Paisagem e Cotidiano: Experiências com Agricultura Urbana

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PAISAGEM E COTIDIANO: EXPERIÊNCIAS COM AGRICULTURA URBANA



PAISAGEM E COTIDIANO: EXPERIÊNCIAS COM AGRICULTURA URBANA Trabalho de Conclusão de Curso de Fernanda Gomes Sarlo Antonio, sob a orientação da professora Vanessa Brasileiro. Escola de Arquitetura UFMG Belo Horizonte, Novembro de 2014

micrópolis é formado por Belisa Murta, Felipe Carnevalli, João Carneiro, Fernanda Gomes, Marcela Rosenburg, Mateus Lira e Vítor Lagoeiro


Agradecimentos especias à: Marina Salgado, Vanessa Brasileiro, Altamiro Mol Bessa, Daniela de Almeida, Pablo González, Belisa Murta, Felipe Carnevalli, João Carneiro, Marcela Rosenburg, Mateus Lira e Vítor Lagoeiro


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Introdução Parte 01 - Agricultura Urbana, Paisagem e Cotidiano Parte 02 - Possibilidades Paisagísticas da Agricultura Urbana Parte 03 - Estudo de Possibilidades: Calafate Conclusão Cartões Postais Referências


INTRODUÇÃO


Dentro das pautas de discussão sobre a cidade, a Agricultura Urbana aparece como uma das possíveis ferramentas para a promoção de cidades mais naturais, ou menos artificializadas (COUTINHO, 2010). Apesar da sua definição ainda não apresentar consenso, a Agricultura Urbana é sempre celebrada como uma prática multifuncional que auxilia em políticas que vão desde a melhoria da gestão ambiental até o combate à pobreza, passando pela promoção da inclusão social e da governabilidade participativa (SANTANDREU apud LOVO, 2007). Entretanto, nessas discussões pouco se considera o papel paisagístico que esse tipo de intervenção pode gerar nas cidades. Para além de requalificar espaços degradados, a Agricultura Urbana, quando aplicada de forma sistemática, tem o poder de modificar a paisagem urbana como um todo. E essa mudança funciona também como um ponto de partida para se pensar a relação entre o urbano e o natural e as próprias pessoas. As nossas cidades precisam realmente de tanto concreto? A paisagem da cidade tem que ser tão cinza e monótona? Os espaços verdes têm que ser necessariamente tão padronizados e controlados? Porque não produzir em meio aos espaços obsoletos e subaproveitados das ruas? São questionamentos que se potencializam frente às novas possibilidades que se revelam a cada nova horta que se vê na cidade. Esse trabalho busca, então, oferecer possibilidades para uma cidade mais aberta a novas práticas, mais criativa, na qual plantar e colher a própria comida seja algo corriqueiro e essa nova paisagem resultante, não totalmente urbana nem totalmente rural, mas uma mistura de ambas, possa se tornar cotidiana. Através da apresentação de conceitos e análise de casos análogos ao redor do mundo se discute a influência da Agricultura Urbana na paisagem cotidiana das cidades e sua potência como intervenção estética. No fim, com base em tudo o que foi discutido, são propostos novas possibilidades para quatro paisagens cotidianas do bairro Calafate, de modo a concretizar e expandir um pouco mais essa discussão, inserindo-a em um contexto já consolidado.

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Parte 01 Agricultura Urbana, Paisagem e Cotidiano.


Na vanguarda dos estudos sobre urbanização, a Agricultura Urbana aparece cada vez mais como uma ferramenta que “[..] aborda os múltiplos desafios inerentes à vida urbana contemporânea através de uma perspectiva mais humana e local.” (CITIES, 2013, p.3)1. Entre os diversos benefícios que se advoga a favor da prática, a sua contribuição para a melhoria da paisagem urbana é muitas vezes esquecida frente a seu potencial como meio de empoderar comunidades em risco, contribuir para uma alimentação mais saudável ou mesmo gerar alternativas econômicas ou complementação de renda. Historicamente, as pessoas apresentam uma estreita relação com o ato de plantar ao seu redor. Independente da época ou do local, seja para a produção de alimentos ou por simples deleite, os jardins são presença constante nas mais variadas civilizações. De acordo com Mougeot, Durante a maior parte da história da humanidade e em diferentes civilizações, populações urbanas têm se engajado em graus variáveis na produção de pelo menos alguns dos alimentos que necessitam, próximo ou em sua própria residência, dentro ou mesmo fora da cidade (MOUGEOT, 1994a, p.4-5 apud LOVO, 2011, p. 41).

Pode-se tomar como exemplo a Idade Média, quando a agricultura era realizada pelos servos camponeses ao redor das cidades fortificadas, utilizando a produção para sua própria alimentação e pagamento dos impostos pelo uso da terra. Segundo Borges (2013), como as técnicas de produção eram bastante rudimentares e o acesso a alimentos diversificados era mais difícil, mesmo para as famílias nobres, parte desses alimentos pas1 Do original: […] approach the many challenges inherent in contemporary urban life from a human, locally-oriented perspective.

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sou a ser cultivada em áreas residenciais e/ou pequenas hortas. Além de gêneros alimentícios, também eram cultivadas plantas medicinais e ervas, mas de todo modo, esse cultivo se dava apenas em casos nos quais havia condições financeiras suficientes para bancar todos os gastos inerentes à prática, não sendo esta corriqueira nas famílias mais pobres. No decorrer dos séculos, com o desenvolvimento das cidades e o crescimento populacional, a necessidade de produzir mais alimentos fez com que o cultivo se expandisse para além dos limites periurbanos, sendo realizados cada vez mais afastados das aglomerações urbanas. O desenvolvimento de novas tecnologias de cultivo e de transporte contribuiu ainda mais para esse afastamento, possibilitando maiores safras e um melhor escoamento da produção. Mesmo assim, os pequenos cultivos nas casas por toda a cidade nunca foram deixados de lado. Apesar de estar sempre presente, foi a partir da Revolução Industrial que, de acordo com Lovo (2011), a produção de alimentos nas cidades ganhou maior significado e intensidade, estando intimamente associada a crises econômicas e a períodos pós-guerra. Esta situação pôde ser observada em diversos países e em distintas épocas, como é o caso citado por Borges (2013) das hortas sociais no Reino Unido na década de 1920, quando o governo ou mesmo instituições beneficentes forneciam terrenos para que sem teto ou desempregados plantassem. Essas inciativas se desdobraram nas chamadas hortas de guerra, difundidas tanto na Europa quanto na África nas décadas de 1940 e 1950. Segundo Lovo (2011), foi a partir da década de 1970 que o termo Agricultura Urbana passou a ser reconhecido no cenário internacional, ganhando maior visibilidade na mídia e no meio acadêmico, pois essa década foi marcada pelo êxito de programas de cooperação internacional realizados na África entre os governos francês, americano, a UNICEF e o Banco Mundial. O sucesso dos projetos Operation Feed Yourselvs, em Ghana e a cooperação para o desenvolvimento da agricultura urbana em Luzaka, Zâmbia, possibilitaram a comprovação dos impactos positivos dessa prática, tais como a melhora do ambiente urbano e a diminuição da fome, estimulando diversas publicações e estudos acadêmicos sobre o tema que marcaram a década seguinte. Também, segundo Smit (1996), a década de 1990 foi notável

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não só pelo número de agencias de cooperação internacional que trabalharam com agricultura urbana, mas também pelo número de publicações, conferências e outros encontros que foram realizados, assim como o número de graus universitários, de mestrado e doutorado, obtidos sobre o assunto. (LOVO, 2011, p. 48).

É, então, na década de 1990 que a Agricultura Urbana passa a ser considerada um campo, em sua dimensão acadêmica e política, com a ocorrência de um movimento social que buscava defini-la. É também nesse momento que com o aumento alarmante da fome e da pobreza urbana, Coutinho (2013) afirma que a Agricultura Urbana passa a ser tomada como uma solução para os problemas enfrentados pelos governos locais. No Brasil, a prática ganha ainda mais repercussão com o resultado de programas como o Programa Cidades Cultivando para o Futuro (CCF) que trabalhou em cidades com altos índices de pobreza. Três argumentos esclarecem as potencialidades da agricultura urbana para a resolução de problemas socioambientais urbanos — eles estão relacionados à sua contribuição para a promoção da cidade ecológica, da cidade produtiva e da cidade inclusiva. Tais argumentos, propostos como transversais e, portanto, transgressores, favoreceram o forte incentivo às práticas da agricultura urbana em várias cidades do mundo, inclusive em Belo Horizonte. (COUTINHO, 2010, p. 45-46).

Considerando o resultado das pesquisas realizadas sobre o assunto, Mougeot (apud Lovo, 2011) propõe que a definição de Agricultura Urbana seja feita pela construção de blocos conceituais comuns, descrevendo-a como: O cultivo, o processamento e a distribuição, com fins alimentícios e não alimentícios, de plantas, árvores e a criação de animais, tanto dentro como na periferia de uma área urbana, dirigidos ao mercado urbano. Para lograr êxito, a Agricultura Urbana aproveita recursos (espaços usados ou subutilizados, resíduos orgânicos), serviços (extensão técnica, financiamento, transporte) e produtos (agroquímicos, ferramentas, veículos), encontrados nessa área urbana, gerando por sua vez recursos (áreas verdes, microclimas, composto), serviços (abastecimento, recreação, terapia), e produtos (flores, aves de curral e lácteos), em grande parte para a mesma área urbana (MOUGEOT apud LOVO, 2011, p.49).

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Além da óbvia diferenciação entre ambientes de atuação, a Agricultura Urbana diferencia-se da agricultura tradicional, aquela praticada no meio rural, em vários pontos. Roese (apud Borges, 2013) cita como alguns exemplos o fato da produção ser voltada mais para a qualidade, pois observa-se forte presença de práticas agroecológicas, do que para a quantidade; dos agricultores terem outras ocupações ou tarefas que impede a dedicação exclusiva à atividade; da produção ser voltada para consumo próprio ou complementação alimentar, sendo comercializado em geral somente seu excedente em mercados locais; além do baixo conhecimento técnico dos agricultores envolvidos. Uma similaridade, apontada é o fato da maioria dos envolvidos terem alguma relação, vivência ou tradição anterior com as práticas agrícolas. Acrescentando ao conceito anterior uma melhor definição dos espaços nos quais se realiza essa prática e também das suas formas de produção (individual ou comunitária), em Borges (3013) temos uma maior elaboração dessa ideia. A autora afirma que: Por Agricultura Urbana entende-se a produção agropecuária em menor escala do que ocorre nas comunidades rurais, mas realizada em espaços urbanos que estão ociosos ou subutilizados e cujas produções são úteis à alimentação humana. (...) o cultivo urbano se realiza em pequenos espaços, como quintais, varandas, lajes, etc. E quando se realiza de forma comunitária, se utiliza de espaços maiores, particulares ou públicos, cedidos temporariamente para esta finalidade. Todavia, a prática comunitária pode se desenvolver através de atividades coletivas e compartilhadas pelos participantes, mas também individualizadas por meio de espaços demarcados para o cultivo, tendo a área utilizada como sendo de uso comunitário. (BORGES, 2013, p. 15-16).

Coutinho (2010) agrega uma perspectiva mais voltada à própria cidade e a forma que a Agricultura Urbana pode aparecer nesse meio. Além disso, a autora afirma que tal prática “Revela-se como uma atividade produtiva e interativa que rebate a idéia predominante de que área urbana não-construída é sinônimo de área ociosa.” (COUTINHO, 2010, p. 49). A agricultura urbana agrega práticas produtivas, voltadas para o consumo próprio e/ou venda para o mercado local urbano. Ocorre em diferentes áreas, em termos de tamanho, localização e propriedade (pública ou privada). Observamos

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que são práticas que ocorrem de modo informal, espontâneo e espraiado (pontual) pela cidade. (COUTINHO, 2010, p. 13).

Já Borges (2013) encontra o denominador comum do amplo espectro teórico da Agricultura Urbana, afirmando que a característica definidora dessa prática é a produção em pequena/menor escala. Assim, considerando a base teórica apresentada por esses autores e para fins deste trabalho, conclui-se que a Agricultura Urbana é o cultivo, processamento e distribuição, com fins alimentícios ou não, de plantas e/ ou criação de animais em meio urbano ou peri-urbano, em menor escala que o praticado no meio rural. Pode ser praticado em áreas públicas ou privadas, livres ou edificadas de distintos tamanhos. Realiza-se de forma comunitária ou individual, com ou sem apoios institucionais. A produção é destinada a consumo próprio, doação, trocas e/ou venda do excedente em mercados ou feiras locais. Quanto à funcionalidade e aplicabilidade da Agricultura Urbana, Lovo (2011) cita suas dimensões social, econômica e ecológica como as principais características na hora de auxiliar na produção de políticas e programas que contribuam para a sustentabilidade de uma cidade. A isso, Brand e Muñoz (apud Lovo, 2011) acrescentam a dimensão ética, afirmando que por sua flexibilidade a “agricultura urbana se encaixa espacial e simbolicamente em quase qualquer cenário urbano” (p.53). Essa prática também se mostra como uma ferramenta inclusiva de sentido mais amplo, como afirma Borges: [...] uma vez que sua finalidade não é exclusiva para o atendimento das populações menos favorecidas (no que tange a alimentação, ocupação e renda), mas pode-se estender ao incluir àqueles que estão ociosos ou que demandam de um novo modelo de convivência social, como os dependentes químicos, depressivos, discriminados, dentre outras situações. (BORGES, 2013, p. 47).

É importante observar, que há muitas especificidades entre os que cultivam o solo urbano, portanto muitas vezes esses atores [...] não se nomeiam agricultores, nem nomeiam as suas 13


práticas como agricultura urbana, pois, geralmente, estão ligados a outros tipos de trabalhos e ocupações, tipicamente urbanos, que são suas fontes principais de renda. (COUTINHO, 2013, p. 100).

Tal situação se deve, em grande parte, às motivações e desejos que levam as pessoas a praticarem a Agricultura Urbana serem muito variados. Coutinho (2010) afirma que muitos produzem para ter acesso a remédios ou alimentos, outros por satisfação pessoal, amor a terra e às plantas e alguns como uma recompensa pessoal e um questionamento ao modo de vida urbano hegemônico em que se deve pagar por tudo. Por sua vez, Borges diz que a prática remonta a hábitos domiciliares, [...] por meio do cultivo de hortas caseiras, de plantas ornamentais, medicinais e decorativas, cuja finalidade era destinada à subsistência familiar, para a decoração de ambientes ou mesmo enquanto hobby (BORGES, 2013, p. 3940).

Portanto, partindo-se do conceito mais técnico adotado anteriormente, pode-se evoluir para englobar também esses aspectos mais subjetivos. Logo, considerando que tal prática, no cenário urbano, está intimamente ligada ao lado emocional e seus praticantes apresentam uma infinidade de motivos para realiza-la, passa-se a considerar a Agricultura Urbana como prática que estimula um sentimento de pertencimento e interdependência entre as pessoas e a natureza, que pode ser estendido por conseguinte para o espaço urbano no qual esta prática se insere. É a partir do momento que estas práticas deixam o espaço doméstico e passam a se instalar efetivamente no espaço urbano que se torna possível observar seu grande impacto na paisagem. É fácil imaginar como uma rotatória despertaria mais o interesse de todos na cidade se fosse plantada com milho, tomates ou couves ao invés de grama como se vê hoje, ou como um canteiro central se tornaria muito mais atrativo e possibilitaria inúmeros novos usos se as palmeiras fossem substituídas por jabuticabas, pitangas e acerolas, ou até mesmo o espaço vazio abaixo das linhas de transmissão de energia elétrica em geral grandes extensões gramadas que poderiam muito bem dar lugar aos diversos tons de verde que se observa em plantações de verduras. 14


Figura 1: Vista da Horta do Ciclista no meio da Av. Paulista em São Paulo. Fonte: ALCANTARA, 2013.

São essas pequenas proposições que, se replicadas ao longo de toda a cidade, teriam um significativo impacto na maneira como apreendemos a paisagem urbana. Essa dimensão, porém, é pouco abordada por todos esses estudos e conceitos, tanto naqueles que dizem respeito à própria agricultura urbana quanto naqueles pertinentes à paisagem, apesar de considerarem de um modo geral sua contribuição para a melhoria ambiental de espaços degradados e para a promoção de uma cidade mais ecológica. A noção de paisagem comumente reconhecida hoje se relaciona intimamente com a descoberta da perspectiva e, como afirma Milani (2007), está conectada com as imagens criadas pela pintura, as descrições apresentadas pela literatura e com as teorias criadas pela filosofia. Assim, paisagem não seria uma ideia inerente ao ser humano e sim uma criação cultural e histórica. Ainda segundo o autor, nos meios acadêmicos, “é de opinião comum que a paisagem é uma noção absolutamente moderna ligada à evolução da pintura a partir do Renascimento” (MILANI, 2007, p. 56)2. Convenciona-se adotar como o marco inicial do olhar moderno sobre a paisagem a subida 2 Do original: Es opinión común que el paisaje es una noción absolutamente moderna ligada a la evolución de la pintura a partir del Renacimiento, de los descubrimientos científicos y de la experiencia estética del viaje.

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de Petrarca ao topo do monte Ventoux na Itália, em 1336. A paisagem, portanto, sendo uma criação cultural, é descoberta, segundo Simmel (2009), a partir do momento que o homem rompe com o sentimento unitário que historicamente possuía com a natureza e passa a contempla-la a partir de um afastamento. Assim fazendo, transforma a paisagem natural em objeto estético. Milani acrescenta ainda que o descobrimento da paisagem ocorre, “[...] para quem contempla [a natureza] com sentimento, quando as coisas aparecem para o homem sem um objetivo prático, quando desaparece a unidade do homem com a natureza.” (MILANI, 2007, p. 59)3. Adentrando um pouco o domínio do urbano, Milani afirma que “há uma correlação estreitíssima entre a experiência estética da paisagem natural e da paisagem urbana.” (MILANI, 2007, p. 75)4. Segundo o autor (2007), cada arquitetura é paisagística e compõe a imagem estética da cidade, além de favorecer uma relação educativa entre o corpo e o espírito daqueles que a contemplam. De maneira quase poética, Cauquelin afirma a necessidade de se construir um recorte do ambiente para definir a paisagem, “trata-se simplesmente de uma questão de definir, de determinar um fragmento com valência de totalidade, sabendo que só o fragmento dará conta do que é implicitamente visado: a natureza em seu conjunto” (CAUQUELIN, 2007, p.138).

Assim, tem-se que a paisagem está intimamente ligada com a esfera das artes e da contemplação, sendo essencialmente de ordem estética. Esta posição, entretanto, não é compartilhada por todos os estudiosos da paisagem e, segundo Besse (2006), a maioria daqueles que adotam esse tipo de visão são historiadores ou críticos de arte. Sobre o conceito de paisagem na modernidade, o autor afirma que: “[…] três termos são encadeados (representação, estética e 3 Do original: […] para quien contempla con sentimiento, cuando las cosas se aparecen ante el hombre sin un objetivo práctico, cuando la unidad de hombre y naturaleza se desvanece. 4 Do original: Hay una correlación estrechíssima entre la experiencia estética del paisaje natural y del paisaje urbano

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pintura) para afirmar que a paisagem é, de maneira geral, uma construção cultural, que ela não é um objeto físico, que não deve ser confundida com ambiente natural nem com o território ou país. A paisagem é de ordem da imagem, seja esta imagem mental” (BESSE, 2006, p. 61)

Entretanto, ele logo questiona esse conceito, uma vez que acredita que como a paisagem é uma produção cultural, suas diversas significações não poderiam ser reduzidas unicamente ao aspecto estético. A Besse lhe parece então “[…] mais razoável encarar a questão da paisagem no âmbito de uma indagação antropológica geral sobre o desenvolvimento das ‘culturas visuais’ do que encara-la de modo restritivo somente no interior da esfera da estética” (BESSE, 2006, p. 62). O autor questiona também a impossibilidade de haver uma abordagem científica da paisagem por ela ser uma noção estética. Segundo o autor, essa seria uma posição ‘modernista’ pós-kantiana de uma separação rígida das diferentes funções da razão, especialmente entre o conhecimento e o gosto estético. Essa pensamento, entretanto, já seria questionado desde o século XVII, quando de acordo com o autor, as trocas entre arte e ciência já eram mais frequentes e profundas do que se supunha. “[…] não se trata de recusar a abordagem estética, mas de analizar-lhe o conteúdo, as razões. Trata-se de acompanhar, ou de aprofundar, a estética pela ciência, como se o conhecimento se colocasse a serviço da fruição” (BESSE, 2006, p. 63).

Besse (2006) afirma ainda que é preciso ler a paisagem, pois ela seria um signo ou conjunto de signos a serem decifrados por um esforço de interpretação que é da ordem da razão. Desse modo ele amplia o conceito de paisagem para além de uma mera representação, tornando legítimo o estudo e a interpretação da mesma para além da obra de arte. Assim, os questionamentos e afirmações propostos por Besse complementam o conceito de paisagem, ampliando-o para atender também àqueles que se relacionam com a paisagem de uma maneira mais propositiva, com intenção de conhecer-la, analisá-la e intervir sobre a mesma, como é o caso de geógrafos, historiadores, arquitetos, urbanistas, paisagistas e muitos outros. Uma vez compreendido o que é paisagem, é possível observar como as práticas de agricultura urbana podem modificar a paisagem e o cotidiano

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Figura 2: Vista de vasos em Fielden Wharf, Todmorden. Fonte: INCREDIBLE EDIBLE, 2014c.

de uma cidade. Para tanto, utilizamos o exemplo da cidade britânica de Todmorden e seu projeto Incredible Edible Todmorden. Segundo a página Organic Connections (2014), Todmorden é uma cidade de aproximadamente 16.000 pessoas situada em West Yorkshire, Inglaterra. Seu site do centro de informações (Todmorden, 200-) afirma que a cidade teve seu apogeu durante a revolução industrial no século XVIII, com a implantação de uma linha de trem que a conectava a Manchester e a Leeds e a reforma de várias estradas. Essas melhorias de infra-estrutura contribuíram para o desenvolvimento da indústria na cidade, principalmente a têxtil. Atualmente, quase todo o parque industrial da cidade está desativado e ela atende às regiões rurais do entorno com seu mercado, além de servir como residência para pessoas que trabalham nas grandes cidades ao seu redor, como Manchester, Leeds, entre outras. De acordo com Fox (2012), repórter do jornal britânico The Guardian, foi em 2008 que a moradora local Pam Warhurst teve a idéia de usar a linguagem da comida e da agricultura urbana nos espaços públicos para modificar positivamente sua cidade e, segundo ela mesma, criar um futuro melhor. “Incredible Edible Todmorden começou na primavera de 2008 porque nos podíamos ver problemas a frente e decidimos que

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Figura 3: Voluntários limpando o jardim do Hospital, Todmorden. Fonte: ORGANIC CONNECTIONS, 2014.

não valia a pena esperar por ações do governo, nós pararíamos de nos fazer de vítimas e faríamos algo. Nós poderíamos construir um ambiente mais agradável, seguro e sustentável para nós e nossos netos.” (INCREDIBLE EDIBLE, 2014a)5.

O projeto começou, de acordo com o site Organic Connections (2014), a partir de uma reunião pública na qual compareceram 60 pessoas que logo começaram a plantar os chamados “jardins de propaganda”6. “Nós começamos criando jardins no centro da cidade - para alguns pedimos a permissão das pessoas, para outros não pedimos permissão de ninguém. Começamos com canteiros centrais horríveis que eram usados basicamente como banheiro de cachorro e os transformamos em lindos jardins de ervas; então quem iria reclamar disso?” (ORGANIC CONNECTIONS, 2014)7. 5 Do original: Incredible Edible Todmorden started in early spring 2008 because we could see problems ahead and decided it was no good waiting for governments to do something we would stop being victims and just do it. We could make a kinder safer more sustainable environment for ourselves and our grandchildren. 6 Do original: Propaganda garden. 7 Do original: It started by creating town center sites—some that we asked people’s permission for and others where we asked nobody’s permission. We started with grass verges* that looked horrible and were basically dog toilets, and we made them into herb

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Figura 4: Policiais em frente ao jardim da estação, Todmorden. Fonte: ORGANIC CONNECTIONS, 2014.

A estrutura do projeto foi pensada de modo a considerar um tripé básico de ações para a cidade. Em primeiro lugar tratavam dos jardins comestíveis e sua relação com a comunidade e o espaço urbano, em segundo lugar das escolas e da educação das crianças e em terceiro a própria economia da cidade. No primeiro momento, os jardins foram plantados em toda a a área central da cidade, modificando consideravelmente sua imagem; qualquer pessoa, envolvida ou não no processo de plantio e manutenção dos jardins, era convidada a se servir dos vegetais que estivessem maduros sem nenhum custo. Na estação de polícia plantaram milho (imagem 03), no hospital fizeram um jardim de ervas medicinais e aromáticas, além de um pomar (imagem 02), também plantaram na estação de trens e em muitos outros locais, até mesmo nas terras do cemitério da cidade. Sobre esses jardins, Pam comenta um detalhe curioso, “[..] A polícia realmente adorou [o jardim], porque as pessoas passaram a falar com eles. A comida é um ponto comum. E o que é realmente interessante é que a polícia afirma que nesses quatro anos o vandalismo no centro da cidade diminuiu e eles atribuem isso aos jardins de propaganda, porque as pessoas não vandalizam comida do mesmo modo que vandalizam plantas bonitas.” (ORGANIC CONNECTIONS, 2014)8. gardens and they looked lovely; so, who’s going to complain about that? 8 Do original: The police really loved it because citizens of the town started to talk to

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Ao mesmo tempo que todo esse trabalho de plantação acontecia, a equipe do Incredible Edible, também mantinha blogs, publicava artigos em jornais e divulgava o projeto como podiam. As escolas da cidade passaram a aderir ao projeto, e atualmente todas as sete escolas têm pelo menos uma horta, algumas têm até galinheiro (INCREDIBLE EDIBLE, 2014a). Segundo Pam Warhurst, “O professor responsável [pela escola de ensino médio] agora diz que comida local é a cultura da escola e que qualquer lição deve se relacionar ao cultivo de bons alimentos e seu potencial de conectar comunidades.” (ORGANIC CONNECTIONS, 2014)9. O terceiro e último foco do trabalho se relaciona com a ativação da economia local. Pam Warhurst (ORGANIC CONNECTIONS, 2014) explica que o contato cotidiano com os jardins de comida cultivados na cidade despertou em seus moradores a consciência quanto a origem dos produtos que consumiam e assim eles passaram a dar mais valor àqueles cultivados localmente. Segundo ela, “É tudo questão de pequenas doses de confiança econômica. Nós agora temos pequenas empresas locais fazendo queijo, pão ou cerveja que não existiam antes. […] Nós começamos pequeno […].” (ORGANIC CONNECTIONS, 2014)10. Além disso, com a exposição midiática do projeto e a onda de consciência a respeito da agricultura urbana e maneiras mais sustentáveis de vida na cidade, Todmorden passou a receber turistas de vários lugares do mundo. Assim, foi criada a chamada “Rota Verde” pela cidade que são passeios que se pode fazer visitando as hortas e outros pontos de interesse. Segundo Dobson, “[…] ao plantar em locais estratégicos e criar um elo de conexão entre eles, Incredible Edible Todmorden transformou o que poderia ser visto como explosões aleatórias de entusiasmo them. Food is a leveler. And what’s really interesting is that the police now say that in four years, vandalism in the middle of town has dropped and they’ve put it down to these propaganda gardens, because people don’t vandalize food in the same way that they might vandalize pretty plants. 9 Do original: The head teacher now says that local food is the culture of that school, and whatever the lesson being taught, it needs to reference good food being grown and the potential of food bringing communities together. 10 Do original: It’s all about little shoots of economic confidence. We now have small local businesses making cheese, bread or beer that weren’t there before. […] We start small […]. 21


Figura 5: Mapa da Rota Verde distribuído gratuitamente na estação de trem da cidade Fonte: INCREDIBLE EDIBLE, 2014b.

em uma forma de planejamento orgânico, colocando a cidade no mapa ao mapear a cidade.” (DOBSON, 2014)11.

No site do projeto (INCREDIBLE EDIBLE, 2014a), Pam Warhurst comenta que o maior desafio foi fazer com que as pessoas entendessem que tudo que estava sendo feito também os pertencia, que poderiam compartilhar e ser parte de tudo aquilo. Entretanto, segundo Fox (2012), uma vez elas se acostumaram com a ideia, o número de voluntários cresceu bastante, chegando a mais de 270 pessoas, além de quase metade das lojas locais afirmarem que o projeto teve um impacto positivo no seu faturamento. O caso de Todmorden é muito interessante principalmente ao considerar que a intenção dos idealizadores do projeto nunca foi paisagística. Buscavam melhorar sua cidade, modificar seus hábitos e torna-la mais sustentável, aproveitando seus espaços subutilizados e a comida como linguagem comum para engajar toda a comunidade nessa mudança. Entretanto, são essas pequenas mudanças, a plantação de jardins comestíveis com diversas espécies vegetais onde anteriormente existia grama ou a criação 11 Do original: By planting in strategic places and creating clear links between them, Incredible Edible Todmorden has turned what could be seen as random outbursts of enthusiasm into a form of organic planning, putting the town on the map by mapping the town. 22


de um pomar e jardim de ervas no hospital onde antes só existiam uns canteiros tímidos por exemplo, que paulatinamente foram responsáveis pela reconfiguração da atmosfera de cada um desses locais e, em conjunto, por uma modificação mais ampla da paisagem urbana de Todmorden de um modo geral. É claro que ao observar essa nova paisagem com um afastamento, como propõe Simmel (2009), desde uma grande distância, se a enquadrássemos em uma foto aérea ou do alto da montanha mais alta da região, não seria possível afirmar que houveram mudanças significativas. Canteiros, hortas, granjas e até mesmo pequenos apiários não aparecem ao se observar uma escala tão grande. Talvez uma ou outra estufa pudessem ser vistas depois do início do projeto, mas para aqueles que estão cotidianamente inseridos na cidade a mudança foi clara. Ao refletir sobre o projeto, Dobson (2014) afirma que as intervenções na cidade fizeram uma grande diferença e, inclusive, lugares que eram antes evitados se tornaram extraordinários. A partir disso, podemos pensar a paisagem sob duas óticas distintas. A paisagem com as características já citadas anteriormente poderia ser considerada uma paisagem macro, afastada, ampla, abrangente. Essa paisagem macro por sua vez, seria composta de pequenos recortes, de pedaços e imagens que seriam apreendidos todos os dias pelas pessoas que nela estão inseridos, paisagens micro. Ela teria um caráter mais cotidiano e local, situando-se na escala micro-local, assim definida por Milagres: A escala micro-local tem por referência aquela porção urbana que uma pessoa ou família percebe, no dia-a-dia, como o espaço onde mora. Suas dimensões podem variar, abrangendo, conforme o contexto, uma rua ou um quarteirão, parte de um bairro ou mesmo um bairro inteiro. Tal aproximação coloca em destaque, no lugar dos equipamentos pontuais de uso público no contexto municipal, todos os espaços públicos que se encontram, por assim dizer, entre a moradia e o parque, ou entre o “quintal de casa” e o grande parque municipal. (MILAGRES, 2011, p. 11)

O que ocorreu em Todmorden foi exatamente a modificação de diversas dessas micro-paisagens da cidade. Os “jardins de propaganda” requalificaram espaços antes invisíveis para a população e serviram de inspiração para mudanças mais profundas, tanto do espaço urbano quanto da mentalidade 23


da população local. Assim, considerando o conjunto das intervenções na cidade e a profundidade das consequências do projeto Incredible Edible, é possível afirmar que a paisagem de Todmorden mudou e a grande catalizadora dessas mudanças foi a Agricultura Urbana. Desse modo, é possível então considerar essas paisagens na micro escala, ou paisagens cotidianas, como um importante instrumento para o planejamento de intervenções sobre a cidade. Apesar de apresentarem uma menor escala, as paisagens micro tem uma influência maior na vida das pessoas por estarem inseridas diretamente em seu dia-a-dia e, muitas vezes, envolverem questões de afetividade que se perdem ao se encarar a paisagem urbana de um modo geral. Além disso, por apresentarem uma menor dimensão são de mais fácil intervenção. Como visto no exemplo de Todmorden, intervenções na paisagem cotidiana, quando bem articuladas, têm o poder de modificar a dinâmica urbana local. Dobson cita o ex-prefeito de Curitiba, Jaime Lenner, ao comentar esse tipo de ação, “[…] é ‘acupuntura urbana’ - intervenções pequenas mais cuidadosamente planejadas que fazem uma grande diferença” (DOBSON, 2014). Assim, ações realizadas em locais estratégicos podem ter uma potência transformadora que extrapola sua escala, além de atingir de forma muito mais pessoal o público ao qual se dirigem. Sob essa ótica das intervenções de caráter local em paisagens cotidianas aliadas à praticas de agricultura urbana, a próxima parte deste trabalho visa apresentar e analisar criticamente quatro exemplos desse tipo e seu impacto, como forma de compreender melhor a influência desse tipo de trabalho, especialmente da Agricultura Urbana, nas comunidades nas quais se inserem.

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Parte 02 Possibilidades paisagĂ­sticas da Agricultura Urbana


As práticas de Agricultura Urbana, realizadas pelas mais diversas razões, são cada vez mais vistas ao redor do mundo. A partir de um levantamento que considerou apenas aquelas das regiões mais desenvolvidas, Cities (2013) pode listar mais de 35 exemplos distintos que vão desde o Canadá até a Austrália. As paisagens geradas por meio dessas intervenções são muitas vezes negligenciadas perto das várias outras contribuições da prática para a melhora da vida comunitária. Entretanto, além desses benefícios, a simples ação de plantar onde antes não havia nada especial, já é em si uma ação paisagística e a melhora da ambiência e da paisagem desses locais pode ser vista em praticamente todos os casos. Assim, com base nas definições e teorias discutidas anteriormente, serão analisados criticamente quatro casos de modo a ilustrar as distintas possibilidades da Agricultura Urbana como instrumento de melhoria da paisagem cotidiana e potencializadora de usos do espaço. Apesar de nenhum ter se disseminado tão completamente pelas cidades nas quais ocorreram como no caso anterior de Todmorden - nem era a intenção de seus autores - todos possuem notáveis características que contribuem para a discussão em curso. As ações estarão divididas de acordo com seus idealizadores, portanto inicialmente haverá uma breve introdução de tais atores, em seguida a apresentação da intervenção em si e por fim um comentário sobre cada uma delas.

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Wayward Plants De acordo com sua página na internet, o coletivo Wayward Plants se autodenomina um instituto paisagístico, “um projeto de trocas sociais e desejo botânico” (WAYWARD PLANTS, 200-)12. Fundado no ano de 2006 em Londres pela americana Heather Ring, mestre em arquitetura paisagística pela Escola de Design da Universidade da Pensilvânia, é composto por uma equipe de designers, arquitetos, paisagistas, cientistas, carpinteiros e diversos colaboradores em um ambiente multidisciplinar. O grupo busca sempre trabalhar envolvido com as comunidades nas quais realizam as intervenções, sendo duas de suas principais práticas os chamados “ambientes narrativos” (narratives environments) e a “troca de plantas” (plant exchanges). A primeira é definida no site como uma abordagem única da paisagem através da criação de ambientes que expressam estórias que conectam as pessoas com a natureza, configurando locais vibrantes que são ao mesmo tempo produtivos, imaginativos e cheios de significados. Já a segunda prática, apesar de consistir em uma troca de plantas, é tratada mais como um processo de adoção das mesmas, que inclui até um formulário de adoção para cada vegetal como pode ser visto na figura 05. Eles afirmam ainda que através dessa prática podem colecionar estórias das comunidades e de seus jardins e que enquanto ainda não possuem espaço para uma “creche de plantas” para receberem e cuidarem das plantas descartadas, realizam apenas a articulação dessas trocas nos jardins temporários que constroem. Dentre as várias práticas do Wayward Plants, vale destacar duas em especial o Union Street Urban Orchard e o Queen’s Walk Window Garden. Ambas são extremamente impactantes para a paisagem local, modificando-as em caráter temporário e servindo para estimular a imaginação daqueles que utilizam ou mesmo apenas circulam pelo locais onde foram executadas. Além disso, apresentam um ativo envolvimento da comunidade local seja na construção dos jardins ou na manutenção e utilização dos mesmos. O Union Street Urban Orchard, foi o primeiros dos dois projetos a ser realizado, durante o London Festival of Architecture em 2010. Traduz-se como Pomar Urbano da Rua Union e teve quatro meses de duração, começando no início do Festival de Arquitetura, dia 19 de junho, e terminando no 12 Do original: A project of social exchange and botanical desire.


Figura 6: Formulário de adoção de plantas do Wayward Plants. Fonte: WAYWARD PLANTS, 200-.

outono do hemisfério norte, no dia 19 de setembro. Foi construído na rua Union, na região de Bankside à beira do rio Tâmisa e, de acordo com sua página oficial, [...] foi construído com a ajuda do Crédito para Espaços Abertos do Bankside e um exercito de voluntários, o jardim regenerou um espaço sem uso no Bankside e criou um lugar para trocas entre residentes locais e visitantes do Festival. A peça central para o design do pomar era a troca de plantas: as pessoas contribuíram com centenas de plantas de suas casa para criar um ambiente sempre em evolução que foi realmente construído pela comunidade. (THE UNION STREET URBAN ORCHARD, 2010)13.

Durante os meses em que esteve aberto, foram realizados ali uma série de workshops e atividades. No local também era possível ver o LivinARK, um casulo de zero emissão de carbono que foi habitado durante o período do projeto para exibir formas sustentáveis de vida, o The Nest, um pavilhão criado pelo Instituto Finlandês, o Identikit, um local para crianças pinta13 Do original: […] built with the help of Bankside Open Spaces Trust and an array of other helpful volunteers the garden regenerated a disused site in Bankside and created a place for exchange between local residents and visitors to the Festival. Central to the design of the orchard was a plant exchange: people contributed hundreds of plants from their homes to creating an ever-evolving garden that was truly built by the community.

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Figura 7: Vista do Union Street Urban Orchard. Fonte: THE UNION STREET URBAN ORCHARD, 2010.

rem e construírem seus próprios brinquedos, de Thomas Kendall e Tamsin Hanke e a mesa de ping-pong criada em uma caçamba de lixo pelo artista Oliver Bishop-Young que pode ser vista na Figura 8. Em setembro, com o fim do projeto e desmonte do pomar, as árvores foram doadas para propriedades e outros jardins comunitários da região, enquanto as plantas trazidas pelos moradores da região durante toda a duração do projeto foram levadas para suas novas casas. Quando fala sobre o processo de criação e execução do pomar, Heather Ring (2011) afirma que, a característica essencial que ela queria trazer para projeto era a criação de um jardim público de plantas cultivadas nos lares dos moradores locais, um jardim construído através da participação coletiva, curiosidade e criatividade de todos aqueles que o iriam aproveitar. [...] criar um jardim temporário no qual cada planta tivesse uma história única; narrativas botânicas ligadas a comunidades de pessoas que vieram para construir algo juntas. O Union Street Urban Orchard seria como uma casa de passagem para plantas, tornando o processo de trocas uma ocasião social. (RING, 2011)14. 14 Do original: [...] to create a temporary garden in which every plant has a unique story; botanical narratives linked to communities of people who have come build something

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Figura 8: Mesa de pingpong de Oliver Bishop-Young sendo usada no Union Street Urban Orchard. Fonte: DEZEEN, 2010.

O desenho da intervenção, de acordo com a paisagista, apresentava um desafio único que era criar a infraestrutura de um jardim sempre em evolução. Além disso, se fazia necessária uma arquitetura mais imaginativa para ocupar o espaço e transforma-lo em algo mais que um pomar, torna-lo um espaço social, um local de eventos e um jardim comunitário. Outras questões recorrentes no início do processo de planejamento eram quanto ao patrocínio e à mão de obra para executar os planos, questões estas que exerceram grande influência na escolha de materiais reciclados, pallets e pneus, que compuseram o pomar. Assim, o pomar foi projetado para ser um espaço de exploração, com pontos surpreendentes para serem descobertos em cada esquina. A plataforma central continha a Estação de Troca de Plantas, para onde as pessoas trariam as plantas de seus jardins e assinalariam outras que teriam interesse em levar para casa ao final do projeto e a Estação de Mapeamento, onde as árvores frutíferas de espaços públicos de Londres poderiam ser indicadas. Espalhados ao longo do espaço haviam diversas cabanas adaptadas que serviam a diversos usos, como a cabana do chá, a cabana lounge, uma cabana especial para fazer cidra, além de caixas de jornais, da estufa e da fonte together. The Union Street Urban Orchard would be a halfway home for wayward plants, turning the process of exchange into a social occasion.

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Figura 9: Voluntário molhando as plantas. Fonte: THE UNION STREET URBAN ORCHARD, 2010.

de peixes. Ring (2011)15 afirma que a imaginação dos usuários transbordou por todo o local e novas ideias e espaços foram criados, como os exemplos que cita do gramado que virou campo de criket, da areia que funcionou como quadra de bocha, entre outros. Ainda havia o arco da ponte férrea que foi aberto e servia como cinema, palco para performances e abrigo para quando chovia. Incorporado ao design havia um processo que facilitava a colaboração e a experimentação. O projeto era uma estrutura aberta e o desenho acomodava novas ideias e inspirações, materiais reciclados e a inesperada e maravilhosa habilidade de mais de 100 voluntários. (RING, 2011)16.

O segundo projeto, o Queen’s Walk Window Garden, foi realizado como parte do Southbank Centre’s Festival of Neighbourhood e ficou aberto à 15 Do original: Imagination overflowed throughout the site and new ideas were formed — the turf we laid down acted as a croquet pitch, [...]. The railway arch was opened up and designed to be a cinema, a stage for performances and a gathering space when it rained. 16 Do original: Embedded in the design was a process that facilitated collaboration and experimentation. The plan was an open framework, and the design accommodated new ideas and inspirations, new supplies of found and recycled materials and the unexpected and wonderful skills of more than 100 volunteers.

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Figura 10: Casal fazendo picnic. Fonte: DEZEEN, 2010.

visitação do dia 31 de maio a 8 de setembro de 2013. Ocorreu às margens do rio Tâmisa, na Queen’s Walk e traduzido literalmente seria o Jardim de Janela do Passeio da Rainha. Este projeto foi todo construído e cuidado por pessoas da vizinhança que participaram de workshops de carpintaria, jardinagem, construção de jardineiras de janelas nos quais poderiam aprender e compartilhar suas experiências, além de voluntários de diversos pontos da cidade que se juntaram para montar as estruturas que podem ser vistas na Figura 11. O princípio norteador do projeto, como pode ser observado no site do Wayward Plants, é a reprodução de uma lógica de loteamentos, reutilizando e recuperando janelas que de outro modo seriam descartadas. A ideia é que esse jardim construído em estruturas que remetem a residências, no caso pequenas cabanas de madeira, funcionaria como uma microcidade na qual as pessoas construiriam relações de vizinhança ao longo da promenade do rio. Outro aspecto importante do projeto é a mudança de ambiência observada entre o dia e a noite. Como as cabanas tinham hora para fechar, durante o dia era possível observar e passear em meio às estruturas que se estendiam por 80 metros ao longo do rio, demonstrando as múltiplas escalas do

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Figura 11: Abrigo feito de janelas recicladas. Fonte: WAYWARD PLANTS, 200-.

cultivo na cidade e, durante a noite, a iluminação das cabanas criava uma ambiência mais intimista e acolhedora. Os lotes eram distribuídos por família de vegetais e cuidados pelos moradores locais, comerciantes e organizações comunitárias. Além disso, as plantas eram regadas usando um sistema inovador e sustentável de bomba de pedal a qual convidava a comunidade a bombear e filtrar a água do Tâmisa na maré alta. (WAYWARD PLANTS, 200-)17.

Ao final do festival, de acordo com site do coletivo, as centenas de jardineiras construídas pela comunidade e plantadas por crianças em idade escolar foram distribuídas em um grande evento de adoção de plantas. Pode-se observar que, nos dois casos, os projetos foram extremamente cuidadosos com a estética da intervenção. O primeiro requalificou, mesmo que por apenas alguns meses, um espaço ocioso e abandonado em uma área nobre da cidade de Londres, transformando-o por completo e demonstrando para a comunidade local suas diversas possibilidades. O segundo 17 The allotments have been arranged by vegetable family and are tended to by local residents, businesses and community organisations. Furthermore, the allotments are watered using an innovative and sustainable treadle pump system which invites the community to pump and filter water from the Thames at high-tide. 34


Figura 12: Orla do rio Tâmisa com a intervenção. Fonte: WAYWARD PLANTS, 200-.

se apropriou de um espaço icônico para a cidade, o qual por si só já possui inúmeras qualidades paisagísticas, que é a promenade do rio e transformou temporariamente da maneira como a comunidade o apreendia. O Union Street Urban Orchard, teve como grande mérito sua abertura de uso e a conexão que buscou realizar em todos os momentos com a comunidade local. Apesar de o processo projetual e a maior parte da execução terem sido responsabilidade do coletivo Wayward Plants, as várias apropriações que foram realizadas pelos usuários realmente transformaram e dinamizaram o espaço muito além do que poderia ter sido determinado a princípio. Além disso, o processo das doações e adoções de plantas e a ativa programação do espaço contribuíram intensamente para torná-lo um lugar memorável. O Qween’s Walk Window Garden, por sua vez, apresentou uma participação comunitária muito mais intensa, em especial na execução do projeto, principalmente porque se tratou de uma atividade relativa a um festival de vizinhança. Neste caso, a escolha do local foi se suma importância e o deslocamento e estranhamento que aquelas estruturas de cabana causaram em um local tão icônico como é a promenade do rio Tâmisa potencializaram ainda mais a força da intervenção. 35


Desse modo, ambas intervenções contribuíram, mesmo que por um breve período de tempo, para a modificação da paisagem cotidiana desses locais. Apesar apresentarem uma escala reduzida em relação à cidade como um todo, ainda assim explicitaram outras possibilidades para a Agricultura Urbana além de estimularem novos usos e trocas que a princípio não ocorreriam ali. Ao tratar da Agricultura Urbana de modo mais descontraído e participativo, o coletivo Wayward Plants contribuiu para desmistificar um pouco o ato de plantar vegetais na cidade e, ao fazê-lo em ambientes tão bem pensados e esteticamente estimulantes contribuiu para se pensar novos tipos de cidade, que não sejam apenas funcionais e eficientes, mas sustentáveis e bonitas.

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Ines Linke e Louise Ganz De acordo com seu blog na internet, This Land is Your Land (200-), Ines Linke é artista visual, cenógrafa, professora da Universidade de São João del Rei em Minas Gerais e doutora pela Escola de Belas Artes da UFMG. Louise Ganz é artista visual, arquiteta, professora da Escola Guignard da UEMG e doutoranda pela Escola de Belas Artes da UFMG. Em 2005 criou, junto com Breno Silva, o projeto Lotes Vagos que, segundo o site do projeto, foi pensado “como uma ação coletiva de artistas e arquitetos, para transformar lotes de propriedade privada em espaços públicos temporários.” (LOTEVAGO, 2008). Juntas, desde dezembro de 2011, foram responsáveis pelo projeto Museu Campestre que ficou aberto para visitação de 20 de julho a 30 de setembro de 2012, parte da exposição Outros Lugares sob curadoria de Renata Marquez no Museu de Arte da Pampulha. Segundo Marquez (2012a), a exposição propõe uma reflexão atualizada sobre o que ela chama de “vasto salão de exposições da cidade”, questionando a maneira como as práticas artísticas são produzidas e reproduzidas na cidade de hoje, quais as novas dinâmicas urbanas em jogo e quais trocas são possíveis ou desejáveis entre o museu e a cidade. Justamente no intuito de provocar uma espacialidade em trânsito é que os dois trabalhos principais da exposição – em torno dos quais orbitam as demais obras em interlocução – foram produzidos, pelo Museu, em espaços fora dele. Tais espaços exteriores não são outros lugares institucionais mas, em vez disso, espaços banais, aparentemente pontos sem interesse no território, passíveis de serem incorporados à produção massiva do espaço genérico da cidade [...]. MARQUEZ, 2012a, p. 08-09).

Nesse contexto, ainda de acordo com Marquez (2012a), o trabalho Museu Campestre, ao invés de contribuir para a proliferação das características genéricas e mercantilistas dos lugares, constrói especificidades complexas e efêmeras produzidas de modo coletivo com todos os agentes e colaboradores envolvidos no processo. Assim, ela afirma que: Os trabalhos refletem sobre as dinâmicas de ocupação e desocupação do território e do tempo. A experiência do espaço-tempo se dá a partir de uma reparametrização dos 37


Figura 13: Primeiros canteiros plantados no Museu Campestre. Fonte: THIS LAND IS YOUR LAND, 200-.

valores. Se Museu Campestre ocupa o lote vago desocupando-o (com plantações e não edificações), torna o improdutivo (terreno baldio) em produtivo (hortaliças, frutas...). (MARQUEZ, 2012b, p. 1).

As próprias autoras do trabalho comentam (MARQUEZ, 2012b) que a palavra-chave desde o início do trabalho era valor. Durante toda a duração do Museu Campestre objetivam revelar o valor do tempo “despendido nos dias de artesania, permanência no terreno e do prazer de plantar.” (MARQUEZ, 2012b, p. 1), propondo assim uma revisão da atual dinâmica de ocupação e da maneira como os espaços de viver e produzir são construídos. Nesse sentido, o trabalho não se trata de retomar um passado idílico perdido no campo, e sim produzir pausas e incentivar discussões sobre os modos de vida e de produção do espaço urbano. O trabalho em si constituiu-se da implantação de uma horta urbana no terreno de 3.000m² em frente ao Museu de Arte da Pampulha que está aguardando há bastante tempo a construção de um anexo para o museu. Com a duração total de um ano, de dezembro de 2011 a dezembro de 2012, o processo de constituição desta horta foi iniciado a princípio pelas próprias artistas, que gradativamente foram conseguindo apoio de diversos órgãos da Prefeitura de Belo Horizonte e do biólogo Márcio Gibram e de al-

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Figura 14: Jardineiros do Vila Viva cuidando da horta. Fonte: THIS LAND IS YOUR LAND, 200-.

guns moradores das favelas vila São Tomás e vila Aeroporto, que na época haviam participado de programas de capacitação de jardineiros promovido pelo Programa Vila Viva. Segundo Márcio Gibram (GIBRAM, 2012), como a contratação do profissional para trabalhar na horta faria parte da formação dos alunos da Escola de Jardinagem do Vila Viva, o processo que seria apenas executivo tornou-se também educativo, com o jardineiro contratado atuando simultaneamente como professor de outros cinco alunos da turma de moradores da vila. Gibram ainda afirma que: Com canteiros, hortas, árvores, o lote foi sendo preenchido e ocupado por pessoas. Visitantes da exposição, turistas da Pampulha, moradores, todos curiosos em saber o que seria aquele lote. Oficinas com moradores da vila e da cidade foram feitas pelos jardineiros. Ensinaram a fazer mudas e jardins, dividindo o lote em canteiros, mostrando detalhes e plantas, as verduras crescendo, transformando o local abandonado pela cidade num local de convívio e aprendizado. (GIBRAM, 2012, p. 59).

Além desse trabalho dos jardineiros, Marquez (2012b) enumera que o Museu Campestre oferecia à comunidade e aos passantes uma programação aberta de oficinas, passeios, descanso, lazer, refeições entre outros, sendo um espaço público que tinha suas portas sempre abertas durante o horário

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Figura 15: Cozinha existente no local. Fonte: THIS LAND IS YOUR LAND, 200-.

de funcionamento do museu. Inclusive foi construído no espaço um fogão a lenha e uma espécie de cozinha comunitária, na qual as pessoas poderiam preparar seus próprios alimentos e comer ali mesmo. Assim, a autora afirma sobre os potenciais usuários do espaço “Se eles escolhem participar, reocupam o espaço e o tempo, deixando o dia objetivo para aderir ao projeto artístico que lhes é oferecido.” (MARQUEZ, 2012b, p. 2). O modo como esta horta e, inclusive alguns dos demais trabalhos que compuseram a exposição Outros Lugares, se relaciona com as comunidades de baixa renda da região, engajando seus moradores na produção desse espaço quase utópico e se aliando a diversas esferas do poder público para articular a execução de suas propostas é muito interessante. Logo, o Museu Campestre, com sua proposta de questionar valores e dinâmicas de uso do espaço, além de expandir e modificar a relação do museu com a cidade, foi uma experiência bastante exitosa. Quanto à sua abertura para os diversos usos propostos, de acordo com Marquez (2013), o espaço também cumpriu o que se propôs. Segundo ela, foram ministradas aulas no local, reuniões dos programas educativos, lanches, a festa de aniversário de uma das artistas, refeições eram preparadas e compartilhadas com os passantes: “Os funcionários do Museu também faziam refeições lá. Sei de uma vizinha que passava regularmente 40


e colhia o almoço.” (MARQUEZ, 2013). Assim, com toda uma programação cultural para dinamizar os usos, além do próprio contato com a horta, o trabalho conseguiu atrair um grande número e uma grande diversidade de pessoas, transmitindo assim sua mensagem de um modo muito democrático. Este trabalho, por ter sido realizado na orla da Lagoa da Pampulha, um local extremamente valorizado de Belo Horizonte além de ser o principal cartão postal da cidade, tem um potencial paisagístico imenso. À toda a intenção crítica das autoras e da curadora da obra, pode-se acrescentar um questionamento ao trato predominante da paisagem como objeto de contemplação e ócio. Ao tornar o lote produtivo, substituindo a grama descuidada por belos canteiros de hortaliças, sua imagem na paisagem da lagoa é consideravelmente modificada, acrescenta-se a essa mudança estética toda a diversidade de uso e usuários além da programação dinâmica do museu e tem-se uma paisagem totalmente nova e inesperada.

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Fritz Haeg De acordo com sua página na internet (HAEG, 2010), Fritz Haeg é arquiteto formado pelo Istituto Universitario di Architettura di Venezia e pela Carnegie Mellon University, além de artista. Seu trabalho inclui jardins, performances, design, instalações e projetos colaborativos, aliando projetos típicos arquitetônicos com uma prática mais questionadora do uso dos espaços urbanos. Atualmente realiza diversas práticas artísticas ao redor dos Estados Unidos, entre elas o projeto Wildflowering L.A., Domestic Integrities, Animal Estates e o Edible Estates, que será apresentado a seguir. Edible Estates, que traduzido literalmente, significa propriedade comestível ou jardim comestível é definido como um ataque ao gramado dianteiro das típicas casas de subúrbios americanos e “propõe a substituição do gramado frontal por uma paisagem comestível altamente produtiva.” (HAEG, 2013a, p. 36). O gramado frontal consolidado como está no subconsciente coletivo dos Estados Unidos se encontra intimamente ligado à ideia do sonho americano e da suburbanização do país, sendo um produto do pós guerra, do otimismo e da abundância de produtos e recursos que marcou as décadas de 1940 e 50 naquele país. Curiosamente, como afirma Haeg (2013a), no período anterior, o das grandes guerras mundiais, a produção agropecuária dos Estados Unidos passava por dificuldades o que levou o governo federal a estimular os americanos a cultivarem sua comida em suas propriedades, configurando os jardins de guerra, já citados anteriormente. Assim, “no fim da Segunda Guerra Mundial, 80% das donas de casa americanas estavam cultivando alguns dos seus próprios alimentos” (HAEG, 2013a, p. 34), entretanto, pouco meses após o fim da guerra essa atividade diminuiu drasticamente, dando logo lugar à dispendiosa monocultura de grama. O gramado frontal americano é agora quase inteiramente simbólico. O drama e o espetáculo da aristocracia inglesa degeneraram-se em enfeites brandos para a nossa expansão suburbana sem fim e para a nossa alienação. A monocultura de uma só espécie que cobre nossos bairros celebra a homogeneidade puritana e uma conformidade estúpida. [...] O gramado hoje se transformou numa superfície padrão para nosso espaço privado defensivo. (HAEG, 2013a, p.35-36) 42


Figura 16: Antes e depois do jardim comestível em Salina. Fonte: HAEG, 2005.

Além de toda essa simbologia, um dos grandes problemas dos gramados é o quanto são dispendiosos e poluidores para serem mantidos. Haeg (2013a) afirma que os cortadores de grama motorizados emitem vários gases do efeito estufa, os pesticidas e herbicidas usados para erradicar plantas invasoras, às quais essa monocultura esta frequentemente sujeita, escorrem para os lençóis freáticos graças ao uso de mangueiras e aspersores e poluem as águas. Por fim, a própria manutenção da grama sempre verdejante demanda grandes quantidades de água, ou a absurda tinta spray verde para gramados. O arquiteto-artista também questiona a relação impessoal das pessoas com seus alimentos. Ele afirma (2013a) que a comida atualmente é cultivada por sua aparência, uniformidade e facilidade de transporte, não pelo sabor ou por suas propriedades nutritivas. Além disso, a quantidade de agrotóxicos a que estão expostos os cultivos para tentar controlar as pragas de um ambiente desequilibrado contribui para a intoxicação tanto daqueles que vão se alimentar desses produtos quanto da própria terra. Assim, Haeg (2013a) questiona se o distanciamento entre as pessoas e a produção dos alimentos que consomem não seria uma das causas da atitude displicente da humanidade acerca do planeta Terra. De acordo com Haeg, a proposta do projeto Edible Estates é reconectar as pessoas com as estações do ano, com os ciclos orgânicos da terra e com os próprios vizinhos, substituindo o caráter banal e uniforme da grama pela abundância caótica da diversidade. 43


Figura 17: Antes e depois do jardim comestível em Baltimore. Fonte: HAEG, 2005.

Para mim, esses jardins existem entre dois pontos simultâneos e igualmente válidos de ruina e esperança. Os projetos pelos quais eu me interesso mais são aqueles que existem nessa fantástica e ideal noção de como seria a cidade que eu gostaria de viver – criando pequenos pedaços dela e colocando-os nos locais menos prováveis da cidade para ver o contraste entre a cidade que desejamos e a cidade que de fato possuímos. Esse projeto existe como um projeto de arte que tem uma agenda ligeiramente diferente de um trabalho puramente ativista ou de conscientização. Ele existe para explorar e separar diferentes realidades culturais, sociais e ambientais que só é possível através da arte. (SCHMELZER, 2012)18.

O projeto, que começou em 2005 e terminou em 2013, foi responsável pela elaboração de 15 jardins comestíveis em diversas partes do mundo. O primeiro foi plantado em Salinas, no estado do Kansas, centro geográfico dos Estados Unidos, o último em Twin Cities, Minessota e entre eles foram plantados outros jardins em locais tão diversos como Londres, Manhattan, Concecticut, Roma, Istambul, Budapeste, Tel Aviv e Dinamarca (Figura 18). Cada local apresentava suas próprias características e a dinâmica de pro18 Do original: For me, the garden exists between those two simultaneous, equally valid points of doom and hope. The projects I’m most interested in are the ones that exist in this fantastic, ideal notion of what the city I want to live in looks like—creating some small piece of that and putting it into the least likely part of the city to see that contrast between the city we want and the city we have. This project exists as an art project that has a slightly different agenda than a purely activist project or a purely advocacy-oriented project. It exists to explore and pick apart different cultural, social, and environmental realities that are only possible through art. 44


Figura 18: Antes e depois do jardim comestível na Dinamarca. Fonte: HAEG, 2005.

dução e o financiamento dos jardins variava um pouco, apesar da maioria ter sido financiada por museus ou centros de arte. Em geral, o processo começava com uma chamada aberta para que os interessados se candidatassem seguido de um processo seletivo feito por Haeg no qual ele analisava diversos fatores antes de eleger uma família. Como afirma Haeg em uma entrevista para o site do centro de arte Walker de Minessota (SCHMELZER, 2012)19, a caraterística básica recorrente em todos os projetos é sempre o engajamento de uma família (ou em alguns casos um grupo de pessoas), disposta a embarcar na empreitada de um jardim comestível. Eu trabalho em parceria com uma família em cada cidade buscando pelo local mais estratégico para estabelecer o jardim, no qual a família possa muito visivelmente, muito publicamente cultivar sua própria comida. Então o realizamos juntos. O plantamos ao longo de um feriado prolongado e em seguida vou embora. É o jardim deles e eles assumem e fazem as escolhas. (SCHMELZER, 2012)20.

Quanto ao desenho dos jardins, em geral há um zoneamento dos tipos de plantas a serem cultivados, que varia de acordo com a dimensão do jardim e sua localização. Se observa muito frequentemente que, além do espaço 19 Do original: The artist sees the project, which he’ll undertake in a highly visible location in collaboration with a willing family, as a wildly hopeful, if possibly “ridiculous” endeavor. 20 Do original: So I work in partnership with a family in each city looking for the most strategic place to establish a garden where they can very visibly, very publicly grow their own food. Then we do it together. We plant it over a big weekend, and then I’m gone. It’s their garden and they take over and make decisions.

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Figura 19: Antes e depois do jardim comestível em Los Angeles. Fonte: HAEG, 2005.

para os vegetais, Haeg procura colocar espaços circulares com troncos ou bancos no meio dos jardins, de modo a estimular o encontro e as trocas entre as pessoas da comunidade. O primeiro jardim, plantado em Salina como se pode ver anteriormente na Figura 16, na casa de Stan e Pritti Cox funcionou como um protótipo do projeto para a região. Patrocinado pelo Centro de Arte de Salina, de acordo com Haeg (2005) o jardim comestível foi projetado para responder às características únicas do local e as necessidades e desejos dos donos que ousaram desafiar o vasto contínuo de grama da sua vizinhança. É interessante observar a opinião de Michael Foti em cujo gramado em Los Angeles, Califórnia, (Figura 19) foi realizada a segunda edição do projeto, que apresenta uma abordagem um pouco menos radical de toda a situação. Em uma de nossas primeiras conversas, eu falei para ele [Haeg] que não estava interessado em me indispor com as pessoas que escolhiam ter gramados. Para mim, a mensagem não pode ser que os gramados são maus e se você tem um você também mau. Eu acho que os gramados são válidos, mas realmente acredito que existam outras possibilidades. Mas não acho que isso tenha ocorrido a muitas pessoas. Algumas nem mesmo acreditam que outras opções existam. Em alguns lugares o fascismo das associações de moradores proíbe esse tipo de coisa. Não quero viver nesse tipo de mundo. (FOTI, 2010)21. 21 Do original: In one of our first conversations together, I told him that I wasn’t interested in alienating people who choose to have lawns. For me, the message cannot be that lawns are bad, and if you have one, you’re bad too. I think lawns are valid. I do

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Figura 20: Moradores utilizando o jardim em Londres. Fonte: HAEG, 2005.

A quarta edição que ocorreu em Londres, patrocinada pelo museu TATE Modern e organizada pelo Bankside Open Space Trust (BOST) apresentou um caráter diferente das praticadas nos Estados Unidos, uma vez que o local, um gramado pertencente a um edifício de apartamentos populares, já havia sido definido antes dos moradores se engajarem no processo. As plantas foram trazidas de jardins comunitários da região e pôsteres convidando as pessoas para virem conhecer a Fritz, ao curador de Global Cities e a mim foram expostos. Ninguém apareceu. Continuamos conversando com Denise [a única moradora que se engajou prontamente com o projeto], ela continuou conversando com os outros moradores e aos poucos eles começaram a se aproximar de nós com perguntas. Eles queriam saber quem cuidaria do jardim e se cortaríamos as cinco árvores que já existiam lá. Haviam muitas questões. Foi definida a data de criação do jardim. [...] Os moradores mandaram seus filhos para ajudar. Somente Denise e uma outra adulta da vizinhança, Sara Burrowes, além dos outros voluntários da BOST, aparecerem para ajudar. O funcionário que fazia a manutenção do prédio zombou que o jardim “não duraria um fim de semana” ao nos entregar a chave do armário think that there are other possibilities though. I don’t think that thought has occurred to many people. Some people even believe that the option doesn’t exist. In some places homeowner association fascism actually does prevent it. I don’t want to live in that kind of world.

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de água. (WRIGHT, 2010)22.

Apesar dessa resistência inicial, aos poucos os residentes do prédio foram se afeiçoando ao jardim e, principalmente as crianças, passaram a ajudar e se engajar mais na sua manutenção e cuidado. Ainda assim, como relatado por Wright (2010) , é um desafio para Denise, Sara e outras pessoas da BOST estar sempre conscientizando aos moradores do prédio que o jardim também os pertence. Esse tipo de intervenção, observada no jardim número quatro, torna-se um pouco questionável e vai de encontro inclusive com uma das premissas do projeto de Haeg, que é o engajamento desde o início daqueles que o compõem, uma vez que se trata de uma decisão tomada totalmente à revelia da vontade dos moradores do conjunto habitacional. Esse projeto, que demanda muito cuidado e engajamento da comunidade na qual está inserido para ter sucesso não surgiu de uma vontade latente que já existia ali, mas sim de um trabalho de arte que necessitava de um local e poderia ser realizado em qualquer outro ponto de Londres. Apesar de ser um trabalho que pode trazer diversos benefícios e que de fato após um tempo começou a ser apreciado e cuidado pela comunidade, estimulando inclusive um maior relacionamento entre os moradores do edifício, fica a questão de até que ponto é válido introduzir esse tipo de projeto em uma comunidade tão apática e, algumas vezes, até hostil ao projeto. Wright conclui seu relato com o que talvez seja uma possível resposta para esta questão. Recentemente, enquanto Denise e eu estávamos cuidando do jardim, fomos abordadas por um dos residentes. Ele veio e nos disse “Liguei para minha filha em Gana, meu país, e pedi para ela mandar sementes para eu plantar no jardim”. Ele é 22 Do original: Plants were bought from local community gardens and a poster was displayed inviting people to come and meet Fritz, the curators of Global Cities, and me. No one turned up. We kept talking to Denise, she kept talking to other residents, and slowly they started to approach us with their questions. They wanted to know who would look after the garden, and if we would be cutting down the five existing trees. There were so many questions. A date was set to create the garden. It needed to be done in three days. The residents sent their children down to help. Only Denise and one other adult from the neighborhood, Sara Burrowes, turned up, along with volunteers from other BOST projects. The housing support officer scoffed that the garden “wouldn’t last the weekend,” as he handed over a key to a water-supply cupboard. 48


Figura 21: Antes e depois do jardim comestível em Twin Cities. Fonte: HAEG, 2005.

um senhor aposentado com cerca de 65 anos. Há dois anos atrás ele pediu por um estacionamento de veículos ao invés do jardim comunitário. Isso diz suficiente. (WRIGHT, 2010)23.

A última edição ocorreu em maio de 2013 em Twin Cities, no estado de Minessota, patrocinada pelo Centro de Arte Walker, na casa de uma típica família americana. Os requisitos da chamada aberta de Haeg (2013b), como podem ser vistos em seu site, abrangiam desde um comprometimento por parte dos candidatos a manterem o jardim funcionando após o primeiro semestre (que é subsidiado pelo centro de arte) até demandas mais específicas, como a vizinhança ter predomínio de gramados, a casa ter portas e janelas abertas para o jardim, com especial interesse por duplex ou complexos de diversas residências que compartilhem o gramado. Entre os donos do terreno também deveria haver pelo menos um jardineiro ávido, entusiasmado com o projeto e consciente do tanto de trabalho que envolveria manter o jardim, além de se comprometerem em continuar o jardim enquanto estiverem vivendo na casa e registra-lo em um blog. O terreno deveria ser plano, sem pesticidas, com boa exposição solar, ter algumas grandes árvores e ser bem visível da rua. Idealmente deveria ser rodeado de outros gramados para que o contraste da intervenção fosse mais dramático. 23 Do original: Recently while Denise and I were talking in the garden, we were approached by one of the residents. He came up to us and said, “I’ve called my daughter in Ghana, my country, and asked her to send seeds for me to plant in the garden.” He is a retired gentleman in his mid-sixties. Two years ago he asked for a car park instead of a community garden. Enough said.

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Após algum tempo, foi escolhida a família Schoenherr, composta por quatro pessoas, que cumpria todos os requisitos da chamada, além de viver em uma comunidade bastante acolhedora e integrada que já apresentava uma pré-disposição para receber um trabalho nesses moldes. Assim, o último jardim comestível foi construído com a ajuda de mais de 75 pessoas entre voluntários do centro de arte, da vizinhança e amigos e familiares dos Schoenherr, como pode ser visto na Figura 21. O mutirão, que plantou cerca de 130 espécies diferentes de vegetais, terminou com um jantar coletivo de pães e pizzas no fogão a lenha que a família já possuía no espaço e foi agregado ao projeto e numa agradável festa no novo jardim. Além de todo esse poder crítico, o trabalho de Haeg, explora intensamente o contraste entre a paisagem monótona existente de longas extensões de grama e as infinitas possibilidades da Agricultura Urbana, que pode se configurar em canteiros geométricos ou, como ele mesmo afirma acima, em uma abundância caótica da diversidade. Isso leva a uma reflexão sobre a própria estética da grama e do previsível em contraste com as plantações de alimentos, os ciclos naturais e o imprevisível e aparentemente desordenado que pode ser a natureza em si. Esse projeto tem sua grande força ao mostrar às comunidades, que inclusive extrapolam a esfera norteamericana, como pode ser visto na quantidade de cidades que receberam os jardins, a possibilidade e a força da Agricultura Urbana como composição paisagística. No caso dos jardins de Haeg, as próprias plantas são o ponto focal, contrastando com os projetos do Wayward Plants que as utilizam para compor os espaços, ou no caso da Pampulha, em que elas são utilizadas de um modo que pouco explora suas possibilidades compositivas. A maneira como Haeg as dispõe e explora o contraste com seu entorno demonstra suas possibilidades e sua beleza. A partir desse trabalho - que durou oito anos - é possível, portanto, confirmar a universalidade da prática da Agricultura Urbana, sua contribuição para a modificação da paisagem local e seu caráter não só questionador como também agregador, funcionando como um modo de aproximar as pessoas de seus semelhantes e da própria natureza. Tal prática é dita universal pois plantar próximo de onde se vive, como já discutido anteriormente, sempre foi uma constante na história da humanidade e, mesmo após um período esquecida pelos moradores das cidade e relegada ao campo, a agricultura volta à cena urbana como resposta a um sentimento de insatisfação 50


com a ordem vigente. Além disso, torna-se um instrumento dinâmico para potencializar os espaços urbanos e modificar as paisagens às quais estamos tão acostumados, ampliando as possibilidades da vida na cidade para além da funcionalidade e contemplação. Desse modo, aliada a movimentos como o Slow Food, surge como uma alternativa para melhorar a relação entre as pessoas e os alimentos que consomem, estreitando as relações entre homem, alimento e planeta. Praticada em vilas e favelas contribui para uma melhora da autoestima de seus moradores, para uma requalificação ambiental e paisagística nos locais onde é praticada, além de ser complemento da alimentação e ainda, como pratica Márcio Gibram no Programa Vila Viva da Prefeitura de Belo Horizonte, oferece alternativas profissionalizantes para a população em risco social. Para organizações de nutricionistas é uma forma de promover a segurança alimentar e diminuir o consumo de agrotóxicos, e para países como Cuba uma saída para alimentar seus moradores, uma vez que o modo de produção agropecuária tradicional, que depende de grande quantidades de combustíveis, produtos químicos e fertilizantes artificiais já não era mais possível de ser praticado (DIÁRIO LIBERDADE, 2013). Para artistas como Haeg, Ines Linke e Louise Ganz e o coletivo Wayward Plants é a forma como encontraram para questionar as relações interpessoais e entre as pessoas e a natureza, além do modo como é produzido e utilizado o espaço urbano e o espaço cotidiano questionando, em última análise, a atual lógica capitalista e imediatista na qual estamos todos inseridos. E para urbanistas e paisagistas é uma nova e promissora maneira de se pensar o espaço e a paisagem urbana em busca de uma cidade cada vez melhor de se viver. Por fim, com base nos conceitos previamente tratados e nas obras análogas analisadas, a próxima e última parte deste trabalho tem como objetivo propor novas possibilidades de paisagens para quatro locais do bairro Calafate, região Oeste de Belo Horizonte.

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Parte 03 Estudo de Possibilidades: Calafate


Como vimos, são inúmeras as possibilidades da Agricultura Urbana para a modificação da paisagem cotidiana e de hábitos e perspectivas das populações locais. Obviamente ela não é a solução para todas as mazelas das cidades contemporâneas, porém contribui de forma irrefutável para que estas se tornem locais cada vez melhores para se viver. Com o intuito de trazer essa discussão para a cidade de Belo Horizonte e tomando como base principal o caso de Todmorden, propõe-se então um estudo de possibilidades de paisagens cotidianas para o bairro Calafate, na região oeste da cidade, considerando a paisagem, assim como Besse, para além de uma obra de arte e a Agricultura Urbana como o instrumento de intervenção nestas paisagens. O estudo de possibilidade de paisagem cotidiana consistirá, então, na escolha de alguns recortes espaciais interessantes e representativos dentro do contexto do bairro e a realização de foto-montagens sobre os mesmos. Elas serão baseadas nos temas de Agricultura Urbana e nos exemplos supracitados, principalmente Todmorden, e posteriormente transformadas em cartões postais e apresentadas para a comunidade do bairro. Ainda que o processo de investigação das possibilidades estéticas se dê a partir de foto-montagens, interessa também avaliar o potencial existente em cada sítio de intervenção e o grau de transformação a ser alcançado pelos elementos da Agricultura Urbana. A escolha de trabalhar com cartões postais se dá por três questões principais. Incialmente, porque o cartão postal é um notório recorte da paisagem e com uma linguagem simples consegue retratar as características mais desejadas de certo local. Além disso, ele lida com aspectos afetivos das pessoas em relação as paisagens e, no caso deste trabalho, ao propor

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mudanças e um consequente estranhamento a estas paisagens muitas vezes invisíveis, o cartão postal se torna a mídia ideal para transmitir uma idéia de futuro possível. Por fim, a própria função do cartão postal, que é de estreitar laços, ser enviado pelo correio para pessoas queridas, contribui para a divulgação da idéia e a ampliação dessa discussão para além das fronteiras físicas do bairro. Desse modo, intenciona-se gerar uma discussão acerca das possibilidades da Agricultura Urbana como meio para modificações nessas paisagens. Inicialmente, a escolha de trabalhar com um bairro e não com toda a cidade de Belo Horizonte se dá por uma questão de escala. O projeto Incredible Edible Todmorden foi realizado por toda a cidade, mas Todmorden é uma cidade pequena em um contexto urbano e cultural muito distinto de uma metrópole como Belo Horizonte. Assim, o melhor correspondente à pequena cidade rural britânica seria um tradicional bairro belorizontino de classe média que ainda não tenha sofrido um grande processo de verticalização e onde as relações de vizinhança ainda sejam perceptíveis. Nesse contexto, o Calafate se apresenta como uma escolha entre tantas outras e, “[…] mais do que a escolha certa, é um exemplo” (MICROPOLIS, 2014, p. 13), que serve como ponto de partida para se reimaginar a cidade como um todo. Um dos primeiros paralelos que se pode traçar com a cidade britânica é o fato do Calafate, que é um bairro tão antigo como a própria cidade de Belo Horizonte, conseguir, apesar de todas as mudanças sofridas ao longo do tempo, manter até hoje uma atmosfera de cidade do interior. Sua história confunde-se com a da própria cidade, por lá passava o bonde e se jogava futebol de várzea, lá foi fundada a primeira banda da capital e de lá voou o primeiro avião: Com uma considerável população antiga, o Calafate foi um dos primeiros bairros a se formarem para além dos limites da cidade planejada de Belo Horizonte. Seu loteamento, de 1894, substituiu uma antiga área de fazendas pertencentes a um português calafateador, ofício de reparador de barcos que deu nome ao bairro. Hoje, com cerca de 7500 habitantes, o Calafate já viu seu território se estender e se retrair em relação ao seu vizinho Prado, o que explica o forte vínculo entre os dois. (MICRÓPOLIS 2014, p. 15). 54


Atualmente um bairro de classe média como muitos outros da capital mineira, o Calafate apresenta uma grande dinâmica territorial, o que faz com que suas fronteiras sejam muito flutuantes. Por ser vizinho do Prado, outro bairro tradicional em Belo Horizonte embora mais valorizado, sofre muito com sua influência. Segundo Micrópolis (2014), no último zoneamento da Lei de Uso e Ocupação do Solo de Belo Horizonte, o Calafate foi classificado como Zona de Adensamento Preferencial, o que estimula a construção de novas edificações e prédios, enquanto o Prado foi caracterizado como Zona Adensada. De acordo com o autor, isso causa um deslocamento no olhar do mercado imobiliário que se volta ao bairro “[…] visando maiores adensamentos, porém manobrando seus limites e tirando proveito do prestígio do Prado ao dizer que seus empreendimentos estão nele e não no Calafate.” (MICRÓPOLIS, 2014, p. 28). Buscando definir melhor os limites tanto do Calafate quanto do Prado, Micrópolis desenvolveu um mapa com a sobreposição das fronteiras de ambos os bairros desenhadas por seus moradores e ex-moradores com as fronteiras definidas pela Prefeitura de Belo Horizonte. O resultado pode ser visto no mapa abaixo (Figura 22) adaptado abaixo sobre uma base que mostra a proporção de locais livres e ocupados além de destacar os tipo de parcelamento realizados na região, deixa claro a dificuldade que as pessoas tem de limitar esses bairros. As linhas traçadas em azul foram feitas por aquelas pessoas que se consideravam moradoras do Calafate, as linhas em vermelho por aquelas que se consideravam moradoras do Prado e as linhas tracejadas em amarelo representam os limites oficiais dos dois bairros. Observando o mapa, é possível constatar que as fronteiras mais recorrentes foram a Av. Tereza Cristina ao norte, a Av. Silva Lobo ao oeste, a Rua Turquesa ao sul e a Rua Cura D’Ars ao leste. Entretanto, de acordo com o limite proposto pela Prefeitura de Belo Horizonte o bairro segue na direção oeste até a Av. Tereza Cristina sendo muito mais longilíneo do que seus moradores o percebem. Há também uma diferença do tipo de parcelamento do bairro nos dois lados da Av. Silva Lobo. Na parte oeste, o parcelamento é mais regular e padronizado, lembrando um pouco o tipo de parcelamento do Prado, enquanto na parte leste o parcelamento é mais irregular e imprevisível, com um maior número de áreas livres. 55


LIMITES DOS BAIRROS CALAFATE E PRADO Limites desenhados por moradores do Calafate Limites desenhados por moradores do Prado Limites oficiais da PBH

Figura 22: Limites dos bairros Calafate e Prado Fonte: Adaptado de MICROPOLIS, 2014

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Assim, levando em consideração uma maior identificação dos moradores com a região e o tipo de parcelamento diferenciado que possibilita uma experiência espacial menos previsível e que pode ser relacionado mais diretamente com a própria urbanização pouco regular da cidade de Todmorden, convenciona-se trabalhar com o recorte de bairro, definido pelos limites mais frequentemente citados no levantamento. Uma particularidade que torna o Calafate ainda mais adequado para esse estudo é que lá já existem práticas de Agricultura Urbana e cuidados com o espaço público por parte de alguns moradores e se observa uma vontade latente de melhorar o bairro e torna-lo um local melhor para se viver. Segundo Micrópolis (2014), os exemplos mais notórios são da Dona Carmem, da Dona Evinha e da Dona Maria. São pequenas práticas, mas que demonstram o grande potencial do bairro. Dona Carmem vive em frente à Praça Carlos Marques e todos os dias vai ali regar as plantas. Dona Evinha vive na Vila Calafate e costumava plantar uma pequena horta no gramado em frente a sua casa até que a prefeitura retirou todas as suas plantas da “área pública”. Ela agora tem uma “horta portátil” de ervas medicinais em vasos que ficam na calçada em frente a sua casa e podem ser levados para dentro quando a os fiscais da Prefeitura vem reclamar. Dona Maria mora em frente ao metrô e de tanto cultivar plantas no quintal de casa ficou sem espaço transferindo várias espécies para a calçada em frente a sua casa. Sua ação estimulou os vizinhos, que também plantaram na calçada e, quando ali também faltou espaço, começaram a plantar do outro lado da rua, junto ao muro do metrô. Partindo dessas premissas e tendo definido a área, foram levantados diversos espaços livres do bairro, em sua maioria públicos, que teriam potencial para receber o estudo. Analisando o mapa da Figura 23, nos pontos destacados com asteriscos amarelos, é possível observar uma grande quantidade de espaços livres nos meios de quadra, porém esses são de propriedade particular, muitos sendo quintais, e estão quase todos inacessíveis, inclusive visualmente. Por isso, apesar de seu grande potencial para intervenções de maior porte, uma vez que eles não contribuem muito para a formação de paisagens cotidianas, esses espaços não foram considerados. Esse levantamento encontrou no Calafate quatro tipologias genéricas de espaços livres que estão cotidianamente em contato com seus moradores,

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PONTOS LEVANTADOS NO CALAFATE

2 1 1

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3 1 4

2 5 3

2

Praça Pública Afastamentos Tecido viário sub-utilizado Espaços residuais do metrô Quintais privados Figura 23: Pontos levantados no Calafate Fonte: Adaptado de MICROPOLIS, 2014

mas que também podem ser vistas em qualquer outro local da cidade, são elas: espaços residuais do metrô, afastamentos obrigatórios entre as edificações, praças e tecido viário subutilizado. Dentro das tipologias foram levantados os locais mais interessantes para receber o estudo, não significando porém que sejam os únicos existentes no bairro. As tipologias mais recorrentes no Calafate foram as praças e o tecido viário sub-utilizado e todos os locais visitados estão destacados no mapa ao lado. A primeira tipologia a ser considerada foi a praça pública, marcada no mapa em azul. O Calafate possui duas grandes praças principais, a Praça Carlos Marques, número 1, que se localiza entre as ruas Monsenhor Horta, Conselheiro Dantas e Oeste e cuja principal referencia é a Escola Estadual Bernardo Monteiro; e a Praça Inacio Fonseca, numero 2, que se localiza entre a avenida Platina e as ruas Dr. Thomaz Muzzi, Contria e Cachoeira

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Fotos de Pablo Gonzรกlez, 2014

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Figura 24: Praças Rabelo original. Fonte: Fotos de Pablo González, 2014.

do Campo e sua principal referencia é a Igreja da paroquia de São José do Calafate. Ambas são de extrema importância para os moradores do bairro e, embora hajam muitas reclamações sobre o estado de conservação no qual se encontram e os tipos de usos que ocasionalmente ocorrem nas mesmas, as praças em si são alvo de diversas intervenções e projetos de requalificação. Visando redirecionar um pouco o foco para as outras praças do bairro que muitas vezes acabam invisibilizadas frente às duas citadas anteriormente, escolheu-se então trabalhar com uma das praças menores. Além disso, ao observar a morfologia do tecido urbano, constata-se que estas praças surgem em intercessões de no mínimo quatro vias o que aliado às suas dimensões reduzidas lhes confere um interessante caráter mais de resíduo do tecido viário do que de espaço público intencional. As praças menores levantadas foram a Praça Eugênio Zucheratto, número 3, entre as ruas Turqueza, Contria, Sagres e Alterosa; a Praça Carlos Vilani, número 4, entre as ruas Chopim, Conselheiro Dantas, Calcedônia e Pedra 62


Figura 25: Foto-montagem ilustrando uma possibilidade de ocupação da Praça Rabelo. Fonte: Adaptado de foto de Pablo González, 2014.

Bonita; e a Praça Rabelo, número 5, entre as ruas Cachoeira do Campo, Avelino Fernandes, Dr. Thomaz Muzzi e Alterosa. Dentre estas, a escolhida foi a Praça Rabelo, pois é a que apresenta uma maior diversidade de usos em suas imediações o que contribui para aumentar também a diversidade das pessoas que a frequentam. À primeira vista a Praça Rabelo não aparenta grande necessidade de intervenção. Seu canteiro, apesar de possuir pouca variedade de espécies vegetais, esta bem cuidado e as duas grandes árvores em seus extremos são muito bonitas e garantem à praça uma proteção solar que a torna bastante agradável. O banco grande de tijolinho que aproveita o desnível que há entre os pontos da praça também é um ponto positivo da mesma. Há algumas pichações nos muros ao seu redor e no encosto do banco, alguns pontos da calçada estão meio desgastados, mas o maior incômodo é a poluição visual gerada pela a fiação elétrica e pelo excesso de placas de sinalização de trânsito. Entretanto, a idéia principal destes estudos não é necessariamente requal-

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ificar locais degradados usando a Agricultura Urbana e sim utilizar-la de modo a potencializar paisagens cotidianas e estimular novos modos de imaginar o espaço urbano. Assim, apesar de seu bom estado de conservação, pelo fato da praça ser bastante monótona e não possuir nada que a destaque dentro do bairro ela se torna palco da primeira intervenção. O primeiro passo foi trabalhar na imagem base para eliminar a poluição visual e corrigir um pouco as imperfeições do asfalto e do calçamento da praça. Ainda que se trate de propor ações pautadas pela Agricultura Urbana, em todas as propostas foram realizadas este passo inicial pois considera-se que para estimular a discussão acerca de uma outra cidade possível é importante que as imagens resultante retratem um “cenário ideal”. No caso, neste cenário ideal as infra-estruturas urbanas estão bem mantidas e as fiações correm pelo subterrâneo. Quanto à vegetação existente, as duas grandes árvores são os pontos de maior destaque na paisagem e, apesar de não produzirem frutas para o consumo humano, estão intimamente relacionadas à imagem da praça, além de contribuírem imensamente para sua ambiência, por isso elas são mantidas sem grandes modificações na foto-inserção. Também foi mantida a pequena palmeira presente ao fundo. Já a grama e o pingo de ouro, as duas espécies vegetais predominantes no local e também utilizados indiscriminadamente nas outras praças e pontos da cidade, não têm uma presença tão marcante. Neste caso, a regularidade dos cortes e a banalização das espécies pouco contribuem com a paisagem local e os pequenos conjuntos de espadas de São Jorge ao fundo e agaves próximo à lata de lixo não são expressivos o suficiente para destacar-se em seu meio ou interromper com sua predominância visual. Assim, propõese a retirada destas espécies e sua substituição por outras mais variadas e próprias para o consumo humano como tomates, girassóis, espinafres, entre outros. Essas novas espécies, além de possuírem imbuídas em sua própria característica de alimento todas as possibilidades de estímulo à sociabilidade já discutidas anteriormente, contribuírem para uma composição da paisagem menos homogênea e têm a vantagem de se relacionarem mais claramente com os ciclos da natureza. Assim, esta paisagem possível estaria sempre mudando e se renovando, na medida que as estações do ano também se

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modificassem, possibilitando uma relação mais estreita entre os frequentadores da praça e a natureza. O resultado final pode ser visto na Figura 25. Os afastamentos obrigatórios das edificações, marcados em rosa escuro, consistiram na segunda tipologia definida. Neste caso há um sem número de possibilidades no bairro então, foram considerados apenas aqueles de dimensões mais expressivas e que estivessem relacionados a atividades outras que não residenciais. Com essas características foram encontrados os afastamentos laterais do prédio da Caixa Econômica Federal, número 1, localizados na Travessia Dollinger Ramos; a esquina das ruas Monte Negro e Atenas, número 2, que funciona atualmente como um estacionamento; e os afastamentos frontais de três lojas da Rua Platina, número 3 no mapa, na altura do número 1150. Este ultimo foi escolhido principalmente devido à sua localização na Rua Platina que é uma das ruas de maior fluxo no bairro e pior ambiência devido às suas calçadas estreitas, à falta de sombreamento, entre outros fatores. Ao se comparar este local com a praça escolhida anteriormente, é clara a sua necessidade de intervenção. Para além das questões estéticas e de conservação das edificações às quais pertence este conjunto de afastamentos, a própria rua Platina como um todo possui uma paisagem muito degradada. As calçadas em geral são muito estreitas e frequentemente ocupadas por postes ou latas de lixo e, neste caso, totalmente inexistentes, funcionando mais como uma extensão da rua e estacionamento de veículos, do que um local de trânsito de pedestres. Outro ponto que contribui negativamente para a paisagem da rua é a grande concentração de fios de alta tensão e telefonia. No lado analisado este problema é um pouco amenizado pelo fato dos postes de luz se localizarem no lado oposto, mas ainda assim os fios são uma presença constante, dando um aspecto carregado à rua. Apesar de todas estas questões, a combinação dos afastamentos destas três edificações e do caminho de entrada a um estacionamento que pode ser vista no canto esquerdo da tela, contribuem com um espaço tão raro nesta via tão apertada e movimentada configurando um bem-vindo respiro. Esta característica foi o que mais chamou a atenção no momento de escolha 65


Figura 26: Afastamentos da Rua Platina originais Fonte: Fotos de Pablo González, 2014.

deste local. Aliado a isso, a grande diversidade de usos e fluxos da Platina, a via mais presente no cotidiano de todos do Calafate, foi decisivo para a escolha do local. Como no caso anterior, a intervenção na foto se iniciou com a eliminação da poluição visual excessiva dos fios e das pichações, além de algumas pequenas “restaurações” nos edifícios. Entretanto, a principal preocupação foi recriar uma calçada que definisse aquele local como prioritário para o pedestre e não mais para os carros. A questão dos veículos é muito delicada neste caso pois para a manutenção dos comércios locais é necessário que haja espaço para estacionamento de carros e carga e descarga de caminhões. Além disso, assim como citado anteriormente por Foti o proprietário do Edible Estate de Los Angeles, a idéia é explorar as novas possibilidades que se abrem com a Agricultura Urbana e não criar um clima de rixa entre os veículos e as plantas. Afinal, todos devem ter seu espaço respeitado na cidade. 66


Figura 27: Foto-montagem ilustrando uma possibilidade de ocupação dos afastamentos da Rua Platina. Fonte: Adaptado de foto de Pablo González, 2014.

Focando neste pensamento, decidiu-se por apropriar-se apenas do espaço de uma das vagas de estacionamento do frigorífico. Foram implantados uns grandes vasos que além de servirem de recipiente para plantas medicinais e temperos, estes que podem muito bem ser aproveitados para condimentar as carnes adquiridas no frigorífico, têm também bancos e lixeiras acoplados em sua estrutura. Deste modo, cria-se um recinto que à sombra de uma árvore de acerola, por exemplo, convida à permanência e inaugura a possibilidade de outras relações que não só comerciais neste ponto da Platina. Outra inquietação quanto a este local e que também se observa em diversos outros pontos da cidade são as paredes vazias. Sejam muros ou fachadas cegas, por se tratarem de rompimentos tão abruptos e muitas vezes hostis com o espaço ao seu redor estas superfícies são com frequência hostilizadas e pichadas o que só contribui para uma degradação ainda maior da paisagem na qual se inserem. Visando diluir um pouco esta presença tão massiva utilizou-se dos mais diversos tipos de jardins verticais produtivos, tomates na entrada do estacionamento e morangos plantados na parede mais ao fundo, pequenos vasos de temperos e hortaliças em prateleiras na 67


Figura 28: Rua Desembargador Barcelos original. Fonte: Fotos de Pablo González, 2014.

entrada do frigorífico e chuchus trepando por parte da grade dos galpões. O resultado pode ser visto na Figura 27. A terceira tipologia escolhida foi o tecido viário sub-utilizado representado no mapa em rosa claro. Neste caso obtivemos várias possibilidades principalmente devido à interrupção do tecido viário pelos trilhos do metrô. Foram consideradas as ruas Tiros, número 1 no mapa, Horizontina, número 2, Cajurú, número 3, e Desembargador Barcelos, número 4. Esta última foi a escolhida especialmente devido ao seu entorno que registra uma maior concentração de atividades comerciais que as demais, o que contribui positivamente para um maior fluxo de pessoas pela mesma. A característica mais marcante da rua Desembargador Barcelos é sua incrível vista para a cidade. Entretanto, por ser mais utilizada como carga e descarga e estacionamento do supermercado e dos comércios que existem ao redor na rua Platina é muito provável que esta vista seja perdida em meio aos afazeres cotidianos daqueles que a frequentam. Além disso, neste trecho ela é uma rua de fundos, com enormes trechos murados em seus 68


Figura 29: Foto-montagem ilustrando uma possibilidade de ocupação da Rua Des. Barcelos. Fonte: Adaptado de foto de Pablo González, 2014.

dois lados e ao fundo, onde é interrompida pelo muro metrô, dando-lhe uma aparência de rua sem saída. Como nos dois casos anteriores, a presença da fiação elétrica e de telefonia se destaca bem na paisagem, mas em este caso um novo elemento negativo é agregado: os arames farpados circulares que podem ser vistos à direita na Figura 28. Ambos foram retirados da foto, assim como a copa da árvore e a placa de trânsito para se obter o “cenário ideal” citado anteriormente. Nesta tipologia também se repete a situação do conflito do uso do espaço entre pedestres e veículos. Por se tratar de uma via pública que, inclusive, dá acesso a várias moradias em seu final, ela deveria apresentar calçadas apropriadas para o trânsito de pedestres, mas assim como o caso da rua Platina, o principal protagonista aqui é o carro. Entretanto, a presença destes veículos não pode ser desconsiderada, portanto buscou-se mais uma vez a coexistência entre a Agricultura Urbana e os veículos. A maior intervenção na rua foi a proposição de um pergolado produtivo,

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Figura 30: Praças Carlos Marques e Inacio Fonseca respectivamente. Fonte: Fotos de Pablo González, 2014.

com pés de maracujá, ao longo de toda a lateral do supermercado. Além de proporcionar frutas para os transeuntes e sombra para os veículos estacionados, o pergolado também contribui para o estabelecimento de uma atmosfera mais doméstica na rua. Outra intervenção, na parte direita da rua, transformou o que antes era asfalto em uma área permeável recoberta de cascalho nos locais onde ainda seria possível estacionar e grama e cultivos mais ao fundo. Nesse lado também foram inseridos uma árvore, plantas comestíveis em um canto da parede onde atualmente só existe grama e os vasos-assentos utilizados na Rua Platina com suas plantas medicinais e temperos para, assim como antes, criar um ambiente onde que propicie uma maior troca entre as pessoas. Quanto aos muros que cercam a rua, optou-se por utilizar de jardins verticais produtivos apenas no muro do metrô, ao fundo. A parede do supermercado também recebeu alguns vasos de hortaliças, mas não o suficiente para desmaterializar-la como no caso dos afastamentos da Platina. A opção por manter os dois muros sem muitas alterações se deu por considerar que 70


Figura 31: Praças Carlos Marques e Inacio Fonseca respectivamente. Fonte: Fotos de Pablo González, 2014.

eles contribuem para reforçar a perspectiva da rua, direcionando o olhar do transeunte para a vista da cidade ao fundo, que se torna mais expressiva sem o contraste com o muro do metrô. O resultado pode ser visto na Figura 29. Por fim, a última tipologia são os espaços residuais gerados pela implantação do metrô, sinalizados em amarelo. Neste caso existem muitas possibilidades, mas optou-se por considerar apenas aqueles locais que não configurassem malha viária interrompida pela passagem dos trilhos, uma vez que estes já foram considerados na composição da tipologia anterior. Desse modo, foram encontrados dois locais que podem ser vistos na Figura 35, a Avenida Guarantan, número 1, paralela aos trilhos do metrô e onde descem as pessoas da estação Calafate, além de ser o ponto final dos ônibus 205 e S22; e o espaço livre existente no fim da Rua José Viola, sinalizado com o número 2, o qual se encontra justo ao lado de uma passarela suspensa para atravessar os trilhos do metrô. Devido à sua localização mais interessante e também à diversidade das atividades comerciais do seu entorno, este último foi escolhido para receber o estudo.

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Este espaço é bastante diferente de todos os anteriores, não está bem cuidado como a praça Rabelo, apesar de também possuir uma área gramada de contato direto com o solo, nem é tão apertado e disputado entre pedestres e carros como os outros dois anteriores, além de estar muito mais resguardado da intensidade do trânsito de veículos do bairro. Assim, por ser um local de passagem exclusiva de pedestres, uma ponte cotidiana entre o Calafate e o Padre Eustáquio, possui uma atmosfera mais tranquila e agradável que, independente do seu mau estado de conservação, torna-se o local ideal para o ultimo estudo. A primeira parte da montagem, assim como as demais, foi trabalhar na imagem base recuperando o calçamento e um pouco dos guarda-corpos do metrô já bastante degradados. Os arames farpados localizados no topo do muro à esquerda e que contribuem negativamente com a paisagem também foram retirados e o muro, que se encontra em péssimo estado de conservação, inclusive ruindo em alguns pontos, foi recuperado. Entretanto, teve-se o cuidado de manter os materiais usados originalmente, especialmente o tijolinho do muro que é o material que mais se destaca nesta paisagem. Além dele, as pichações grandes que cobriam o muro também foram mantidas, como forma de representar que o objetivo deste estudo não é renovar as paisagens cotidianas de modo a segregar usos socialmente pouco desejáveis, como é o caso das pichações, e sim estabelecer um diálogo com aqueles que já se apropriam dos espaços, construindo locais que possibilitem os mais variados usos e apropriações. A árvore morta que se localiza no centro da foto é outro ponto de referência da paisagem que foi mantido. Mesmo que ela já não tenha uma utilidade prática, não dando frutos ou sombra, sua presença tem a potência um marco na paisagem o que se torna ainda mais claro aliada às casinhas de pássaros coloridas acrescidas na montagem. Quanto ao cultivo de alimentos, optou-se por não ocupar totalmente a área gramada com eles, de modo a possibilitar outros usos e apropriações da mesma. Além disso, na lateral direita foi proposto um mobiliário no qual várias mudas de temperos e hortaliças fiquem ao alcance dos transeuntes de modo que estes as possam levar para casa e assim dar continuidade ao espírito da Agricultura Urbana e do cultivo dos próprios alimentos. O resultado final pode ser visto na Figura 31. 72


As quatro imagens apresentadas, longe de serem soluções perfeitas para as suas respectivas paisagens cotidianas, demonstram as inúmeras possibilidades que ações cuidadosas e criativas podem ter no espaço urbano. Para além das soluções prontas de grandes obras de requalificação paisagística, é nas pequenas ações que pensam a cidade de modo holístico que reside a força das transformações de paisagens urbanas. E neste contexto, quando novas formas de ver e lidar com o espaço urbano desenvolvem-se por todos os lados do mundo, é que a Agricultura Urbana surge como uma solução multi-facetada para os diversos desafios das cidades contemporâneas. Aliada a sua já celebrada capacidade de auxiliar políticas sociais diversas, promover a inclusão social e estimular cidades mais naturais, pode-se agora afirmar também que, quando concebida com um cuidado estético, a Agricultura Urbana se revela como uma possibilidade eficaz para promoção de paisagens e cotidianos mais bonitos e diversos.

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Conclus達o


Como constatado a princípio, a Agricultura Urbana apresenta uma área de atuação bastante ampla, se encaixando em diversos contextos políticos, sociais e econômicos. Sendo assim, possui uma capacidade de transitar pelas distintas esferas da sociedade e fomentar discussões a respeito dos mais variados temas. Entretanto, seu papel paisagístico vem sendo constantemente negligenciado, especialmente por aqueles que ainda consideram a paisagem sob uma ótica de obra de arte na qual um jardim funcional não poderia ter qualidades estéticas. A paisagem, por sua vez, conceito que se inicia no Renascimento e nas belas artes vem sendo utilizada atualmente pelas mais diversas áreas do conhecimento. Seu caráter inicial de objeto contemplativo e artístico, que não permitiria abordagem científica, vai pouco a pouco dando lugar a várias sub-qualificações feitas por aqueles que, como é o caso dos paisagistas e urbanistas, buscam estudar e intervir na paisagem. E sua escala, imensa, abrangente, sempre contemplada do alto, dá lugar a múltiplas sub-divisões, cada qual com suas características e focos distintos. E é na atuação em paisagens cotidianas que reside a grande força da Agricultura Urbana. Este trabalho surge portanto desta inquietação, pois ao olhar para as várias intervenções desta natureza que vem sendo realizadas cada vez mais frequentemente ao redor do mundo, não é possível negar sua contribuição estética para as paisagens cotidianas nas quais se inserem. Os exemplos citados, desde os diversos jardins de Todmorden às intervenções de Wayward Plants e os quintais de Haeg, são apenas uma pequena amostra, nas quais se pode observar esse cuidado para além da funcionalidade da Agricultura Urbana. Ao considerarem a composição e combinação das plantas e planejarem o processo de plantio de modo a obter os melhores resultados possíveis tanto estéticos quanto produtivos, eles criam paisagens maravilhosas, muito além de meras hortas. Nesta perspectiva, a proposição de novas paisagens cotidianas para o bairro Calafate baseadas nas experiências de Agricultura Urbana analisadas serve para demonstrar o impacto que estas ações podem ter na paisagem. Acostumados como estamos com a falta de qualidade estética e ambiental nas grandes metrópoles, esses retratos de paisagens ideais tornam-se um meio de expandir o imaginário e demonstrar que uma outra cidade possível não esta assim tão distante de nossas possibilidades. 75


Sua posterior disseminação em forma de cartões-postais é a forma encontrada para expandir e transmitir essa idéia com uma linguagem acessível para o maior número de pessoas. Dessa forma rompe-se um pouco com as rígidas fronteiras da academia, onde este tipo de pensamento e solução já não é novidade, para levar essa reflexão a lugares onde nunca antes chegaram, ao cotidiano da cidade. Assim, num desejo quase utópico, espera-se que estes pequenos cartõespostais semeiem a discussão sobre novas possibilidades de cidade. Que as pessoas que tenham contato com eles os compartilhe e entenda que a mudança não depende de grandes ações governamentais. E que um dia, ao voltar ao fim da Rua José Viola, se possa encontrar mais que um gramado abandonado.

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Cart천es Postais

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