que perderam a guerra. Em 1950, a Transjordânia e o Egito assumem o controle da Cisjordânia e de Gaza, respectivamente. Israel adota a Lei do Retorno, que concede a nacionalidade israelense a todo imigrante judeu, ao passo que proíbe o retorno dos palestinos refugiados.
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Em 1967, como resultado da Guerra dos Seis Dias, Israel ocupa todo o resto da Palestina (Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Leste), além do Sinai egípcio e das Colinas de Golã, da Síria. Começa a colonização dos territórios ocupados. Em pleno feriado judaico do Dia do Perdão (Yom Kipur), em 6 de outubro de 1973, Síria e Egito promovem uma ofensiva contra Israel, para reconquistar seus territórios ocupados desde 1967. Após três semanas de combates, o Exército israelense consegue repelir os inimigos. Em 1979, o Estado judeu assina o primeiro acordo de paz com um vizinho árabe, o Egito, e devolve a Península do Sinai. Em dezembro de 1987, um veículo militar israelense atropela e mata quatro palestinos em Gaza, marcando o início da explosão da primeira Intifada – que se estendeu, depois, à Cisjordânia. A chamada revolta das pedras foi liderada por uma geração de jovens palestinos que cresceu sob a ocupação israelense e teve importante participação das mulheres. Durante três anos, morreram 800 palestinos e outros 15 mil foram presos. Do lado israelense, foram registrados 50 mortos. Em 1988 a Organização pela Libertação da Palestina, criada em 1964 e presidida por Yasser Arafat, proclama o Estado da Palestina, acata as resoluções 181 e 242 (que reconhece o direito de existência ao Estado de Israel, mas exige a retirada das forças ocupantes dos territórios palestinos), além de reafirmar a condenação ao terrorismo. O caminho estava aberto para as negociações de paz promovidas pelos norte-americanos e russos. Em 1991, uma conferência de paz é organizada em Madri. Em 1993, Israel e OLP se reconhecem mutuamente. Em uma cerimônia histórica na Casa Branca, Yasser Arafat e o primeiro-ministro
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israelense Yitzhak Rabin apertam as mãos pela primeira vez em público, diante do presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. Mas, enquanto avançavam as negociações pela paz, a violência não cessa. Israel continua expandindo suas colônias e extremistas islâmicos continuam a promover ataques contra judeus. Em novembro de 1995, Yitzhak Rabin é assassinado por um jovem judeu de extrema-direita, contrário ao diálogo com os palestinos. A direita, representada por Benyamin Netanyahu, ganha espaço no Parlamento israelense e vence as eleições em 1996. A partir daí, nenhum dos acordos vingou – e algumas causas disso são abordadas ao longo deste livro. Em julho de 2000, fracassam as negociações em Camp David, entre o premiê israelense Ehud Barak, o presidente da Autoridade Palestina Yasser Arafat e o presidente americano Bill Clinton. Em setembro do mesmo ano, Ariel Sharon, chefe do partido Likud, da direita israelense, entra na Esplanada das Mesquitas, ges3
to que foi considerado uma provocação pelos palestinos , e levou à Segunda Intifada. Em março de 2001, Sharon é eleito primeiro-ministro, cargo em que permaneceria até 2006. Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos, o novo presidente George W. Bush toma posse do seu primeiro mandato, alinhando-se às posições de Israel. As histórias deste livro acontecem em 2007, num momento em que a Palestina está completamente fragmentada pela ocupação isra-
3. Sharon é uma figura controversa mesmo dentro de Israel, sendo considerado por seus adversários como um criminoso de guerra, em razão de seu envolvimento nos massacres de Qibya (1953) e de Sabra e Shatila (1982).
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elense. São numerosos os postos de controle, muros, barreiras, grandes colônias e diferentes divisões administrativas, tanto na Cisjordânia como na parte oriental de Jerusalém, que deixam território e sociedade civil isolados em mais de 190 “ilhas”. Tal fragmentação se expressa também no conflito entre os grupos Hamas e Fatah, numa guerra fratricida que já deixou mais de uma centena de mortos. É neste momento que chego à região.
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Bem-vinda a Israel TERÇA-FEIRA, 10 DE JULHO DE 2007
“D
esculpe, não posso sentar entre duas garotas”, me diz um
senhor barbudo, com um largo chapéu preto, sentado em
minha poltrona ao lado da janela no voo MA214, Budapeste-Tel Aviv. Como a garota do corredor, na ponta dessa fileira de três assentos, não esboçasse qualquer reação, sentei na poltrona que me restou, a do meio. O incidente me lembrou então de que eu, ateia e brasileira, ignorava grande parte do mundo no qual desembarcaria dali a algumas horas. Passageiros de voos de diferentes origens se enfileiravam em frente às cabines do controle de passaporte do aeroporto de Tel Aviv. Judias usando vestidos de mangas compridas, falando inglês, português ou francês com seus maridos; muçulmanas com véus na cabeça e turistas com camisas floridas e óculos escuros. Um relógio pendurado no teto do saguão marcava 4 horas da madrugada e o aeroporto não estava tão movimentado. Mas o andamento das filas dependia da duração de cada interrogatório. Minha fileira empacou com uma família árabe, que já demorava mais de 20 minutos
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para ser interrogada, enquanto outras filas desapareciam e se formavam rapidamente. O controle pode começar antes, na própria fila. Já me haviam alertado sobre os agentes à paisana que abordam os visitantes para questionar sobre seu roteiro no país. Uma resposta suspeita – o fato de o sujeito ser ou parecer árabe aumenta os riscos – e o interrogado pode ser impedido de entrar no país, por questões de segurança. Quando finalmente chegou a minha vez de falar com a mulher de dentro da cabine, mostrei meu passaporte verde e tentei parecer natural ao repetir meu “mito”. Seguindo as recomendações de franceses que fizeram a mesma viagem, eu já havia preparado toda uma história para não correr o risco de ser barrada. Amigos descendentes de magrebinos também me haviam contado suas passagens intermináveis pelo controle de entrada no país. Então, eu era turista. Na minha bagagem, nada além de roupas – incluindo roupa de banho –, máquina fotográfica e câmera filmadora. Qualquer objeto ou livro que remetesse à Palestina era desaconselhado. Cisjordânia, Gaza? Sei que existem problemas por lá, mas não entendo o que acontece e gostaria que isso não prejudicasse minhas férias. Se perguntassem por que eu viajava sozinha, a razão seria “conhecer pessoas”. Se quisessem saber do meu roteiro, “Mar Morto-Templo de Massada-Jerusalém”. O motivo da minha viagem? Não sou religiosa, mas me interesso por sítios históricos – se dissesse que fui para conhecer a região onde Jesus nasceu qualquer pergunta sobre religião que viesse a seguir desmascararia minha fraude. Quanto à estadia, eu tinha
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sorte: um amigo israelense – que conheci semanas antes em uma comunidade de hospedagem solidária na internet – tinha aceitado me receber nos dois primeiros dias, sem saber do propósito jornalístico da minha viagem. Assim, se perguntassem, eu ficaria na casa do Gilad. Neurose? Preferi não arriscar. “Qual objetivo da sua viagem?”, perguntou, com os olhos fixos no meu passaporte, a agente israelense. “Turismo. Quero conhecer a cidade velha”. “Que lugares pretende visitar?” “Mar Morto, Templo de Massada, Jerusalém”. “Tem lugar para ficar?” “Sim. Na casa de um amigo. Gilad Rotem”. “Seu endereço?” “Ele é de Hertzillya e vem me buscar na estação de trem. Tenho o telefone dele, se precisarem”. A mulher checou alguma coisa em seu computador. Pediu o telefone de Gilad, mas não ligou. Meu ensaiado interrogatório não durou mais de cinco minutos, e um seco “enjoy your stay” me liberou dali.
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“Você logo se acostuma” QUARTA-FEIRA, 11 DE JULHO DE 2007
À
quela altura, eu não sabia muito bem o que me esperava, mas estava certa de que minha estadia não seria exatamente diver-
tida, como propunha a agente do aeroporto. Naqueles últimos meses, o mundo acompanhava com atenção o crescente conflito entre os partidos palestinos Fatah, secular, e o Hamas, islâmico. Este último, considerado uma organização terrorista, havia ganhado o parlamento nas eleições de 2006, não sem desagradar a chamada “comunidade internacional”. Assim, a Autoridade Nacional Palestina (ANP) teve cortados os recursos da União Europeia, seu principal doador – que contribuía com 25% do orçamento palestino –, assim como o repasse de impostos arrecadados pelo Estado de Israel – mais de 50% dos recursos da administração palestina. Os Estados Unidos também anunciaram a suspensão da ajuda à ANP. Nos territórios ocupados não há moeda própria, nem sistema bancário próprio. Líderes árabes foram pegos tentando atravessar a fronteira com dinheiro vivo, já que estava proibida a transferência de recursos de países vizinhos que quisessem ajudar. Os funcioná-
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rios da administração – incluindo médicos e professores – estavam há 18 meses sem receber salários e a insatisfação era obviamente grande. Salam Fayyad, do Fatah, fora colocado no lugar do primeiro-ministro deposto, Ismail Haniyeh, representante do Hamas eleito em 2006. E, com isso, Israel anunciara a liberação da transferência dos recursos provenientes de impostos arrecadados na região, alguns dias antes da minha chegada. Segui para a estação de trem onde Gilad viria me buscar, assim que eu ligasse. Os bilhetes são vendidos em máquinas automáticas, mas difícil foi entender que direção pegar. As estações não parecem ter sido projetadas para receber turistas – pelo menos não os que não falam hebraico – , apesar da grande confluência que é aquela região. A maioria das placas não tem instruções em inglês, nem mesmo a transliteração dos nomes de bairros e cidades para o alfabeto latino. Perguntar às pessoas também não foi tão simples. Ao contrário do que eu tinha ouvido dizer, não são todos os israelenses que falam inglês. Depende da idade e da classe social do indivíduo. Nesse caso, era só dizer Hertzillya que, teoricamente, eu acharia a direção (e a estação de destino). Mas três pessoas diferentes deram três informações também diferentes. O nascer do sol visto de dentro do trem expresso quase me distraiu na hora de descer. Era muito mais intenso do que qualquer outro que eu já tivesse visto. Com a paisagem meio seca, os amarelos e laranjas do céu pareciam ter sufocado qualquer azul. O senso comum diz que a região é desértica, mas não é o caso de uma área que faz parte do chamado Crescente Fértil – a área, em
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forma de meia-lua, que se estende das planícies aluviais do Nilo até o Golfo Pérsico. Chegando à estação Hertzillya, parei para tomar um café e ler os jornais. A capa da edição em inglês do diário israelense Ha’aretz estampava que o Irã deve atingir sua capacidade nuclear em meados de 2009, segundo informações da inteligência das Forças Armadas de Israel (FDI). O relatório dos analistas militares, publicado naquele dia, listava as quatro principais ameaças a Israel: em primeiro lugar, os iranianos; em seguida, a Síria, sempre se preparando para uma guerra contra o país, sem, no entanto, estar tão interessada num conflito àquela altura; em terceiro, o Hezbollah, organização política e paramilitar dos muçulmanos xiitas do Líbano. Por último – quem diria – estava a Palestina. O relatório dizia que o terrorismo deve continuar na região, mas que a Autoridade Palestina não representa mais ameaça ao Estado de Israel. Chego num momento em que a Palestina está relegada às páginas internas dos jornais. Mas isso eu também só entenderia mais tarde, ao ouvir do ativista israelense Michael Warschawski, o Mikado, a triste metáfora: os palestinos, para os israelenses, são como picadas de mosquito; às vezes coçam, incomodam um pouco, mas passamos uma pomadinha e não precisamos ir ao 4
médico por causa disso. A economia vai de vento em popa , e a comunidade internacional apoia tacitamente as ações de Israel nos territórios ocupados.
4. O Produto Interno Bruto (PIB) de Israel cresceu cerca de 5% por ano desde 2003, e o crescimento do PIB em 2007 está estimado em 5,4%.
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“Territórios ocupados”. Dependendo da linha editorial do jornal, dizer “ocupado” já é um grande avanço. Alguns veículos se valem de eufemismos para falar da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Os dois territórios, sob ocupação militar desde 1967, representam apenas 22% da Palestina histórica, isto é, a Palestina antes da criação do Estado de Israel, em maio de 1948. Alguns israelenses esquecem a segunda palavra e ficam só com a primeira (“territórios”), consolidando a ideia de que a região é controlada por Israel.
Não é exagero dizer que alguns mapas nem mesmo delimitam as duas áreas tão conhecidas pelo noticiário internacional. A Cisjordânia, por exemplo, é a Judeia-Samaria (nomes bíblicos). O guia turístico que comprei sequer mencionava a palavra “Palestina”. O mapa de Israel estava pintado inteiramente da mesma cor, englobando os territórios
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palestinos. Comprei o guia logo naquele dia em um grande shopping center – durante o primeiro passeio que fiz com Gilad, de carro.
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Um homem mandou o carro parar antes de entrarmos no estacionamento. Passou um detector de bombas embaixo do veículo. Depois, já na entrada do shopping, pediram que abríssemos nossas mochilas – procedimento obrigatório para todos que desejam entrar ali. Contei a Gilad, num tom meio irônico, que, só naquela manhã, já tinham me “controlado” várias vezes. Enquanto eu o esperava na estação ferroviária, por exemplo, fiquei lendo o jornal, ao lado de dois guardas, por pelo menos uma hora. Depois, passei sob seus olhos e saí pela porta de vidro, para usar um telefone público do lado de fora, a menos de dois metros. Quando voltei para dentro da estação, os mesmos guardas pediram para olhar minha mochila. “Isso tem em todo lugar”, disse Gilad, meio indiferente. “Você logo se acostuma”. Diante do meu silêncio, Gilad continuou. “O problema é a maneira como fazem isso, sem educação. Além do mais, se eu quisesse trazer uma bomba escondida em outro lugar eu traria, sabe?”, disse, apontando para o banco de trás do carro, onde o detector não acusaria a presença de explosivos. “É, pode ser uma maneira de deixar as pessoas mais tranquilas”, falei, sem certeza do que falava. Gilad concordou. Continuamos nosso passeio.
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Tel Aviv é uma cidade relativamente nova. Foi construída pelos sionistas para ser sua capital moderna e secular – os judeus ortodoxos continuaram concentrados essencialmente em Jerusalém. A cidade foi fundada em julho de 1907, exatos 100 anos antes de eu pisar ali, por sessenta e seis entusiásticos sionistas. Eram dos primeiros a chegar à região para criar colônias, com a ajuda do barão de Rothschild. Tudo começou com uma mansão, chamada Ahuzat Bayit – mais tarde denominada Tel Aviv – construída com o financiamento do Fundo Nacional, principal agência sionista. Novos edifícios surgiram no verão seguinte. Um século depois, nota o historiador Ilan Pappe, através de uma história tortuosa, a sociedade judaica voltaria a se dividir entre a Jerusalém ortodoxa e a Tel Aviv secular, “como se o tempo tivesse parado”. A intensidade do sol me dava ainda mais a impressão de que eu andava por uma cidade branca. As construções da área central seguem, em sua maioria, a arquitetura da Bauhaus. Vindos da Europa no início do século XX, os arquitetos precisavam projetar uma Tel Aviv que não parava de acolher imigrantes judeus. As formas deveriam ser as mais simples possíveis, dado que a economia do futuro Estado de Israel ainda estava em formação, sob o mandato britânico. Também havia o sonho da criação de uma sociedade igualitária, sem sofisticações – o sionismo fundador de Israel era de esquerda. Grande financiador da empreitada, o barão de Rothschild hoje é nome de praças e ruas. Uma delas é o arborizado boulevard Rothschild, no centro de Tel Aviv, onde as pessoas passeiam tranqui-
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las, os namorados se dão as mãos e as velhinhas caminham lentamente. Descendo à sombra das palmeiras com Gilad, demos de cara com mísseis Qassam – dezenas deles – amontoados, encravados no chão, ao lado de um sofá destruído, móveis quebrados ou um urso de pelúcia coberto de poeira. Era uma “instalação artística” que procurava chamar a atenção para as famílias israelenses da fronteira com a Faixa de Gaza, na cidade de Sderot, que vivem com medo de serem atingidas – e o são, efetivamente – com o que “sobra” do outro lado. Como são pobres, muitas delas vindas de antigos países da antiga União Soviética, fala-se de uma indiferença por parte do Estado de Israel. No livro de visitas, alguém faz um apelo, em hebraico, que Gilad me traduz: “precisamos todos sair desta bolha, precisamos acordar”. Eu procurava atentamente algum sinal da Palestina, mas não era fácil. A estrela de Davi é encontrada frequentemente pichada nos muros, junto à frase, em hebraico, “somos nós o Estado de Israel”. A bandeira de Israel está pendurada aqui e acolá nas janelas. Nas lojas de Tel Aviv, raramente se vê um símbolo palestino – o máximo que pude ver foram camisetas com slogans pacifistas, como “Stop the War”. Quanto a manifestações de protesto, na branca Tel Aviv daquele dia, vi apenas um grupo de jovens vestidos com camisetas escuras e jeans rasgados, que distribuíam panfletos contra as agressões aos animais. Gilad e eu sentamos num bar para comer... hummus. Se eu não vira menção nenhuma à causa palestina até aquele momento, os cardápios estavam repletos de pratos árabes: falafel (bolinhos de
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grão de bico), pita (pão árabe) e muitas variedades de hummus, uma receita muito popular nos países árabes como o Líbano, a Síria, a Jordânia e a própria Palestina. Dizem que o prato já tem mais de dois mil anos e era usado no Egito dos faraós. De um cardápio que continha dezenas de formas de preparo do hummus, escolhi a de limão, azeite e páprika. Para acompanhar, Gilad me apresentou a taibeh, cerveja local. Enquanto eu aprendia algumas palavras em hebraico para me virar sozinha com o mínimo de politesse – shalom (saudação), bevakasha (por favor), slicha (desculpe), toda (obrigada), ken (sim), lo (não), um grupo de brasileiros tagarelava na mesa ao lado. Duas senhoras falavam português do Brasil, em outra mesa. Havia também muitos franceses. Perguntei a Gilad se eram turistas. Ele respondeu que muitos deles vinham para comprar casas e apartamentos caríssimos, aumentando consideravelmente a especulação imobiliária na região, o que já desperta raiva da população local, que vê os preços subirem cada vez mais. Gilad trabalha à noite em uma videolocadora e precisou me deixar. Fui a um café, a uma lan house e tentei fazer meus contatos e marcar entrevistas para os próximos dias. Nem vi o tempo passar. Quando procurei o caminho de volta que Gilad havia me explicado, não pude encontrar. Pensei que, se fosse a um grande terminal, certamente acharia um ônibus que me levasse ao local combinado com ele. Mais uma vez, ninguém soube me explicar onde eu poderia pegar um ônibus para o terminal mais próximo. Alguém me indicou um terminal ao sul, direção contrária à casa de Gilad.
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Chegando ao terminal, tive que abrir minha mochila – eu já estava me acostumando. Dessa vez, o vigia não teve pudores: revirou meus chocolates, pasta de dentes, papéis que jogo na bolsa e esqueço de jogar no lixo. Enquanto eu esperava, observei dois jovens soldados no ponto de ônibus (uma garota e um garoto de pouco mais de 18 anos), rindo e falando alto, com seus fuzis M-16 a tiracolo. Lá dentro, fiquei ainda mais perdida: o terminal, de quatro andares, tinha sinalização em hebraico. Segui as imagens daquele “i” dentro de um círculo que, geralmente, quer dizer “informação”. Mas a mulher da cabine parecia estar desinformada, porque pediu com um sinal que eu me encaminhasse à bilheteria. Lá, o vendedor não sabia dizer em qual das plataformas estava o ônibus de que eu precisava. Na fila, uma jovem atrás de mim disse que a companhia de ônibus estava em greve naquele dia. Liguei para o celular de Gilad e ele propôs que seu pai viesse me buscar. Envergonhada, mas sem alternativa, aceitei. Quase uma hora depois, eu estava sentada à mesa com os pais do meu amigo – ele, israelense, ela, marroquina – e sua irmã mais nova, Noah. Não tive como não aceitar mais hummus, e a conversa se estendeu por pelo menos duas horas. A discussão era em francês – ficaram muito felizes em desenferrujar a língua – com algumas traduções para Noah, que ainda aprendia o idioma. O assunto era o Brasil. “Cidade de Deus... é daquele jeito, mesmo”?, perguntou a mãe de Gilad, dizendo que a família toda já tinha assistido ao filme de Fernando Meirelles.
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“Tem muito de verdade na ficção...”, respondi. O assunto violência não renderia muita coisa. Música brasileira? Quase caí da cadeira ao ver a mãe dele cantar, com português perfeito, os primeiros versos de Trem das Onze, de Adoniran Barbosa, que fala do bairro paulistano Jaçanã. “Não posso ficar, nem mais um minuto com você...” “Eu moro lá! Eu moro em Jaçanã!”, disse, feliz com a surpresa de ouvir a referência ao bairro onde cresci – ali, num lugar tão longe de casa. “Onde você aprendeu a letra”? Ela deu de ombros, como quem diz: “por aí...” “E as telenovelas brasileiras”, disse Noah, “fazem muito sucesso aqui”. Perguntei o que achavam delas e responderam com uma careta. Noah disse ainda que uma amiga dela era brasileira, adotada por um casal israelense quando bebê. Eu soube, depois, que esses casos são recorrentes por lá. Um deles é famoso, e em 2007 virou documentário: “Bruna”. Conta a diretora do filme, Nili Tal, que nos anos 80, antes mesmo de Madonna e Angelina Jolie buscarem crianças no Terceiro Mundo, os israelenses viajavam para o Brasil a fim de adotar crianças supostamente abandonadas. Ela já havia feito um filme sobre a questão – “Meninas do Brasil” – que acompanha quatro garotas israelenses que vêm ao país para tentar encontrar suas mães biológicas. Segundo a cineasta, três mil famílias adotaram crianças brasileiras até 1988, quando o caso de Bruna ganhou notoriedade e pôs fim às adoções internacionais. A menina brasileira foi adotada aos 4 meses e levada a Israel. Dois anos depois, Rosilda, sua mãe biológica, desembarcou
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em Tel Aviv com a ajuda de um canal da TV britânico para tentar reaver sua filha que, segundo ela, havia sido sequestrada. A corte de justiça israelense decidiu a favor de Rosilda e Bruna foi tirada dos pais adotivos. Vinte anos depois, Nili Tal vai a Curitiba para localizar a menina Bruna e saber de seu destino. Bruna tinha então 22 anos e dois filhos pequenos. Depois de algumas tentativas de fuga, havia deixado a casa da mãe e morava “de favor” com o pai, que não a queria ali. Não conseguia emprego e havia parado de estudar. O filme deixa no ar a pergunta: teria sido melhor se ela tivesse permanecido em Israel? Não há respostas, mas Nili Tal informa ao espectador um alarmante número de 7 milhões de crianças abandonadas no Brasil. Fui dormir no quarto que Gilad me cedera – o dele –, enquanto ele próprio dormiria no quarto de seu irmão, que estava viajando. Dei uma olhada ao meu redor e vi cartazes de filmes como Pulp Fiction e algumas fotos dele, com armas e amigos, feitas na época em que servia o Exército, por mais de dois anos. Decidi terminar de ler o Ha’aretz daquele dia, e uma notinha me chamou a atenção. “A Autoridade Israelense de Antiguidades (IAA) acaba de autorizar a construção de um Museu da Tolerância, em Jerusalém ocidental”, dizia. Exatamente sobre o terreno de um cemitério árabe, no qual, desde a Idade Média, célebres personagens da história muçulmana eram enterrados. Eu ouvira falar sobre esse caso antes de viajar, num folheto distribuído por ativistas. Em 1948, o cemitério de Ma’manullah já havia sido profanado para a construção de um estacionamento e um hotel. Agora, no que resta dele, um Museu da
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Tolerância será erguido com financiamento do centro norte-americano Wiesenthal. Aparentemente, de nada serviram os protestos do arqueólogo Raphael Greenberg, professor da Universidade de Tel Aviv, e da Al Karameh, ONG palestina de defesa dos refugiados. Fechei o jornal.
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Mikado QUINTA-FEIRA, 12 DE JULHO DE 2007
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u tinha combinado que ficaria mais duas noites na casa de Gilad, mas quis partir antes disso, para Jerusalém. Marquei uma
entrevista com Michael Warschawski, conhecido como “Mikado” pelos amigos, na redação do Centro de Informação Alternativa (Alternative Information Center - AIC). Pela manhã, Gilad me deixou numa rodoviária e fui, de mochilão, decidida a ficar em algum albergue de Jerusalém. Mikado me recebeu sem muitos rodeios, e quis logo começar a conversa. Baixinho, careca e de bigode, o militante pacifista israelense é um dos fundadores do AIC, uma ONG com bases em Israel (Jerusalém ocidental) e na Palestina (Belém). O espaço foi criado em 1984 justamente para que ambas as partes do conflito fossem vozes atuantes na luta pela paz. O site da organização (www.alternativeinformation.org) divulga vídeos, notícias em texto e áudio, e tem inúmeras publicações que analisam os efeitos da ocupação militar da Palestina. O ativista nasceu em 1949 em Estrasburgo, na França, numa família de judeus ortodoxos. Vive em Jerusalém desde 1965, onde
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estudou na Yeshiva (escola talmúdica). Em 2002, a AIC chegou a ser fechada por Ariel Sharon, em represália às constantes denúncias dos crimes cometidos durante a ocupação israelense da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Começamos a conversa discutindo a notícia que eu lera nos jornais, no dia anterior. “O Ha’artez trouxe, ontem, um relatório do serviço de informação israelense dizendo que a autoridade palestina não representa mais ameaça para a existência de Israel, que deve se preocupar, isso sim, com o Hezbollah, a Síria e o Irã. O que mudou no conflito israelo-palestino?”, perguntei. Para Mikado, tudo era consequência de duas viradas. “A primeira é que passamos de uma fase de descolonização global – da qual a Palestina talvez seja a última expressão – para uma época de recolonização do mundo. É a guerra sem fim de George W. Bush para reconquistar uma posição perdida, não somente em termos territoriais, mas no plano social nos países ricos, anulando direitos conquistados pelos trabalhadores. É uma recolonização porque retira o pouco de autonomia da Autoridade Palestina, nos territórios que administrava”. A outra reviravolta, segundo ele, estava inteiramente ligada a essa. “Passamos de um longo período político colonialista para uma ideia de choque de civilizações, categoria na qual o conflito israelo-palestino foi enquadrado. Houve um reposicionamento – inclusive no seio do movimento nacional palestino – no sentido de separar os maus dos bons, o ‘Hamastão’ de Gaza e a ‘Fatahlândia’ da
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Cisjordânia – o que é um grande absurdo, já que há tanta gente do Hamas na Cisjordânia quanto em Gaza”. O que Mikado me dizia se encaixava – não por acaso – na tese de Edward Said, em seu livro Orientalismo, de 1978. Para Said, grande intelectual palestino radicado nos Estados Unidos, o Oriente é uma invenção ocidental, um carimbo que marca as civilizações a leste da Europa com o signo da inferioridade, do exotismo. Assim, o mundo é dividido entre “eles” e “nós”. No prefácio da edição de 2003, ano de sua morte, Said explica que esse mecanismo é usado não apenas por intelectuais mas também por altos funcionários de Washington, prestando-se facilmente “à manipulação e à organização das paixões coletivas”. Por isso Warschawski acredita que, depois de 11 de setembro de 2001, o conflito mudou de caráter. Ele explicou que o objetivo de Israel e dos países que o apoiam é encampar uma guerra contra os palestinos, sem usar o discurso de colonização. Agora a guerra é contra o Islã. Os palestinos são, em parte, uma ameaça à chamada civilização judaico-cristã e Israel se situaria na primeira linha de 5
defesa da civilização face à barbárie . “O muro não é um muro local, mas global, que separa o mundo em dois. Israel está na linha de frente do bem, da civilização, da Europa, dos EUA. A Palestina está na linha de frente dos bárbaros, a Síria, o Irã, o Iraque, o Afeganistão”, continuou Mikado. 5. A ideia de separação entre a civilização da barbárie na região aparece no livro “O Estado Judeu” (1896) de Theodor Herzl, pai do movimento sionista. “Para a Europa, constituiríamos aí um pedaço de fortaleza contra a Ásia, seríamos a sentinela avançada da civilização contra a barbárie”, escreveu. HERZL, Theodor. O Estado Judeu, p.68.
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Comentei que não é preciso ser um historiador para desconfiar do termo “civilização judaico-cristã”. O que isso quer dizer? Pelo que se sabe, em séculos de História, os judeus sempre foram perseguidos por cristãos – da Idade Média a Hitler, pelo menos. Warschawski concordou comigo. “Se antes havia um muro que separava o oeste capitalista do leste comunista, agora há um que separa o Islã da civilização judaico-cristã. Para combater a situação, deve-se desmistificá-la, já que se trata de uma estratégia. Voltar a uma filosofia de abertura e não de fechamento; da mistura, e não do choque de civilizações, começando, por exemplo, com a desconstrução do conceito de civilização judaico-cristã. Quando colocamos um hífen ligando os dois termos, é para excluir um terceiro. Existirá uma história judaico-cristã? As relações não foram das melhores, com massacres desde a Idade Média até Hitler, de fato. Não se trata de uma grande harmonia civilizacional face aos bárbaros. Por outro lado, houve uma ligação judaico-muçulmana muito rica. É preciso fazer um trabalho de reconstrução da História entre os jovens, que crescem num mundo bipolar. Não mais entre comunismo e capitalismo, mas entre judeus e cristãos, de um lado, e os muçulmanos, de outro”. “Os palestinos passaram, então, de atores políticos a representantes do terrorismo, sem terem necessariamente mudado. Como Israel pôde justificar esse novo tratamento?”, perguntei. “Houve uma verdadeira guerra de propaganda preparada pelos 6
neoconservadores, planejada nos think-tanks norte-americanos e is6. Um think tank é uma instituição, organização ou grupo de investigação que produz conhecimento e
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raelenses. Eles refletiram sobre um novo mundo desde os anos 80, e também sobre estratégias a desenvolver nessa dimensão ideológica”. Mikado exemplificou sua tese com Yasser Arafat. Segundo ele, no espaço de uma semana, mudou-se radicalmente a sua imagem – de ganhador do Prêmio Nobel da Paz, moderado e disposto à negociação, para terrorista trancado na Muqata (o Quartel General 7
palestino em Ramallah) a partir de 2001 . “Podemos ver a mudança também na linguagem. Se olharmos os jornais, depois de 2001, a palavra ‘ocupação’ desaparece, só se fala de ‘terror’. Havia um consenso sobre o problema da ocupação, e essa ótica foi revertida. Os palestinos eram considerados pela Europa – e eu diria mesmo pelos estadunidenses – como vítimas de um problema para o qual devemos encontrar uma solução. Hoje é Israel que passa a ser a vítima. Depois do 11 de setembro é a América que vira vítima. Há uma verdadeira inversão na linguagem: não é o povo palestino que não obteve sua independência; são os palestinos que ameaçam a existência de Israel”. Mas quais são as razões dadas pelos neoconservadores de que fala Mikado para esse fenômeno dos homens-bombas? De novo, esbarramos no choque de civilizações: “Antes a análise era diferente, mesmo dentro do governo israe8
lense: Ythzak Rabin sempre disse que o terrorismo era uma reação
oferece ideias sobre assuntos relacionados a política, comércio, indústria, estratégia, ciência, tecnologia ou mesmo assuntos militares. 7. Em abril de 2002, tropas israelenses cercaram o quartel general de Yasser Arafat em Ramallah (Cisjordânia), situação que se estendeu por mais de um mês. 8. Primeiro-ministro de Israel entre 1974 e 1977. Regressa ao cargo em 1992, exercendo funções até 1995, ano em que foi assassinado por um israelense de extrema-direita.
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negativa a algo, a uma política de Israel. Agora, a explicação que se dá é de caráter civilizacional. O que é terrorismo? É o modus operandi do Islã. A vida não tem sentido para eles, e, principalmente, eles querem nos destruir”. Conversamos mais sobre a guerra civil que se desenhava entre o Hamas e o Fatah, e sobre o que estava em jogo naquele conflito. Mas a minha angústia maior, naquele momento, era por não saber para onde caminhava a sociedade israelense. Como estão os movimentos pela paz? Warschawski pintou um quadro desolador, que eu já tinha começado a esboçar no meu primeiro dia de Tel Aviv. “Do ponto de vista da sociedade israelense, não há nenhuma razão para que se questione a política de ocupação. Não há atentados como antes, não há pressão internacional e a economia vai muito bem. Há um sentimento de segurança e prosperidade econômica. O que preocupa Israel, neste momento, é o Irã. Eu uso a seguinte imagem: a questão palestina é, para os israelenses, como uma picada de mosquito – não é preciso ir ao hospital, fazer uma operação; coça, incomoda um pouco, mas passamos uma pomada e nos sentimos bem. Nos jornais israelenses, a questão palestina está relegada à terceira ou quarta página. Os problemas principais são internos: os casos de corrupção, os escândalos. E, no horizonte, a guerra contra o Irã”. Não é que os movimentos pela paz estejam completamente paralisados – ele me explicou. Há atividade militante, pessoas que se manifestam contra a guerra do Líbano, ou no aniversário da ocupação. Mikado citou Uri Avnery, jornalista e ativista israelense,
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militante dos direitos dos palestinos, que construiu a seguinte imagem: o movimento pela paz é formado de duas rodas, uma pequena e uma grande. A pequena são os militantes, que ele estima serem uns dez mil, mobilizados constantemente contra a existência de um muro de separação, contra a política de colonização e de guerra. E há um movimento mais largo, a grande roda, como o grupo “Paz Agora” [Gush Shalom, em hebraico], uma coalizão de organizações que representa a opinião pública capaz de mudar as decisões políticas. Para ele, o trabalho da roda pequena é movimentar a grande e assim influenciar a esfera política. O problema é que hoje a roda pequena funciona muito bem, mas ela gira em falso, pois a roda maior desapareceu. “E desapareceu quando, por quê?”, perguntei. “Desapareceu depois de 2000. A opinião mobilizada – não o sentimento de cada um sobre a questão – se dissipou em algumas semanas em agosto de 2000 antes da Segunda Intifada com todas 9
as mentiras da reunião de Camp David, de Ehud Barak , todo esse discurso mistificador de que estamos numa guerra contra a ameaça árabe-muçulmana – discurso que antecipou e que fazia parte da campanha de guerra de civilizações e desse movimento de recolonização do mundo de que falei. Tudo isso provocou o desabamento do movimento de paz e o que restou foi a pequena roda. Pela primeira vez o “Paz Agora” quis entrar na coalizão da pequena roda,
9. A reunião a que Mikado se refere é mais uma negociação pela paz que fracassou. A cúpula reuniu em Camp David o premiê Ehud Barak, Yasser Arafat e Bill Clinton em julho de 2000, meses antes do início da Segunda Intifada.
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após 20 anos de recusa dizendo que éramos radicais demais, extremistas. Ao contrário de muitos colegas, isso não me deixa feliz, pois quer dizer que não existe mais uma grande roda, e por isso não temos impacto sobre as decisões políticas”. “E o que faria ressurgir esse movimento de opinião mais amplo?” “O preço. Não há um movimento de massa no mundo contra a guerra ou contra a colonização se as pessoas sentem que não vale a pena. Se tudo vai bem, é preciso ser muito idealista para pensar que as pessoas, por ética, se mobilizem. Não falo somente dos atentados, mas também da comunidade internacional. Se os israelenses sentirem que pode haver uma ruptura com as pessoas civilizadas do mundo, isso pode contribuir para a emergência de movimentos de massas. Mas Israel está em sintonia total com a Europa. Tudo vai bem, a economia, o sentimento de segurança”. Para terminar, perguntei a Warschawski se ele via esperança de resolução do conflito, ou alguma possibilidade de paz, no fim do túnel. Como todo mundo que se envolve com essa história, ele disse que não sabia. Não tem a mínima ideia de quando as coisas vão mudar – se em dez, ou trinta anos. Ele acha, apenas, que a História deveria ser parada neste momento. “Israel nunca esteve em situação melhor para isso”, disse, com um ponto final. Paramos a conversa por ali, até porque percebi que esse tipo de pergunta é distante demais no horizonte de um ativista como Mikado que acompanha, de perto, todas as contradições dos acordos de paz e o drama diário dos dois lados do conflito. Por coincidência, estavam no AIC os franceses com quem eu tinha feito contato antes da viagem e que eu esperava encontrar so-
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mente dali a dois dias. O AIC era o escritório de onde eles organizariam os grupo de estudantes que viajariam para diferentes cidades da Cisjordânia, a fim de conhecer de perto o que era um território sob ocupação. Eles me indicaram o Hotel Hebron, um albergue relativamente barato – pudera, com quartos que comportam umas 20 pessoas cada um, acomodadas em beliches – e resolvi adiantar minha ida para lá.
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O Hotel Hebron fica nos centro da Cidade Velha, não muito longe do AIC. Entrei pelo Portal de Jaffa, um dos acessos à cidadela murada. Andando pelas ruas estreitas e repletas de comerciantes, pensei que fosse me perder facilmente. Naquele espaço tão pequeno, estão os lugares sagrados para as três religiões monoteístas. São quatro bairros: o armênio, o católico, o judeu e o muçulmano. Para os seguidores do profeta Maomé, Jerusalém se chama Al-Quds (“A Sagrada”). A primeira mesquita construída por Maomé em Medina estava voltada para Jerusalém, e era em direção à mesma cidade que os muçulmanos faziam suas preces. Só mais tarde que a orientação mudou-se para Meca. A cidade velha é cercada por montes – Monte Sion, Monte das Oliveiras, Monte Moriah. Neste último, a leste, onde um dia houve um templo judeu, foram construídos a mesquita Al-Aqsa e o santuário Domo do Rochedo, a partir do qual Maomé teria visitado o céu, segundo o Corão. Personagens como Abraão, José, Moisés e
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Jesus são tão sagrados para os muçulmanos quanto para os cristãos e os judeus. A capela de Maria (Mihrab Miriam) e o Berço de Jesus (Mahd Issa), que também ficam no Monte Moriah, dão uma ideia de como se confundem, ali, as religiões e sua História. Os dois lugares são sagrados para muçulmanos e cristãos. Quando foram destruídos pelas cruzadas cristãs, foram reconstruídos pelos muçulmanos. Eu estava, portanto, no umbigo do mundo (pelo menos para os adeptos das três religiões). Um verso do Corão explica o caráter umbilical da cidade para o Islã (sura 24, versículo 35): “Deus é a luz dos céus e da terra. Sua luz é semelhante a um lampião onde se encontra uma chama. A chama está dentro de um recipiente de cristal, que se parece com um astro de brilho muito intenso; seu combustível vem de uma árvore bendita: uma oliveira nem oriental nem ocidental cujo óleo parece iluminar mesmo sem que o fogo o toque”. A oliveira em questão estaria lá, em Jerusalém. A árvore tornou-se um símbolo sagrado para os palestinos. Por isso não é raro ver o desespero com que os agricultores palestinos assistem à queima e destruição de plantações inteiras de suas oliveiras por soldados ou colonos israelenses10. Além do aspecto simbólico, a produção do azeite de oliva é uma das principais atividades econômicas da região. Jerusalém também é sagrada para os judeus, embora poucos deles morassem na Palestina até o século XIX, quando o sionismo levou milhares deles à região. Segundo o historiador Lucas Cathe10. O capítulo “Oliveiras que choram”, mais adiante, traz dados sobre a destruição das plantações.
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rine, um primeiro retorno, discreto, aconteceu no século XIII. Os árabes derrotaram os cruzados definitivamente em 1218, e o sultão Saladino convidou os judeus a se instalarem em Jerusalém. Desde então, um pequeno fluxo de judeus é observado na Palestina. Em 1428, o papa Martinho V proibiu que os navegadores italianos levassem os judeus à Terra Santa. E quando a Santa Inquisição expulsou e perseguiu os judeus da Andaluzia, em 1492, eles se dirigiram principalmente ao Magreb e ao império otomano. Quando a Palestina se transformou em parte do império em 1516, grandes grupos de judeus sefarditas e orientais ali se instalaram. São judeus árabes vindos de territórios como o Iêmen ou o Iraque, ou outros países não-árabes da região. Sefardi é o nome hebraico de Al-Andalus (a Península Ibérica durante a ocupação pelos islâmicos de 711 a 1492). De volta ao século XXI, Jerusalém é também o centro político do conflito. Por seu caráter simbólico, sempre foi disputada como capital, pelos dois estados. Ao contrário de Tel Aviv, os badulaques com símbolos palestinos são comuns nos mercados da cidade velha, e em vários deles li a frase “Jerusalem – Hearth of Palestine”. Até hoje, o status de Jerusalém não foi definido pelo Direito Internacional. A resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas recomendou que a cidade fosse submetida a um regime de administração internacional. O plano, no entanto, foi rejeitado pelos palestinos e pelos estados árabes. Em 1949, um armistício entre Israel e a Jordânia estabeleceu a chamada linha verde, que levou à divisão da cidade em Jerusalém Oriental, incluindo a Cidade Velha
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(controlada de facto pela Jordânia) e Jerusalém Ocidental (controlada pelos israelenses). Com o fim da Guerra dos Seis Dias, em 1967, as Forças Armadas de Israel vitoriosas ocuparam a margem ocidental do Rio Jordão (a Cisjordânia), incluindo a metade oriental de Jerusalém. Em 1980, o Knesset (Parlamento israelense) aprovou uma lei em que anexava formalmente a cidade expandida e declarava Jerusalém como capital “una e indivisível” de Israel. O ato foi rechaçado pela comunidade internacional, apesar de a condenação nunca ter saído do papel. Repetidas resoluções da ONU e do seu Conselho de Segurança afirmaram que qualquer tentativa de Israel de mudar o status de Jerusalém, com a anexação de terras e transferências populacionais, é completamente ilegal.
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Nas primeiras voltas que dei na Cidade Velha me senti “devorada” pelos vendedores. Se eu olhasse alguns segundos em direção a alguma bolsa, sapato, bijuteria ou qualquer um daqueles milhares de objetos que transbordavam nas portas das lojas, um vendedor saltava na minha frente e me oferecia a um preço bem camarada. Claro que todos superestimaram meu poder aquisitivo. Como nenhum produto tinha valor marcado – a lei ali é pechinchar – encontrei preços diferentes e disparatados em lojas vizinhas. O problema é que a língua ideal para regatear é o árabe (o inglês pressupõe um valor inicial mais alto). Todos ofereciam
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com veemência um chá “sem compromisso” – e ficavam irritados com minha recusa. No Hotel Hebron, tomei um chá com mais calma (desta vez pago) e pedi um dos pratos servidos na pequena lanchonete. Além do hummus, tinha espaguete e steak de frango. As paredes do albergue eram de pedra, e as partes que ficavam ao alcance dos visitantes estavam cobertas de recados pichados com caneta, como em outros albergues da juventude. A construção era antiga e não combinava muito com uma TV grande que exibia videoclipes de pop árabe. Mais ao fundo, num lugar abafado, havia meia dúzia de computadores lentos com acesso pago à internet. Um dos parentes do dono, o adolescente Ahmad, controlava o tempo de navegação, com um papelzinho na mão e o olho no relógio. Preocupava-se com isso porque, apesar dos avisos, algumas pessoas não entendiam que o serviço era pago. Escrevi, num desses computadores, as minhas primeiras impressões, e mal consegui enviar algumas fotos já que a máquina, de tão velha, não reconhecia o cabo de minha máquina fotográfica. O quarto estava vazio e pude escolher um beliche em que iria ficar. Deitei na parte de cima de um deles. Quando me preparava para dormir – era cedo, mas eu estava exausta – uma garota pediu, em inglês, licença para acender a luz. Seu nome era Hiba. Como não percebi que ela havia retirado o véu ao entrar no quarto, não soube imediatamente que ela era muçulmana. Aliás, ao trocarmos as primeiras frases, tive dificuldade em perceber de onde era o seu sotaque. “Sou da Escócia”, respondeu. O começo de conversa em albergues da juventude é sempre o mesmo. Perguntar de onde vêm as
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pessoas do seu quarto é uma praxe necessária, para atenuar a estranha sensação de dormir ao lado de pessoas completamente desconhecidas. Os lugares que a pessoa já visitou e os que ainda pretende visitar é o próximo passo. Mas, no caso de Hiba, a conversa se estendeu mais: ela não era turista, e sim mais uma ativista que integrava um comitê pró-Palestina na Escócia. Negra e muçulmana, logo falou de sua ascendência: era de uma família de imigrantes da Somália. Na Palestina, especialmente nos territórios ocupados, é muito comum ver esses grupos de solidariedade internacional – que a mídia local denomina “os internacionais”. Eles participam de manifestações pacíficas, encontram-se com representantes de organizações de direitos humanos e, de volta a seus países, relatam a experiência. Autodenominam-se testemunhas. Alguns candidatam-se a participar de atividades voluntárias, como ministrar cursos de língua ou auxiliar ONGs em tarefas administrativas. 11
Ouvimos, ao longe, o Athaan , o chamado à oração. Na primeira pausa de nossa conversa, Hiba pediu licença, colocou seu véu e fez aquela que seria sua última oração do dia. Retomamos a conversa, e ela me convidou para ir com seu grupo escocês na manhã seguinte a uma manifestação contra o muro de separação entre a Cisjordânia e Israel, numa cidade chamada Um Salamona (próxima à Belém, no território palestino). Era minha primeira oportunidade de passar para o outro lado do muro.
11. Adhan ou Athaan, a convocação para o salá (oração), é feita a partir do minarete das mesquitas, cinco vezes por dia.
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“Vocês sabem que mapa é esse?” SEXTA-FEIRA, 13 DE JULHO DE 2007
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a manhã seguinte, Hiba disse estar muito cansada e não quis se levantar antes das sete para ir à manifestação. Juntei-me ao
resto da comitiva da Campanha Escocesa de Solidariedade à Palestina, que continuaria com mais seis pessoas: o casal Kevin e Vanesa – ele, escocês e ela, espanhola – e Sofiah, que tinham pouco mais de 30 anos. Os outros três, Sally, Stephen e Jimmy, já beiravam o dobro da idade – 60 anos. Alguns deles, como eu, usavam camisas de manga comprida para se proteger do sol, que estava fortíssimo (Kevin, escocês típico, já estava com a pele vermelha). Um grupo bem diferente, portanto, do que eu imaginava. Era inevitável pensar nos tais jovens “internacionais” com lenços palestinos amarrados na cabeça – e, de fato, encontrei alguns deles mais tarde. O grupo escocês, com as garrafas de água (gelo) e chapéus de abas de pano do tipo que se encontram na praia se aproximavam mais da imagem que eu tinha de turistas. Eles já estavam na Palestina havia dez dias, mas diziam sentir que a estadia já durava um mês, pela sua “intensidade” (pala-
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vra usada por eles). Na primeira semana em que se basearam em Jerusalém ocidental, viajaram quase todos os dias para Ramallah, importante cidade da Cisjordânia que fica a quinze minutos dali. “Checkpoints, desvios, bloqueios etc. transformavam a viagem de quinze minutos em uma hora. Mas nós somos sortudos, os palestinos adorariam a nossa relativa liberdade de viajar. Eles precisam de permissões dos israelenses para andar dentro de sua própria terra”, escreveria o grupo, mas tarde, no blog da ONG escocesa. Fomos de sheirut (táxi coletivo) até Belém e, lá, tivemos que passar a pé pelo primeiro checkpoint da minha viagem. O movimento de cerca de 2,4 milhões de palestinos é controlado por inúmeras barreiras, portões, muros de concreto, grades eletrificadas e torres de observação. Há um complexo sistema de permissões que restringe a livre circulação da população e o acesso a serviços básicos. Em julho de 2007, o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assistência Humanitária (OCHA) reportou 539 impedimentos físicos – incluindo 74 checkpoints controlados por militares e 12 bloqueios parciais. Mas o número de bloqueios varia de mês a mês: alguns são removidos por palestinos, outros são retirados para permitir a construção de novas estradas e novos são criados, pelo Exército de Israel. As autoridades israelenses argumentam que essas medidas são necessárias para a segurança de seus cidadãos – tanto os que vivem em Israel quanto os que vivem nas colônias da Cisjordânia. Algumas rodovias no território palestino são exclusivas para a circulação dos colonos israelenses. Todas essas divisões acabaram criando
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o que os ativistas e analistas da região chamam de bantustões, em 12
analogia ao sistema de apartheid da África do Sul . A Cisjordânia é dividida de facto em pelo menos três segmentos (norte, centro e sul) e é preciso passar por barreiras controladas por israelenses para ir, por exemplo, de Nablus (norte) a Hebron (sul). Assim, uma viagem que dura cerca de 40 minutos em circunstâncias normais, pode requerer várias horas. Os taxistas árabes já estão acostumados a driblar os chekpoints. Por telefone ou rádio, eles se comunicam e ficam sabendo quais estão fechados, em quais o congestionamento é pior e por qual caminho há mais chances de passar. Às vezes, para evitar algumas barreiras, é necessário fazer grandes voltas – o trajeto fica demorado, mas pelo menos temos certeza de chegar a algum lugar. De todo modo, para ir de um ponto a outro da Cisjordânia, portanto, é preciso tomar inúmeros táxis, já que muitas barreiras devem ser atravessadas a pé. Os táxis ficam acumulados em cada lado das barreiras, à espera de passageiros. Para passar pelo checkpoint de Belém – e, consequentemente, pelo muro que separa Jerusalém da Cisjordânia – atravessamos um corredor cercado por grades que dá num posto fechado, cheio de catracas. Supostamente turistas, mostramos nossos passaportes e passamos sem problemas. Belém é uma cidade turística – ali está, por
12. Durante o regime do apartheid, bantustão era qualquer um dos territórios com limitado grau de autodeterminação reservados aos negros sul-africanos, encravados pela União Sul-Africana (depois África do Sul). Com as frequentes comparações da situação dos palestinos com a vivida pelos negros no regime do apartheid, as divisões administrativas da Cisjordânia têm sido chamadas de bantustões por acadêmicos e ativistas.
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exemplo, a Igreja da Natividade, edificada no local onde Jesus teria nascido. As meninas que guardavam o posto naquele dia – meninas mesmo, que aparentavam uns 17 anos, fardadas e de M-16 na mão – olharam nossos passaportes e nos deixaram passar, alertando, porém, que não era uma boa ideia visitar o outro lado. Uma delas tinha a minha altura, pouco mais de um metro e meio, e sorriu ao 13
nos devolver o passaporte . Na saída, nos deparamos com uma fila de árabes que estavam impedidos de entrar. Alguns agitavam suas carteiras de identidade no ar e gritavam. Foi embaraçoso para nós passar tão facilmente pela barreira. Em Belém, encontramos um dos muitos grupos de resistência pacífica que atuam na Cisjordânia. A Holy Land Trust se propõe a fazer uma espécie de turismo militante na região e é uma das organizadoras das manifestações contra o muro de separação. Entramos no escritório e paramos para descansar e tomar um chá. A sala, em estilo árabe, tinha tapetes e almofadas coloridas espalhadas pelo chão. Em outra sala, algumas voluntárias americanas e canadenses pintavam cartazes com o bordão “Stop the Wall”. Tamer Halaseh, coordenador da ONG, nos recebeu e disse que em breve um sheirut nos levaria até Um Salamona. Diversas cidades localizadas ao longo
13. ���������������������������������������������������������������������������������������������� O serviço militar em Israel é obrigatório para homens judeus e drusos israelenses (comunidade maometana, que fala árabe) por pelo menos três anos e para mulheres judias acima de 18 anos, por, no mínimo, dois anos. Os árabes israelenses podem servir o exército, mas não é obrigatório. Exceções podem ser feitas por motivos religiosos, físicos ou psicológicos. De acordo com o relatório anual de Direitos Humanos do Departamento de Estado norte-americano, um pequeno percentual de árabes optou pelo serviço militar. Os que não o fizeram, diz o relatório, não tiveram acesso a benefícios sociais e econômicos (como financiamento de habitação, empregos públicos) para os quais o serviço militar é pré-requisito. Disponível em: http://www.state.gov.
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do muro fazem o ato ao mesmo tempo e todos os participantes têm por princípio a não-violência. A manifestação acontece toda sexta-feira, mas, naquela sexta-feira em particular, dia 13 de julho, o grupo tinha mais motivos para protestar: fazia três anos que a Corte Internacional de Justiça de Haia havia condenado o muro e ordenado sua imediata suspensão, decisão que nunca foi respeitada pelo Estado de Israel. De acordo com a Corte, o muro anexa terras da Cisjordânia e atenta contra o direito à autodeterminação do povo palestino. Mas o muro não só continua no mesmo lugar, como está se expandindo: segundo a ONG Stop the Wall, seu traçado tortuoso avança até seis quilômetros para dentro da Cisjordânia, como ocorre na cidade de Qalqilya, que hoje está inteiramente cercada. Outros projetos do governo de Israel aguardam aprovação do Knesset. Um deles propõe que o muro adentre até 13 km do lado cisjordano, para isolar colônias sionistas, além de prever uma nova barreira paralela à primeira, ao longo do vale do Jordão. Com esta segunda fase, o muro seria estendido por mais de 700 km e isolaria 50% do território palestino na Cisjordânia. Quando chegamos ao local da manifestação já havia um grupo de palestinos, ativistas israelenses e alguns “internacionais”, acompanhados de crianças curiosas, fotógrafos e observadores, empunhando cartazes e bandeiras. Sami Awad, da Holy Land Trust, deu as últimas instruções: “Atenção: essa é uma manifestação pacífica. Ficamos em três blocos, cada um deve escolher o que achar melhor. Há a linha de
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frente que é, claro, a mais perigosa. No segundo bloco, ficam os que resguardam [e empurram] os primeiros, ainda com algum perigo. A terceira linha é dos observadores”, disse. Começamos a descer a estrada que levaria ao muro e, ao longe, pude ver a fila de soldados israelenses que subiam em nossa direção. A tentativa da organização é de promover sempre uma manifestação não-violenta, mas, para que a recepção dos soldados israelenses seja igualmente não-violenta, a presença de ativistas e observadores internacionais é essencial. O norueguês Tron Botnen, de uma organização ecumênica que trabalha nos territórios da Palestina e Israel, me explicou que, na ausência de ativistas internacionais, a repressão é maior. “Os palestinos sempre nos falam que é melhor quando estamos aqui”, disse. Tron estava lá há dois meses, para “prestar solidariedade”. “E também testemunhar contra os sofrimentos que esse muro causa – separa famílias, impede as pessoas de trabalhar, de viajar, confisca suas terras”, continuou o norueguês, que estava na terceira linha, a dos observadores. Mas, quando os soldados israelenses levantaram seus escudos e se dispuseram em uma linha que bloqueava a estrada inteira, os três blocos organizados por Sami Awad se transformaram em um só. Os manifestantes da segunda e terceira linha ajudavam os da primeira a empurrar os escudos, na tentativa de furar o bloqueio. Um verdadeiro “braço-de-ferro”, um tanto desequilibrado. Enquanto o empurra-empurra levantava poeira e deixava roupas e rostos cobertos daquela cor bege da terra, algumas pessoas tentavam
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falar com os soldados. Uma jovem ativista israelense gritava algo em hebraico para o soldado com cara de menino, impassível. Cheguei perto para tirar uma foto daquele rosto que me inquietou, e percebi que seus olhos estavam, sim, perturbados diante daquilo. Quase tristes. Perguntei à ativista o que ela havia dito e ela traduziu, em inglês: “Eu falei comportem-se, cresçam”, disse, agora batendo sua roupa para tirar o pó. Ela tinha sido derrubada no chão e sofrera um leve ferimento na testa. Antes de cair, ela disse que ainda gritou: “Essa terra não é de vocês, vocês não têm nada a fazer aqui!”. Sami Awad também foi derrubado, e o grupo recuou. O braço-de-ferro parava por alguns minutos e depois era retomado, num movimento repetido por, pelo menos, cinco vezes. Os soldados continuavam imóveis, até que um grupo tentou passar pelos lados. Um cinegrafista da Reuters desviou diante de um soldado, que batia num palestino com cassetete. O homem gritava em árabe e inglês “Não à ocupação!”. Todo o grupo cantou a frase, em árabe, enquanto continuava empurrando a linha de escudos. Entre uma pausa e outra, o escocês Kevin tentou mostrar aos israelenses um mapa da Cisjordânia produzido pela ONU. “Vocês sabem que mapa é esse?”, perguntou Kevin, abrindo o mapa em frente aos soldados. “É o mapa da Cisjordânia. Mas vocês nunca devem ter visto. Não sabem nada sobre esse muro, sobre o que ele significa. Aposto que nem sabem apontar onde estão agora”. Era como se Kevin falasse sozinho. Nem olhavam para seu rosto. Um deles esboçou até um sorriso irônico. Outro, por fim, olhou para o mapa – como se tentasse achar sua localização – e,
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com a testa franzida, disse que só estava cumprindo ordens. Kevin continuou a falar. Pedia para que refletissem sobre tudo aquilo. E o braço-de-ferro recomeçou. Como em Um Salamona, outros atos contra o muro acontecem toda sexta-feira em várias cidades da Cisjordânia: em Bil`in, perto de Belém, em Qaffin, ao norte, e em Bani Naium, ao sul. Mas em Bili`in, ao contrário do que ocorre em Um Salamona, os soldados mantêm uma certa distância e não hesitam em lançar bombas de gás lacrimogêneo contra os manifestantes. Assisti à prisão de um palestino, que foi imobilizado e levado em um jipe. Explicaram-me que isso acontece em todas as manifestações. Ninguém soube me dizer quando será solto – dentro de um dia, ou em dois anos... “Aqui não há regras, não há leis, não temos direito nenhum”, disse Awad. Perguntei-lhe se, por alguma vez, eles haviam conseguido passar e chegar até o muro. “Há um ano fazemos esse ato todas as semanas, e eles não nos deixam passar. A única vez que nos deixaram passar, na verdade, foi quando fizemos uma manifestação em homenagem aos estudantes mortos no massacre de Virgínia”. Ele se dirigiu aos manifestantes, que a essa altura estavam exaustos e cobertos de poeira. “Viemos em paz e vamos sair também em paz”. Todos caminharam, mais uma vez, sem conseguir passar pelos soldados.
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O falante motorista do sheirut aproveitou a presença dos “internacionais” em seu carro para criticar a atuação do Exército israelense em sua cidade. Contou que ele estava exausto porque trabalhava o dia inteiro debaixo daquele sol forte, ajudando a reconstruir a casa de um vizinho que havia sido demolida pela segunda vez em dez meses. A demolição de casas é, de fato, uma política de Israel, tanto dentro de seu território quanto nos territórios que ocupa. A luta contra a demolição de casas é bandeira de ONGs, como o Comitê Israelense contra a Demolição de Casas (ICAHD, na sigla em inglês), que reconstroem casas demolidas; alguns de seus ativistas até se colocam diante dos tratores antes da demolição. Teimosia. De acordo com dados do ICAHD, Israel demoliu mais de 18 mil casas de famílias palestinas desde 1967, deixando mais de 70 mil pessoas sem teto. Em sua página na internet, a organização explica que não é uma entidade humanitária ou assistencialista, mas quer se fazer ouvir com a reconstrução de casas por mutirões que reúnem ativistas israelenses e palestinos. De volta ao escritório da Holy Land Trust, encontrei Elias, que trabalha no projeto de turismo solidário da ONG (uma agência chamada Travel and Encounter). Por ser guia turístico, ele conhece bem o impacto da ocupação israelense no turismo, principal atividade econômica em Belém. “Desde 1967, Israel tenta marginalizar o turismo nos territórios ocupados. Eles não querem que as pessoas vejam os campos
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de refugiados”, explicou Elias. “Proibiram os palestinos de serem guias turísticos na sua própria terra, trazendo pessoas de fora para os principais sítios históricos”. Com o muro, ficou ainda mais fácil para Israel controlar a entrada de turistas na região. A orientação dos militares aos estrangeiros – que eu mesma ouvi no checkpoint – é de que a Cisjordânia é perigosa e não deve ser visitada. “Um grupo dos Estados Unidos esteve aqui e nos disse que foi advertido por um soldado israelense antes de passar pelo checkpoint: ‘vocês têm que tomar cuidado. As pessoas do outro lado do muro são animais’”, contou Elias. “Antes do muro, a cidade era bastante cheia e viva. Os israelenses vinham aqui para fazer compras. Tínhamos oitenta estabelecimentos comerciais. Agora há apenas dois”, disse Elias. “Mas o que impede as pessoas de virem para ver a Igreja da Natividade, por exemplo, que tem tanto apelo?”, perguntou um dos escoceses. “As pessoas ficam cansadas com os checkpoints. No começo, nem os carros de passeio passavam. Os visitantes tinham que descer dos ônibus e táxis, esperar numa fila e andar bastante. Os carros só puderam começar a passar depois de uma grande pressão da Igreja”, respondeu. Apesar dos empecilhos, Belém ainda é muito dependente do turismo. Para atrair mais gente à região, os preços tiveram que cair muito. Segundo Elias, egípcios, poloneses e tchecos visitam em peso a região, mas é o turismo chamado “low budget”, ou seja, para gastar pouco.
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“Uma diária numa pousada com café-da-manhã e jantar, aqui, custa 12 dólares. Mas isso não cobre nem o custo!”, disse Elias. Uma pequena parte dos turistas, no entanto, está interessada em conhecer a vida na Cisjordânia. Estes visitam as cidades com ONGs como a Travel and Encounter. Elias nos estendeu alguns folhetos da agência, que fazem propaganda do turismo “solidário” , ou intercâmbio cultural, em inglês: (...) A viagem é organizada para desenvolver relacionamentos, quebrar estereótipos, fomentar esforços filantrópicos e forjar parcerias estratégicas para fortalecer a região. Eles sugerem, entre outras atividades: Aprender árabe. A melhor forma de aprender uma língua é com a imersão cultural. Temos aulas de 10 horas por semana para nível básico e intermediário. E não é só isso: uma família palestina hospedará você para ajudá-lo a praticar o que você aprendeu em sala de aula. Voluntariado. Trabalhe lado a lado com palestinos em educação, saúde, desenvolvimento e projetos de paz e reconciliação. Hospedagem em casas de famílias. Um lado do conflito israelo-palestino que você nunca viu na TV. Ouça histórias da família que vai hospedá-lo sobre suas experiências com a ocupação militar e seus efeitos sociais, econômicos e psicológicos. Construa uma amizade regada à hummus, falafel e chá com menta.
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Apesar dessas tentativas de alcançar o público estrangeiro, as agências de turismo israelenses são as que mais conseguem vender pacotes “seguros” para Belém. São elas que controlam a maior parte do movimento turístico hoje. Quando chegam à cidade, os ônibus de turistas nunca ficam por mais de uma ou duas horas. Elias nos contou que a principal reclamação dos lojistas palestinos é a de que as agências de turismo usam a estrutura de suas lojas – estacionamento, banheiro – para fazer a visitação e compram algo bem barato para justificar o uso do espaço. “Ficam muito pouco tempo e não compram nada. A única coisa que nos deixam é lixo”, reclamou. “Desde a ocupação, o turismo em Belém parece uma visita ao zoológico”. Elias respirou fundo, bateu no seu peito e continuou: “O turismo e a hospitalidade fazem parte da nossa cultura. Eu digo a vocês que estarão a salvo em qualquer parte de Gaza ou da Cisjordânia. Serão convidados para tomar café ou almoçar o tempo todo. A violência, quem traz, é a ocupação”.
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Entramos na Igreja da Natividade, uma das primeiras edificações cristãs, construída sobre a gruta onde Jesus teria nascido. Um guia logo se aproximou de nós e começou a explicar, em inglês, a história da basílica – como se fosse um rádio ambulante. Jimmy e Kevin, mais impacientes, se afastaram e começaram a explorar o lugar sozinhos. Logo o grupo todo acompanharia as explicações
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do guia, que tinha um crachá oficial da Autoridade Palestina e se chamava Abed: “A Igreja da Natividade é a primeira igreja dos cristãos. Foi construída pelo imperador Constantino no século IV, e completamente destruída na revolta samaritana do ano 529. Depois, foi reconstruída no mesmo local durante o reino de Justiniano, desta vez com uma ampla basílica que incorporou partes da edificação original, que foi sofrendo alterações ao longo dos séculos e hoje tem 12 mil m²” – Abed despejava as palavras decoradas e cansadas, em inglês. Andamos por entre as colunas da igreja, que não estava muito cheia – pelo menos não na parte de cima. Descendo um lance de escadas estreitas, chegamos à parte de baixo, a gruta, onde um altar foi eregido no local exato em que Jesus teria nascido. Ali, sim, muitas pessoas oravam e empunhavam suas máquinas fotográficas – apesar das recomendações de que não tirássemos fotos ali embaixo. Uma estrela dourada de 14 pontas, desenhada no chão de mármore, indica o ponto exato do nascimento – contestado por alguns historiadores, lembra Abed. A estrela é cercada por castiçais de prata. Um padre rezava uma missa enquanto dávamos passagem a uma senhora que passava mal por causa do calor. A basílica é administrada conjuntamente pelas Igrejas Grega Ortodoxa, Apostólica Armênia e a Católica Romana, mas também é sagrada para o Islã. Cada uma cuida de uma parte, literalmente. De volta à parte de cima, falando baixo por causa de uma missa que agora acontecia ali, Abed apontou para os vidros que-
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brados de algumas janelas, no alto da igreja, e explicou que estavam assim desde 2002. “Naquele ano, o Exército israelense cercou a Igreja da Natividade e provocou alguns estragos, como aquela janela quebrada. Até hoje, o vidro nunca foi consertado porque não se sabe ao certo a qual das três Igrejas cabe a administração daquela parte. É uma burocracia”, disse. Nesse momento, Abed olhou para o pulso de Vanesa, que usava uma pulseira de miçangas verdes, vermelhas, pretas e brancas, como a bandeira palestina. Senti que o tom de Abed mudou. Saiu do piloto automático. “Vocês conhecem a história do cerco à Igreja, em 2002?” – perguntou Abed. Diante do silêncio, ele continuou, agora com mais entusiasmo. “No dia primeiro de abril daquele ano, o Exército israelense invadiu a cidade de Belém. Ariel Sharon, então primeiro-ministro de Israel, declarou que a operação visava acabar com a “infraestrutura terrorista”. Tanques cercaram a cidade e cerca de 50 militantes palestinos refugiaram-se na Igreja, com o apoio dos padres, que decidiram ficar junto com eles – ao contrário do que se dizia à época. Os religiosos davam comida aos palestinos, mas, em pouco tempo, os mantimentos acabaram. Não se podia colocar o pé para fora da Igreja, já que soldados posicionavam-se por toda parte com snipers”. Segundo Abed, nove palestinos morreram, baleados ao tentar buscar comida. Não foram socorridos, nem seus corpos foram retirados. O tocador de sinos também foi assassinado e um monge
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morreu durante uma troca de tiros, no dia 10 de abril. O Exército assumiu a responsabilidade, mas afirmou que ele “parecia armado”. A essa altura, o papa João Paulo II já havia declarado que ia rezar pelos que estavam dentro da Igreja e, em 12 de abril, a ordem dos franciscanos pediu que Israel deixasse as pessoas saírem – apelo reforçado pelos gregos ortodoxos, dias depois. No dia 17 de abril, dois turistas japoneses entraram inadvertidamente no local, pois fazia seis meses que estavam viajando, sem acesso à mídia, e nada sabiam sobre o cerco à igreja. Eles foram socorridos pelos jornalistas e saíram ilesos do local. No dia 2 de maio, um grupo de ativistas internacionais desafiou o Exército israelense e conseguiu entrar na Igreja para levar mantimentos. Ao retornar, os ativistas contaram aos jornalistas histórias horríveis sobre as condições de lá. Enquanto isso, as negociações para o fim do cerco pareciam não ter fim. Uma das propostas era a de que os treze militantes palestinos “procurados” fossem mandados para a Itália, mas o país se recusou a recebê-los. O Chipre aceitou abrigá-los até a decisão sobre seu destino, no dia 9 de maio. O cerco durou aproximadamente cinco semanas e acabou no dia 10 de maio, quando os militantes saíram sob a proteção de observadores da União Europeia. Abed nos informou que recebia um salário da Autoridade Palestina e portanto não precisávamos pagá-lo. Ele disse, porém, que desde a Intifada, em 2001, o número de visitas guiadas caiu muito. Se antes fazia cerca de 25 visitas por dia, hoje não faz mais do que seis por semana. Saímos com Abed e ele nos levou até uma loja de lembranças e artesanato em madeira, que era de sua mãe.
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“Querem uma limonada fresca”?, perguntou Abed, já nos apresentando à sua mãe. “Tomem, sem compromisso. Essa é nossa hospitalidade”, disse. Depois de ouvirem tanto sobre a dificuldade daqueles que vivem do turismo em Belém, Kevin e Vanesa pareciam ter se sensibilizado e procuraram algo para comprar. Kevin gostou de uma peça de madeira, mas achou muito cara. Acabou levando uma outra bem menor. Abed perguntou de onde vínhamos e abriu um sorriso – o primeiro até aquele momento – quando me ouviu falar do Brasil. Desatou a contar sobre um primo que já tinha vivido lá, e que falava muito bem do país. Disse que tinha muita vontade de conhecer, e passou a me oferecer presentes da loja ou descontos. Recusei timidamente. Afinal, nos despedimos de Abed e de sua mãe, desejando-lhes boa sorte. Na rua, um senhor bem velhinho se aproximou com dificuldade de Jimmy, oferecendo-lhe selos. “Eu não quero. Mas ela, sim, adora selos”, disse Jimmy, esquivando-se do vendedor e apontando para mim, com um sorriso de quem faz uma molecagem. Não gostei da brincadeira. Ouvi o que o senhor tinha a dizer – claro que o preço dos selos era absurdo – mas recusei a oferta, com o coração partido. Mais à frente, um garoto correu até nós e pediu esmola. “One shekel! One shekel, please!” Um homem que estava sentado em frente à porta de uma casa veio atrás dele, e o puxou com um beliscão no braço. “Você não tem vergonha? Onde já se viu pedir esmolas? Você envergonha nosso povo!”
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Já não queria ver mais nada de Belém, bastavam-me aquelas duas cenas. Uma economia arrasada pela política de ocupação e um povo que não sabe de onde tirar seu sustento. Mas, assim como não quer se curvar diante dos tanques, também rechaça a esmola dos turistas que, como eu, nada têm a fazer diante daquele quadro.
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Almoçamos num restaurante simples que encontramos pelo meio do caminho. Os donos nos receberam com surpresa e correram para preparar o que pedimos – falafel, hummus, o de sempre. Curiosamente, na hora de pagar a conta, tive a impressão de que eles inventaram o valor (pedimos pratos iguais, mas cada um tinha um preço). E, mais curiosamente ainda, o meu era mais alto do que o dos escoceses. Não era tão caro – o equivalente a uns 9 dólares – mas o meu dinheiro estava contado. E eu não podia pagar mais que os gringos, for Christ’s sake! Meus companheiros de viagem estranharam quando eu reclamei por tão pouco, dizendo que, para aquela família, era uma ajuda justa – e para nós aquele valor não faria diferença. “Sou brasileira e estudante, meus amigos, meu dinheiro vale menos que o de vocês”, respondi. Kevin tentou argumentar com o dono, que fechou a cara. Acabou desistindo e concluiu que foi um erro. Eles ratearam a diferença e acabamos desembolsando todos o mesmo valor. Seguimos para nosso próximo encontro, o escritório do Centro de Informação Alternativa de Belém.
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Já eram quase cinco da tarde e todos estavam visivelmente cansados. Fomos recebidos pelo coordenador do AIC na Palestina, Ahmad Jaradat. Ele nos levou a uma sala com almofadas no chão e os escoceses desabaram ali mesmo. Várias vezes vi Kevin e Jimmy dormindo, enquanto Ahmad falava. Sofiah estava mais atenta e anotava algumas respostas de Ahmad em um bloco. Ela fez perguntas sobre financiamento, relação com grupos árabes e atividades da AIC. Algumas pausas constrangedoras permearam a conversa. “Traga-nos um café, por favor”, pediu Ahmad a um rapaz que entrou na sala. O jovem voltou com uma bandeja, minutos depois. Ahmad convidou-o a ficar. “Esse aqui é nosso coordenador do Programa da Juventude, que trabalha com garotos e garotas para a paz”, explicou Ahmad. Ele esteve preso por dois anos, pela terceira vez. Acabou de sair da prisão”. “E como é a situação na prisão? Você não está sofrendo preconceitos ou dificuldades de readaptação por já ter sido preso?” Ahmad deu uma risada sarcástica. “Ele é só mais um dos 800 mil palestinos que foram presos, desde 1967. Excluindo as mulheres e as crianças, todos aqui já foram presos um dia. Difícil encontrar uma família na qual ninguém esteja passando ou já tenha passado por essa situação”, disse. Na dúvida, fiz o teste. Nos dias que se seguiram, descobri que todo palestino – pelo menos todos os que conheci e entrevistei – tem alguma história para contar de um parente próximo ou distan-
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te que tenha sido preso . Certas histórias, porém, eram pessoais e terríveis, como a de Sana, que acabara de ser libertada e me contou como era o inferno da prisão, ou a de Raouia, que passou quatro de seus 23 anos presa, acusada de desacato – histórias que eu ouviria nos próximos dez dias.
14. Em setembro de 2008, o Parlamento Europeu adotou uma resolução sobre os prisioneiros palestinos. O texto foi assinado por diferentes grupos políticos – Socialistas, Liberais, Verdes e o grupo GUE/ NGL – e aprovado por 416 votos. A resolução apela às autoridades israelenses para que respeitem as normas mínimas de detenção e tratem humanamente os 11 mil presos (dos quais aproximadamente 385 são crianças). Além disso, os parlamentares europeus pedem que todos os prisioneiros sejam levados à Justiça e que se garanta o direito de visita. Atualmente, 48 membros do Conselho Legislativo Palestino estão presos.
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“Balance a cabeça e diga la, la” SÁBADO, 14 DE JULHO DE 2007
T
irei a manhã para explorar a cidade velha. O filho do dono do Hotel Hebron, Ahmad, estava em frente a uma lojinha de
lembranças. Ele me viu na rua e acenou: “Está perdida? Vem aqui na minha loja, vou te dar um presente!” Ahmad pediu que eu escolhesse qualquer coisa entre os brincos, pulseiras, pingentes e outros badulaques, mas não quis aceitar. Como ele insistiu, fiquei com dois cartões postais de Jerusalém, já empoeirados. Os dois traziam o Domo do Rochedo e sua cúpula dourada, ao centro. O Domo e a mesquita de Al-Aqsa ficam na esplanada das mesquitas, na cidade velha, desde o século VII. Ou no Monte do Templo, para os cristãos. Ou no Monte da Casa [de Deus], para os judeus. É um lugar santo para as três religiões. Para os judeus, porque, segundo o Talmud, foi de lá que Deus tirou o barro para criar Adão. E foi lá que Adão, Noé, Caim e Abel fizeram seus sacrifícios. A tradição judaica diz que Abrahão provou, ali, a sua fé, oferecendo seu filho em sacrifício. O rei Salomão construiu sobre aquelas terras
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o chamado “Primeiro Templo”, em 950 a.C – destruído por Nabucodonosor II, em 586 a.C, data que marca o exílio dos judeus na Babilônia. O “Segundo Templo”, reconstruído após a volta do exílio, foi novamente destruído no ano 70 d.C, mas o muro da parte oeste resistiu. É hoje conhecido como Muro das Lamentações, importante local de oração do judaísmo. O sítio é sagrado para os árabes, que também contam no Corão a história do sacrifício do filho primogênito do patriarca Abrahão. Para os muçulmanos, o monte é, sobretudo, o lugar onde o profeta Maomé subiu ao paraíso. Eu já estava na rua, mas Ahmad me chamou e me trouxe, ainda, um mapa turístico da cidade velha. Ele abriu o mapa e começou a me explicar como eu poderia chegar à mesquita Al Aqsa, quando um senhor judeu (reparei nos peyot, cachos de cabelo ao lado das orelhas) parou ao nosso lado e perguntou, de cima de seu carrinho motorizado: “Ei, você é judia? Não fale com um árabe, eu posso te ajudar!” “Obrigada, pode ajudar, sim, mas não sou judia”. Ele disparou novamente com seu carrinho, sem dizer nada. Notei vários desses veículos, por ali. Serviam para levar algum tipo de carga – alguns deles eram para recolher lixo. Andavam rápido demais, considerando a pouca largura das ruas e a quantidade de gente que circulava por ali. Várias vezes pensei que seria atropelada por uma daquelas engenhocas, mas acabei me acostumando a elas, como todo mundo. Cheguei à mesquita de Al Aqsa. Uma mulher com uniforme militar israelense e M-16 na mão surgiu como uma muralha na mi-
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nha frente. Falou alguma coisa em hebraico (ou seria em árabe?), que não entendi. Depois disse, em inglês: “Para entrar, você deve recitar uma surata do Corão”. “Hein?” “Um verso, para provar que é muçulmana”. “Mas eu não sou muçulmana”. “Então não pode entrar”. Essa é boa. Um soldado israelense controla a entrada da esplanada das mesquitas. “Volte outro dia. A mesquita só é aberta para turistas em alguns horários especiais”. Mais tarde, uma jovem francesa me contaria que não gostara nada do controle, mas, naquele mesmo dia, tinha conseguido entrar – não sem antes “provar” que era muçulmana, recitando algumas frases do livro sagrado do Islã, sob os olhos desconfiados do soldado. Continuei minha visita pela cidade e fui conhecendo cada um dos bairros – o que não é difícil, já que a cidade murada é tão pequena. Todas as placas com os nomes das ruas estavam escritas em hebraico, árabe e no alfabeto latino. Na parte armênia e judia, porém, notei que as placas estavam quase todas pichadas com spray, de maneira a cobrir a tradução árabe. Parei em uma das lojas mais afastadas do centro, e, consequentemente, mais isoladas. Perguntei o preço de um keffieh, lenço palestino tradicional, preto e branco. O vendedor olhou bem para mim e disparou:
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“Trezentos shekels ”. “Oh, não, obrigada. Está muito caro!”, disse, com uma risada de quem acabou de ouvir uma piada. Aquele lenço não passa de 50 shekels, se muito. “Mas esse é original! Esses que você viu por aí são imitações, chinesas”! Pedi para olhar mais de perto o lenço e não consegui notar nenhuma diferença do que ele chamava de imitação chinesa. De fato, em Lyon, antes de viajar para Israel, eu já tinha visto vários tipos de keffieh à venda, em uma banca de jovens militantes pró-palestina. Um bonito selo dourado dizia que eram fabricados na Síria, e os rapazes, descendentes de palestinos, garantiam que eram legítimos – e custavam 9 dólares. Aliás, os mesmos garotos me recomendaram que eu comprasse os lenços na Palestina mesmo, quando viajasse, pois eu pagaria bem menos por eles. O uso do keffieh popularizou-se desde os anos 1980, pelo menos, entre os jovens europeus – quer saibam ou não onde fica a Palestina – que os enrolam no pescoço, como cachecóis. Recentemente, entraram para o circuito da moda. Alguns jovens em São Paulo também aderiram aos lenços, que chegam a custar absurdos R$ 200 em lojas de grife. Por ironia, ao mesmo tempo em que se espalham pelo mundo, os lenços originais estão desaparecendo na Palestina, por causa da concorrência de produtos têxteis chineses e da crise econômica causada pela ocupação israelense. Não encon-
15. Um shekel equivale a, aproximadamente, 25 centavos de dólar. O lenço custaria, portanto, cerca de 75 dólares.
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trei bons lenços em Jerusalém, ao contrário do que me disseram. Nem em Nablus, tradicional produtora dos lenços. A típica peça do vestuário palestino – a legítima, não a cópia made in China – está com os dias contados. Em fevereiro de 2008 o jornal francês Le Monde – em reportagem assinada pelo jornalista Benjamin Barthe – publicou a história da última fábrica de keffieh na Palestina. O ateliê de Yasser Hirbawi fica em Hebron, no sul da Cisjordânia e funciona há 45 anos. Das quinze máquinas que Yasser importou do Japão, no começo dos anos 1960, somente quatro estão em atividade. As outras máquinas pararam há cinco anos, por falta de pedidos. Yasser, hoje com 78 anos, lamenta os tempos difíceis e lembra que a fábrica de sua família já chegou a produzir quase 150 mil unidades por ano. O movimento era grande em épocas como a primeira Intifada, quando todo jovem que atirasse pedras contra tanques israelenses tinha que ter o rosto coberto por um desses lenços. O keffieh era, ainda, inseparável da figura do líder Yasser Arafat. E, por fim, o boom do turismo à Terra Santa, nos anos 1990, engendrou os últimos movimentos dos teares de Yasser Hirbawi. Ainda segundo o Le Monde, a crise começou por volta dos anos 2000, com o crescimento acelerado da economia chinesa, a desregulação cada vez maior do comércio e o início da segunda Intifada. Os keffieh “made in Palestine” também foram prejudicados pelos checkpoints do Exército israelense que bloqueavam as entregas de encomendas.
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Tareq Souss, líder da Federação das Indústrias de Vestuário Palestinas, reclama que o governo da Autoridade Palestina não tem controle algum sobre as fronteiras e, assim, não foi capaz de barrar os produtos chineses. “Até mesmo os cachecóis com o rosto de Arafat e que traziam a inscrição ‘Jerusalém é Nossa’ distribuídos pela Fatah em seu aniversário no começo do ano, vieram da China”, reclama Izzat Hirbawi, filho de Yasser, na reportagem de Benjamin Barthe. Mas, disso, eu só soube depois. Naquele dia, na cidade velha, tive que declinar a oferta de 300 shekels do vendedor que me garantia um keffieh original (não era, definitivamente), mas não pude recusar o chá com folhas de menta que ele me trouxe, “sem compromisso”.
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No fim da tarde, num restaurante árabe próximo ao portal de Jaffa, uma das entradas da cidade velha, encontrei os estudantes – franceses, belgas, suíços, italianos e espanhóis – que fariam a viagem às cidades da Cisjordânia. Durante a reunião, eles leram um longo e-mail de Omar, dirigente do movimento estudantil palestino (GUPS – União Geral dos Estudantes Palestinos), que havia sido barrado na Jordânia quando tentava chegar ao território ocupado. Segundo o governo de Israel, ele era uma ameaça à segurança nacional (israelense). Na mensagem, Omar pedia que continuassem sem ele, prometendo acompanhar, desde Amã, todos os passos do
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grupo. Ele lamentava que não veria mais seus avós, já que certamente não conseguiria entrar no país nos próximos dez anos. Durante o encontro, o franco-palestino Taher recebeu um telefonema. Levantou-se e esperou o grupo silenciar: “Acabaram de me avisar que a Universidade de Beir Zeit [uma importante universidade palestina, que fica na cidade de Rammallah] foi fechada depois de confrontos entre partidários do Hamas e do Fatah. Alguns estudantes ficaram gravemente feridos”. O grupo continuou em silêncio. Uma menina morena de olhos verdes, que pouco antes me contava alegremente que era filha de um brasileiro (mas não falava uma palavra de português), comentou qualquer coisa em voz baixa com a amiga suíça loira, de bata bordada e óculos escuros. A apreensão durou poucos instantes. Logo os organizadores da viagem começaram a anunciar o roteiro do dia seguinte e todos desataram a falar juntos novamente.
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À noite, Ahmad insistiu para que eu o acompanhasse em uma partida de xadrez, no albergue. Pedi que ele me ensinasse algumas palavras em árabe, as essenciais, como Gilad havia feito, com o hebraico. “Minfadlak é para dizer por favor. As mulheres dizem Minfadlaki, com esse ‘i’ no final. Para dizer obrigada, shukram. Não há de quê: hafuon. Já ‘não’ é fácil, é la. E para se despedir, pode dizer bye, mesmo!”, explicou Ahmad. “Ah! E não se esqueça. A garotada
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na Cisjordânia e aqui em Jerusalém costuma testar os estrangeiros, para descobrir se são judeus israelenses. Se correrem até você e disserem shalom, balance a cabeça e diga la, la”.
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“Essa é uma questão estúpida” DOMINGO, 15 DE JULHO DE 2007
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m tour pelos arredores de Jerusalém já é suficiente para explicar melhor como a Palestina está dividida em bantustões.
A marca da ocupação são os numerosos postos de controle, muros, barreiras, grandes colônias e diferentes divisões administrativas, tanto na Cisjordânia como na parte oriental de Jerusalém. Com os olhos no mapa, dá para se ter uma ideia de porque os acordos de paz estão longe de chegar a um consenso enquanto esse sistema persistir. Todo esse aparato é chamado de “Matriz de Controle” pelo antropólogo Jeff Halper, do Comitê Israelense contra a Demolição de Casas. É um sistema projetado para permitir a Israel o controle de cada aspecto da vida dos palestinos nos territórios ocupados, ao mesmo tempo em que diminui o perfil militar do Estado e deixa a impressão aos que estão de fora de que a ocupação a que os palestinos se referem é meramente administrativa. A Matriz de controle, segundo Halper, opera de modo a tornar a ocupação virtualmente invisível. O governo militar de Israel nos territórios ocupados é chamado, por exemplo, de “Administração Civil”,
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mesmo que seja chefiada por um coronel subordinado ao Ministério da Defesa. Os mecanismos ativos da Matriz são diversos: ações militares diretas, incluindo ataques a centros da população civil e à infraestrutura palestina; detenções administrativas, prisões, julgamento e tortura; e “ordens” do comando militar da Cisjordânia e Gaza (cerca de 2000 desde 1967), somadas às políticas da Administração Civil, que substitui toda a legislação local e aumenta o controle político de Israel. Outros mecanismos decorrem da política de Israel de criar “fatos consumados”, e todos eles violam o Direito Internacional, ainda de acordo com Halper: expropriação massiva de terras palestinas; construção de mais de 200 colônias e transferência de mais de 400 mil israelenses para além das fronteiras de 1967: cerca de 200 mil na Cisjordânia e outros 200 mil em Jerusalém oriental. Outro mecanismo de controle e fragmentação: a divisão dos territórios em áreas “A”, “B”, “C” e “D” na Cisjordânia; “H-1” e “H2” em Hebron; Amarelo, Verde, Azul e Branca em Gaza; reservas naturais; áreas militares fechadas, zonas de segurança e restrição de construção de casas em mais da metade da área palestina de Jerusalém oriental – o que confina os palestinos em cerca de 190 ilhas cercadas de colônias israelenses, rodovias e checkpoints. As colônias são ligadas por rodovias que, além de exclusivas para a passagem dos colonos, criam barreiras entre áreas palestinas. Aliás, o controle severo de movimento dos palestinos é outro aspecto da Matriz. As colônias, cuja expansão dizem estar congelada, continuam aumentando nos largos terrenos que possuem – o que chamam de “crescimento natural”.
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Jeff Halper destaca ainda a construção de sete parques industriais que estimulam a economia das colônias isoladas e explora mão de obra barata dos palestinos – enquanto estes estão impedidos de entrar em Israel para trabalhar desde 1993. Além da possibilidade que Israel tem de continuar despejando seu lixo industrial na Cisjordânia. O controle de aquíferos e outras fontes de recursos naturais e a exploração de locais sagrados – como o túmulo de Raquel em Belém, o Túmulo dos Patriarcas em Hebron –, que trazem benefícios econômicos a Israel, também acontece com o pretexto de garantia da segurança. Restrições de plantio e venda de lavouras, assim como a destruição de centenas de milhares de oliveiras desde 1967 e o emprego de licenças e inspeções no comércio palestino são, ainda, outras formas de controle. “A isso tudo deve ser adicionado, claro, os custos psicológicos da vida sob ocupação: perdas de vidas, emprisionamentos, tortura, assédio, humilhação, raiva e frustração, assim como traumas sofridos por dezenas de milhares de palestinos (especialmente crianças) que testemunharam a demolição de suas casas, viram seus amados apanharem ou serem humilhados, sofreram com habitações inadequadas e com a falta de oportunidades para realizar seus potenciais”, afirma Halper, que é judeu americano imigrado para Israel. “Essas feridas vão levar gerações para serem curadas”. Para o antropólogo, o único caminho para a paz é o desmantelamento dessa Matriz. “Israel adora dizer que foi generoso com os
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palestinos com os Acordos de Oslo, que ofereceu 95% do território, e que os palestinos é que atrapalharam o processo de paz ao não aceitar tão generosa oferta – a ‘melhor’ até então”, diz Halper. “O problema é que os 5% restantes, que compõem essa Matriz de Con16
trole, inviabilizariam qualquer mini-estado Palestino” .
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Na parte da tarde, visitamos um centro social em Jerusalém que lida com crianças em dificuldades – algumas delas dependentes de drogas. A sede da ONG está ameaçada de demolição, pois dizem que eles não têm permissão para atuar. Enquanto conversávamos com Yasser, que trabalha na ONG “clandestina”, as crianças corriam e, na falta de pipas, empinavam sacolas plásticas em frente a uma vista incrível da cidade. “Estamos enfrentando problemas com a nossa juventude que está cada vez mais envolvida com drogas. Os soldados israelenses que fazem o policiamento da região de Jerusalém oriental não se importam com isso, fazem vistas grossas e querem mais é que eles se afundem nessa tragédia”, disse Yasser. “Não há nenhuma instituição na Palestina que cuide desse problema do tráfico e consumo de drogas”. A ONG de Yasser pediu financiamento aos EUA e à União Europeia, mas esbarrou em dois problemas: “Primeiro, ninguém está interessado em enfrentar esse assunto tabu. Depois, os envolvidos não podem ter relação com uma exten16. HALPER, Jeff. “The key to peace: dismantling the Matrix of Control”. Disponível no site www.icahd.org
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sa lista de pessoas ligadas ao terrorismo que eles consultam. Qualquer um que já tenha sido preso ou tenha um parente acusado de envolvimento com terroristas ou organizações políticas é impedido de receber financiamento”, explicou Yasser. “Você já foi preso?”, perguntei. “Essa é uma questão estúpida”, disse Yasser, num sarcasmo seco. “Sim, já fui”. A intensa atividade de ONGs na Palestina me fascinou e me preocupou, ao mesmo tempo. Se, por um lado, é interessante ver essa rede associativa em ação contra os problemas causados pela ocupação, não sei até que ponto a dependência da ajuda externa não prejudica a comunidade Palestina. Ficam algumas perguntas sem resposta: * A definição das prioridades dos palestinos e suas necessidades básicas podem ser definidas por esta ou aquela organização internacional? * Essas despesas de educação, saúde e assistência social não deveriam ser de responsabilidade de Israel, que ocupa os territórios desde 1967 – e que, desde então, cuida da administração civil dos territórios? A comunidade internacional, alegando o sofrimento dos palestinos, não tira de Israel a responsabilidade de pagar pelo custo dessa ocupação? * O dinheiro é sempre bem gasto? Não dá margem à corrupção? * Os salários pagos pelas ONGs internacionais são cerca de três vezes mais altos que os pagos aos funcionários públicos pela Au-
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toridade Palestina. Isso não priva a administração pública de seus 17
melhores quadros ? Enquanto saíamos, as crianças nos rodearam e pediram, sorrindo, todas ao mesmo tempo: “Um shekel! Meio shekel! Por favor”!
17. Reflexões como essa são levantadas no relato de viagem da jornalista Anne Brunswic, em seu livro Bienvenue em Palestine.
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Awdah SEGUNDA-FEIRA, 16 DE JULHO DE 2007
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epois de três dias de viagem, a palavra Nakba ganhou sentido para mim. É um fantasma que paira sobre as cidades
israelenses – e também sobre os campos de refugiados. O termo, em árabe, quer dizer “a tragédia” e se refere à criação do Estado de Israel, em 1948, quando muitas cidades foram destruídas e 60% da população palestina virou um povo exilado. O sonho do retorno entre os palestinos é tão forte que algumas pessoas ainda guardam as chaves da antiga casa e os documentos que provam a sua possessão desde a época do Império Otomano. A questão do retorno dos palestinos é central em qualquer discussão e negociação pela paz. Até pouco tempo atrás, dizia-se que os cerca de 800 mil palestinos exilados tinham saído voluntariamente em obediência a ordens dos países árabes, que deflagaram guerra contra o recém-declarado Estado de Israel. Era uma tese comumente aceita entre os historiadores – principalmente entre os 18
israelenses. Mas os chamados “novos historiadores” israelenses 18. Os novos historiadores, também chamados de revisionistas, questionaram seriamente a interpre-
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contestaram essa afirmação. O mais influente deles foi Benny Morris – correspondente diplomático do Jerusalém Post que se doutorou na Universidade de Cambridge. Ele se dedicou a um trabalho minucioso sobre o nascimento do “problema” dos refugiados e os massacres de 1948, que deram origem à Nakba palestina. O plano para partilha da Palestina (Resolução 181) já tinha sido anunciado para pacificar a região: pôr fim às revoltas dos árabes, insatisfeitos com a crescente imigração sionista e a compra massiva de terras, e dos judeus, que se rebelavam contra o mandato britânico e as restrições à imigração. A partilha era apoiada pelas duas potências, EUA e Rússia, assim como pelos membros da UNSCOP (Comitê especial das Nações Unidas sobre a Palestina), que apresentaram suas recomendações à Assembleia Geral da ONU. Foi necessária uma pressão considerável de organizações de judeus americanos e da diplomacia americana, além de um discurso forte do embaixador russo na ONU, para que o plano fosse aceito pela maioria de dois terços da Assembleia Geral. A expulsão de palestinos começou naquele momento, doze dias após a partilha. Um mês mais tarde foi arrasada a primeira aldeia palestina. Mas, depois, em março de 1948, a ação se trans19
formou em uma operação de limpeza étnica , o que fez com que a 20
Palestina perdesse grande parte de sua população nativa .
tação tradicional da guerra de 1948 e foram assim qualificados em contraposição à geração anterior nos primeiros anos de Israel. 19. De acordo com a definição oficial das Nações Unidas, limpeza étnica é “tornar uma área etnicamente homogênea utilizando-se de força ou intimidação para remover de determinada área pessoas de outro grupo étnico ou religioso” 20. PAPPE, Ilan. História da Palestina Moderna, p. 164.
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A empreitada sionista pretendia criar, na Palestina, um Estado judaico que “pertencesse” ao povo judeu. A maioria demográfica era, portanto, condição sine qua non para a constituição desse país – como ainda acontece hoje. Assim, a chamada “transferência compulsória” da população árabe no nascente Estado fazia parte da ideologia do sionismo, sobretudo porque o plano de partilha da ONU 21
não contemplava uma maioria judaica estável.
O judeu americano Norman Finkelstein, filho de sobreviventes de campos de concentração, se vale do levantamento e das provas do próprio Morris para concluir que os árabes da Palestina foram 22
expulsos de forma sistemática e premeditada . De acordo com Finkelstein, “praticamente todos os assentamentos árabes foram abandonados por causa do perigo de destruição ou massacre”. A declaração do Estado de Israel, ainda segundo Finkelstein, foi decisiva para a intensificação da política de expulsão. Se antes as lideranças sionistas eram sensíveis às pressões internacionais, por medo de que o plano de partilha fosse alterado, após maio de 1948 a nova realidade diplomática permitiu a implementação de uma política implacável de expulsão. Criado em 23
março e aplicado a partir de abril, o chamado Plano Dalet foi o
21. FINKELSTEIN, Norman G. Imagem e Realidade no conflito Israel-Palestina, p. 163. 22. Ibid., p. 121 23. A essência do Plano Dalet “era o afastamento das forças hostis e potencialmente hostis do interior daquele que viria a ser o território do Estado judaico (...) Como os combatentes árabes irregulares estavam baseados e aquartelados nas aldeias, e como as milícias de muitas aldeias participavam de hostilidades contra o Yishuv, a Haganah considerava a maioria das aldeias como ativa ou potencialmente hostis”. MORRIS, Benny. Birth of the Palestinian Refugee Problem, p. 113,128-9.
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o sustentáculo das expulsões, massacres e destruição de vilarejos palestinos que vieram a seguir. Israel implementou, portanto, uma série de medidas e procedimentos para tentar criar um Estado puramente judeu, começando pela expulsão dos palestinos em 1948: 90% da população árabe foi expulsa do território designado como Estado judeu; a demolição de mais de 530 vilarejos árabes; confisco massivo de terra árabe e a criação de mais de 700 colônias, com o objetivo de absorver novos imigrantes judeus. Cerca de 160 mil árabes, no entanto, continuaram dentro das fronteiras do que hoje é o Estado de Israel, e atualmente a população árabe israelense representa 19,7% da população 24
total, aproximadamente 1,4 milhão de pessoas . Entre as cidades que sofreram saques e massacres, estão Lod e Ramla, hoje em Israel. O distrito formado pelas duas cidades estava fora do plano de partilha da ONU. Hoje são parte de Israel, graças ao esforço das lideranças sionistas, empreendido entre agosto e dezembro de 1948, de criar colônias sionistas fora das fronteiras. E foi nessas cidades que percebi como a Nakba continua presente no cotidiano dos moradores. Quando cheguei ao centro de Lod, deparei-me com uma feira livre – poucas barracas de frutas, ervas e utensílios domésticos. Essa era uma das principais cidades da antiga Palestina, e chegou a ser sua capital econômica. Hoje só restam os escombros das mansões otomanas e mamelucas, e fica difícil reconstituir a imagem próspe-
24. Dados �������������������������������������������������������� de dezembro de 2006 do Escritório Central de Estatísticas ��������������������������������������� de Israel. Disponível no site: http:// www.cbs.gov.il
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ra que tentaram me descrever. Em Lod, árabes cristãos e muçulmanos conviviam entre igrejas e mesquitas. Troquei algumas palavras em inglês com o dono de um bar, que puxou conversa quando me viu olhar – com, digamos, especial atenção – um jogo de futebol Brasil x Argentina que passava na televisão. No meio da conversa, ele me estendeu um jornal árabe e disse que a edição daquela semana contava o que aconteceu ali há 59 anos. O título, Lod e Ramla: uma história de mortes. Com seus 35 anos, ele cresceu ouvindo esse caso: ao lado do bar, havia uma mesquita, que ficou fechada por muitos anos e fora reaberta alguns anos antes. Os habitantes afirmam ter havido ali um massacre de 250 árabes. A condição imposta pela administração israelense para reabri-la, ele me contou, foi limpar as paredes que guardaram as marcas de sangue e nunca mais falar sobre isso. “Limparam, mas não esqueceram”, disse. Uma cidade vizinha foi rebatizada com o nome da milícia que causou a tragédia – Beitar. Uma mulher de uns 40 anos, bem magra, cabelos tingidos de ruivo e óculos de sol, apresentou-se ao nosso grupo de estudantes. Hurya Al-Saadi era uma voluntária da associação “Lembrança da Nakba”, uma organização local, e nos fez uma espécie de “visita guiada”, para mostrar os traços de 1948 deixados ali. Fizemos uma caminhada até um antigo bairro árabe-cristão e ela parou diante de ruínas de um prédio antigo. Ainda se viam alguns arcos da construção otomana, com pedras claras. O mato crescia ali dentro.
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“Esta era uma mansão mameluca, que servira como hospedaria no começo do século XIX. Aqui, ao lado, funcionava uma fábrica de azeite”. Entramos na casa e algumas crianças, que começaram a acompanhar nossa caminhada, rodearam as máquinas e utensílios da fábrica abandonada. “Se não está pior, é porque uns estudantes fizeram um mutirão de limpeza, na semana passada”, disse. “Todos os pedidos feitos à administração israelense para restaurar e proteger o sítio foram ignorados. O que se comenta por aqui é que, se a construção tivesse algum símbolo judeu, seria rapidamente cercado, limpo, protegido”. “Vinte e cinco mil pessoas moravam aqui antes de 1948, entre árabes cristãos e muçulmanos e até alguns judeus. Todos viviam 25
em paz. Tanto é que, quando começaram os ataques , cristãos se refugiaram em mesquitas e muçulmanos em igrejas. As milícias israelenses não faziam distinção entre eles”, continuou Hurya. Hoje, há apenas 150 árabes naquela vizinhança. Sara contou que são discriminados e os prédios em que vivem, desvalorizados. Aos poucos, a população judia também foi abandonando o local, e o Estado ficou cada vez mais ausente – ao menos em termos de serviços públicos. Somente os judeus mais pobres, operários que não podem pagar aluguéis caros, ainda vivem ali. É um bairro industrial e poluído, onde ninguém quer morar.
25. Em Lod, segundo Finkelstein, entre 200 e 450 palestinos foram mortos no massacre, e é possível que outros 350 tenham morrido na marcha forçada que se seguiu. FINKELSTEIN, Norman G. Op. cit., p. 122.
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“Há uma vontade das autoridades de apagar qualquer traço palestino, por isso eles se omitem quando pedimos para preservar alguns sítios históricos. Eles querem apagar da História tudo o que lembra que um outro povo vivia ali antes de 1948”, disse Hurya, fazendo um gesto para continuarmos a caminhada. Alguns quarteirões depois, mudamos de bairro. Mas parece que mudamos de mundo. No lugar da terra revirada e da falta de asfalto, do lixo nas ruas, do esgoto a céu aberto, com óleo tóxico de uma refinaria ao lado, do trilho de trem sem proteção para os pedestres, das ruas sem calçada, onde as crianças brincam e são atropeladas – no lugar disso tudo que vi no bairro árabe, um bairro limpo, arborizado e florido. Um bairro judeu. Eles pagam os mesmos impostos, mas o Estado não está presente da mesma maneira nos dois lugares. Um muro que separava os dois bairros me chamou a atenção. Não era como o muro de separação da Cisjordânia – que tem oito metros de altura, câmeras, cercas elétricas e, em alguns lugares, um fosso. Era um muro menor, mas temo que o objetivo seja o mesmo: “é, sim, um muro de separação”, disse Hurya, calmamente. “Não estamos na Cisjordânia, mas este é um muro de separação. Construído com dinheiro do Estado, pelos moradores judeus. O que mais seria?”. Os moradores árabes entraram na Justiça e conseguiram deter a construção do muro. Mas ali, próximo da “divisão” entre os bairros, as casas estão ameaçadas de demolição. “A administração simplesmente não concede licenças para a construção de casas a nenhum árabe. Então, essas casas foram
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construídas de maneira irregular. Isso acontece em muitos lugares, em Israel e nos territórios ocupados”, disse Hurya.
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Em Ramla, não muito longe de Lod, as ruas foram todas rebatizadas com nomes de pessoas e fatos da cultura judaica. Destruindo os símbolos – ou deixando que eles se destruam sozinhos, por degradação – a administração israelense promove a “judaização” de diversas cidades. Uma casa da região tinha uma pequena placa na entrada. “Centro Cultural Mosaico”. É uma ONG que atua contra a discriminação, promovendo a diversidade, na qual Hurya também atua como voluntária. Entramos e fomos recebidos com chá e café por um senhor de barba e cabelos brancos. Era Uri Davis, um acadêmico judeu israelense que trabalha no centro e dirige uma ONG chamada “Al Beit - Associação para os Direitos Humanos em Israel”. Na verdade, apesar de ser filho de judeus e ter a palavra “judeu” registrada em sua carteira de identidade, Uri não gosta de se descrever assim. É ateu e prefere o termo “palestino hebreu anti-sionista”. Hurya contou que tentou pedir ao prefeito que mudasse o nome de apenas algumas ruas para homenagear personagens árabes. Eles estavam em um evento público e o diálogo tem, portanto, testemunhas, inclusive a imprensa, lembrou Hurya. “Tenho vergonha de dizer o que ele me respondeu, na frente de todos”, disse.
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Eu também tenho vergonha de escrever aqui. Mas vamos lá. “Fuck you!”, disse Hurya em inglês, imitando o prefeito – que falou em hebraico. “Mas sou cidadã como os outros. Por que não temos os mesmos direitos?”, respondeu, sob o olhar curioso dos jornalistas. “Se vocês não estão satisfeitos, que se mudem para Jalalabad [vilarejo árabe]. Não tenho culpa se vocês têm tantos filhos”, concluiu o prefeito, retirando-se dali. Uri Davis entrou na conversa. Ele explicou que as atividades do Centro Cultural são feitas em três línguas, sempre – hebraico, árabe e inglês – principalmente com as crianças. Espalham anúncios por toda parte, mas poucas pessoas aparecem. Apesar disso, diz, acredita nas relações entre árabes e judeus. “Infelizmente, o racismo é regulado por lei no Estado de Israel. Segundo a Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu 30º artigo, toda pessoa tem o direito de morar onde escolher, e se quiser deixar o país deve poder voltar. Se, apesar de tudo o que o governo israelense faz (ou deixa de fazer) para tornar a vida insuportável, os árabes resistem e decidem ficar ali, meu trabalho é apoiar essas pessoas que escolheram um lugar errado para viver”, disse, destacando a palavra “errado”, como quem não concorda com aquilo. Sem dúvida, não é um trabalho fácil.
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Mais um hora e meia de ônibus e chegamos ao deserto do Neguev (que os árabes chamam de Nakab), no sul de Israel. Trata-se de um dos lugares de concentração da população árabe no país, hoje. Ali, vive uma população de beduínos, povo seminômade que migrava em determinadas épocas do ano, de acordo com o clima, criavam camelos, cabras e outros animais. Antes de 1948, os beduínos tinham um papel importante na economia da Palestina, pois forneciam produtos primários do campo e compravam os produtos manufaturados na cidade, fazendo, portanto, a ligação cidade-campo. Paramos em frente a um monte de terra e lixo na beira da estrada. Atrás dele, algumas barracas de zinco e plástico se amontoavam. Quem nos acompanhava agora era Atiyia Al`aam, presidente da Associação das 40 (Ait Arbein). Quarenta o quê?, perguntei. Cidades não-reconhecidas. São cidades como aquela que eu via: existem, mas não constam em mapas oficiais. Atiyia desceu para avisar sobre a nossa presença e fez um sinal para que o acompanhássemos para dentro do vilarejo. Debaixo de um barracão, um senhor esquentava água com folhas de menta para fazer um chá, agachado em frente a um buraco com brasas. Ele lavou os copos com um pouco da própria bebida, pois ali a água é rara: nesta vila de beduínos não há distribuição de água potável, nem serviços de eletricidade, coleta de lixo, esgoto ou telefone. Awdah, como ele se chamava, nos estendeu os copos de chá, silencioso. Apesar de não existirem em nenhum mapa oficial, muitas dessas cidades já estavam ali antes da criação do Estado de Israel,
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em 1948. Outras foram estabelecidas no começo dos anos 1960, quando o Estado promoveu a evacuação dos beduínos do norte do Neguev para o sul de Beersheba, a maior cidade da região. Com a adoção da Lei de Planejamento e Construção de 1965, essas 45 cidades desapareceram oficialmente, e toda instalação ali foi considerada ilegal – tanto as novas construções quanto as já existentes há décadas. Segundo a Associação Árabe de Direitos Humanos (HRA), o número de vilas nesta situação pode chegar a 100, já que é difícil definir o que é um município sem critérios objetivos. A cidade de Im-Tnam, com dois mil habitantes, por exemplo, é considerada ilegal. Não muito longe, a colônia judia de Lavon tem duas famílias, é reconhecida e usufrui de todos os serviços prestados pelo Estado. A família de Awdah morou por várias gerações a 50 quilômetros dali, antes da Nakba. Ele nasceu em 1953 e recebeu este nome, que quer dizer “o retorno”, assim como muitas crianças nascidas no exílio, na mesma época. Mas a família de Awdah nunca mais pôde voltar a sua terra, que hoje é uma área militar, vazia. Depois de 1948, o governo israelense concentrou os 10% dos beduínos que não deixaram o território no chamado “triângulo de terra” entre as cidades de Dimona, Beersheba e Arad. Faysal Sawalha, do Conselho de Cidades Árabes Não-Reconhecidas, explica que a região ficou sob governo militar até 1966, e toda a população beduína foi proibida de deixar o local: “eles viraram refugiados dentro do próprio país”, diz. Assim, todas as propriedades consideradas abandonadas foram confiscadas pelo governo, que hoje controla
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93% das terras israelenses através da Administração de Terras de Israel (ILA) e do Fundo Judaico. Além de proibidos de construir novas casas, os beduínos não podem mesmo reformar ou ampliar suas residências. As famílias vivem em barracos e a temperatura pode chegar a 50 graus sob os tetos de zinco. Atiyia Al’aam, que também é habitante de uma cidade não-reconhecida, contou que eles vivem sob constante ameaça de demolição. Uma francesa muçulmana traduzia a conversa, que se deu em árabe. “Há duas semanas, demoliram sete casas aqui. Enquanto seguem com a demolição, eles prendem os homens e tiram as mulheres e crianças de dentro de casa. Destróem tudo de uma vez. Depois soltam os homens, mas se eles tentam resistir, a detenção é maior. Tudo o que estava dentro da casa é confiscado, muitas vezes as pessoas não têm tempo de salvar nada”, disse Atiyia. Enquanto isso, Awdah servia mais chá com menta a todos, sem dizer uma palavra. Mesmo construir um banheiro pode ser motivo para aplicação de uma multa. Funcionários do governo fazem inspeções frequentes e fotos aéreas para descobrir novas construções clandestinas. Os proprietários recebem uma ordem administrativa e, de acordo com a HRA, alguns devem demolir a casa por conta própria. Se não o fizerem, enfrentam um processo criminal. Faysal Sawalha afirma que, apenas em 2007, mais de 130 casas foram demolidas.
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Região conhecida como “triângulo de terra”, entre as cidades de Arad, Beersheva e Dimona, onde os beduínos foram concentrados a partir de 1948
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Os beduínos são cidadãos de Israel, votam para as eleições nacionais, possuem identidade e nacionalidade israelense e pagam impostos, como os outros. No entanto, a ausência do Estado nessas cidades marca uma posição clara que as entidades de Direitos Humanos denunciam como racista, por privar os cidadãos árabes de serviços essenciais. Segundo a Administração de Terras de Israel, todos os cidadãos têm direito a esses serviços, mas apenas se morarem em casas permanentes. Além disso, a ILA alega que os beduínos estão dispersos em uma área muito extensa, o que impede seu gerenciamento. Faysal Sawalha diz que essa é apenas mais uma desculpa. “Israel não quer nos reconhecer por dois motivos: primeiro, eles querem concentrar os palestinos na menor área possível e confiscar deles o máximo de terras. Segundo, eles não querem assegurar os serviços mínimos de bem-estar, como eletricidade, água, saúde, para que seja insuportável a vida aqui e que partamos sem que eles sejam acusados de nos expulsar. Dizem isso abertamente”. O que Faysal falava não era nenhum absurdo. Em 1950, um dos fundadores de Israel, David Ben- Gurion declarou : os beduínos devem ser expulsos, não para desalojar os árabes do Neguev, mas para garantir o nosso próprio direito de assentamento. Moshe Dayan, herói de guerra, também compartilhava dessa visão, porém acreditava que o problema seria resolvido sem necessidade de repressão: sem coerção, mas com uma direção governamental, o problema dos 26
beduínos vai desaparecer, disse . 26. MANSKI, Rebecca. “Bedouins vilified among top 10 environmental hazards in Israel”. News from
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Uma das formas de encarar o problema de forma “administrativa”, ou seja, sem massacres, foi varrer do mapa as cidades árabes, que passaram a não mais existir. O governo israelense tem vários planos para o desenvolvimento do Neguev. Alguns deles simplesmente ignoram a existência dos beduínos, como o Plano Nacional de Israel para 2020, e outros planos regionais, como o Tamam 4/14, propõem redistribuí-los em 8 cidades regularizadas. As terras confiscadas estão sendo disputadas na Justiça (600 km², menos de 5% das terras ocupadas pelos beduínos originalmente), mas, em uma nota publicada em seu site, o ILA propõe um “assentamento extremamente generoso em troca da retirada das ações judiciais”. Em um relatório apresentado ao Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas em 2003, a Associação Árabe de Direitos Humanos denuncia que, apesar de aparentemente ignorá-las, os planos apresentados pelo governo visam claramente às cidades não-reconhecidas: eles desenham, por exemplo, estradas que bloqueiam a entrada das cidades, planejam novas cidades judias onde já existem cidades árabes, ou declaram zonas militares onde há cidades não-reconhecidas. Um planejamento aparentemente neutro, mas que, de fato, torna a vida dos habitantes ali ainda mais difícil, sob o pretexto de um progresso racional. Ainda naqueles dias, o Knesset (Parlamento israelense) aprovou uma lei apresentada pelo deputado Uri Ariel, do partido religioso União Nacional (Mifdal), que proíbe a locação ou venda de terras do Estado aos “não-judeus”, ou seja, aos árabes. Whitin, Jerusalém, 23: 33-35, fev. 2007.
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Terminado o chá, Awdah se afastou da roda de conversa. Uma jovem franco-tunisiana, que fala árabe, perguntou porque ele estava tão silencioso. “Não sei falar bonito”, disse. “Mas o que o senhor acha disso tudo? O que acha da situação da Palestina?” “Olha, não há o que fazer. Os palestinos da Cisjordânia ao menos têm uma casa. E o mundo, como vocês, está de olhos voltados para a situação deles. Aqui, os buldozers passam por cima de tudo e ficamos sem nada. E ninguém fica sabendo disso”, falou Awdah, sem alterar o tom de voz. “Aliás, o que o mundo diz de nós, o que falam da nossa situação lá fora?” A jovem silenciou por um instante. Depois respondeu: “O mundo não se interessa por isso, infelizmente”. Awdah não parecia surpreso. “Eu também não sei o que acontece lá fora. Só sei que o que se passa com os beduínos tem a ver com essa questão maior, a Palestina. Todos aqui sofrem muito. Há famílias que foram separadas para sempre. Eles não podem vir para o lado de cá, em Israel, nem nós podemos vê-los do outro lado do muro, em Gaza ou na Cisjordânia”, continuou, Awdah, com a voz baixa. Apesar da distância, ele disse se sentir muçulmano e palestino. E, digno do seu nome, o Retorno, imagina que um dia todos poderão rezar juntos em Al-Quds (Jerusalém). Voltamos ao ônibus e acenamos para dois meninos do vilarejo de Awdah, que tinham subido naquele amontoado de lixo, perto da
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estrada sem asfalto, para nos ver partir. Atiyia contou que foram os próprios moradores que construíram essa espécie de muro, para esconder sua condição, que eles consideram vergonhosa. Olhei para os garotos, que não acenaram de volta.
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TODA SEXTA-FEIRA, O GRUPO DE ATIVISTAS ANTIMURO TENTA, EM VÃO, FURAR O BLOQUEIO DE SOLDADOS ISRAELENSES, EM BIL’IN
O ESCOCÊS KEVIN TENTA MOSTRAR UM MAPA DA CISJORDÂNIA A SOLDADOS, NOS INTERVALOS DOS “BRAÇOS-DE-FERRO”
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FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
O OUTRO LADO DO MURO
O MURO TORTUOSO DE 9 M DE ALTURA ENTRA COMO GARRAS NA CISJORDÂNIA; NAS FOTOS, TRECHOS DO MURO EM BELÉM
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
GILAD MOSTRA A TEL AVIV AGRADÁVEL...
...ENQUANTO TAL APONTA TRAÇOS DO ATIVISMO
EM TEL AVIV, AINDA É POSSÍVEL VER RESQUÍCIOS DE CONSTRUÇÕES DE FAMÍLIAS ÁRABES QUE MORAVAM ALI ANTES DE 1948
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O OUTRO LADO DO MURO
ALERTAS AMISTOSOS PARA QUEM VAI A BELÉM...
... E PERCALÇOS PARA QUEM
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
QUER VOLTAR
O MOVIMENTO DOS PALESTINOS NA CISJORDÂNIA É CONTROLADO PELOS ISRAELENSES; EM JULHO DE 2007, A ONU REPORTOU 539 BLOQUEIOS
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FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
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ELIK, UM EX-SOLDADO QUE SE RECUSOU A SERVIR O EXÉRCITO DE ISRAEL NOS TERRITÓRIOS PALESTINOS OCUPADOS. ELE É UM DOS FUNDADORES DA ONG
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
COMBATENTES PELA PAZ
O ISRAELENSE MICHAEL WARSCHAWSKI FALA A ATIVISTAS SOBRE A OCUPAÇÃO
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FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
O OUTRO LADO DO MURO
EM JAFFA, É POSSÍVEL VER A JUSTAPOSIÇÃO DO NOVO AO ANTIGO, DA PAISAGEM ÁRABE TRADICIONAL À MODERNA URBANIZAÇÃO ISRAELENSE; MORADORES DE ORIGEM ÁRABE DIZEM ESTAR SENDO EXPULSOS AOS POUCOS, EM UM PROCESSO DE GENTRIFICAÇÃO
VESTÍGIOS DE UMA ANTIGA PENSÃO MAMELUCA NA CIDADE ISRAELENSE DE RAMLA; MORADORES RECLAMAM DA NEGLIGÊNCIA DO PODER PÚBLICO, QUE NÃO CONSERVA SÍMBOLOS DA CULTURA PALESTINA
VI
FERNANDA CAMPAGNUCCI
MENINOS BRINCAM NA BEIRA DE ESTRADA EM FRENTE A UMA CIDADE ÁRABE NÃO-RECONHECIDA NO DESERTO DO NEGUEV, NO SUL DE ISRAEL
APESAR DE SEREM CIDADÃOS ISRAELENSES, OS BEDUÍNOS QUE MORAM NESSAS CIDADES INVISÍVEIS SOFREM COM A AUSÊNCIA
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
DE POLÍTICAS PÚBLICAS
HANDALA, PERSONAGEM DO CARTUNISTA NAJI AL-ALI, DESENHADO EM MURO NO CAMPO DE REFUGIADOS DE ASKAR, NA CISJORDÂNIA; O GAROTO, DESCALÇO, SIMBOLIZA OS PALESTINOS
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O OUTRO LADO DO MURO
FOTOS DOS CAMPOS DE REFUGIADOS DE 1948 SÃO COMUNS NAS CIDADES PALESTINAS; AS BARRACAS, QUE ERAM PROVISÓRIAS...
... VIRARAM CONSTRUÇÕES CAÓTICAS, COMO ESSAS DO CAMPO DE ASKAR
VIII
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ADNUN, VICE-PREFEITO DE YANUN, FALA SOBRE ATAQUES DE VIZINHOS COLONOS
DEPOIS DO ENCONTRO, MULHERES DA CIDADE SERVEM O MAQLUBEH
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O OUTRO LADO DO MURO
RAOUIA PASSOU 4 DE SEUS 23 ANOS NA PRISÃO...
... E SANA SÓ VIU 2 DOS 4 ANOS DE SEU FILHO
EM TULKAREM, NO NORTE DA CISJORDÂNIA, AS MULHERES SE REUNEM EM UMA ASSOCIAÇÃO; ALÉM DO MURO, ESTÃO NA PAUTA DE DISCUSSÃO PROBLEMAS ENFRENTADOS POR ELAS NO COTIDIANO E CURSOS DE ESPECIALIZAÇÃO
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TULKAREM TEM A MAIOR COMUNIDADE NEGRA PALESTINA
EM NAZLET ISSA, AS CASAS FORAM CORTADAS AO MEIO PELO MURO
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O OUTRO LADO DO MURO
A MÃE DE KHALIL MARSHUD FEZ DE SUA CASA UM VERDADEIRO MEMORIAL EM HOMENAGEM AO FILHO MORTO; NA PALESTINA, OS JOVENS MORTOS EM DECORRÊNCIA DA OCUPAÇÃO - EM COMBATE OU NÃO - SÃO CHAMADOS DE MÁRTIRES; ABAIXO, A SALA DE SUA CASA
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EM BALATA, SOLDADOS NÃO BATEM À PORTA PARA ENTRAR...
... E OS TANQUES QUEBRAM PAREDES E CALÇADAS
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O OUTRO LADO DO MURO
PAINEL REPRESENTA A NAKBA PALESTINA E O SONHO DO RETORNO DOS REFUGIADOS, EM MURO
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
DO CAMPO DE BALATA
AS HOMENAGENS AOS SHAHIDS (MÁRTIRES) ESTÃO POR TODA PARTE, NAS CIDADES PALESTINAS
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CRIANÇAS APRESENTAM COREOGRAFIAS DE DANÇA POPULAR PALESTINA QUE CELEBRA O MOMENTO DA COLHEITA
BALATA FOI CRIADO EM 1952, POR CERCA DE 4 MIL PESSOAS FUGIDAS DE MILÍCIAS SIONISTAS; HOJE, TEM 23 MIL HABITANTES
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O OUTRO LADO DO MURO
DURANTE O DIA, AS RUAS DE NABLUS SÃO MOVIMENTADAS; MAS, À NOITE, HÁ UM TOQUE DE RECOLHER TÁCITO, E NINGUÉM SAI ÀS RUAS APÓS AS 22 HORAS....
... E NA CASA DA FILHA DE MEREDITA, A REUNIÃO NÃO PÔDE SE ESTENDER. DA ESQ. PARA A DIR.: IRMÃO DE SHEREEN; FILHA MAIS NOVA DE MEREDITA; O GENRO E A FILHA MAIS VELHA; MEREDITA E SEU MARIDO, ABU; EM PÉ, SHEREEN E PÉRRINE
NAS RUAS DE JERUSALÉM, O QUE VALE É REGATEAR - MAS A MELHOR LÍNGUA PARA ISSO É O ÁRABE; O KUFFIEH ORIGINAL, TRADICIONAL LENÇO PALESTINO, ESTÁ DESAPARECENDO
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As laranjas de Jaffa TERÇA-FEIRA, 17 DE JULHO DE 2007
O
Jerusalem Post do meu sétimo dia de viagem trazia uma nota sem grande destaque: “Polícia ameaça abrir inquérito contra
manifestantes que marcham para Homesh, hoje”. Os manifestantes de que falava a matéria eram israelenses de extrema-direita. Homesh, por sua vez, é uma cidade na Cisjordânia (que os judeus chamam de Samaria), onde quatro colônias sionistas foram desmanteladas pelo governo israelense, em 2005, e para onde pretendiam os ex-colonos pretendiam voltar. A ação fazia parte de um plano de Israel de “evacuação” do território palestino, e se concretizou por completo somente em Gaza, onde os colonos somavam pouco mais de 7 mil habitantes. Na Cisjordânia, o controverso plano previa a retirada de apenas 500 assentados (de um total de aproximadamente 250 mil). “Os manifestantes de direita não ouviram o discurso de Bush, ontem, quando ele afirmou que a expansão das colônias judias na Palestina precisa parar”, dizia o texto do Jerusalem Post, logo no início. Eu também havia visto alguns cartazes, espalhados pelos
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postes de Tel Aviv e Jerusalém, pedindo a cada judeu que levasse um tijolo para desafiar o governo israelense e reconstruir naquele dia as colônias desativadas. Os manifestantes foram barrados pela polícia no domingo, mas conseguiram entrar na ex-colônia alguns dias depois. Esse era o quinto protesto desse tipo contra o desmantelamento das colônias sionistas em território palestino. “Precisamos corrigir o erro do nosso governo”, dizia um dos manifestantes ao jornal. “Não temos medo de Bush. Esta terra é nossa, Deus nos deu”, disse uma outra participante da marcha, identificada como Ruthi Brenner. A sociedade israelense, formada por populações imigradas de diversas partes do mundo, inclusive do mundo árabe, se transformou num complexo mosaico. Apesar de a maioria da população ter a religião em comum, o judaísmo, Israel está longe de ser um bloco homogêneo e possui hierarquias, mesmo entre os judeus. O encontro daquela tarde de terça-feira era em Tel Aviv, com a jovem Tal. Judia e israelense, Tal tem por volta de 30 anos e trabalha na Zochrot, ONG que se esforça para falar aos judeus israelenses sobre a Nakba palestina. Reparei que ela usava um colar com o pingente do Handala, figura criada pelo cartunista Naji Al-Ali que simboliza os refugiados palestinos – é um garoto virado de costas com as mãos para trás, descalço e de roupas remendadas. Andamos pelo bairro Florentine e seu entorno, na parte sul de Tel Aviv. A cidade é, de certa forma, cultural e socialmente di27
vidida. O norte é ocupado predominantemente por ashkenazim , 27. Ashkenazi é o nome dado aos judeus da Europa Central e da Europa Oriental, descendentes das
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pela classe média, por liberais e judeus seculares. Ramat Aviv, no norte, é onde viveram Yitzhak Rabin e Shimon Peres (ex-primeiro ministro e atual presidente de Israel), entre outros. Ali também está situada a importante universidade de Tel Aviv, que forma os melhores administradores e advogados. É igualmente no norte que está o Azrieli Center, conjunto de três torres de vidro – uma cilíndrica, uma triangular e outra quadrada – que abriga um shopping center onde os adolescentes ricos vão fazer suas compras. Já o sul de Tel Aviv é dominado por classes mais pobres e trabalhadoras, sobretudo os judeus Mizrahim – descendentes de comunidades judaicas do oriente médio, do norte da África, da Ásia Central e do Cáucaso. São os judeus do mundo árabe e países da 28
região, que praticam o rito sefardita do judaísmo . É também onde se concentram os conservadores, simpatizantes da direita e religiosos mais tradicionais. É uma Tel Aviv pouco frequentada por turistas. No sul, está o grande terminal de ônibus onde me perdi no primeiro dia, e onde o pai de Gilad foi me buscar. Na ocasião, Gilad disse que o lugar era “barra pesada”. Quando perguntei por que, ele desconversou e falou que era por onde passavam os imigrantes africanos e asiáticos e a classe trabalhadora mais pobre. Florentine está no sul, mas ainda tem um quê de bairro boêmio, preferido por artistas e intelectuais. Tal contou que os judeus árabes que moram ali se esforçam para se integrar na sociedade israelense, e por isso negam a própria origem. Escondem o fato de comunidades judaicas medievais da Renânia, no oeste da Alemanha. 28. Por uma confusão de termos, os Mizrahim são por vezes chamados de Sefardim.
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falarem árabe, não o ensinam aos filhos e têm, às vezes, posições mais radicais contra os palestinos. “Isso que vou dizer é um pouco estereotipado, mas acaba sendo verdadeiro neste caso. Quanto mais pobre, mais racista”, disse Tal. “É muito difícil falar da Nakba aqui”. Zochrot quer dizer “lembrança”, em hebraico. A ONG é formada por um grupo de israelenses que querem chamar a atenção da população para a catástrofe de 1948, como forma de aproximar os dois povos. “Nossa memória coletiva é dominada pela memória sionista, em que não há espaço para a história de sofrimento dos refugiados palestinos, os massacres, a destruição de suas cidades. Precisamos tornar essa história acessível para os israelenses. Reconhecer o passado, afinal, é o primeiro passo para saber lidar com suas consequências”, disse Tal. “Na escola, aprendemos apenas sobre a independência de Israel. Eu só abri meus olhos aos 24 anos”. Tal apontou para uma faixa num prédio de apartamentos de padrão popular. Os moradores estavam protestando contra sua expulsão, para dar lugar a um prédio de alto padrão, cujo aluguel eles não teriam como pagar. “Isso mostra a eferverscência deste lugar. As pessoas não estão adormecidas como parecem”, continuou a ativista. Mais à frente, passamos por um muro pichado com a estrela de Davi, tal qual eu vira dias antes com Gilad. Desta vez, havia algo diferente: dentro da estrela, outra frase estava pichada de vermelho, também em hebraico. Era o número de mortos de judeus e árabes
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na invasão israelense do Líbano – uma forma de dizer que todos perdiam com a atitude do Estado de Israel. Entramos numa casa de judeus que Tal conhecia e olhamos por cima do muro, para a casa vizinha. Dali, foi possível ver o topo de uma casa de estilo árabe vermelha, já com a pintura desgastada. Estava abandonada, como explicaram os judeus que nos receberam. “Os moradores desta casa tiveram que fugir em 1948. Eram pessoas muito boas. Moravam ao nosso lado e nunca tivemos problemas. Nunca mais voltaram nem foram vistos. É uma das poucas casas que continua de pé, entre todos esses prédios, mas já está ameaçada de demolição”, explicou um senhor. “A Nakba está debaixo dos nossos narizes, só precisamos apontá-la, para que as pessoas a vejam”, disse Tal, em frente a um muro. A Zochrot elaborou um mapa da Nakba, em hebraico, para mostrar aos israelenses esses sinais escondidos debaixo dos próprios narizes. Tal acredita que esse aprendizado é essencial para a paz e a reconciliação. “Quando as pessoas deixarem de acreditar no mito sionista de que esta era “uma terra sem povo para um povo sem terra”, talvez entendam que a Nakba de 1948 é o ponto inicial deste conflito – e não um problema de dois mil anos, como nos fazem crer”.
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Tomei muito suco de laranja no Hotel Hebron, já que o preço era o mesmo da água engarrafada – cerca de U$ 1,50. As frutas eram muito saborosas, talvez mais que as brasileiras, embora meu
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paladar e minha sede pudessem estar fortemente influenciados pelo calor daqueles dias. Confesso que não procurei saber da sua procedência, mas havia grandes chances de que as laranjas do meu suco fossem de Israel e, quem sabe, de Jaffa. Situada na costa do mar Mediterrâneo, em Israel, a bela cidade portuária de Jaffa já era mundialmente conhecida por suas laranjas no século XIX, quando a Palestina era uma grande exportadora da fruta, principalmente 29
para o mercado europeu . Antes mesmo do sionismo, em 1873, a região de Jaffa tinha 420 plantações de laranja, com uma produção anual de 33,3 milhões de unidades. A marca ficou célebre na Europa, levando o nome da cidade. Em um relatório de 1880, o cônsul britânico em Jerusalém afirmava que o investimento em frutas cítricas era o melhor a se fazer na Palestina. Seis anos depois, um outro relatório, desta vez do cônsul americano, destacava a avançada técnica de enxerto usada pelos camponeses palestinos: “seria útil aplicar a mesma fórmula na Flórida”. A imigração sionista se intensifica a partir de 1900, sem, porém, destronar os palestinos – que multiplicaram por seis a super-
29. Foi nessa época que houve a chamada “modernização da economia palestina”. Até meados da Primeira Guerra Mundial (1914-1919), a Palestina era uma província do Império Otomano. As tentativas das forças europeias de entrarem na região ou de integrarem sua economia começou antes, com o fim da Guerra da Crimeia (1856). O Congresso de Berlim, que pusera fim ao conflito, abriu as províncias dos otomanos ao investimento e especulação europeus. Assim, a partir daí, os estrangeiros passaram a poder comprar terras na região, que até então eram cultivadas em propriedades coletivas pelos camponeses. Quando os imigrantes sionistas chegaram, portanto, encontraram uma situação de extrema concentração e especulação fundiária – da qual souberam tirar proveito, como lembra o historiador Ilan Pappe.
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fície plantada, entre 1922 e 1935 . Mas, com a guerra de 1948 e a tomada de controle do país pelos sionistas, a laranja vira praticamente um monopólio de Israel. A cidade foi rebatizada de Yaffo, em hebraico, mas a marca da laranja ainda hoje é estampada em uma etiqueta com o nome Jaffa, em árabe. Encontrei com o israelense de origem árabe Samir Bukhari depois do almoço, em Jaffa. A cidade é bem próxima de Tel Aviv – na verdade, ficam na mesma região metropolitana e fazem parte da mesma administração municipal. Simbolicamente, Samir marcou a conversa na grama do jardim de um condomínio de luxo, de frente para o mar, “ex-fechado”. Ele, juntamente com outras pessoas de uma associação de moradores local, conseguiu que se reabrisse o espaço do condomínio, antes gradeado. Segundo Samir, somente os árabes não podiam entrar no jardim. Os visitantes, não necessariamente moradores, eram selecionados pelos porteiros. A situação pode parecer normal aos acostumados com os condomínios de luxo de algumas cidades do Brasil, que privatizam até praias, mas o cercamento de um espaço antes público soou à população como mais um ato de segregação. De calça jeans, camiseta, óculos e jeito de professor, Samir começou a explicar a situação dos árabes que moram em Yaffo – os que restaram e resistiram depois de 1948. “De 1948 a 1952 vivemos em Jaffa sob um regime militar – que, em outras cidades árabes do norte e sul do recém-criado Estado de Israel, se estendeu até 1966. Os militares colocaram famílias judias 30. CATHERINE, Lucas. Op. cit., p. 25
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nas casas de palestinos exilados; depois, passaram a colocar essas famílias até mesmo em casas ainda ocupadas por palestinos”, disse. Jaffa era uma cidade internacional e a referência cultural da região. Depois, passou a ser apenas a periferia de Tel Aviv, continuou Samir: “Até 1985, ninguém se importava com Jaffa, as casas eram muito baratas por aqui. Depois, a especulação imobiliária começou a crescer. Hoje, somos expulsos de nossas casas com os preços impagáveis. O que está acontecendo em Jaffa é um perverso processo de gentrification”. O termo gentrification, usado por Samir, pode ser traduzido como enobrecimento urbano. Com uma súbita valorização imobiliária, os moradores tradicionais, que pertencem a classes sociais menos favorecidas, são expulsos de espaços urbanos, como no caso de Jaffa. “É uma transferência econômica. Antes, expulsavam-nos pela força. Depois, tentaram expulsar pela negligência de serviços públicos. Hoje, é isso. Nossa alternativa seria ir embora para Ramla ou Lod. Mas lá as condições são terríveis”. Eu, que já havia passado pelas duas cidades, concordei silenciosamente. “Um hotel árabe tradicional aqui, que se chamava Clif, foi completamente demolido e deu lugar a uma nova construção. Bairros árabes, como o Jabalieh, hoje sofrem com demolições e desapropriações. Se um árabe se muda para um prédio onde moram judeus, os valor do imóvel se desvaloriza em 25%. Isso é regra em Israel”, disse Samir.
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Samir explicou que a população árabe em Jaffa caiu de 70 mil, em 1948, para cerca de 3.600 atualmente. Houve uma segregação espacial, e hoje os árabes se concentram principalmente em dois bairros: Jabalieh e A’jame – este último conta com uma bela vista para o Mar Mediterrâneo e tem se tornado alvo preferencial das demolições. A companhia de habitação Amidar, instituída pelo governo israelense em 1949, já emitiu centenas de ordens de despejo. Samir contou que uma mulher com quatro filhos havia sido expulsa de sua casa, na semana anterior. A comunidade local, tanto árabe quanto judia, se opôs à truculência com que as famílias eram despejadas e suas casas demolidas, e decidiu se organizar, criando o Comitê Popular de Jaffa. A exemplo do que acontece nas cidades não-reconhecidas do Neguev e na Cisjordânia, os voluntários se colocam em frente às máquinas e, caso não consigam impedir a demolição, reconstroem a casa. Eles fazem uma assembleia a cada ameaça para que sejam decididas as estratégias de ação. A casa da família que Samir mencionou, por exemplo, já começava a ser reerguida. Somente nos anos 1970 e 1980 mais de três mil construções – entre casas, escolas, mesquitas e estabelecimentos comerciais – foram demolidas. Essa prática se intensificou nos últimos anos. A ideia, ressaltou Samir, não é incentivar a ilegalidade nem impedir o desenvolvimento da cidade. Para o Comitê, o ideal é que as famílias pudessem comprar suas próprias casas de volta por preços razoáveis, para preservar a diversidade étnica e cultural de Jaffa/Yaffo.
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O dia estava lindo naquele fim de tarde, o céu quase tão azul quanto o Mar Mediterrâneo. A vontade era passear pelo porto, andar pela cidade, entender melhor aquela justaposição do novo ao antigo, do pobre ao rico, da paisagem árabe tradicional à moderna urbanização israelense. Mas eu tinha um encontro marcado com os Combatentes pela Paz, em Jerusalém. E já era hora de voltar.
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Em setembro de 1997, um militante palestino explodiu um carro em Jerusalém, feriu dezenas de pessoas e matou cinco civis. Entre elas, a judia israelense Smadar Elhanan, de 14 anos. Era seu primeiro dia de escola e ela tinha ido à cidade com duas amigas, para comprar alguns livros. Smadar e uma de suas amigas morreram na hora. Elik Elhanan, seu irmão, contava essa história sem lágrimas, mas com pausas na voz que mostravam que, mesmo dez anos depois, a lembrança ainda doía. Ele faz parte de um movimento de refuseniks, israelenses que se negam a servir ao Exército ou, uma vez lá dentro, posicionam-se contra a ocupação e a postura de seu governo. Junto a outros israelenses que recusaram o caminho militar, assim como os palestinos que desistiram da luta armada, Elik fundou a organização Combatentes pela Paz. Elik entrou para o Exército em 1995 e serviu por três anos em uma unidade de elite. Quando recebeu a notícia de que sua irmã tinha morrido naquele atentado terrorista, sua primeira reação, a
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mais natural, foi desejar vingança. Como soldado, pensou em sair à caça dos assassinos, matá-los, fazer justiça. Mas a dor não causou só raiva e ódio em Elik. O jovem soldado tinha apenas 20 anos e começou a pensar como tudo aquilo poderia ser possível, como foi que as coisas chegaram a tal ponto. Foi então que começou a ligar algumas peças desse quebra-cabeças de violência. Um mês antes da morte de Smadar, a unidade de Elik fora ao Líbano para uma missão. Ele não pôde ir, por razões administrativas. Ficou desapontado porque descobriu que a missão tinha sido um “sucesso”: onze terroristas foram mortos. Mas uma pequena investigação e as informações que obteve de seus amigos revelaram outra coisa: entre os mortos na missão, na verdade, estavam três crianças, dois idosos... “Aquela dor intensa foi uma virada na minha vida. Levou algum tempo para que eu percebesse que a solução não era militar, e sim política. Era muito fácil pensar que, indo ‘lá’, eu protegeria minha família ‘aqui’. Quando Smadar morreu, tudo isso ficou muito concreto. Culpar todo o povo palestino por aquilo e desejar vingança também era o caminho mais fácil. Mas eu recusei esse caminho, esse jogo de ação-reação. Tenho certeza que deve haver um outro”, disse Elik. A saída que Elik e centenas de outros encontraram é o diálogo. Mas não bastava apenas recusar a solução militar e dialogar com seus pares e seus concidadãos em Israel. Era preciso fazer mais: falar com o inimigo, do outro lado. “O primeiro encontro entre palestinos e israelenses que promovemos aconteceu em fevereiro de 2002. Foi o momento mais
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assustador da minha vida. Era a primeira vez que eu falava com um palestino – não uma foto de uma carteira de identificação, mas um ser humano de verdade, que não estava atrás das grades, nem nas filas dos checkpoints, para ser revistado. Um ano depois, já tínhamos trinta pessoas de cada lado. E hoje somamos mais de cem”, contou Elik. Em abril de 2006, a Combatentes pela Paz lançou um projeto em que ex-soldados, como Elik, vão às escolas falar com jovens do ensino médio, que estão prestes a servir o Exército. Vão tanto aos colégios caros como aos mais pobres, em periferias e cidades que sofrem com o conflito, como Sderot, na fronteira com Gaza. O lugar escolhido para o lançamento também foi simbólico: a escola de Anata, no norte de Jerusalém. O muro de separação dividiu a escola ao meio, literalmente. A associação de Eli agrega pessoas de ideologias diferentes, mas com os mesmos princípios: defendem o fim da ocupação; são contrários a todo tipo de violência; pedem o desmantelamento das colônias israelenses nos territórios palestinos e pregam o restabelecimento das fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias (1967), quando Israel anexou terras palestinas para além dos limites definidos pelo armistício de 1949, a chamada Linha Verde. “Às vezes é insuportável levar essa mensagem, a mensagem da paz. Os refuseniks viram párias. É muito fácil recusar servir o Exército israelense. Mas se você alega razões políticas, vai ter sérios problemas. Só que o outro caminho não é mais possível”, continuou Elik.
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Quando lhe perguntei como a sociedade recebe o movimento, ele foi enfático: “Do lado palestino só temos encorajamentos. Já em Israel a mídia e o mundo político nos ignoram. Ainda há pouca adesão das mulheres, mais isso está mudando. Usamos a estratégia do boca-a-boca, e isso tem dado certo. Na segunda guerra do Líbano, eu sei de pelo menos 70 pessoas que foram buscar ajuda jurídica para se recusar a ir à guerra e matar. Ninguém sabe, mas 400 pessoas foram presas por causa disso”. Apesar dos esforços da sociedade civil, o diálogo parece continuar truncado. Mesmo dentro da sociedade palestina, com o confronto entre as duas forças, Hamas e Fatah, a via do diálogo parece ser a mais complicada. Ou simplesmente proibida. No Jerusalém Post de hoje, o destaque era para a frase de Ehud Olmert, então primeiro-ministro israelense, dirigida a Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina: “Não vamos cooperar se o Fatah dialogar com o Hamas”. A falta de diálogo está, digamos, institucionalizada. Voltei ao Hotel Hebron. Tinha que recuperar as energias. Na manhã seguinte, eu voltaria ao outro lado do muro – e ali ficaria até o fim da viagem.
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Shereen QUARTA-FEIRA, 18 DE JULHO DE 2007
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assar pelo checkpoint de Belém foi, de novo, muito fácil. Por ali ainda passam muitos turistas, e Israel não pode impedi-los de
visitar a cidade de Jesus sem causar alguma comoção. Mas esperávamos ter problemas depois, dentro dos territórios ocupados, onde os visitantes são poucos e praticamente nenhum é simples turista, sem segundas intenções. Em geral, são jornalistas ou militantes, para desagrado dos guardas das barreiras. Meu destino era Nablus, cidade localizada no norte da Cisjordânia, distante cerca de 64 quilômetros de Jerusalém. Antes, paramos em Deishé, perto de Belém, para encontrar os estudantes palestinos que nos esperavam. Um deles, Tarek, ficaria conosco até o final da viagem, e seria nosso guia por outras cidades. Ele conhecia Nablus muito bem, o que não era muito comum entre os adolescentes e jovens palestinos de outras cidades. Para eles a locomoção é cada vez mais difícil, mesmo dentro de seu território. Já com Tarek, eu e mais seis pessoas seguimos para Nablus em um sheirut. O motorista ouvia Fayrouz, cantora libanesa adorada
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em todo mundo árabe. Sophie, estudante de Direito francesa de origem marroquina, pediu ao motorista que aumentasse (bastante) o volume e acendeu um cigarro com o braço para fora da janela. O táxi contornava as montanhas, com suas curvas, subidas e descidas de terra a caminho de Nablus, a toda velocidade. Não me incomodei com seus movimentos bruscos, era como se o carro estivesse deslizando com a voz de Fayrouz. Passavam os campos de oliveiras – ou tocos das árvores cortadas – e o verde se mesclava com as cores quentes de um deserto. Outro checkpoint. Sophie abriu e janela e disse ao soldado, com seu inglês carregado de sotaque francês: “Somos franceses e vamos ao Centro Cultural Francês de Nablus”. Essa era a senha para passar. O governo francês, por meio de seu Ministério das Relações Exteriores, mantém centros culturais em várias cidades da Cisjordânia, onde são oferecidos cursos de francês, além de espetáculos e exposições com artistas franceses – geralmente os engajados na causa palestina. O último cartaz que vi foi o de um Festival de Teatro do Oprimido que eles promoviam na região. Dois soldados rodearam o sheirut e olharam para o rosto de cada um de nós dentro do carro por alguns longos segundos. Todos estavam apreensivos. Nablus é a região onde a resistência palestina é maior, e por isso o controle é ainda mais rígido do que em outras cidades. A cidade fica num vale, entre os montes Ebal, ao sul, e Gerizim, ao norte; as bases das Forças Israelenses estão devidamente posicionadas no topo de cada uma, voltadas para a cidade.
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Uma bandeirinha dos Estados Unidos em forma de árvore de Natal ainda balançava, pendurada no retrovisor do táxi. Temíamos por Tarek. Muitas vezes, os soldados deixam os “internacionais” passar, olhando os passaportes, mas não os palestinos que eventualmente os acompanharem. Os olhares dos soldados não duraram muito. Devolveram o passaporte a Sophie e nos deixaram passar. A ONG Project Hope – Oportunidades Humanitárias para a Paz e Educação – nos recebeu para um lanche e seria nossa “base de apoio” naqueles dias em Nablus. AbdulHakim Sabbah, diretor da instituição, explicou que poderíamos usar a infraestrutura do local, desde que cumpríssemos algumas regras. Uma delas era a de que não poderíamos sair – em hipótese alguma! – depois das 22 horas. Era um toque de recolher tácito. “A cidade inteira faz isso, mesmo quando o toque de recolher não está declarado. O Exército israelense faz incursões quase todas as noites aqui. Na madrugada de hoje, houve troca de tiros e 14 palestinos foram presos”, explicou AbdulHakim, em um francês perfeito. A notícia sobre as prisões já tínhamos ouvido no caminho, pelo rádio do táxi. Uma das voluntárias, Shereen, ofereceu hospedagem na casa de sua irmã para três pessoas. Eu e duas garotas – já que a mulher não poderia receber homens desconhecidos – aceitamos o convite, enquanto os outros ficaram no próprio prédio da ONG. Minhas companheiras de quarto seriam Sabrina – francesa adotada por uma família espanhola e judia convertida (descobri depois que seu pai era muçulmano) e Pérrine, belga que também era de família ju-
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dia, por parte de pai. As duas se juntaram ao grupo porque queriam conhecer de perto a realidade da ocupação. Sabrina, na verdade, nos encontrou no Hotel Hebron e, depois de ouvir uma conversa, pediu para nos acompanhar. Ela assistiria a um casamento em Tel Aviv dentro de alguns dias. Shereen era uma mulher magra com o olhar sério, quase triste. Não a vi sorrir. Usava uma blusa rosa de manga comprida e uma calça jeans, além de um hijab florido– véu que as mulheres muçulmanas usam para cobrir os cabelos e o pescoço. Conversávamos em inglês, já que ela não falava francês. Isso era um problema para Sabrina, que não falava a língua, como Pérrine e eu. Ela só revelou que falava e compreendia árabe para mim dias depois, porque disse que queria esquecer seu passado. Dele, aliás, Sabrina nunca me falou. Entramos no prédio da irmã de Shereen, Mouna. Era um apartamento enorme, onde ela vivia com os seis filhos pequenos – dois meninos e quatro meninas – e o marido, que estava viajando. Ele era engenheiro de uma empresa americana e passava longos períodos em outros países. Por isso, Mouna e alguns de seus filhos, assim como o pai, receberam cidadania estadunidense. “Esse apartamento custou cerca de 80 mil shekels”, disse Shereen. “O dono é muito seletivo. Para manter um certo nível, ele só deixa engenheiros e médicos morarem aqui”. Eu não imaginava como seria a vida de uma família de classe média alta na Palestina – se comparada aos padrões do restante da população. Além de um status diferente – ter um passaporte estrangeiro representa um valor inestimável para a população palestina
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diante da ocupação – a família de Mouna tinha um domicílio de certa forma preservado, além de gadgets tecnológicos que seu marido trazia dos EUA em suas viagens. O menino de 10 anos não saía da frente do computador, em seu quarto, e as duas meninas mais velhas não descolavam de um grande televisor com canais americanos que chegavam por satélite, na cozinha. De fato, se não trabalharem no exterior, os palestinos quase sempre têm apenas duas opções de trabalho: ou o serviço público ou as ONGs, que pagam os melhores salários e ficam com os melhores quadros. Shereen tem 25 anos e se formou em psicologia, mas está desempregada. Atualmente, é voluntária no Project Hope, como tradutora inglês-árabe. Ela também é casada com um engenheiro, que é funcionário público, mas não mora com seu marido. Ele vive em Ramallah. Segundo Shereen, eles não podem alugar um apartamento para os dois lá porque ele ganha pouco, e a cidade tem preços mais elevados. A família dele mora em Jenin, ainda mais ao norte da Cisjordânia. “Ele tem uma casa lá, mas eu não posso ficar sozinha. Em Jenin a atuação dos soldados israelenses é mais intensa. Tentei viver com sua mãe, mas não gostei... sabe como é. Querem determinar tudo o que devo ou não fazer”, disse Shereen. “Além do mais, a casa dela já foi tantas vezes destruída e revirada pelos soldados”... O trauma de Shereen com a cidade tem uma data: 12 de julho de 2005. Era aniversário de seu casamento, e o casal estava sozinho. Soldados israelenses invadiram a casa e ficaram lá por horas. Segundo eles, era um bom ponto de observação e precisavam usá-lo.
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Depois que os militares saĂram, Shereen e seu marido dormiram assustados. E nĂŁo tinham mais nada a comemorar, afinal.
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Barracas de concreto QUINTA-FEIRA, 19 DE JULHO DE 2007
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gora, na Cisjordânia, seria mais fácil encontrar com representantes dos dois grupos palestinos em conflito, o Fatah e o
Hamas. Disseram-me, porém, que os militantes do Hamas não se encontram com qualquer um. Antes, precisam ter certeza de que não se tratava de alinhados com seus inimigos – de dentro e de fora da Palestina. Considerados uma organização terrorista, apesar do apoio da população expresso nas urnas, seus representantes são procurados e alguns foram mortos pelo Exército Israelense. Para acabar com as sanções, o Hamas deveria assumir três compromissos : 1. reconhecer o Estado de Israel; 2. honrar os acordos negociados pelo Fatah e 3. renunciar à violência. Ora, pelo noticiário, parecia má vontade do grupo não aceitar de bom grado as imposições feitas pela comunidade internacional. Afinal, Israel não poderia sentar-se à mesa com uma organização que pregasse sua destruição. Compreensível.
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É fato que, ao ser criado, exatamente no ano da Primeira Intifada, em 1987, o partido pregava o fim do seu inimigo, conforme consta em seu manifesto de fundação. Mas, após vencer as eleições de 2006, o Hamas adotou uma linha mais pragmática: já não se tratava mais de questionar a existência do Estado de Israel. Trata-se de uma “realidade geográfica”. No início de 2007, o jornal britânico The Guardian publicou um artigo de Khalid Mish’al, dirigente do Hamas, em que este afirmava que, depois dos acordos de Meca (fevereiro de 2007), seu partido reconhecera as fronteiras anteriores a junho de 1967, ou seja, aceitou a configuração da Palestina como foi desenhada em 1949, antes da anexação dos territórios em 1967. Portanto a primeira condição para os acordos de paz já estaria, na prática, atendida. No entanto, os israelenses continuam acusando o Hamas de querer jogá-los no mar. Tampouco aceitam negociações com o partido palestino. Quanto à segunda condição – o respeito aos acordos de paz negociados anteriormente pelo Fatah – eu entendi a objeção do Hamas no dia em que fui apresentada à Matriz de Controle de que falou Jeff Halper, e quando, ao visitar os territórios ocupados, pude ver o estrago feito pelos acordos de Oslo (1993). A Palestina está dividida em bantustões, onde a população vive encerrada em áreas intensamente controladas pelo Exército israelense e seus checkpoints. Por fim, a terceira condição: o Hamas deveria renunciar à violência. Se é condenável por atingir civis, o terrorismo é uma das armas de um povo que não tem exército regular, numa correlação de forças ex-
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tremamente desequilibrada entre um exército poderoso e uma nação fragmentada e precariamente armada – o mesmo terrorismo, aliás, que 31
Israel usou para se tornar independente dos ingleses . As humilhações diárias e as represálias coletivas representam, numa constatação horrível, uma fábrica infinita de homens-bomba, não só contra as forças ocupantes, mas também contra civis inocentes. O conflito fratricida entre Hamas e Fatah deixou 161 mortos, dos quais 41 eram civis, segundo o Centro Palestino de Direitos Humanos. Enquanto o Hamas continuava com o controle de Gaza, o Fatah se batia pela Cisjordânia. A população palestina, no entanto, também estava dividida. Muitos criticaram a maneira com a qual o partido do presidente Mahmoud Abbas, o Fatah, lidou com o conflito. Outros veem o grupo como traidor, por fazer acordos desfavoráveis aos palestinos – como os de Oslo. Sem conseguir falar com representantes do Hamas, encontrei, ao menos, alguns líderes do Fatah. O diretor-geral e o porta-voz do Ministério do Interior em Nablus nos receberam em seus gabinetes, pela manhã. Ambos sustentaram um discurso antiocupação, mas, do encontro, o que ficou foram as críticas veementes ao Hamas – a quem chamaram de obscurantistas. “O Hamas se apropriou de Gaza pela força. Agora, vamos tirar Gaza deles com a força também”, disse o porta-voz.
31. Nos últimos anos do mandato britânico, extremistas sionistas – como o grupo Stern Gang – levaram a cabo uma campanha de terror, conforme explicado na introdução deste livro. Essa campanha atingiu seu ápice com a explosão do quartel-general britânico no Hotel King David, em Jerusalém, em 1946, pelo grupo terrorista Irgun. O ataque resultou na morte de 91 pessoas (28 britânicos, 41 árabes, 17 judeus e 5 de outras nacionalidades) e causou ferimentos graves em outras 45.
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Youssef recebeu nosso grupo em uma casinha de decoração simpática, toda pintada de verde claro. Foi logo providenciando os copos de chá e refresco. Ele parece gostar de acolher estrangeiros para contar suas histórias. Seu pai, há 60 anos, havia sido um dos responsáveis pela criação daquele campo de refugiados nos arredores de Nablus, o Campo de Askar. Youssef tinha 10 anos, então, e diz se lembrar de muita coisa. Esse é um campo de refugiados “oficial”, ou seja, mantido pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA). De acordo com a definição da ONU, refugiados palestinos são pessoas que mantinham residência na Palestina entre junho de 1946 e maio de 1948, e que perderam tanto suas casas quanto seus meios de subsistência por causa da guerra de 1948. Essa definição também considera refugiados os descendentes dessas pessoas, como os filhos e netos de Youssef. Assim, o número de refugiados palestinos passou de 914 mil em 1950 para mais de 4,6 milhões em 2008, segundo a ONU – e deve continuar a crescer. Cerca de 1,3 milhão de refugiados “registrados” pela UNRWA moram em 58 campos reconhecidos na Jordânia, Síria, Líbano, Cisjordânia e Faixa de Gaza, onde são mantidos postos de saúde, escolas e distribuição de cestas básicas pela Agência. Na maioria dos locais, o terreno onde ficam os campos é “alugado” pela UNRWA, não pertencendo, assim, aos moradores.
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Fotos de 1950 mostram as centenas de barracas com lonas pretas que abrigavam os refugiados. As moradias provisórias aos poucos deram lugar a construções precárias, em vilas que cresceram sem planejamento e infraestrutura urbana e sanitária. As vielas estreitas e os barracos de alvenaria lembram tristemente as favelas brasileiras. Youssef quis começar pelo começo e falou da Declaração Balfour, em que os britânicos prometeram a Palestina aos sionistas. De repente, desconfiado, virou-se para Houda, que traduzia a conversa: “Ei, não mude nada o que estou falando! Diga a verdade!”, disse, provocando risos de todos ali. Depois, continuou. “A resistência foi forte, mas a força venceu a coragem. Saímos de casa sem nada, deixamos tudo para trás. Durante dez anos vivemos na pobreza – não apenas nós, refugiados, mas toda a população”. Neste momento, soou o chamado da mesquita, e Youssef pediu licença para rezar. Fomos até o terraço e pudemos ver, ao longe, uma colônia israelense de casas brancas – saltam aos olhos porque parecem casas da Legolândia em meio às outras. Com infraestrutura pós-moderna e ruas bem traçadas, os prédios parecem formar um bloco só. Em visita à Cisjordânia, o romancista americano Russel Banks descreveu de forma peculiar a sensação ao ver um desses “blocos”: “parecem ter sido construídos no espaço de uma noite só, por uma frota de naves vindas do cosmos”. Youssef voltou e, ao nos ver olhar para a colônia, disparou: “Eles criam animais por todo o canto. Eles soltam os bichos, que comem toda nossa colheita”, disse.
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Na casa ao lado, acontecia um batizado, e as crianças cantavam e batiam palmas. Convidaram-nos, então, para visitar a associação de moradores do campo, um comitê popular. Ahmad apresentou-se como um voluntário e começou a falar sobre os problemas do lugar. Ele contou que sua família é de uma leva de refugiados de Jaffa. Ahmad chegou a começar os estudos de Sociologia, mas passou onze anos de sua vida – dos 19 aos 30 – preso. Ainda pensa em voltar à faculdade. “Nosso objetivo aqui é o mesmo do Direito Internacional: garantir o direito do retorno, de cada um poder reaver seu lugar”, disse Ahmad. “Nossa sociedade sofre com o desemprego, com a falta de serviços médicos, escola, falta comida”. Outro problema que os habitantes dos campos de refugiados enfrentam é o intenso controle militar. As incursões de soldados israelenses são frequentes. “Quando os israelenses entram aqui, mandam juntar todos os homens, fazem-nos deitar no chão e colocar as mãos na cabeça. Ficamos assim por horas, às vezes um dia inteiro. Quando reclamamos de sede, não nos deixam sair. Se eles suspeitam de qualquer um, levam, sem pretextos”. Ahmad contou a história de um jovem de 20 anos chamado Tamer, que tinha acabado de sair da prisão depois de três anos – seus irmãos continuam presos. Na última incursão, cercaram a casa de Tamer durante oito horas. “Queriam pegá-lo morto, não com vida”, disse Ahmad. Conseguiram pegá-lo, e o mataram na frente de todos.
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“Sua mãe já tinha morrido por causa da pobreza. Seus irmãos estavam presos e seu pai, cego. Ninguém da família viu seu enterro”, continuou Ahmad. E outras histórias do campo de Askar se seguiram. A história de uma criança de nove anos que foi morta, em 2004. A história de um homem morto cujo corpo ninguém podia pegar, e foi comido pelos cães. A história do próprio Ahmad, que foi levado preso junto com outras cem pessoas, com os olhos vendados, e se alimentava de um pão podre por dia – além da água misturada aos restos de munição, que lhe davam para beber. “Essas coisas são cotidianas”, suspirou Ahmad. “O menos pior são os checkpoints. Os assassinatos são cotidianos. Não queremos expulsar os judeus. Queremos viver em paz. Mas não digam o que dissemos. Digam o que viram”. O pôr-do-sol em Nablus estava lindo, mas anunciava que em pouco tempo deveríamos sair da rua, por causa do toque de recolher.
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Oliveiras que choram SEXTA-FEIRA, 20 DE JULHO DE 2007
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anun não fica tão longe assim – está, na verdade, a poucos quilômetros ao sul de Nablus – mas a quantidade de bloqueios
nos fez fazer uma volta de sheirut até Ramallah. A desculpa para passar por aquele checkpoint seria a mesma de antes: somos francófonos e vamos visitar o Centro Cultural Francês de Ramallah. Dessa vez, porém, não foi tão fácil. Muitas pessoas formavam uma fila diante de catracas e grades enormes. Esperavam indistintamente homens, mulheres e crianças, com suas carteiras de identidade na mão. Uma mãe balançava seu bebê e um homem colocava no chão uma cesta básica com o selo da UNRWA. Um soldado se aproximou do nosso grupo e pediu nossos passaportes: “Só passam mulheres e crianças. Homens, só acima de 45 anos”, disse, com a tira de seu capacete na boca, deixando ainda mais difícil entender o que falava. Tarek, o palestino que nos acompanhava, não poderia passar. Sophie tentou argumentar que Tarek era nosso tradutor, e que precisávamos dele para nos guiar pela cidade. De-
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pois de alguns minutos de conversa, ele deixou que passássemos – mas disse que deveriam, antes, verificar nossa bagagem. Todas as nossas bolsas e mochilas passaram pela esteira de um “jipe-raio-x”. A geleia que Pierre comprara no campo de refugiados de Askar foi confiscada (seria ela perigosa ou eles precisavam de algo para passar no pão?) e então pudemos passar. Quando já estávamos do outro lado, o soldado me chamou. Queria saber porque só o meu passaporte era verde, enquanto todos os outros, europeus, tinham passaportes vermelhos. Disse que era brasileira e ele ficou por um momento olhando para mim e para meu passaporte, alternadamente. Finalmente, me deixou ir. Olhei para trás e vi todas aquelas pessoas que esperavam há horas e que não tinham um passaporte, verde ou vermelho. Os taxistas do outro lado se precipitaram para nos oferecer carros, já que por esse checkpoint só passam pessoas à pé – quando passam. Yanun é um vilarejo de 120 habitantes. Pequeno, mas conhecido internacionalmente pelos problemas que enfrenta com colonos israelenses fundamentalistas. O prefeito de Yanun, Rachid, e o vice-prefeito, Adnun, nos receberam em uma linda casa antiga, simples mas de paredes muito espessas e recém-pintada de verde. Uma ativista norueguesa que estava ali por um período de três meses, Cristine, também acompanhou a conversa. O vilarejo de Yanun fica a sete quilômetros de uma colônia israelense de cerca de 300 habitantes – distância, essa, que diminui a cada ano com a aproximação dos colonos. Por uma fatalidade geográfica – ou seria burocrática? – as terras de Yanun ficaram em
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zonas administrativas diferentes mesmo estando completamente 32
dentro da Cisjordânia . Parte fica na Zona C, de controle exclusivo de Israel, e parte está contida na Zona B, de administração civil palestina e controle militar israelense. Para piorar, a vila corta ao meio a colônia, que se expande. Cerca de 80% da terra do vilarejo árabe já teria sido tomada, segundo Adnun. O vice-prefeito tomou o último gole de café e começou a explicar a saga de Yanun, que não quis simplesmente ser varrido do mapa. “O primeiro problema que tivemos com os colonos foi em 1996”, começou Adnun, pausadamente, para que Houda – que traduzia a conversa – pudesse acompanhá-lo. “Um senhor morava sozinho e foi agredido por um deles. Perdeu um olho”, disse. Na época, não conseguiram chamar grande atenção para o ataque. Os habitantes de Yanun só começaram a ser ouvidos em 2002, quando as coisas ficaram muito piores. “Eles entravam nas casas, quebravam tudo, queriam nos expulsar daqui. Quando viram que não sairíamos, veio a ameaça: se não partíssemos, o vilarejo se transformaria em nosso próprio cemitério. Acreditamos quando um jovem foi assassinado por eles e outros foram feridos, durante a colheita das olivas”. O Exército Israelense, que é responsável pela segurança dos colonos, era acionado pela população árabe. Apesar de próximos, chegavam, às vezes, mais de seis horas depois – quando o estrago já tinha sido feito. Por isso, os habitantes de Yanun decidiram partir.
32. A classificação das zonas administrativas foi estipulada nos acordos de Oslo, conforme explica o capítulo “Essa é uma questão estúpida”.
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“Somente dois velhos não quiseram ir embora. Todos foram para vilarejos próximos. Era como se um novo 1948 estivesse acontecendo”, continuou Adnun. Foi então que militantes do Internacional Solidarity Movement (ISM) decidiram intervir e trazer as pessoas de volta. Para convencer os que ainda estavam traumatizados, comprometeram-se a ficar com eles. Desde então, pelo menos um militante internacional vive na cidade, em uma casa que as organizações mantêm. É o caso de Cristine, a norueguesa que participava da conversa, e que ficaria lá por três meses representando a ONG Ecumenical Accompaniers, num esquema de rodízio. “Não que a vida fosse fácil antes da chegada dos colonos, tudo aqui é muito difícil”, continuou Adnun, “mas com eles tudo fica ainda pior. A rodovia mais próxima daqui foi construída há apenas um ano. Água não existia. Reconstruímos recentemente um poço que os israelenses haviam destruído”. Pude ver, depois, o poço danificado. Vi também a caixa d’água rodeada por uma cerca de arame feita pelos colonos. Yanun tem duas escolas primárias para as crianças. Para frequentar a escola secundária, os jovens devem ir à cidade mais próxima, Akraba, a sete quilômetros dali. Antes, eles iam a pé, mas alguns voltavam assustados com ataques dos colonos, que os paravam no meio do caminho. Os “internacionais” compraram um pequeno ônibus para levá-los. Nas escolas primárias, vi os vidros quebrados e pichações em hebraico, que não pude traduzir. Adnun conta que muitos desses ataques ocorrem durante à noite, mas já aconteceram também durante o horário de aulas.
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“Como vocês conseguem praticar a agricultura, por aqui?”, perguntei. Adnun respondeu com um balançar de ombros e a voz firme: “Os colonos tentam destruir tudo o que plantarmos. Já nos cortaram mil oliveiras, envenenaram 120 cabeças de gado. Cercaram as oliveiras dos 20% de terra que nos restavam, e agora não temos acesso a elas para tratá-las. Querem nos distanciar pelo menos 200 metros de onde eles estão, alegando motivos de segurança. Oliveiras são como crianças, precisam de cuidados”. Rachid, o prefeito, que estava até então calado observando Adnun, exaltou-se, num lamento: “Eles nos permitem passagem para a colheita das oliveiras apenas dois dias por ano, o que é um absurdo! Elas precisam de nós todos os dias. E a colheita, mesmo, dura um mês. Se não podemos passar para colher os frutos, as oliveiras carregadas são como pessoas chorando. Os frutos caem no chão como lágrimas”. Nos dois dias de fevereiro em que são autorizados a fazer o serviço de um mês, os árabes e ativistas internacionais mobilizam todo o vilarejo e todas as forças que conseguem reunir, inclusive as crianças. Mas, para entrar na colheita propriamente dita, é preciso pedir uma permissão do Exército. A colheita das oliveiras é um período festivo e de sociabilidade. Mas, nos últimos anos, tem ficado cada vez mais difícil festejá-lo. Dados do Applied Resarch Institut de Jerusalem (ARIJ) tentam dar a dimensão da desgraça que isso representa para os palestinos. Segundo o Instituto, os colonos sionistas e o Exército arrancaram e cortaram cerca de 400 mil oliveiras na
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Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Desde 1967, esse número passaria de um milhão. Outras centenas de milhares, quando não abatidas, tornaram-se inacessíveis para seus proprietários pela espoliação de terras, pela construção do muro ou pelas colônias. Em tom teatral, Rachid contou um episódio que acontecera em um desses dias de colheita. “Um responsável do Exército veio nos dizer que um jovem colono israelense apresentara queixa dizendo que aquela terra em que fazíamos a colheita era, na realidade, dele. O colono, muito religioso, apareceu ali tentando bater num cidadão palestino, dizendo: ‘essa terra é minha! Eu trabalho aqui há 15 anos’. Ora, todos sabíamos que era mentira. O palestino gritou: ‘não pode ser, vocês só estão aqui há seis anos. Nós, há 400’, disse.” Para apaziguar a situação, o soldado pediu que o palestino mostrasse o documento comprovando que aquela terra era, de fato, dos palestinos. E o palestino perguntou: ‘mas o colono tem um documento? Quero ver ele apresentá-lo diante do tribunal israelense’! Ao que o soldado teria respondido: “ele tem um testemunho muito mais alto do que qualquer documento que você possa apresentar”. Rachid, gesticulando, conta que um senhor antigo do vilarejo, de 80 anos, presenciou a situação e perguntou: “e quem é? O pai de seu Deus?”. “Não temos a quem reclamar”, disse Rachid. “Eles são, ao mesmo tempo, o carrasco e o juiz”.
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Cristine, então, de forma muito menos apaixonada, começou a confirmar as histórias que Adnun e Rachid contavam. Muito branca e loira, de óculos, Cristine fala pausadamente em um francês perfeito sobre os relatórios que a Ecumenical Accompaniers produz sobre a cidade. Ela ia embora no domingo, e um outro ativista ficaria no seu lugar. De volta à Noruega, ela seria responsável por disseminar aquelas histórias em igrejas, escolas e jornais noruegueses. Os relatórios também são entregues à ONU e à Cruz Vermelha. “Nossa presença aqui reduz de forma significativa a violência”, disse Cristine. “Eu mesma já fui ameaçada, mas eles nos agridem verbalmente, nunca sofri nenhum outro tipo de agressão”. Rachid nos estendeu um livro de visitas para assinarmos ou deixarmos alguma mensagem. Folheei o caderno e encontrei mensagens de todo o mundo, de pessoas que passaram por ali desde 2002. Os países mais recorrentes na lista eram França e Itália, mas também havia assinaturas da Espanha, Estados Unidos, Coreia do Sul, Reino Unido e mesmo Israel. Minha assinatura era a 688ª, a primeira aparição do Brasil em Yanun. Enquanto conversávamos, algumas senhoras da comunidade cozinhavam. Entraram na casa com dois pratos de Maqlubeh, que, em árabe, quer dizer algo como “de ponta-cabeça”. É uma espécie de cuscuz, feito com arroz e ingredientes como frango e legumes e virado na travessa. Delicioso. Todos comeram do mesmo prato, cada um com sua colher, como nos disseram que deveria ser.
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À noite, na casa da irmã de Shereen, conversamos sobre o dia. Naquele apartamento de alto padrão, apesar de distantes da realidade de Yanun, Mouna e seus filhos pareciam conhecer bem o sofrimento dos habitantes de Yanun. Mas a filha mais velha de Mouna, uma garota de 14 anos com os cabelos soltos e os mesmos olhos verdes da mãe, parecia não prestar muita atenção na conversa, já que estava vidrada em um programa da MTV. “Fernanda, tem uma pessoa que quer muito te conhecer”, disse Mouna, balançando a filhinha mais nova, de um ano, no colo. “Um de meus irmãos é casado com a filha de uma brasileira. Falamos de você a eles, e querem muito que você os visite um dia desses. A mãe dela cozinha maravilhosamente bem”. Prometi visitar a sogra do irmão de Shereen e Mouna, no dia seguinte. Fiquei curiosa para saber como uma brasileira foi parar em Nablus e formar, ali, uma família. Só não souberam me dizer o nome dela, que “ninguém na família sabe ao certo, é muito difícil”. Dona Meredita, descobri depois.
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Como uma novela do Kwait SÁBADO, 21 DE JULHO DE 2007
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inha visita ao Crescente Vermelho de Nablus, programada para durar a manhã inteira, não levou mais que uma hora.
O diretor da unidade ainda não poderia receber nosso grupo, então uma jovem com um véu lilás fluorescente e calça jeans, relações públicas do CV, nos acompanhou pelas salas explicando as atividades em cada local. Meninos e meninas brincavam no hall de entrada e outras crianças estavam em salas de informática ou de fisioterapia. Ela dizia que os pequenos ficam traumatizados com as incursões israelenses, e precisam fazer terapias e outras reabilitações para voltar a dormir à noite. Disse também qualquer coisa sobre voluntários. Mas a voz da garota foi se esvaecendo e tudo ficou escuro em volta de mim. Só senti uma forte dor abaixo do estômago, fiquei absolutamente pálida e, num piscar de olhos, todos estavam ao meu redor.
33. O Crescente Vermelho juntou-se à Cruz Vermelha em 1876, na sequência da guerra entre a Rússia e a Turquia. O aparecimento deste segundo símbolo advém da necessidade de se preservar a identidade muçulmana no Movimento, embora tenha apenas uma conotação cultural. Assim, o Crescente Vermelho Argelino, por exemplo, é rigorosamente idêntico à Cruz Vermelha Brasileira em termos estatutários (ou seja, regula-se pelas mesmas regras do Movimento).
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Não era nada de mais – uma virose, ou algum tipo de contaminação da água – mas as dores eram fortes e cíclicas. Quando aconteceu pela segunda vez, chamaram Shereen, que estava decidida a me levar ao médico. Depois de alguma insistência, convenci-a de que não era nada grave, e a condição para que eu não fosse ao hospital era voltar à casa de Mouna, para repousar. Quando estávamos entrando no táxi, Yossef, voluntário da Project Hope careca e sorridente, apareceu buzinando no seu carrinho todo remendado. A porta era de outra cor, não havia mais faróis, o ronco do motor era um estardalhaço. Yossef desceu gesticulando e falando em árabe com Shereen – ele não falava nem uma palavra de inglês – e nos fez entrar em seu carro. Lá dentro, perguntei se ele nos daria uma carona até a casa de Mouna. “Nada feito”, respondeu Shereen, ainda séria, “eu expliquei que você só queria ir para casa mas ele disse que você deve ir ao hospital. Ele não quis me ouvir”. Yossef virava-se para trás enquanto dirigia, sorria e me falava algo como “fica tranquila, estamos chegando”. Ele parou seu carrinho em frente a uma clínica, falando alto e abanando os braços como se trouxesse uma doente grave. Eu, com minha dor de barriga, estava constrangida. Confesso que gostei da ideia de conhecer em tal circunstância um hospital na Palestina, mas mudei de opinião quando Yossef ignorou a fila de espera na recepção e entrou para falar diretamente com os médicos. Ele se virava sorrindo para mim, ainda afobado, fazendo mímicas que entendi pela metade. Ele trabalhava ali, por isso conhecia
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todo mundo. Apontava para o chão e para o próprio peito. Só não sei se era faxineiro, e limpava o chão, ou se foi ele quem colocou aquele piso. “Voluntária internacional, voluntária internacional!”, ele dizia aos médicos, me deixando cada vez mais constrangida. Era uma clínica particular, e estava cheia. Quis passar pela recepção, pegar uma senha, mas ele me puxou pelo braço. Apontou para a sala de ultrassonografia, onde um jovem médico me recebeu. Ainda rindo da molecagem de Yossef, o doutor perguntou, em inglês, enquanto espalhava o gel do exame pela minha barriga: “Há quanto tempo você está em Nablus”? “Há três dias”, respondi. “Ah, mas então é normal que você fique doente. A água é diferente, a comida, tudo. De onde você veio, antes”? “Eu estava em Paris”. “Pois é isso mesmo. Quando eu estive em Paris, também tive dor de barriga”, riu o doutor. Já com o resultado do exame na mão – que não valeria de nada, pois eu não tinha bebido água suficiente para fazer uma ultrassonografia – Yossef me puxou, agora, para uma sala de leitos com cortinas cinzas, onde pacientes se restabeleciam com soro ou, mais graves, recebiam primeiros-socorros. O médico dali, mais velho, levantou-se de sua mesa, baixou os óculos e olhou para mim, piscando de tempos em tempos num tique nervoso. Apertou minha barriga, trocou algumas palavras em inglês e receitou num
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papel: “food: potato, tea with cake, rice”. Batatas cozidas, chá, bolo e arroz é o que Mouna me daria à noite, seguindo à risca as recomendações do doutor. Na hora de sair, fiz sinal de dinheiro com os dedos à Yossef, tentando explicar que eu queria pagar pelos serviços do hospital. Não queria que ele, que morava em um campo de refugiados e vivia de bicos, ficasse com qualquer dívida. Ele negou veementemente: “Voluntária internacional! Não paga nada!”, sorrindo, sempre. Com Yossef não tinha argumentação. Convencido de que eu estava bem tratada, levou-nos de volta à casa de Mouna. Antes, buscou o resultado de meus exames, para que eu guardasse de lembrança.
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Às vezes eu me assustava com estrondos que pareciam bombas. Não passavam de fogos de artifício, na verdade. Mouna me explicou que há muitos casamentos na Palestina, principalmente em seus finais de semana – quinta e sexta-feira – e que os fogos eram parte das comemorações. Depois que acordei, ela me convidou para assistir a alguns vídeos – entre eles, o da festa de casamento de sua prima. Ela explicava que era um casamento muito rico, da “alta sociedade”. A noiva, vestida toda de branco, não usava o véu muçulmano. Ela explicou que, no dia do casamento, a mulher pode mostrar toda sua beleza. As convidadas usavam ou não o hijab, dependendo da sua religião e de seus costumes. Ela apontou para uma das mulheres que dançavam
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em volta da noiva: era sua outra irmã, que estuda engenharia numa universidade da Jordânia. Perguntei a Mouna qual era o critério para o uso do véu. Ela o usa quando sai de casa ou quando recebe a visita de um homem; sua filha de 14 anos, no entanto, não quer usá-lo por enquanto. “A menina começa a usar o véu quando se transforma em uma mulher. Geralmente a partir de sua primeira menstruação. Por enquanto, ela faz como se isso ainda não tivesse acontecido. Tem que ser uma decisão dela”, disse. A filha pequena não vê a hora de usar. Acha bonito e ajuda a mãe a escolher os seus. A menina mais velha, que falava inglês muito bem por causa dos canais americanos que assistia todos os dias na TV, diz que quer cursar o ensino médio nos Estados Unidos. Mouna disse que se preocupa, mas vai deixá-la seguir seu caminho. “Ficar nos Estados Unidos vai ser melhor para eles. Meu filho mais velho, de 13 anos, está lá com o pai. O mais novo, de 10, também quer ir. Só as duas meninas pequenas ainda não têm o passaporte americano. Estou esperando meu marido voltar para fazê-los. Da última vez que fui até a embaixada sozinha, fui muito humilhada por um segurança. Ele não queria me deixar entrar porque eu usava véu, e sou muçulmana. Ouvi coisas que não gostei”. Entre um vídeo e outro, vimos televisão por uns instantes. Era uma novela do Kwait. “Olha como eles são ricos, como as mulheres se vestem bem lá”, comentou Mouna diante da mulher altamente maquiada e carregada de joias. “No Kwait eles são muito ricos por causa do petróleo,
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não existe pobreza. Tudo é exatamente como a novela”, disse Mouna, que nunca tinha estado naquele país. Seu marido viaja muito, a trabalho. Mouna chamou a filha e pediu que ela trouxesse seu aparelho de DVD portátil, que ganhara de presente do pai. Agora assistiríamos às gravações que seu marido fizera na última viagem ao Marrocos. A paisagem de Casablanca capturada de uma câmera portátil desfilavam na velocidade do carro alugado. Mouna traduzia a narração do marido: esta é a avenida tal, bairro tal; aquele é um clube famoso; olha esse lindo hotel.... Mais tarde, Shereen apareceu na casa de sua irmã para me visitar, já que viera trazer Pérrine e Sabrina. As duas irmãs deram um presente para cada uma de nós: para Pérrine e Sabrina, um colar cujo pingente era a bandeira em forma de mapa da Palestina. Para mim, um colar com o pingente do desenho do Handala, exatamente como eu havia visto no pescoço de Tal, a ativista da ONG Zochrot, de Tel Aviv. “Adorei, eu estava mesmo procurando um”, disse, sorrindo. “Sabíamos que você iria gostar”, disse Shereen. “Todo jornalista que vem aqui gosta”.
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Um museu para Khalil DOMINGO, 22 DE JULHO DE 2007
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grupo se dividiu em dois táxis para visitar o campo de refugiados de Balata, ainda em Nablus, onde mora o simpático e
solícito Youssef. O táxi em que eu estava chegou primeiro, e esperamos na calçada a chegada da outra parte do grupo. Um dos moradores do campo, voluntário da associação de moradores, veio nos receber. Um grande estrondo atrás de mim me fez saltar em sua direção. Um carro preto, sem placa, dirigia em alta velocidade e fazia uma ultrapassagem proibida, quando bateu no táxi que se preparava para estacionar com Sabrina e outras duas garotas – Bouchra e Myriam. A batida foi na porta, bem ao lado de Sabrina. Pérrine, que estava ao meu lado na calçada, se precipitou para tirá-las de dentro do carro. Como a porta estava muito amassada, teve que forçá-la. Bouchra estava desmaiada, e Pérrine, estudante de enfermagem, deitou-a no chão e pediu aos os curiosos, aglomerados quase que instantaneamente no local, que se afastassem. Sabrina estava consciente, mas muito assustada. Myriam, que estava do outro lado do banco, não sofreu nada.
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Bouchra abriu os olhos e não conseguia falar nem se mexer. Felizmente, ela estava apenas em estado de choque e não teve nenhum ferimento mais grave. Uma ambulância que passava na mesma rua parou rapidamente e levou as duas para o hospital. Shereen as acompanhou. Sem muito o que fazer por Bouchra e Sabrina, que passariam a noite em observação, no hospital, continuamos nossa visita pelo campo. Youssef Rachez – não o mesmo Youssef que me ajudara no hospital –, era representante do Comitê Popular do Campo de Balata. Lamentou o acidente e deu as últimas notícias sobre Bouchra e Sabrina. Em seguida, começou a explicar a história do campo. “Balata foi criado em 1952, por gente que fugiu das milícias sionistas, pessoas oriundas de mais de trinta cidades diferentes. No começo, éramos de 4 a 5 mil habitantes. Hoje somos 23 mil pessoas, em mil famílias. Mais de 35% são crianças”, disse. A população quintuplicou, mas a superfície que ocupavam continua a mesma (250 mil m²). Por isso as casas de construção precária se amontoam e as vielas mal comportam um carro. Não vi nenhum espaço verde. Rachez explicou que toda a população de Balata é atendida por apenas um ambulatório com dois médicos. “Mas o centro médico fecha às duas da tarde. Após essa hora, não podemos mais ficar doentes”, disse, enquanto nos levava à sede da associação de moradores. Rachez apontava para algumas casas para mostrar a presença da ocupação israelense. As incursões noturnas do Exército, disse, são praticamente diárias.
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“Destroem as fachadas, que reconstruímos depois. Às vezes eles derrubam paredes simplesmente para chegar com tanques ao outro lado, já que algumas ruas são estreitas. As crianças estão o tempo todo assustadas, fazem xixi na cama constantemente. Elas veem seus parentes sendo presos, arrastados. É um terror psicológico para elas ver toda sua família ser obrigada a sair de noite de pijama e presenciar essas cenas”. Já na associação, fomos recebidos por Ahmoud Horan, que nos acomodou em cadeiras de plástico. Umas telas de grafitti feitas por um artista do campo secavam no galpão, enquanto ele pintava outra belíssima tela. Ahmoud é sociólogo. Entrou na Universidade em 1986, mas só se formou em 1996, após passar alguns anos preso. Disse que chegou a estudar jornalismo. Ahmoud começou se desculpando pelo acidente sofrido pelas garotas, que aconteceu bem em frente ao campo. “Aqui somos muito simples, aceitamos muito bem os outros e, apesar da pobreza, guardamos o sorriso no rosto. Amamos a vida”. Quando soube da nacionalidade francesa de vários do grupo (a intérprete Houria traduzia a fala de Ahmoud em francês), disse que todos na Palestina “respeitavam muito a França e os valores da Revolução Francesa”. Ahmoud quis explicar melhor o que ele chamava de pobreza. “Às vezes, a taxa de desemprego do campo chega a 100%, porque há épocas em que ninguém pode sair daqui. Hoje, cerca de 60% das pessoas estão sem trabalho, e 35% vivem na miséria absoluta”, disse.
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Outro grande problema, para os moradores, é a falta de espaço para as crianças brincarem. “O índice de jovens mortos é muito alto”, lamentou Ahmoud. A taxa do que os palestinos chamam de mártires (mortos pelo Exército Israelense, em combate ou não) chega a um terço do número de mortos em Nablus. Segundo ele, algumas crianças já foram mortas a caminho da escola. São três estabelecimentos mantidos pela UNRWA – dois para meninas e um para meninos. “Hoje, felizmente, as pessoas que estudam aqui conseguem se tornar médicos e engenheiros”. A ONG internacional Médicos sem Fronteiras presta um serviço de apoio psicológico no local, para as crianças. Alguém perguntou a Ahmoud se, apesar de todos os problemas, ainda há esperança. A esperança, certamente vaga para quem perguntou, pareceu muito viva nos olhos e nas palavras dele, que respondeu prontamente: “Os israelenses pensam que as novas gerações vão esquecer o que aconteceu em 1948. Mas nossos pais e avós inculcaram a ideia do retorno nas nossas cabeças, assim como faremos com nossos filhos. Este é o nosso direito”. Periodicamente, a associação organiza sessões de testemunho, onde os mais velhos contam às crianças suas histórias da Nakba e as experiências de seus avós. “Ninguém pode se calar sobre isso”, continou Ahmad, “não há nenhuma família neste campo que não tenha um documento para provar que era proprietária de sua casa, na cidade de onde veio. São autentificados – seja pelo Império Otomano, seja pelo Mandato Britânico”.
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Youssef – agora, sim, o gentil Youssef do hospital – mostrava sua carteira de identidade na mesa de uma pequena lanchonete do campo de Balata enquanto nossos falaféis não chegavam. O bar tinha apenas três mesas de plástico e uma péssima ventilação, que piorava à medida que os falaféis iam sendo fritos. Youssef contava, com o auxílio de Houria, o que significava aquela carteira. “Eu faço alguns trabalhos em Israel. Tenho permissão para entrar – e não residir – no território israelense, com esta carteira. Ela deve ser renovada de três em três meses, o que me custa três mil shekels [cerca de 750 dólares]”. No checkpoint, passam o cartão magnético e sua foto aparece numa tela de computador. Após conferir as digitais, ele pode passar. Mas nem sempre consegue. Quando comíamos nosso lanche, um homem que suava muito entrou com dois pares de sapato na mão, para comprar uma garrafa de água. De repente, ao ouvir nossa conversa, virou-se e começou a falar em francês. O homem se chamava Jean-Marie e era conterrâneo dos meus colegas. Feliz e surpreso por encontrar franceses ali, chamou duas senhoras, também francesas, que estavam com ele, e apresentou-se como comerciante. Na verdade, ele e as duas mulheres faziam parte de uma empresa chamada Le Philistin, que Jean-Marie fundou para fazer comércio solidário de produtos feitos por palestinos. “Estes sapatos de couro aqui foram feitos por pessoas do campo de Balata. Eu compro deles e revendo na França e outros países
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da Europa. Fazemos o mesmo com o azeite”, disse, estendendo um de seus folhetos. O símbolo da empresa é uma oliveira, e o texto do folheto traz dados das oliveiras cortadas na Palestina. Ao sair do bar, meninos que brincavam na rua nos cercaram. “Hi! Where are you from?!”, diziam, em inglês, todos ao mesmo tempo. “Brasil”, respondi, o que me fez virar o centro das atenções das crianças. “Brasil! Ronaldo! Kaká”, começaram a citar nomes de jogadores brasileiros, além de outros nomes da seleção, que eu sequer conhecia. De repente, um deles apontou para o colar que Shereen me dera no dia anterior, com o famoso personagem de Naji Al’Ali: “Handala!”, disse o menino, sorrindo. Eu olhei para o que estava escrito em sua camiseta já bem desbotada, e sorri também: “Capoeira!” Para ser mais precisa, o que estava escrito ali era “Capoeira Israel”. Não consegui perguntar onde ele ganhara a roupa.
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O Campo de Balata tem um grande orgulho: o grupo de meninos e meninas que fazem parte de um grupo de dança folclórica, o Deiritna. O trabalho das crianças faz parte das atividades de mais uma ONG, o Centro “Criança Feliz”, que visitamos após o almoço. O diretor Jamal Ishtiwi nos recebeu em uma das salas do Centro. Mostrou algumas fotos das apresentações das crianças e jovens
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na França, onde estiveram a convite do Ministério das Relações Exteriores francês. “É algo que eles nunca haviam sequer imaginado”, disse Jamal. Além das aulas de dança e teatro, as crianças têm apoio psicológico, um parquinho com alguns brinquedos, aulas de jornalismo, num projeto chamado “Pequeno Jornalista” e outras atividades. Jovens de 16 a 24 anos participam do projeto “Jovens Líderes”, que, segundo Jamal, destina-se a “fortalecer suas personalidades, para que aprendam a detectar um problema e possam encontrar uma solução, com base em direitos civis e nos direitos humanos”. Ao lado de uma Universidade, sindicatos e outras associações, o Centro Criança Feliz organiza o evento de rememoração da Nakba. Naquele ano, as crianças do Centro é que prepararam as homenagens e uma peça de teatro para a comunidade. Aos poucos, as crianças que observavam nossa conversa foram chegando e perdendo a timidez. Jamal perguntou se elas não queriam se apresentar para o nosso grupo, e algumas meninas disseram que não tinham treinado, além de não estarem vestindo as roupas tradicionais. Mas logo correram para buscar um rádio e os materiais que precisavam, e se posicionaram sérias para começar a apresentação. Meninos e meninas participaram da dança, que é a representação de um momento importante da cultura palestina, a colheita das olivas. Enquanto dançavam, as crianças faziam a mímica de todo o processo da produção do azeite, do qual homens e mulheres participam.
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Um garotinho de uns quatro anos estava vidrado na dança, de cima de um escorregador. A maturidade daquelas crianças me impressionou. Jamal pediu ao filho Khaled, de 16 anos, que nos acompanhasse pelo campo. Com um excelente inglês, Khaled disse que nos levaria à casa de alguns shahids – os mártires que morreram em consequência ou não de sua atuação militante. Não gosto da ideia de que a palavra martírio seja usada para designar a ação kamikaze de homens-bomba que se explodem levando consigo pessoas inocentes. Mas, como tudo aqui, a relação entre a vítima e o carrasco é intrincada numa só palavra: shahid também é usada para designar alguém que morreu, por exemplo, esmagado por um tanque que demoliu sua casa enquanto dormia, ou para os jovens mortos a caminho da escola – inocentes, também. No caminho, reparei na cena pintada em um muro: um velho e uma criança apontavam uma grande chave para a paisagem de Jerusalém. Paramos em frente a um outro muro – o de uma casa – onde fora pintada a imagem de um homem, ao lado de algumas palavras escritas em árabe, que Khaled traduziu: libertem Hussein Khader! Era a casa de Da’ad, irmã de Khader, um parlamentar do Fatah que fora preso três anos antes. Também viviam ali sua cunhada, a esposa dele, e a sobrinha. Depois de servir o chá, Da’ad explicou a história do irmão. “Ele já foi preso 23 vezes e na primeira Intifada teve que deixar o país definitivamente. Voltou em 1994, depois dos acordos de
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Oslo, e foi eleito parlamentar do Fatah, o partido de Arafat. Em março de 2003, após a segunda Intifada, explodiram essa porta e nos obrigaram a sair. Pegaram tudo o que era dele: câmera, computador, documentos. Foi preso sem que pudéssemos vê-lo e interrogaram-no por 94 dias”. Da’ad contou que sua família assistiu ao julgamento de Hussein. Ele estava preso a correntes, sem poder fazer qualquer sinal. Desde então, está isolado em uma prisão, na cidade israelense de Beersheva. Ela só conseguira falar com seu irmão uma vez, com a ajuda do Crescente Vermelho, para avisá-lo da morte de um outro irmão. Mesmo assim, o pedido demorou 45 dias para ser atendido, e a visita durou 15 minutos por um telefone da prisão. “Não pude sequer vê-lo”, disse. “Foi preso sob qual acusação?”, perguntei a Da’ad. “Por sua atividade política. Ele fazia parte da União dos Estudantes Palestinos na Tunísia. Depois, fundou um centro de apoio aos refugiados, que atendia a muita gente. Foi assim que ele se tornou reconhecido. Um outro parlamentar, amigo seu, viajou para o Irã como representante da Autoridade Palestina, e esse foi o pretexto oficial para prendê-lo, já que diziam que o Irã financiava grupos armados daqui”. Da’ad balançava a filhinha de dois anos no colo. Criava a menina sozinha, com a ajuda de sua mãe. Seu marido também fora preso. “Como conseguem se manter?” Esta pergunta me perseguia há alguns dias, diante de famílias tão empobrecidas, ou de quem quase tudo fora tirado.
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“Temos a ajuda de muitos amigos”, afirmou Da’ad. Mesmo internacionais. “Um grupo de parlamentares alemães esteve aqui para prestar solidariedade. Chegaram a pedir ao parlamento israelense que o soltassem, mas não adiantou”. Khaled agradeceu o acolhimento de Da’ad e seguimos em nossa caminhada pelo campo. Desviei de alguns buracos e reparei que as guias de algumas calçadas estavam em pedaços. A escada em frente a uma das casas estava completamente destruída. “São os tanques que fazem isso”, disse Khaled, sem que eu precisasse perguntar. Várias casas tinham marcas de balas (ou buracos dignos de mísseis) em suas fachadas e algumas vidraças estavam quebradas. Numa avenida mais larga, as crianças corriam entre os vendedores ambulantes de frutas e brinquedos chineses. No fundo da avenida, as casas se amontoavam ao pé de uma das montanhas que cercam Nablus – e onde estão baseados, mais acima, os soldados israelenses. Quem olhava para frente, via um emaranhado de fios de eletricidade que foram sendo puxados entre as casas. O que era para ser provisório, tornou-se a realidade caótica de uma favela. Nos campos de refugiados, o número de homenagem aos shahids aumentava. Eram cartazes colados em muros, postes e fachadas de casas com fotos de rapazes palestinos – armados ou não – que foram mortos. Outros tinham faixas em sua homenagem, com versículos do Corão. Paramos em frente a uma casa onde um velho de bigode e roupa branca, com um lenço branco preso na cabeça pelo egal (uma tira de pano preto torcido) tomava chá. Na frente da sua casa também
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havia fotos de um shahid. Convidou-nos para entrar e conhecer um pouco da história de sua família. Ele era o patriarca dos Marshud. Dentro da casa, um choque: um grande painel com um garoto ao microfone, replicado quatro vezes, tomava o fundo da sala; dezenas de porta-retratos de diferentes tamanhos e formatos ocupavam cada móvel e cada espaço na parede, com o mesmo garoto, Khalil. Em algumas outras fotos, aparecia com seu irmão hoje preso e outros membros da família; seu rosto estava estampado mesmo em quadros pintados e montagens, além de vasos. Duas estantes embutidas na parede de cada lado do cômodo formavam verdadeiros altares; na verdade, toda a sala parecia ser um grande memorial em homenagem a Khalil Marshud. Três anos já haviam passado desde a sua morte, mas sua mãe mostrava com a decoração de sua casa que nunca se conformaria. Retratos de seus netos praticamente desapareciam em meio a fantasmas de Khalil. Não dá para saber, no meio das fotos, quem estava vivo e quem já tinha morrido. Olhei para o painel do fundo, em que o jovem de 24 anos, deslocado daquele contexto, mais parecia um líder de movimento estudantil em cima de uma tribuna. Mas o destino dele era o caminho inexorável dos outros jovens que vi nos cartazes das ruas, que morreram ou “se explodiram”. Um irmão mais velho de Khalil explicava com seus filhos pequenos ao lado o que tinha acontecido com o jovem: “Ele foi perseguido por seis anos pelo Exército. Mas Khalil era um dos que amam a Palestina e queria resistir por todos os meios
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possíveis” – conforme pude ver nas fotos, inclusive com a luta armada. “Mas aqui quem quer defender seu país é assassinado”. Khalil era passageiro de um táxi que passava ao lado da Catedral de Jacó, perto dali, no dia 14 de junho de 2006. Um míssil o atingiu, e tanto ele quanto o motorista morreram na hora. Sua mãe, que tinha a expressão cansada e usava um véu preto, talvez de luto, rompeu seu silêncio e começou a gritar: “Os soldados vinham todos os dias, reviravam cada centímetro, fuçavam até no encanamento. Todos eram obrigados a sair no frio, de pijama. Khalil tentava impedi-los”. Ela explicou que, toda vez que há uma incursão no campo, a família Marshud é ponto de parada obrigatória dos soldados, até hoje. “Duas semanas após sua morte, eles vieram comemorá-la aqui em frente”. Ela começou a derramar algumas lágrimas, mas imediatamente enxugou-as com o véu. Virou-se aos visitantes e continuou, num tom de voz potente e grave. “Partam e digam que não somos terroristas! Somos um povo que reage”. Esses pedidos reiterados começavam a pesar. A senhora Marshud se retirou e entrou em outro cômodo da casa. Pedi que uma mulher da família me acompanhasse. Eu queria conversar mais com aquela mãe, que havia feito de sua casa um museu do seu filho. Dei de cara com a senhora sentada no chão de uma sala sem móveis, onde, para minha surpresa, estavam pendurados mais quadros de Khalil, que sorria discretamente numa grande tela pintada com seu rosto.
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“O que você quer ser quando crescer”? SEGUNDA-FEIRA, 23 DE JULHO DE 2007
C
hegar a Tulkarem não seria fácil naquela manhã de 23 de julho. Estavam fechados os dois checkpoints que deveríamos cruzar
para chegar à cidade do noroeste da Palestina, colada ao muro de separação. Por causa dos bloqueios, já havíamos desistido de ir até Qalquilya, cidade, aliás, que foi completamente cercada pelo muro. Mas o motorista do sheirut nos garantiu que havia uma maneira de chegar pelo menos até Tulkarem: descendo à cidade de Faraa, mais ao sul, e fazendo uma grande volta por vias secundárias. No táxi, o motorista traduz a notícia que acabara de escutar no rádio: dezenas de oliveiras haviam sido queimadas na “fronteira”, pelo Exército Israelense, que alegou questões de segurança; havia vários pontos de protesto. No mínimo, essa era a causa do recrudescimento dos checkpoints naquela manhã. Chegando à Tulkarem, visitamos a Associação de Mulheres da cidade, fundada em 2000. Elas nos receberam em sua sede, um sobrado com um salão onde faziam as reuniões. Cinco mulheres, que formavam o núcleo da Associação, começaram a nos servir bolos e
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quitutes que haviam preparado. Umas usavam vestidos longos estampados, véus brancos, rendados, ou coloridos; outras, conjuntinhos de calça e casaco pretos. Eram donas de casa, agricultoras ou empresárias. Também participavam da Associação de Resistência contra o Muro, que funcionava ali. “Nosso trabalho é fazer com que as mulheres possam tomar seu lugar na sociedade palestina e participem da tomada de decisões”, disse a presidente da associação – Mouna, mãe de cinco filhos e agricultora. A entrada das mulheres palestinas na vida política remonta ao início do século XX, de acordo com o historiador Ilan Pappe. O crescente contato com estrangeiros teria favorecido essa politização das mulheres cristãs, enquanto aumentou a severidade nos trajes que, pelas pinturas e relatos de viajantes, não existia antes. A primeira associação de mulheres na Palestina foi fundada em 1903. “Participam desta associação cerca de 40 mulheres, de todas as faixas etárias – de crianças a senhoras idosas – e de diferentes estratos sociais. Realizamos atividades culturais e cursos, como informática. Procuramos financiamento e fazemos projetos. Mas não se trata de um espaço para denunciar os problemas da ocupação, somente. Também é um lugar para falarmos dos problemas que nós, mulheres, enfrentamos”, continuou Mouna. Alguém ali perguntou como os homens viam essa atividade. Nesse momento, um homem que estava sentado num canto e até então calado, sorriu e falou em voz alta:
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“Eu não só apoio como encorajo!”. Era o marido de uma delas. “As mulheres palestinas sempre lutaram ao lado dos homens, de igual para igual”, disse Mouna. “Desde a Nakba foi assim. Mas o que se transmite, lá fora, é a imagem de uma mulher aprisionada em casa”.
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Em 2003, uma jovem da cidade de Nazlet Issa, perto de Tulkarem, casou-se com um rapaz que morava a 400 metros de sua casa. Ela poderia visitar sua família quando quisesse, em cinco minutos. Faez contava a história em frente ao grande muro de separação, de concreto, oito metros de altura, com câmeras e grades de proteção no topo. “Hoje, seu pai, Abu Diz, vive amargurado naquela casa”, disse, apontando para um sobrado que tinha a fachada cortada, como se tivessem passado um poderoso facão em uma sacada que possivelmente havia ali. “Sua filha ficou do outro lado”. Abu Diz e sua filha não conseguem mais se ver – nem por cima, diga-se de passagem, já que o andar de um prédio que ultrapassava a altura do muro foi interditado e cercado para que ninguém possa sequer olhar por cima dele. Para se encontrarem, precisam fazer um tortuoso caminho até Jerusalém, quando Abu Diz é autorizado a entrar na cidade, ou rodar mais de 140 quilômetros. Antes do muro, Nazlet Issa era uma cidade muito viva, comercial, onde os israelenses também gostavam de ir fazer suas compras. Eu poderia, aqui, apenas relatar o que Faez e outros moradores con-
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taram, mas preferi resgatar algumas daquelas notícias que aparecem fragmentadas na mídia de tempos em tempos. Eis uma delas: Lojas palestinas são derrubadas e geram conflitos Tropas israelenses dispararam gás lacrimogêneo para dispersar manifestantes em uma vila palestina na Cisjordânia hoje, enquanto escavadeiras demoliam cerca de 50 lojas que Israel afirma terem sido construídas de maneira ilegal, disseram testemunhas. Dezenas de manifestantes, incluindo ativistas israelenses de direitos humanos, foram forçados a recuar quando atiravam pedras contra os soldados na aldeia de Nazlet Issa, perto da cidade de Tulkarem. A administração civil israelense na Cisjordânia disse que os soldados derrubaram 21 pequenas lojas porque haviam sido construídas sem permissão. Mas um representante do B’Tselem, grupo israelense de defesa dos direitos humanos que monitora as atividades do Exército na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, disse que o número de lojas demolidas foi entre 40 e 50. As lojas eram a principal fonte de receita da população, que depende de clientes árabes-israelenses e judeus, que chegam de Israel atraídos pelos preços mais baixos. “Israel está destruindo a economia palestina novamente. É uma política de provocar fome”, disse Ziad Salem, chefe do conselho municipal de Nazlet Issa. Ele também disse que cerca de 50 lojas foram destruídas. As lojas faziam parte de um mercado com 200 estabelecimentos, que, segundo autoridades palestinas, estão ameaçadas. Os palestinos
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afirmam que as demolições são uma punição coletiva pelo levante de 28 meses por um Estado palestino. Autoridades israelenses negaram que as demolições tenham ligação com a cerca que Israel está construindo para tentar evitar atentados suicidas. Nazlet Issa e outras aldeias palestinas já perderam terras por causa da construção da cerca. O grupo B’Tselem pediu na segunda-feira ao ministro da Defesa de Israel, Shaul Mofaz, que parasse com as demolições, afirmando que violam os direitos humanos de centenas de moradores e a lei internacional. O grupo afirmou que não recebeu resposta. Fonte: Reuters, 23/01/2003
O correspondente da BBC Jeremy Cooke falou em 60 lojas e pequenos comércios, no que chamou de “a maior operação de demolição” dos últimos anos. “Os buldôzeres vieram pela manhã e quando chegou a hora do almoço toda a área estava coberta de metais retor34
cidos”, diz a reportagem . O que não se sabia ainda, à época, era o motivo da destruição. De acordo com os oficiais israelenses, o motivo era meramente administrativo – assim como todas as outras demolições – , sob a alegação de falta de permissão. Jeremy Cooke chegou a adiantar: “há rumores de que todas as lojas foram demolidas para dar lugar à cerca de segurança que deve ser construída para proteger Israel de atentados suicidas, o que foi negado pelas autoridades”. Foi negado pelas autoridades, mas aconteceu. Pior do que uma cerca, um muro intransponível, que já virou realidade para aquelas fa34. “Israelis flatten West Bank shops”, Jeremy Cooke, BBC – 21/01/2003
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mílias há mais de quatro anos. Enquanto Faez falava, um garoto que tinha pouco mais que essa idade abriu a janela que dava de frente para o muro e um refletor, a pouco mais de dois metros de distância. Ao lado, uma casa estava literalmente cortada ao meio. Jardins cuidadosamente cultivados já apareciam entre as paredes destruídas da casa e eu começava a pensar que as flores tornavam o cenário menos dramático. Só mudei de ideia quando Faez contou que, no dia em que construíram o muro e demoliram metade do sobrado, a família que morava ali estava prestes a celebrar um casamento. O muro é muito mais do que uma separação de fronteiras, como eu já havia percebido no primeiro dia, em Um Salamona. Com seu desenho retorcido, ele subtrai uma parcela considerável dos 22% da área que restou aos palestinos. E não é uma área qualquer. De acordo com Faez, trata-se de uma região de lençóis freáticos importantes, algo precioso na região para a agricultura e mesmo para o abastecimento doméstico. Mas, mais uma vez, prefiro relembrar o que foi dito à época, pela imprensa, depois que o muro já havia sido construído: Muro fica sobre maior aquífero da Cisjordânia O muro de separação que Israel está construindo sobre as terras palestinas corta em dois o vilarejo de Nazlet Issa, na parte noroeste da Cisjordânia. Palestinos não vêem nisso uma coincidência porque a cidade reside sobre um dos mais ricos aquíferos da área. Em frente aos blocos de concreto que atingem a altura de 10 metros, o prefeito da cidade, Ziad Salem, disse com frustração: “vejam,
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estamos andando sobre um imenso reservatório de água. O reservatório que fica sob Nazlet Issa é altamente renovável no meio dessa área árida, onde a água é amplamente consumida”. Elizabeth Sime, diretora da CARE, uma organização não-governamental em Gaza e na Cisjordânia, diz que “o trajeto do muro está coincidindo com o do lençol freático e dos poços. Os maiores poços e aquiferos, como que por coincidência, ficaram no lado de Israel. Abdul-Rahman Tamimi, diretor da ONG Grupo Palestino de Hidrologia afirma que “a trajetória dos aquiferos e a do muro são 100% consistentes” e que “os israelenses querem desmembrar a terra palestina e tomar aquiferos e lençóis subterrâneos”. Ele acrescentou que “o muro está separando centros populacionais de fontes de água, e está impedindo os caminhões-pipa de se deslocar, o que está fazendo o preço da água subir”. Tamimi também disse que, em Qalqilia, a construção do muro confiscou ou destruiu cerca de 20 poços, o que representa 30% da água da cidade. Anne Lou Straat, do Centro de Pesquisa em Geopolítica, de Paris, diz que a “água é parte importante do conflito árabo-israelense desde o princípio”. Hind Khoury, ex-ministro para assuntos de Jerusalém, recentemente indicado como representante da Palestina em Paris, afirma que “com o muro, os israelenses querem definitivamente confiscar a água e remover cidades, e a política de Israel sempre foi focada em empurrar os palestinos ao deserto”. Fonte: Agência France Presse, AFP, 18/03/2006
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O OUTRO LADO DO MURO
“Se o muro destruiu casas, separou famílias, impediu crianças de irem à escola, como poderá trazer segurança e paz aos israelenses?”, concluiu Faez, à sombra do muro, com os olhos cheios de lágrimas. Respirou fundo e começou a andar de volta: “vamos tomar um sorvete”?
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O OUTRO LADO DO MURO
“Eu me lembro muito bem do Adhemar de Barros, aquele era um pai!”, sorriu ao falar do governador populista dos anos 50, “mas, yani, eu não pude estudar”. E, mais séria, contou: “eu chorava para o meu pai que eu queria aprender. Na minha cidade não tinha escola. Fui estudar quando tinha 12 anos, mas já era muito moça”. Seu destino mudou de continente quando conheceu seu marido, na Rua do Oriente, em São Paulo. Ele, sim, era palestino. E tinha uma pequena loja no bairro conhecido pelo comércio tocado por imigrantes. “Tem muito árabe lá”, disse, “e tem muito judeu, também. Mas eles não brigam como aqui, não”. “Vocês se conheceram, se casaram, e mudaram para cá?” “Tem que ser muito boba para casar com um árabe, yani. Se eu não fosse tão boba, nem casar eu casaria!”, disse. Depois, virou-se para a filha e continuou falando em português. “Eu quero voltar para o Brasil, quero ir embora com ela!”. Rimos juntas ao ver que sua filha não entendia nada. Dona Meredita aprendeu a falar árabe em dois meses, mas nunca aprendeu a escrever a língua. É que quando se mudou para a Palestina, foi morar numa fazenda em Tulkarem. “Mas se a senhora chegou em 64”, perguntei, “deve ter visto várias guerras, como a Guerra dos Seis Dias, em 1967”. “Foi horrível. Você viu as fotos dos corpos sem braços, sem pernas”? Sua filha mais nova – das duas que ela teve – tinha apenas quinze dias na época da guerra. Meredita estava sozinha em casa com o bebê, e ficou desesperada quando um soldado israelense entrou.
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“Eu gritei: saia daqui! Por favor, fique longe do meu bebê! Mas ele não acreditou que aquela criança loira e branquinha era minha, que sou mais morena”. Meredita baixou o tom de voz e contou, quase sussurrando: “De repente, o soldado se inclinou no berço, olhou bem para minha filha, e disse: dorme bem, bebê”. E partiu. Mas e sua família no Brasil, nunca mais se falaram? Treze anos depois de sua chegada, já no final dos anos 70, Meredita resolveu visitar o Brasil de avião, junto com as duas filhas. Viajou pelo aeroporto de Tel Aviv, que à época ainda era acessível para os palestinos. Seu marido, que tem medo de voar, não as acompanhou. Mas, de volta à Palestina, Meredita passou longos 26 anos sem notícias do Brasil ou de sua família. Eles se comunicavam apenas por cartas e, como não recebera mais nenhuma resposta, Meredita logo pensou que pudesse ter acontecido o pior. Da parte da família no Brasil (sua mãe, sua irmã...) todos achavam que Meredita é que tinha sofrido alguma coisa, já que nenhuma carta mais chegava da Palestina. A família de Abu, marido de Meredita, ficou com medo de que ela – que só falava em voltar ao Brasil – levasse consigo as filhas. Então, decidiram esconder todas as cartas que ela mandava postar – assim como esconderam todas as que chegavam da família brasileira. Até que as cartas pararam de chegar. Em São Manoel, o nome de Meredita já estava no túmulo, ao lado de sua avó. “Um dia, no ano de 2000, fui fazer uma grande limpeza e encontrei o pacote com todas as cartas que esconderam de mim. Meu
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genro médico, casado com minha filha mais velha, entendeu a situação e levou ele próprio uma carta minha para postar em Jerusalém. Deixei todos os meus dados – endereço, telefone, com a esperança de que eles ainda estivessem no mesmo lugar”. Uma semana depois, recebeu o telefonema de São Manoel. “Quando eu penso nisso...”, disse Meredita, chorando. “Ah, yani, me leva com você!” Depois de receber a ligação, Meredita visitou o Brasil e ficou mais de um mês com a família. Suas filhas não foram com ela dessa vez, porque não têm o passaporte brasileiro. “Estamos tentando tirar o passaporte para elas, mas parece que é necessário viver seis meses no Brasil para adquirir a cidadania. Elas não podem fazer isso. Primeiro, porque não conseguem entrar em Israel para pegar o avião. Eu passo muito facilmente pelos checkpoints com meu passaporte, mas elas não. Sempre ficam retidas. Além do mais, elas têm filhos pequenos, que frequentam a escola. Se conseguissem sair, quem sabe se poderiam voltar?” Agora, ela planeja uma nova viagem. Abu, hoje com 80 anos, continua com horror de avião. “Mas eu vou, ah se vou! Um dia ainda largo tudo e vou, sim”, disse Dona Meredita, me servindo mais chá.
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Hoje não tem aula TERÇA-FEIRA, 24 DE JULHO DE 2007
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s visitas oficiais não me atraíam muito, mas acompanhei meus companheiros de viagem ao Ministério da Saúde da Autori-
dade Nacional Palestina, em Nablus. Passamos por alguns prédios públicos totalmente destruídos, cujos escombros estavam intocados às vezes há dois anos, mas este edifício ainda estava intacto. O diretor de Relações Públicas do ministério, o médico Omer Al-Nasser, recebeu-nos em sua sala e começou a folhear alguns relatórios, enquanto enumerava os hospitais administrados pela ANP: vinte e quatro, no total. O primeiro dado que Omer citou foi a paralisação de serviços por causa do bloqueio econômico, que deixou a administração sem recursos. “Por causa da falta de pagamento dos salários, os funcionários da Saúde estão em greve há mais de um mês. Mas tentamos manter os serviços básicos – como a diálise, o tratamento de câncer, as vacinas”, afirmou o diretor, citando o documento do sindicato que estava em suas mãos.
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“Sem dúvida, o principal problema do sistema de saúde palestino é a ocupação. São questões estruturais, como os mais de 300 barreiras que impedem funcionários e pacientes de chegar aos hospitais. Bebês morrem nos bloqueios porque suas mães são impedidas de se deslocar, em ambulâncias ou não”, disse Omer. “E também há o muro. Em cidades como Qalquilya, as pessoas tinham um hospital a 1 km de casa, e hoje têm que percorrer 20 km”. Segundo Omer, o sistema de saúde fica sobrecarregado com os feridos graves em decorrência do conflito – os chamados feridos “securitários” – pela falta de equipamentos e medicamentos necessários. Esses feridos são transferidos para outros locais, como Jerusalém, Jordânia, Egito e, em último caso, Israel. “Isso nos custa muito caro”, explicou Omer, “Antes da criação da Autoridade Palestina, trabalhávamos com 30 milhões de dólares ao ano. Depois da criação, em 1994, passamos a contar com 100 milhões. Mas o ideal seria de 150 milhões de dólares, pelo menos”. Um relatório chamado “Feridos Securitários”, elaborado pelo Ministério, aponta que os atingidos na cabeça e no pescoço desde 2000 representam 8 mil de um total de 50 mil feridos – sendo a maior parte, segundo Omer, composta de crianças, adolescentes e pessoas idosas. Pedi uma cópia do documento. “Ele está publicado no site do Ministério na internet. Mas, neste momento, infelizmente, o site está nas mãos do Hamas”, respondeu o diretor.
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Um funcionário nos acompanhou durante a visita a um hospital público criado por um turco, em 1905, e um dos maiores da região. Quando deixávamos o pátio do hospital para pegar táxis e encontrar estudantes na Universidade de Nablus, algumas ambulâncias chegaram, transportando muitos feridos. Médicos e enfermeiros corriam para ajudar a transportá-los para o pronto-socorro. Sophie recebeu uma ligação. Um confronto entre partidários armados do Hamas e do Fatah na Universidade de Nablus havia deixado 30 estudantes feridos – os mesmos que agora chegavam em macas e passavam ao nosso lado, no hospital. Seriam aqueles com quem deveríamos nos encontrar em instantes? Segundo as primeiras informações que recebemos, estudantes ligados ao Hamas haviam distribuído panfletos políticos – o que é proibido na Universidade – e provocado o confronto. A Universidade fechou, como vinha acontecendo em outras cidades, e nosso encontro foi, obviamente, cancelado.
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Um pedaço de terra brasileira QUARTA-FEIRA, 25 DE JULHO DE 2007
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a minha última manhã em Nablus, tentei, mais uma vez, comprar kuffiehs originais. Havia prometido a alguns ami-
gos. Pedi a Fateen, voluntário do Project Hope, que me acompanhasse para aumentar meu poder de barganha em árabe. Ele me levou direto a uma lojinha pequena e abarrotada, cheia de tecidos e outras peças amontoadas numa estante quadriculada. Fateen, que nasceu e cresceu em Nablus, garante que é a única loja que ainda vende originais naquele bairro. Atrás do balcão, o vendedor olhava desconfiado para mim. Lançou o preço, ouviu minha contraproposta, mas foi irredutível. “Por esse valor, posso lhe oferecer apenas estes, chineses”, me estendeu o pano ralo meio translúcido. Resolvi levar o original, mais caro, mas tive que me contentar com apenas um. Meus amigos que me perdoem, mas os tradicionais kuffiehs palestinos estão ficando cada vez mais raros na Palestina – se eles quiserem entrar na moda, que comprem em São Paulo.
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Dona Meredita fez questão de preparar um grande jantar para se despedir de mim. No dia anterior, encontrei-a no apartamento de sua filha Dinah, que fica no mesmo prédio que o seu. Desta vez, fomos ao seu apartamento, mesmo. A primeira coisa que reparei foi uma velha bandeira de plástico do Brasil pendurada na parede. Ela disse que ficava sempre lá. Apesar de ninguém saber como se pronuncia o nome de Meredita (chamam-a, no máximo, de Dita) todos a conhecem pela sua habilidade na cozinha. Ela sabe fazer pratos árabes melhor que qualquer mulher árabe, garantiram as filhas. Charutos, saladas, coxinha (feitas especialmente para eu matar as saudades de casa, disse Meredita), kibe assado... Dona Meredita ia colocando um prato atrás do outro diante de mim, como uma avó. “Come, come, não fica com vergonha!”, dizia para mim, repondo as iguarias no meu prato, sem que ninguém mais a entendesse. Depois do jantar, perguntei a Meredita se ela não queria que eu trouxesse uma carta ou alguma pequena encomenda para a sua família em São Manoel. Ela hesitou um pouco, mas, como insisti, voltou do quarto com uma grande sacola de plástico. “São coisinhas pequenas”, falou, “lembranças para a minha irmã. Pode ser”? Claro, não tive como recusar. Eram dois tapetes, cinco quadrinhos de gesso com imagens da cidade de Jerusalém e Belém, cuida-
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dosamente embrulhados – um deles era para mim – e outros tantos chaveiros com a Mão de Fátima. Prometi entregar as lembranças. Fomos à casa da outra filha de Meredita. Dinah nos levou em seu carro, um Fiat Uno antigo. No caminho, ela falou de sua profissão: é engenheira – e casada com outro engenheiro, o irmão de Shereen. Reparei que as duas filhas e a neta de Meredita não usavam o véu. Perguntei qual era sua religião. “Quando me casei com Abu, me converti à religião dele, o islamismo. Mas Deus é o mesmo, minha filha. Alá é o nosso mesmo Deus”, disse. Chegamos à casa onde moram o genro médico – o que enviou as cartas de Meredita à família no Brasil – e a outra filha. Era um palacete. Sentamos ao redor de uma grande mesa no jardim e ficamos ao lado das árvores com cachos de primavera, tomando suco de laranja gelado, naquela noite agradável. Quase toda a família de Meredita estava reunida: marido, filhas, netos. Aproveitaram para fotografar a reunião. Falamos de tudo, menos do conflito. Sobre planos para o futuro, sobre viagens, sobre o Brasil. Aliás, aquele quintal florido e feliz entre os muros da casa mais parecia um pedaço qualquer de terras brasileiras. Mas o encontro não durou muito. Já eram quase 22 horas, e todos sabiam: não se pode circular em Nablus tão tarde.
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Cuidado com o lixo QUINTA-FEIRA, 26 DE JULHO DE 2007
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oltei a Jerusalém de ônibus, com Sabrina. Carregar o mochilão nas costas e uma mochila na frente ficou mais di-
fícil do que eu pensava, com as encomendas de Dona Meredita. Pior foi passar a pé pelos checkpoints e mudar de condução por causa disso pelo menos duas vezes. O sol escaldante deixava tudo ainda mais pesado. O motorista do ônibus passou recolhendo todas as identidades e nossos passaportes para entregá-los aos soldados que esperavam do lado de fora. Depois de algum tempo, o homem voltou e foi até nossos assentos para dizer que os soldados israelenses pediram que Sabrina e eu descêssemos. Saímos do ônibus, apreensivas. “Olá”, me disse o soldado, em português, sorrindo “o que uma brasileira está fazendo aqui”? “Turismo”, disse, pegando o passaporte de sua mão. “E você, é brasileiro?”, perguntei, sem muito ânimo. Era. Mas não tive tempo – nem vontade, por causa da situação – de desenvolver a conversa. Afinal, um ônibus inteiro esperava
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enquanto os soldados eram todo sorrisos para as estrangeiras que fizeram descer do carro. Aliás, por serem muito jovens, essa tentativa de aproximação dos soldados com turistas é comum. Outras garotas já haviam me contado casos parecidos. De volta a Jerusalém, corri para empacotar meus cadernos de anotações, fitas de vídeo e outros materiais que eu havia coletado durante a viagem. Precisava enviar tudo pelo correio para minha casa no Brasil, para que eu não tivesse problemas com isso, no aeroporto. Além de poder, eventualmente, ter meu material confiscado, também temia ser incluída na extensa lista de pessoas não desejáveis que ousam ver como as coisas se passam do outro lado, e ser impedida também de voltar a Israel e à Palestina. Depois de me desfazer das caixas dos quadrinhos de Meredita, para que estes coubessem na minha mochila, embrulhados em seus tapetes, segui, sob o sol a pino, à procura de um posto dos Correios. Deixei para trás, com tristeza, diversas publicações, porque não tinha como carregá-las. Turistas andavam de camelo e tiravam fotos, perto do Portal de Damasco. A agência postal mais próxima ficava fora da Cidade Velha, em Jerusalém ocidental. Chegando à agência, desabei com o ânimo e a bagagem no chão. Diversas pessoas estavam paradas em frente ao posto de Correios fechado, algumas nervosas e outras resignadas, esperando. De repente, um funcionário coloca à porta um aviso em hebraico, dizendo que naquele dia, excepcionalmente, a agência estaria fechada. O dia estava acabando e eu tinha que voltar a Tel Aviv. O check-in do meu vôo para Budapeste-Paris seria às 4 horas da manhã e eu
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decidira passar a noite no aeroporto. Mas eu não chegaria a Tel Aviv a tempo de encontrar uma agência dos Correios aberta. Parei no primeiro cybercafé que encontrei e entrei sem notar que os donos – e a maioria dos frequentadores – eram judeus ortodoxos. Paguei uma hora de acesso à internet para descarregar e gravar em um CD todas as fotografias que eu havia tirado. Enquanto as fotos da Cisjordânia – muitas delas com cartazes de mártires, símbolos palestinos, soldados israelenses ou colônias – desfilavam rapidamente pelo meu monitor, senti que, por mais que eu tentasse ser discreta, alguns clientes não paravam de olhar em direção ao meu computador. Tudo pronto, era hora de decidir o que fazer com aquilo. Lembrei-me, então, do simpático Ashraf, dono do Hotel Hebron. Eu deixaria com ele tudo isso dentro de um envelope, com a quantia estimada dos gastos de remessa, para que ele colocasse a correspondência no correio para mim, num outro dia. Como não aguentava mais andar, por causa do calor, tive a – no mínimo – irresponsável ideia de pedir ao dono do café para deixar meu mochilão ali, enquanto eu ia à Cidade Velha entregar uma correspondência. Todos sabem que, numa cidade traumatizada pelos atentados a bombas em lugares como aquele, objetos abandonados e longe do dono são sinônimo de perigo. Mas, para minha surpresa, o atendente aceitou sem pestanejar. Entreguei o pacote com todo o meu trabalho ao filho de Ashraf, e só me restava torcer para que tudo chegasse bem (o envelope foi postado em agosto de 2007, mas só o recebi em minha casa, aliviada, três meses depois).
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No terminal rodoviário de Tel Aviv, esperando o ônibus que me levaria ao aeroporto, revisei com calma as anotações que ficaram comigo. Percebi que acabei deixando na bolsa algumas folhas avulsas com anotações, nomes e telefones das pessoas que entrevistei nas cidades não-reconhecidas do deserto do Neguev. Imediatamente, dobrei as folhas e as joguei na lata de lixo que estava bem na minha frente. Menos de cinco minutos depois, um homem vestido com roupas normais, civis, saído não sei bem de onde, caminhou em direção ao lixo, enfiou sua mão lá dentro e tirou as folhas que eu havia jogado. Prendi a respiração, atônita. O que significava aquilo? Talvez por não entender as anotações em português, ou por julgá-las inofensivas, o homem jogou de volta o papel e voltou na direção de onde ele viera. Por impulso, voltei a pegar as folhas no lixo e, dessa vez, piquei-as em pedaços ilegíveis. Meu ônibus chegou. Distraí-me durante a viagem de ônibus conversando com a garota sentada ao meu lado, uma jovem com piercing e tatuagem, falante e curiosa. Conversamos sobre o Brasil e a Dinamarca, onde ela fez um intercâmbio. Ela trabalhava em uma loja de CDs durante a noite, no aeroporto, e me convidou para visitar a loja, durante as horas que eu passaria sozinha por lá. Passei as primeiras horas no aeroporto de loja em loja, e parei para jantar na praça de alimentação. Mais ou menos uma hora da madrugada, ouvi o som conhecido da trilha sonora da novela
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brasileira Terra Nostra, que estava sendo exibida na TV. Fiquei entediada e depois irritada com os avisos para não “deixar a bagagem fora de vista ou abandonada” que eram tocados de cinco em cinco minutos na gravação do alto-falante do aeroporto. Perguntei-me se ouviria aquilo a noite toda. De repente, um agente antibombas passa ao meu lado e, todo equipado com uma pesada roupa preta e uma máscara que cobria toda a cabeça, dirigiu-se ao centro da praça de alimentação. Um copo do McDonald’s estava solitário em cima de uma mesa. Ele cutucou o copo com um bastão, que tinha uma pinça na ponta, para finalmente verificar que estava vazio – a não ser pelo restinho de coca-cola que o viajante apressado provavelmente não conseguira beber. Olhei ao redor e ninguém mais parecia estarrecido com a situação.
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“Cinco” SEXTA-FEIRA, 27 DE JULHO DE 2007
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ssim que pude me apresentar ao check-in, às 4h30, levantei e me dirigi aos guichês, que estavam vazios. Antes que eu pu-
desse chegar à entrada da fila, porém, um agente do aeroporto à paisana me parou para fazer algumas perguntas. “Shalom”, disse o homem, que usava óculos escuros. “Shalom”, respondi. Ele desatou a falar em hebraico e o interrompi calmamente dizendo, em inglês, que eu não sabia falar a língua. “Como assim”, perguntou, “você não fala hebraico”? “Não, não sou judia”, respondi. Ele parecia não acreditar. “Mas você nunca aprendeu, mesmo? Nem quando criança”? “Não, nunca tive a oportunidade”. “Sei”, disse, olhando agora para todas as páginas do meu passaporte. “O que você foi fazer em Londres”? “Fui passar o Natal lá”, respondi, laconicamente. “Entendo. E na França, o que fez?”. “Estudei em uma universidade, num programa de intercâmbio”.
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“Estudou o quê”? “Ciência Política”, falei, já meio impaciente com as perguntas. Não via aonde ele queria chegar com aquilo. Depois, seguiu com uma série de perguntas sobre o que eu fiz, que lugares visitei, o objetivo da minha viagem. Omiti a visita à Cisjordânia. “Desculpe, mas, para quê tudo isso”?, perguntei. “Fique tranquila, é um procedimento padrão”, disse, colando um adesivo com o número 5 na contracapa de meu passaporte. “Passe por aquele balcão, antes do check-in”. Deixei minha bagagem e minha bolsa em cima do tal balcão, atrás do qual uns dez agentes trabalhavam entre computadores e equipamentos diversos. Era possível ver o que faziam, pois o local não tinha paredes. Meu mochilão foi aberto e cada roupa e objeto devidamente investigado. Carregadores de bateria, pilhas, nécessaire. Já a bolsa com meu pen drive, minha máquina fotográfica e filmadora foi parar dentro de uma salinha. Não sei se chegaram a checar o conteúdo, mas não duvidava de nada no aeroporto com o esquema de segurança mais rígido do mundo. Os quadrinhos de Dona Meredita ganharam uma atenção especial do agente fuçador, que passou um bastão detector (de partículas?) mais de três vezes em cada um. Fiquei um pouco incomodada com a devassa das minhas roupas sujas, enquanto as mãos sob luvas de plástico do agente selecionavam minhas coisas como quem separa lixo reciclável. Ainda bem que não demorei tanto tempo assim para arrumar a mala. Ao meu lado, uma mulher de uns 30 anos, judia, talvez americana, deixou o passaporte em cima do balcão e acomodou sua ba-
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gagem no chão. O mesmo agente que encaminhou minha bagagem à prospecção de objetos suspeitos olhou seu passaporte – que tinha o número 1 colado na parte de trás dele – e perguntou o que ela levava em sua mala. “Apenas roupas e alguns souvenirs”, respondeu a moça. “Ok. Pode passar”, disse o agente, indicando o caminho do check-in. Obviamente aquele sistema de números dos adesivos – de 1 a 6, provavelmente – era alguma espécie de classificação da periculosidade dos passageiros, apesar de eu não ter conseguido nenhuma informação oficial a respeito. Uma mulher ao meu lado, número 5 também – porém muito mais nervosa do que eu – reclamou e perguntou aos agentes se aquilo ainda ia demorar muito tempo. Ela parecia indignada com a passagem fácil da nossa colega número 1, que sequer teve que abrir as malas. Isso porque, certamente, a investigação dos passageiros não começa ali. Israel adotou uma tecnologia preventiva de “detecção de comportamento suspeito” que interessou até aos Estados Unidos. Em setembro de 2008, o chefe do Departamento de Segurança Interna dos EUA, Michael Chertoff, visitou Israel para conhecer de perto a tecnologia capaz de analisar o comportamento dos passageiros a fim de adotá-lo no país. Um acordo para o compartilhamento desse know-how foi assinado na ocasião. Desenvolvido pela empresa israelense de tecnologia WeCU, o sistema alia a ciência comportamental a sensores biométricos para detectar intenções obscuras entre os viajantes. O método israelense de interrogar cada passageiro, no entanto, não é tão prático nos
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maiores aeroportos americanos, declarou Chertoff, numa conferência em Jerusalém. Cerca de 9 milhões de pessoas passam pelo aeroporto Ben-Gurion por ano, enquanto aeroportos como o Chicago O’Hare, nos EUA, recebem mais de 76 milhões de passageiros. A tendência, portanto, é automatizar o processo. O Projeto de Intenções Hostis (PHI, na sigla em inglês) deve ser implementado pelos americanos até 2012 e prevê um software especial nas câmeras para detectar, com aparelhos de laser e de infravermelho, microexpressões faciais e comportamentos suspeitos. O professor Peter McOwan, da Queen Mary University, em Londres, trabalha na confecção de um novo software que possibilita a leitura da face humana por computadores. “Estamos procurando por microexpressões faciais em pessoas que em geral mantêm uma expressão neutra, mas que em algum momento se exprimem de forma inconsciente, ao, por exemplo, mover as sobrancelhas. Esses movimentos acontecem muito rapidamente e acreditamos que essas microexpresões possam nos fornecer meios de detectar potenciais terroristas”, disse o professor em 36
entrevista à BBC . Uma careta momentânea ou um piscar de olhos suspeito seria suficiente para levar alguém a ser interrogado. Eu, que passei a noite zanzando no aeroportos, entrando em cada loja e observando tudo, nem me dei conta do quanto era observada. Também não tenho ideia do que leu nas minhas expressões faciais o agente que colou o número 5 no meu passaporte. A procura por suspeitos parece não ter limites. No mesmo mês em que Israel e EUA discutiam o aprimoramento de seus 36. BBC Brasil: EUA querem identificar terroristas por expressões faciais, 25/09/2007
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sistemas de segurança, um dançarino afro-americano de uma das maiores companhias de dança do mundo, a Alvin Ailey American Dance Theater, foi detido no aeroporto Ben-Gurion. Jackson teve que dançar na frente dos agentes para provar sua participação no grupo. Ele é um dos veteranos da companhia, mas seu nome árabe o tornava suspeito. Jackson chegou junto com o grupo para uma performance em Tel Aviv, que foi escolhida como a primeira cidade da turnê da Alvin Ailey. “Passamos pelo controle de segurança, mas eu fui abordado e pediram que eu esperasse”, disse Jackson ao site israelense 37
YnewsNet . Ele foi, então, levado a uma sala de espera separada. Jackson contou que o interesse dos agentes era o seu primeiro nome, Abdur-Rahim. “Expliquei que meu pai se converteu ao Islã e me deu esse nome”. E então perguntaram o nome dos meus pais e o porquê da escolha. Ele tentou mostrar as brochuras em que aparecia dançando em várias performances, sem sucesso. “Eles viram as fotografias e pediram que eu dançasse ali mesmo. Eu estava envergonhado mas tinha medo que, se fizesse alguma coisa de errado, eu parecesse suspeito”. O dançarino fez, então, alguns passos na frente dos agentes e foi solto depois de alguns outros esclarecimentos. Ficou detido por mais de uma hora. A Autoridade Israelense de Aeroportos disse que “os detalhes do incidente são desconhecidos e nada foi encontrado em nossa investigação”.
37. If you want to enter Israel, dance. Reportagem de Reuven Weiss, publicada no site YnetNews.com em 9/9/2008
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Omar Barghouti, coreógrafo e um dos fundadores da Campanha Palestina de Boicote Acadêmico e Cultural de Israel, criticou a postura dos agentes de segurança no caso. Ele disse em um artigo publicado em 38
seu site que esse é um caso típico da classificação étnica promovida por Israel e difundida em diversos locais públicos no país. Barghouti, que é um cidadão israelense de origem árabe, conhece bem a situação. “Quando eu, portador de uma carteira de identidade israelense, viajo pelo aeroporto de Tel Aviv, por exemplo, sempre ganho adesivos estampados com o número ‘6’ no meu passaporte e bagagem. Judeus israelenses, em contrapartida, sempre recebem o ‘1’ ou ‘2’. Um ‘6’ leva ao controle mais degradante de pessoas e bagagens. Os números mais baixos, porém, significam que você e sua bagagem vão passar apenas pelo raio-x”, escreveu. Barghouti lembra que, alguns anos antes, esses adesivos e etiquetas não traziam números, e sim cores. “Eu sempre pegava um vibrante vermelho, enquanto judeus israelenses pegavam um rosa choque ou outras cores mais ‘benignas’”, disse o coreógrafo. Um relato de militantes franceses da Campanha Civil de Proteção ao Povo Palestino (CCIPPP) de janeiro de 2003 mostra situação parecida. Emanuelle e Laurent contam, no relato da viagem, que receberam etiquetas vermelhas em todas as bagagens. Atrás deles, uma colega que respondeu que tinha visitado amigos ganhou uma etiqueta azul. “Tentei perguntar à charmosa controladora qual a diferença das cores, mas ela disse que 39
não poderia nos dizer”, escreveu Laurent . 38. So you think you can dance? Omar Barghouti, 12/09/2008 39. Relatos da 42ª missão do CCIPPP, de 3 de janeiro de 2003 – retirado de www.protection-palestine.org.
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“Algumas autoridades israelenses espertas devem ter sido alertadas de que a classificação de passageiros segundo um código de cores, conforme sua etnia e/ou religião, era parecida demais com o apartheid. Então, eles mudaram para um código de números su40
postamente mais sutil”, conclui Barghouti .
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Entregaram minha bagagem com as roupas e objetos ainda revirados em um recipiente plástico, e tive que guardá-los rapidamente, ainda no balcão. Aquilo já havia durado mais de uma hora e o avião decolaria em pouco tempo. Passei, ainda, por um detector de metais e o raio-x (sem jaqueta, sem sapatos – que também foram levados para averiguação) para finalmente ser liberada para ir à sala de embarque. Um agente me acompanhou até praticamente a porta do avião, para que eu passasse mais rápido por eventuais filas e não perdesse o voo. Quanta gentileza... Depois do “bem vinda a Israel”, na minha chegada, só ficou faltando o “volte sempre”, na partida.
40. De volta ao Brasil, perguntei a Michael Warschawski, da AIC, onde eu poderia tentar confirmar o sistema de codificação dos passageiros e o número de pessoas que eram impedidas de entrara em Israel por questões de segurança. “Infelizmente, temo que nem eu nem ninguém possa lhe responder essas perguntas”, disse o ativista. A embaixada de Israel em Brasília também negou que soubesse qualquer uma das informações. A assessoria de imprensa sugeriu que eu procurasse o departamento de comunicação do aeroporto e disse que nem se soubesse tais informações poderia fornecê-las.
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Agradecimentos A Yone Fernandes e Fernando Gallo, pela leitura cuidadosa do originais, e a Cyrus Afshar, pelo companheirismo em todo o processo. À professora Arlene Clemesha, pelas observações atenciosas ao trabalho de conclusão de curso que originou este livro, todas incorporadas aqui, e ao professor Cláudio Tognolli, pela orientação. A minha irmã Simone, por todo apoio e pela belíssima ilustração da primeira capa e do blog, a meus pais e minha família. A Diego Vega e aos amigos da Ação Educativa, em especial Ester Rizzi e Mariângela Graciano, que muito incentivaram a publicação deste relato. A todos os membros da Géneration Palestine, pelo apoio logístico e as traduções do árabe, que me foram essenciais na viagem. E a todos os ativistas dos direitos humanos – de todo o mundo – que lutam por dias melhores para o povo palestino e, corajosamente, não param de produzir informação para além dos muros. Sem vocês, esse livro não existiria.
Referências bibliográficas ARBEX Jr., José. Terror e esperança na Palestina. São Paulo: Casa Amarela, 2002. BANKS, Russel [et al.]. Viagem à Palestina. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. BRUNSWIC, Anne. Bienvenue em Palestine. Paris: Actes Sud, 2004. CATHERINE, Lucas. Palestine. Berchem: EPO, 2003. FINKELSTEIN, Norman. Imagem e Realidade no Conflito Israel-Palestina. Rio de Janeiro: Record, 2005 GRESH, Alain. Israël, Palestine – Verités sur un conflit. Paris: Fayard/Hachette, 2002 HERZL, Theodor. O Estado Judeu. Rio de Janeiro: Mercaz-Wizo-Brasil, 1954. MORRIS, Benny. Birth of the Palestinian Refugee Problem. Londres: Cambridge University Press, 1989. PAPPE, Ilan. História Moderna da Palestina. Uma terra, dois povos. Lisboa: Caminho Nosso Mundo, 2000 SAID, Edward W. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Para conhecer mais... SITES DE ORGANIZAÇÕES CITADAS NESTE LIVRO
Applied Resarch Institut de Jerusalém (ARIJ)
www.arij.org Alternative Information Center
www.alternativenews.org Combatentes pela Paz
www.combatantsforpeace.org Comitê Israelense contra a Demolição de Casas (ICAHD)
www.icahd.org Ecumenical Accompaniment Programme in Palestine and Israel
www.eappi.org Centro “Criança Feliz”, Campo de Balata
www.hcc-pal.org Holy Land Trust
www.holylandtrust.org Jaffa – Autobiografia de uma cidade
www.jaffaproject.org Palestinian Academic Society for Studies of International Affairs
www.passia.org Project Hope
www.projecthope.ps
Stop the Wall
www.stopthewall.org União Geral dos Estudantes Palestinos - Seção Francesa (GUPS)
www.gupsfrance.org Zochrot – Direitos Humanos em Israel
www.zochrot.org
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