Marcas Eternas - As Histórias de Mulheres Torturadas na Ditadura

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Marcas Eternas

Copyright © 2015 by Fernanda Labate Vale da Costa Todos os direitos reservados, incluindo os direitos de reprodução parcial ou total em qualquer meio. Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Projeto Gráfico: Daniel Alejandro de Paula Aguilera e Aline Carvalho Revisão Evelyn Nogueira

Costa, Fernanda Labate Vale da Marcas Eternas : as histórias de mulheres torturadas na ditadura/ Fernanda Labate Vale da Costa – São Paulo. 2015. 79p. : il, color. Trabalho de conclusão de curso (graduação) – Escola Superior de Propaganda e Marketing. Curso de Jornalismo. São Paulo. 2015. Orientador: Antonio Rocha Filho 1. livro-reportagem. 2. marcas eternas. 3. mulheres. 4. ditadura. I. Filho, Antonio Rocha. II. Escola Superior de Propaganda e Marketing. III. Título.

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Marcas Eternas As histรณrias de mulheres torturadas na ditadura Fernanda Labate

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Agradeço aos amigos, que permaneceram ao meu lado durante a rotina caótica. Aos meus pais, que nunca cogitaram deixar de apoiar. Ao professor Toninho e seus cronogramas que mantiveram o trabalho longe das garras da ansiedade e – principalmente – à todas as mulheres resistentes, lutadoras e valentes. 5


Sumário Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 1 - Quando a morte é a única saída. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 2 - O medo não é real, até que bate à sua porta. . . . . . . . . . 33 3 - O bambu que não se quebra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 4 - Resistência que corre nas veias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 5 - Dos traumas ao alívio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

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Introdução Ao entrar em uma discussão sobre direitos femininos – principalmente quando diz respeito a assuntos polêmicos como o uso da mulher como objeto na publicidade e o assédio moral nas ruas –, é praticamente impossível não ouvir alguém dizer coisas como: “nos dias atuais, ser mulher é tão fácil quanto ser homem”, “já alcançamos direitos iguais”, “não existe machismo” e “reivindicações feministas não passam de reclamações infundadas buscando privilégios para mulheres”. Mas não é assim que funciona. A noção da mulher como um ser inferior e incapaz é histórica. Em meados do século XIX, muitas mulheres casavam-se antes mesmo de se tornarem maiores de idade, fazendo com que os maridos se tornassem guardiões legais e deixando-as sob suas ordens. Elas não possuíam acesso sequer à educação primária de qualidade, não podiam trabalhar – a não ser que fosse em casa, cuidando dos afazeres domésticos – nem votar. Lentamente surgiram ideias apoiadas no pensamento iluminista e, pouco a pouco, mulheres passaram a reivindicar seus direitos junto dos que lutaram nas grandes revoluções. Com muito custo, as que possuíam mais recursos e famílias menos conservadoras puderam ampliar seus horizontes e buscar seu lugar como cidadãs. 9


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Com o tempo, puderam trabalhar, mas apenas em funções que não acabassem com a feminilidade ou as tirassem do papel de “cuidadoras da sociedade” que lhes era atribuído. Eram professoras, secretárias, empregadas domésticas. Décadas depois, puderam também ser operárias, trabalhando 14 horas por dia e correndo risco de demissão caso engravidassem. Mais tarde, veio ainda o direito ao voto, mas, até hoje, mulheres não são levadas a sério na política; suas opiniões são descartadas com facilidade, questiona-se sua estabilidade emocional e sua aparência de forma mais crítica que sua inteligência. Apesar de tais conquistas (adquiridas há pelo menos dois séculos) a ideia de que a mulher está fadada a ocupar um lugar restrito e a desempenhar um papel específico continua terrivelmente enraizada na sociedade. Criamos nossas mulheres, mesmo que indiretamente, para ser mães. Para que se dediquem à carreira, desde que não descuidem dos afazeres domésticos e da aparência, que deve ser mais feminina o possível. No Brasil, mulheres representam mais da metade da população (51,4%, segundo o IBGE). Por que, então, o País ocupa o 116º lugar no ranking mundial de presença de mulheres no Congresso (UIP - União Interparlamentar), com participação feminina equivalente a 10%, inferior à de países do Oriente Médio? Por que a opinião de mulheres é tida como inválida em discussões sobre política? Por que, ao fazer críticas à primeira Presidenta eleita no Brasil, Dilma Rousseff, a sociedade prefere atacar sua forma de se vestir, seu peso, sua sexualidade em vez de suas ações como governante? Por que afirmam que ela é “séria demais” ou “rude demais” para uma mulher? O pensamento que motiva essas críticas também motivou os mais terríveis eventos durante um dos piores momentos da história 10


brasileira para mulheres interessadas em política e em justiça social: o regime militar (1964 – 1985). Durante os anos em que ele esteve vigente, mulheres pagaram de forma brutal por qualquer mínimo envolvimento com movimentos políticos contrários aos ideais da ditadura. Perderam os filhos que carregavam em seus ventres após torturas (física e psicológica), foram usadas como instrumento tanto de chantagem com seus maridos presos como de espionagem para tirar informações de outras presas, receberam tantos choques nas partes íntimas que se tornaram estéreis. Foram marcadas pelo resto de suas vidas apenas por não estarem no lugar onde a sociedade gostaria que estivessem. As histórias que compõem esta obra são de mulheres que encararam a repressão e a tortura de frente, concentraram todas as suas forças em manter a sanidade mental e tentar, o quanto fosse possível, não ceder aos torturadores. Apesar de fragilizadas e humilhadas, não são vítimas, são resistentes e, até hoje, buscam formas de entender e canalizar as consequências que o período deixou em suas vidas.

A chegada do regime militar e suas consequências A tomada do poder pelos militares em 1964 não foi um acontecimento preparado às pressas. Aproximadamente 30 anos antes da data em que a ditadura foi instaurada no País – época do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930 – 1945) – as Forças Armadas brasileiras já se mostravam descontentes com o rumo que as coisas tomavam no país. Queriam que, cada vez mais, as políticas brasileiras se voltassem aos interesses norte-americanos. 11


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Com isso, todos os presidentes que governaram durante essas décadas que antecederam a ditadura tiveram que atuar sob o olhar vigilante e diversas interferências feitas pelos militares. Foi assim que após o término do primeiro mandato de Vargas, não foram convocadas novas eleições; sob a ameaça de um suposto plano comunista prestes a emergir, o presidente (com o apoio dos militares e da população) deu um golpe de Estado e iniciou o período conhecido como Estado Novo. O momento durou até 1945 e foi marcado por uma nova constituição imposta por Vargas em 1937, repleta de medidas autoritárias tais como a centralização do poder nas mãos do presidente, o favorecimento de grupos que estivessem a favor dele e a suspensão do direito de greve ao trabalhador. Ao fim da II Guerra Mundial em 1945 e com a derrota de regimes fascistas, grande parte da população passou a questionar os ideais de Vargas e a pressão culminou em sua queda. Novamente, os militares tentaram emplacar um governo autoritário com o mandato que se seguiu, o do Marechal Eurico Gaspar Dutra. Os ideais democráticos ainda muito pulsantes da população, porém, não proporcionaram todo o apoio de que precisavam para manterse no poder. Vargas então foi reeleito por voto popular em 1951, mas seu governo durou apenas três anos e culminou em seu suicídio em 1954. O clima fez com que as conspirações militares ficassem adormecidas por mais alguns anos. Passados os mandatos de Juscelino Kubitschek (1956 – 1961) e de Jânio Quadros – que prometia acabar com a corrupção, mas que renunciou sete meses após a posse –, quem assumiu o poder foi João Goulart, mais conhecido como Jango. No período em que foi presidente, Jango incentivou e deu instrumentos para que crescessem os movimentos trabalhistas e estudantis; o último por sua vez, foi o berço para que grande parte da juventude da época tomasse contato com política, passasse a se organizar e se 12


interessasse pelas manifestações e reivindicações culturais que surgiram na década como, por exemplo, o início da MPB e da televisão como veículo de comunicação de massa. Também foi durante a década de 60 que ganharam força as lutas pelos direitos dos negros, dos homossexuais e das mulheres. Tal clima de contestações civis e políticas, com seus ideais de buscar uma sociedade melhor e mais igualitária, porém, não agradava classes mais conservadoras e muito menos os militares. Com o fantasma de um possível golpe comunista e o grande e marcante comício de Jango na Central do Brasil (Rio de Janeiro), onde mais de 200 mil pessoas ouviram propostas sobre reformas no âmbito agrário e econômico, a ação golpista ganhou força. Apenas este clima já foi suficiente para que o golpe militar parecesse necessário e tivesse apoio. Segundo dados reunidos na obra Brasil Nunca Mais, além das elites conservadoras brasileiras, a própria CIA, agência central de inteligência dos Estados Unidos, estimulou o esquema golpista. A obra também explica que no ano de 1964, a ação golpista foi vitoriosa e, a partir de então, a população passou a experimentar um período tenebroso onde a perseguição política era clara, feita à luz do dia, e a tortura era legitimada; direitos civis foram suspensos, obras literárias foram proibidas, pensamentos foram reprimidos e disciplinas escolares foram modificadas aos moldes dos ideais do regime. Durante esse período, grande parte da população foi impulsionada (pelos movimentos estudantis em efervescência) a resistir. Manifestações fortemente reprimidas, reuniões secretas, organizações contrárias ao regime e até guerrilhas – como a famosa Guerrilha do Araguaia, movimento em prol do socialismo que entrou em ação entre as décadas de 60 e 70 – eram aspectos que caracterizavam a época. 13


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O período, que foi até 1985, contou com cinco presidentes. Os primeiros dois, Humberto de Alencar Castelo Branco (1964 – 1967) e Artur da Costa e Silva (1967 – 1969) lidaram com manifestações populares que não aceitavam as medidas impostas, tais como a dissolução do congresso e o decreto do primeiro Ato Institucional que, segundo Dom Paulo Evaristo Arns, autor do Brasil Nunca Mais, legitima o golpe ao deixar bem claro que “A Revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se legitima por si mesma”. Foi então que a repressão ganhou um de seus artifícios mais cruéis, o Ato Institucional nº 5. A gota d’água para sua imposição em 1968, segundo Laura Beal Bordin e Suelen Lorianny, foi um discurso feito pelo Deputado Federal Márcio Moreira Alves considerado ofensivo às forças armadas. Nele, o Deputado convoca mulheres de militares a falar sobre a intimidade do casal e a envergonhá-los. A partir desse momento, uma série de decretos que legitimavam a perseguição política passaram a vigorar e a amedrontar a população. Entre eles, havia a concessão ao presidente o poder de suspender os direitos políticos de qualquer cidadão, impunha censura a veículos jornalísticos e proibia manifestações populares de caráter político. O mandato que se seguiu, de Emílio Garrastazu Médici (1969 – 1974) é conhecido com o período mais obscuro da ditadura brasileira, já que, segundo Arns, o uso de violência para a repressão e banimentos tornaram-se cada vez mais frequentes. Para que pudessem ficar cada vez mais efetivos em seus objetivos, um grande aparelho repressivo foi criado com uma rede de “órgãos de segurança” que trabalhavam de forma quase autônoma. Foi assim que surgiram organizações como a Oban (Operação Bandeirante), Dops (Departamento de Ordem Política e Social), DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) e outros locais parecidos. Estabelecimentos como as sedes dessas organizações tinham celas, 14


delegacias e estavam espalhados por diversas cidades do País. Contavam com equipes de militares que prendiam, interrogavam e torturavam pessoas; hoje, muitos confessam sua participação ao lado da repressão, outros negam de forma veemente que tenham praticado tais atos. Se, por um lado, o Brasil passava pelo chamado “milagre econômico” (período em que houve grande quantidade de empréstimos estrangeiros e construção de obras gigantescas que geraram muitos empregos por todo o país), por outro, ganhava uma imagem negativa na mídia estrangeira graças à censura e à repressão violenta e passava a perder o apoio de vários setores importantes. A partir da década de 1970, até um dos pilares principais de sustentação do regime, a Igreja, passou a tornar-se vítima dos atos repressivos (com prisões de sacerdotes e freiras, torturas, assassinatos, invasão de templos, etc). Por esses motivos, os presidentes seguintes, de Ernesto Geisel (1974 – 1979) e João Baptista Figueiredo (1979 – 1985), tentaram governar de forma mais “branda”, ou seja, tentando ao máximo esconder os atos repressivos dos olhos da mídia. Foi justamente durante esse período que ocorreu uma das mortes mais icônicas e conhecidas da ditadura, a de Vladimir Herzog. O jornalista foi preso em 1975 após ser convidado a prestar depoimento e falar sobre os ideais do canal que dirigia, a TV Cultura, e sobre seu posicionamento político. Vlado, como era apelidado, morreu em decorrência da tortura, e a estranheza do caso se deve ao fato de que uma foto sua pendurado a uma janela como se estivesse enforcado foi divulgada pelos militares para justificar a morte por suicídio. Como a foto mostra que os pés de Vlado encontravam-se no chão e suas pernas estavam completamente dobradas, foi concluído que a morte não poderia ter sido como haviam declarado e o Governo Federal foi responsabilizado pela Justiça. 15


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Situações como essas deixaram o regime sem apoio, fazendo com que, em 1985, ele chegasse ao fim. Nos anos que se seguiram, o movimento pela democracia tomou as ruas fazendo com que uma nova Constituição fosse feita em 1988 e eleições diretas para presidente fossem organizadas em 1989. Ao fim das investigações feitas pela Comissão Nacional da Verdade – projeto que durou quase três anos e teve como resultado um relatório repleto de entrevistas e casos tenebrosos –, os dados divulgados são de que 434 pessoas foram mortas ou permanecem desaparecidas do período ditatorial até hoje.

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1 Quando a morte é a única saída Guiomar é pequena e esguia, mas de frágil não tem absolutamente nada. Carrega um ar enérgico como se não pudesse ficar parada por um minuto. Ou melhor, não pode ficar sem cuidar de seus muitos afazeres, entrevistas, eventos, viagens e compromissos em geral. Gentilmente conseguiu tempo para me receber em seu escritório, no centro de São Paulo, e toda a arquitetura antiga da região, de certa forma, me ambientou em sua história. A intensidade com a qual a médica lutou contra a ditadura e seu compromisso com a resistência são capazes de fazer qualquer um se arrepiar. Como parte da ALN (Aliança Libertadora Nacional), ela liderou ações importantes e fez tudo o que estava sob seu controle para que informações e companheiros não caíssem em mãos erradas. Literalmente tudo. Guiomar Silva Lopes nasceu e cresceu nos anos 40 em meio a atitudes que pendiam para a ideologia de esquerda e a muita contestação política. Ela conta que seu pai era um socialista ferrenho e que sua mãe era uma mulher de ideais, de certa forma, à frente de sua época. “Ela tinha atitudes sempre um pouco mais avançadas do que as outras mulheres, apesar de ter tido uma vida completamente dependente do meu pai. O pensamento dela era sempre um pouco 17


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mais aberto.” Além de ter os ouvidos sempre cheios de assuntos ligados a política dentro de casa, seu relacionamento com o tema não parava por aí. Ela conta que, naquela época, algumas escolas tinham grêmios estudantis que eram, para muitos, o berço do envolvimento com a ideologia de esquerda. Era esse tipo de gente que a cercava; a jovem Guiomar tinha muitos vizinhos e amigos próximos envolvidos com os primeiros passos do movimento estudantil e até com o próprio Partido Comunista. Ela lembra que era com muita admiração que observava seus amigos, já mais velhos que ela (“Era uma diferença de dois, três anos, mas parecia um século!”, ri) conversarem sobre as reuniões fantásticas das quais participavam e sobre tudo o que liam. Guiomar, por sua vez, demorou um pouco mais para encontrar seu lugar no movimento, já que os dois colégios nos quais estudou (Caetano de Campos e Bandeirantes, ambos em São Paulo) eram bastante tradicionais e não tinham organizações estudantis voltadas para a política. Por observar o movimento apenas pelo lado de fora, ela conta que não viu o que estava por vir. Quando o golpe militar de 1964 aconteceu, Guiomar estava se preparando para ingressar na faculdade de medicina e relata que, por estar ligada à política apenas de forma indireta, foi pega de surpresa. “Isso para mim foi uma coisa assim muito violenta, muito complicada e abrupta, na minha cabeça, na minha vivência. Quer dizer, por falta de experiência eu não tinha compreendido, não tinha tido a oportunidade de perceber que isso estava sendo formado já há muito tempo”, diz, evidenciando como foi terrível ver vários de seus amigos sendo perseguidos ou presos. Logo que ingressou na faculdade de medicina da Santa Casa, Guiomar tratou de não perder tempo em procurar seu lugar no movimento que acabaria se tornando a maior prioridade em sua vida. Como fazia apenas um ano desde que o golpe havia acontecido e os militares haviam desmantelado tudo o que podiam em termos 18


Guiomar da Silva Lopes, presa em 1970. Hoje, aos 71 anos, segue enérgica e dedicada aos direitos humanos. Foto: Fernanda Labate Reprodução de documentos: Memória Política e Resistência (Arquivo DEOPS/SP)

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de centros acadêmicos (para fragilizar as organizações estudantis), ela conta que ingressou no movimento na época em que ele buscava se solidificar novamente. “Na época eu era da terceira turma, quer dizer, era uma faculdade muito nova, então essa organização estudantil ainda era muito incipiente. E aí eu comecei a participar, comecei a tentar me achar dentro da faculdade, a me organizar. O movimento estudantil começa a se reorganizar de uma outra forma, tentando recuperar as suas representações e os seus centros acadêmicos.” Segundo ela, porém, em algum tempo a região onde estudava se tornou um verdadeiro aparelho do movimento estudantil. As faculdades de medicina, de filosofia, de economia, de direito e o curso integrado de sociologia e política localizavamse na mesma região e formavam um centro em ebulição em que até alguns professores se inseriam. Foi com a ajuda deles que Guiomar conseguiu, por anos, lidar com o envolvimento nos movimentos e o estudo da medicina. Isso, porém, não passou despercebido pelos olhos atentos da repressão. A efervescência presente naquela região foi parcialmente resfriada pela criação da Cidade Universitária e a mudança de alguns cursos para o outro campus. A separação não parou os militantes, que já estavam habituados a se reerguer e reorganizar. Nesse momento, porém, é consensual a ideia de que pequenas organizações estudantis eram frágeis, e que havia a necessidade de se criar algo maior e melhor consolidado. Foi então que surgiram a ALN e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), dois dos mais importantes grupos de guerrilha urbana da época. O primeiro realizou e participou de algumas das maiores ações armadas contra a repressão, tais como o sequestro do embaixador americano em 1969. Prontamente, Guiomar se uniu à ela. A ajuda de seus professores já não bastava para que ela conseguisse se focar nos estudos o suficiente para lidar com as duas coisas ao mesmo tempo, e o caminho que preferiu trilhar não foi o da vida 20


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acadêmica. “É, não era fácil porque eu sempre eu fui absolutamente obcecada por pesquisa. Comecei a fazer muita pesquisa, pesquisa experimental e tal. Nós tínhamos professores que também apoiavam, então davam uma certa canja para a gente. Mas chegou um momento em que eu falei: ‘Olha, não dá mais, chega, vou me integrar completamente à luta’.”

“Não dá mais, chega, vou me integrar completamente à luta”

Ao desistir do tão exigente curso de medicina, Guiomar passou inteiramente para a clandestinidade. A mulher, que já participava de manifestações de rua duramente reprimidas com tanques de guerra, passou a integrar ações que incluíam roubos a bancos, expropriação de veículos para uso da organização e outras coisas de caráter parecido. Inicialmente, a ex-estudante de medicina fazia parte de grupos pequenos que executavam o que lhes era pedido. Segundo ela, porém, a ALN também contava com os chamados GTAs, Grupos Táticos Armados, treinados de forma exemplar (os membros recebiam treinamento de guerrilha urbana em Cuba ou no dia a dia, lentamente, no Brasil) para realizar ações armadas de forma autônoma dentro da organização. Logo, Guiomar foi chamada para atuar como motorista de um GTA, e é com orgulho que explica os dois lados de participar de algo tão grande quanto as ações que promoviam. “É fantástico! Primeiro que eu tinha que compreender a cidade. Era uma coisa maravilhosa, eu conseguia pensar o seguinte: ‘Eu consigo dominar essa cidade’. É muito legal, né? É uma sensação assim de liberdade, de estar completamente liberta. Por outro lado, eu tinha uma função no dia a dia que era bastante difícil porque você não podia relaxar nem um pouquinho, né? O tempo todo você tinha que estar atenta, se você está sendo seguida, se você cumpriu tudo direitinho, se está tudo certo, se você tem dinheiro, se você não tem... você tem 21


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que dar conta de uma montanha de coisas, e muito depende de você. Não se pode ser preso, era uma responsabilidade gigantesca.” O plano da ALN, segundo Guiomar, era o de, aos poucos, fazer com que as áreas rurais se engajassem na resistência tanto quanto as áreas urbanas. Assim, poderiam eventualmente formar um exército que possibilitasse uma guerra mais equilibrada contra a repressão e, no fim, a tomada do poder pela militância de esquerda. Para isso, promovia ações tais como a tomada da Rádio Nacional, em que um grupo de guerrilheiros invadiu, em 1969, a estação e incentivou que fossem formadas guerrilhas no meio rural. “Depois a gente ficou sabendo que as pessoas comemoraram nos bares e tal, estavam enlouquecidas! Achavam que a ditadura ia cair no dia seguinte, que ia haver uma reestruturação da sociedade muito rapidamente”, explica, vibrando ao se lembrar do ânimo que aquilo trouxe à militância. Nem tudo, porém, era um mar de rosas. Nessa época, Guiomar já integrava um GTA e tinha funções além de ser motorista. A ex-guerrilheira conta que as ações promovidas passaram a, cada vez mais, anunciar a força que a organização e os movimentos em geral tinham. Era como se gritassem “estamos aqui!” em um megafone direcionado aos militares. “Nós tínhamos uma certa sensação de que a gente estava conseguindo dominar o território por onde circulávamos, mas a partir de algumas ações isso começa a mudar um pouco. Percebemos que talvez a gente não estivesse dominando tanto, né? O inimigo está alerta e vai tentar compreender qual é a nossa dinâmica, como nós atuamos”, explica ela. E foi exatamente como aconteceu; a repressão endureceu cada vez mais e passou a acompanhar melhor as táticas usadas pela resistência.

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Uma das táticas em questão era a usada para esconder os carros utilizados em ações. Guiomar explica que, para preparar um carro roubado para uma ação, os grupos tiravam a placa de outro carro e colocavam no que iam usar. A polícia acabou percebendo que os carros que apreendiam não correspondiam com os dados nas placas. Foi então que passaram a cercar veículos roubados por toda a cidade e fizeram um número crescente de prisões. Todo o processo de prisões culminou, em 1969, com a morte do líder Carlos Marighella. “A gente perdeu o norte e, com a morte do Marighella, achamos que seria importante tentar nos unir, né? Dentro do possível. Então existiam outras organizações menores, começamos a atuar em conjunto e formamos uma frente de esquerda na tentativa de continuar aquelas ações e nos proteger, né? Foi muito difícil. Quer dizer, antes da morte do Marighella já tinha sido um horror porque justamente o grupo melhor treinado para a guerrilha urbana havia sido preso”, explica. O movimento passou um ano tentando retomar parte do que fazia antes de ter sido tão fragmentado até que, em 1970, Guiomar foi surpreendida por membros da Oban na rua e foi presa. Naquela época, para dirigir o carro de outra pessoa, era preciso ter uma autorização do dono. Na tarde em que foi presa, Guiomar estava dirigindo um carro que a polícia estava rastreando, Guiomar foi atirada já que, algum tempo antes, no chão e espancada um companheiro que tinha autorização para dirigi-lo no meio da rua havia sido preso de porte do documento. “Então eles, de posse da autorização, tinham a chapa do carro. Eu fui ver uma casa na região de Santo Amaro e, na volta, muito estupidamente, eu fiz o trajeto que a Oban costumava fazer. Eles viram minha chapa, puseram no rádio buscando reforços e me encontraram.” 23


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Logo de cara, Guiomar foi atirada no chão e espancada no meio da rua. Apanhou ainda mais dentro do carro a caminho da Oban, já que não parou de gritar na esperança de que alguém do lado de fora pudesse ouvi-la. “O meu dilema era assim: alguém precisa saber que eu fui presa. Então eu gritei o quanto eu podia, aí eles começaram a me bater para eu calar a boca”. A militante conta que eles tinham uma tática: assim que prendiam algum membro com grande envolvimento em organizações grandes, faziam de tudo para saber quando seria o próximo “ponto”, ou seja, o próximo encontro. Com Guiomar não foi diferente, foi brutalmente torturada para que dissesse quando seria o próximo encontro. Ainda há, atualmente, investigações para descobrir as reais causas da morte de pessoas que foram presas naquela época. É conhecido, porém, que muitas foram de fato mortas acidentalmente enquanto eram torturadas. Acidentalmente porque, segundo Guiomar, havia casos em que não percebiam os limites dos presos e acabavam matando-os antes de retirar toda a informação de que precisavam. Após ser colocada no pau-de-arara e levar muitos choques mantendo-se calada, Guiomar começou a passar muito mal e causou um alvoroço entre as pessoas que estavam a torturando. “Eles ficaram um pouco preocupados porque queriam me manter viva, né? E aí eu não conseguia mais levantar, fiquei muito mal. Eles chamaram alguém que eu não sei o que era. Ele disse: ‘Não sei, está meio estranha’. Aí eles me levaram para o pronto-socorro privado.” Ainda assim, a preocupação em não a torturar a ponto de matála não foi a única razão pela qual a levaram ao hospital. Alguns militantes, revela Guiomar, carregavam consigo uma cápsula de cianureto, substância tóxica que, em determinadas doses, pode provocar a morte. O motivo de carregarem a substância mostra toda a devoção que as pessoas tinham com o movimento e também com outros companheiros: “A gente andava com uma dessas com a convicção muito forte de que era melhor morrer do que 24


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ser torturado, aniquilado diante da tortura e ainda por cima ter que delatar, falar sobre algum companheiro. Então eles ficaram preocupados se eu não podia ter tomado o cianureto. No prontosocorro me fizeram uma lavagem estomacal”. Identificados alguns sinais neurológicos incomuns, resolveram levá-la ao Hospital das Clínicas, em São Paulo. A recepção que teve nas Clínicas, porém, não foi das mais agradáveis. Guiomar conta que o chefe do pronto-socorro na época era um homem envolvido com a repressão que gritava o tempo todo com ela tentando arrancar algum tipo de informação. Apesar disso, a guerrilheira mantinha-se completamente calada. Foi deixada tomando soro com um homem a vigiando em uma sala enquanto discutiam o que fazer. Ela, porém, era dominada por um só pensamento.

Guiomar se atirou da janela da sala em que se encontrava, no 4º andar do hospital

O de que precisava morrer antes que colocassem as mãos nela novamente.

O que para alguns pode parecer um ato que demonstra fragilidade é, na verdade, pura dedicação, a dominação pelo medo de colocar outras pessoas em risco, a recusa em padecer nas mãos de um sistema pelo qual tanto lutava contra. Com esse pensamento, Guiomar se atirou da janela da sala em que se encontrava, no 4º andar do hospital. “Caí em cima de um telhado e me arrebentei inteira... Não morri. Voltei para lá, para o pronto-socorro, esgoelando de dor porque tive várias fraturas e luxações. Era no ombro, quando luxa você tem uma artéria importante que fica prensada, então não circula sangue. Meu braço começou a ficar isquêmico, e o tal chefe do pronto-socorro dizia: ‘Ah, agora você está gritando? Você não falava nada, agora você está gritando, então você vai ficar com seu braço assim’. Daí fiquei lá um tempo gritando, urrando, uivando até 25


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que ele resolveu colocar no lugar e mandou que me levassem de lá imediatamente.” A repressão, porém, não se fragilizou com a situação de Guiomar, muito pelo contrário. Após passar alguns dias no hospital do Exército, a militante foi levada de volta a Oban, e o fato de estar engessada não a livrou da violência extrema. Ainda queriam informações dela, então a tortura continuou na mesma intensidade, com choques que acabaram por ocasionar em Guiomar uma trombose extremamente problemática. “Minha perna ficou imensa, eu não aguentava de dor. Acabei tendo que voltar para o hospital”. Ela conta ainda que experimentou situações como as relatadas por Rita Sipahi, nas quais os torturadores, em meio a sessões de violência, as comparavam com membros de suas famílias. “Ele (um dos torturadores da Oban) chegava para mim e dizia assim: ‘Você podia ser minha filha’. Mas que horror! Como o cara fala isso para alguém que ele está torturando? Você entende? O descolamento das coisas... você pode pirar junto com um cara desses. É brutal.” Foi então que a guerrilheira pareceu ter sido salva pelo gongo. Naquele momento, a outra organização que surgira ao mesmo tempo que a ALN, a VPR, passou pelo mesmo processo que a outra; pouco a pouco, muitos grupos de ação foram desmantelados e um grande número de militantes foram presos. Com isso, as prisões ficavam cada vez mais lotadas e a repressão decidiu “passar adiante” as pessoas que estavam presas havia mais tempo e que já pareciam ter cedido todas as informações que era possível extrair. Guiomar foi então mandada para o Dops (Departamento de Ordem Pública e Social). O Dops, assim como o DOI-Codi (Destacamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Interna) e a Oban (Operação Bandeirante), eram órgãos praticamente autônomos criados pelo regime militar. Neles, várias 26


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equipes de militares comandavam operações para investigar, prender e torturar resistentes aos ideais da ditadura. Até hoje, partes dos estabelecimentos (como celas e delegacias) estão intactas e liberadas para visitação do público em forma de memorial. Em seguida, Guiomar foi transferida para o presídio Tiradentes e enfim para seu destino final, onde passaria o resto dos anos presa: a Penitenciária Feminina. Guiomar conta que quando precisaram demolir o presídio Tiradentes para a construção do metrô e ela foi realocada na Penitenciária Feminina (onde, segundo informações externas, seria o lugar onde receberia a melhor assistência médica), ela acabou separada das companheiras de que tanto gostava, “É uma ligação tão já que várias foram forte, tão forte, tão mandadas para um forte... Você dá a sua presídio provisório. Separada da única vida pelo outro!” coisa que, segundo ela, a mantinha sã e resistente. A necessidade de ter aquelas pessoas por perto era tanta que a militante acionou meios oficiais para que fossem reunidas. “Nós ficamos fazendo pressão via auditoria, via advogado, para que pudéssemos ficar todas juntas novamente, aí nós fomos para um lugar chamado ‘Casa do Egresso’ que ficava junto à Penitenciária Feminina. Nos juntamos novamente”, explica, exalando gratidão. Ao ser questionada sobre o que aquelas pessoas significavam para ela, Guiomar comenta, risonha, que tudo se resume a isto: “Eu acho que nenhuma geração, ninguém vai conseguir compreender. Não vai, não dá para compreender porque é um sentimento, é uma ligação tão forte, tão forte, tão forte... você dá a sua vida pelo outro! 27


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Não dá para vocês imaginarem isso em uma vidinha como a de hoje”. Quando ela já estava fora da prisão, um de seus companheiros contou que conforme ela era transferida de uma prisão para outra havia tentativas de resgatá-la. Em uma das vezes ele a viu pela janela de uma van e descreve a cena como alguém profundamente solitário. Foi por essas pessoas que a ex-guerrilheira quase deu a vida. Guiomar foi solta em 1974 e então se percebeu perdida. “Eu me condicionei, me preparei para uma vida de militante. Totalmente voltada para a militância. De repente eu fui presa. A prisão foi um baque, me quebrou. Me quebrou no sentido de ver os companheiros mortos, isso foi muito arrasador, muito difícil. É muito dolorido. Aí eu sabia que eu tinha que me reestruturar para uma vidinha que eu tinha negado lá atrás.” Logo que saiu da prisão, recebeu um ultimato de sua mãe. Ela e o pai de Guiomar gastaram boa parte do que tinham com advogados que pudessem resolver a situação em que a filha se encontrava e estavam separados, então já não tinham condição de mantê-la. Foi por isso que, no primeiro dia de liberdade, procurou uma pessoa que poderia lhe oferecer tratamento psicológico de graça. Guiomar revela que até hoje já passou por vários terapeutas levando várias questões diferentes; desde que foi solta, a psicoterapia é uma constante em sua vida. Por estar em liberdade condicional, ela não podia retomar o contato com movimentos e precisava escolher entre estudar ou trabalhar. Por meio de um financiamento, Guiomar voltou para a faculdade de medicina, mas, por ter sido jubilada ao exceder o tempo estipulado para finalizar o curso, teve de entrar quase no começo novamente. Apesar de não estar mais presa, o ambiente que a recebeu era quase tão hostil quanto uma prisão. Seus colegas de sala ou seguiam ferozmente a ideologia de direita, ou morriam de medo de se aproximar da ex-guerrilheira. “E eu fui parar em uma classe de gente que não tinha a menor ideia de onde eu vinha, 28


Quando a morte é a única saída

estranhíssima, tinha fama de terrorista. Eu não sabia o que fazer com aquilo, passei 15 dias em que não conseguia entrar naquela escola porque não conseguia me ver lá dentro. Até que eu falei: ‘Quer saber de uma coisa? Eu sou estranha mesmo, vou assumir o papel da estranha completamente’. Me vesti bem estranha. Aí sentei na classe, ninguém falou comigo. Ninguém nem olhou para mim. Eu passei uns dois ou três dias sem ninguém abrir a boca”, conta, rindo um pouco ao se lembrar de que a primeira vez em que falaram com ela foi como se ela fosse capaz de morder a pessoa. Nem os próprios professores facilitavam sua vida. Às escondidas, faziam apostas sobre quanto tempo a ex militante duraria na faculdade; alguns diziam meses, outros um ano. Segundo Guiomar, tudo o que podia ser feito para que ela reprovasse, era feito. No trabalho que conseguiu em um hospital por intermédio de uma amiga, não foi diferente. “Um cara de direita uma vez chegou no hospital e disse: ‘Olha, vocês não vão aceitar terrorista aqui, né?’. Essa área médica é difícil.” Apesar das dificuldades, ela conta que não cedeu a quem tentava derrubá-la e conseguiu terminar a faculdade. Nessa mesma época, aproximou-se de um companheiro e começou a namorar com ele, mas por estar em liberdade condicional, precisava dar conta de todos os seus passos e “Meus filhos são os dos motivos de tudo o meus companheiros” que acontecia em sua vida, então foi necessário que se casassem. Após a experiência de estar presa (e ainda em condicional), a médica chegou a participar de alguns movimentos menores, mas sempre com cautela. Teve dois filhos e conta que sua experiência de resistência a influenciou fortemente na forma de criá-los. “Meus filhos são os meus companheiros, os dois têm noção absoluta de esquerda, comigo! Eu não ia criar um policial, de maneira 29


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nenhuma! Estão amarrados comigo, têm a mesma posição que eu. Desde muito pequenos foram criados com os companheiros, ouvindo a história deles... É a nossa referência, não tenho outra”, relata, mostrando que, apesar de hoje coordenar a Secretaria de Políticas para Idosos (órgão da Prefeitura de São Paulo que tem o objetivo de melhorar a vida de idosos em geral, tanto em questões como mobilidade urbana quanto violência contra o idoso), quase toda essência é composta pelas experiências que vivenciou. Atualmente, Guiomar ainda luta contra as sequelas deixadas pela tortura. Um dos ossos que quebrou ao saltar da janela não se reestruturou como deveria, causando dores, além de ainda ter problemas nas pernas decorrentes da trombose que teve enquanto esteve presa. Apesar de atribuir tudo isso às experiências violentas, a médica não se considera uma vítima, e realmente não é. É alguém que pode afirmar ter feito absolutamente tudo o que podia por seu país, por seus companheiros, por seu futuro e por si mesma.

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2 O medo não é real, até que bate à sua porta Uma estudante revoltada com o que se passava a sua volta, comprometida a ajudar qualquer um de seus companheiros, mesmo que, por vezes, não soubesse nem seus nomes verdadeiros. Mesmo sem qualquer ligação direta com movimentos de resistência que envolvessem ações armadas, ou seja, sem que de fato “colocasse a mão na massa”, N. ficou presa durante meses e foi torturada nas dependências do Dops apenas por tentar proteger alguém que sabia ainda menos que ela. Com um xale nos ombros, atenta e parada em meio às pessoas que se movimentavam em torno de um café no Shopping Eldorado, em São Paulo, N. F. me lançou alguns olhares furtivos quando passei por perto e prontamente me reconheceu da foto no perfil do Facebook e da descrição que havia lhe passado. Minha primeira impressão sobre ela foi de que era bastante séria, mas, ao saber que eu não a acompanharia em um cafezinho, me trouxe um brigadeiro, sorrindo, incerta. Foi então que passei a percebê-la como realmente é: uma pessoa doce envolta em um manto de traumas. Durante nossa primeira conversa, N. se mostrou um tanto quanto receosa em me contar sua história. Falou rapidamente sobre suas vivências durante a ditadura militar no Brasil (instituída em 1964) 33


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e, apesar de já ter Algumas vezes, o único dado seu depoimento à Comissão Nacional jeito de lidar com um da Verdade, trauma é enterrando-o confessou que ainda fica muito nervosa no passado ao relembrar os tenebrosos acontecimentos. Mesmo parecendo estar levemente desconfortável, concordou em me encontrar novamente em alguns dias para me contar sua história. A única condição foi de que pudesse permanecer anônima. Fazendo algumas pausas e escolhendo com muito cuidado as palavras que usa, N. me relatou sua história em sua casa, ambiente que concentra as coisas com as quais mais gosta de interagir atualmente: muitas plantas e um cachorro adorável ironicamente chamado de Jack, O Estripador. Desde que foi libertada, N. quer o mínimo de contato possível com o que se relaciona à época. Algumas vezes, o único jeito de lidar com um trauma é enterrando-o no passado. N. conta que sempre fora, de certa forma, destemida. Na década em que crescera, nos anos 40, as imposições sobre as escolhas feitas por mulheres eram ainda maiores que nos dias de hoje. Era esperado que se casassem, tivessem filhos e se dedicassem totalmente aos afazeres domésticos. Mas esse estilo de vida não combinava com ela, que queria expandir seus horizontes e tornarse independente. Para a garota nascida em Pirassununga, interior de São Paulo, a decisão de prestar vestibular e estudar Sociologia e Política na Universidade de São Paulo causou estranhamento em sua família, mas só em um primeiro momento. Durante sua adolescência, conta que assuntos políticos eram discutidos em casa e que ninguém de sua família buscava doutrinar suas opiniões, era tudo conversado com muito respeito. 34


(N.F.) na época em que foi presa, em meados dos anos 70. Naquela época, ainda não conhecia o medo Foto : Fernanda Labate/Arquivo Pessoal

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Havia, porém, preocupação com o envolvimento da juventude em assuntos relacionados à política em geral. Para o descontentamento dos pais com filhos jovens e de acordo com N., não havia como escapar: assim que mergulhou no mundo acadêmico, passou a participar de grupos de estudo, ato que, na época (meados dos anos 60), já não era bem visto pelo governo. Seu único envolvimento direto com a repressão era em movimentos de rua dos quais participava – onde, conta, enfrentava cavalarias jogando bolinhas de gude nas patas dos animais – com o sentimento de que era algo necessário a fazer e que as consequências nunca a atingiriam. “É como se a situação política de hoje fosse degringolando e chegasse um momento em que você não suportasse mais ver o que estava acontecendo do seu lado. Você toma uma posição”, justifica. Apesar de não cursar jornalismo, durante sua graduação, N. começou a trabalhar na revista Realidade, no departamento de pesquisas. Pouco tempo depois e incentivada por jornalistas que a levavam junto quando saíam para cobrir acontecimentos, passou a escrever suas próprias reportagens. Ficou por algum tempo nos periódicos Jornal da Tarde e Folha da Tarde para adquirir experiência, e então foi convidada a trabalhar na revista Veja. Sabe-se que, na época em questão, o trabalho jornalístico foi bastante vigiado pela repressão. Era comum que veículos, quando tinham textos censurados, substituíssem certos trechos por coisas desimportantes, tais como receitas culinárias. Isso indicava ao leitor que a reportagem não estava completa. Os censores estavam sempre presentes nas redações e nada era publicado sem antes passar por suas mãos e por seu pincel atômico que eliminava palavras e deixava os textos, muitas vezes, desconexos.

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N., por sua vez, conta que nunca teve nenhuma de suas matérias censuradas. “Desse período da Abril eu não tenho absolutamente nada a dizer, nunca - pelo contrário! - interferiram em qualquer matéria em termos de ‘diga isso, não diga aquilo’, não existe isso. Aliás eu nunca enfrentei este problema na minha vida.” Portanto sua relação com a repressão era, até então, de revolta, mas distante; era sabido por todos o que se passava nos porões da ditadura, veículos jornalísticos chegavam a falar sobre, redações e universidades trabalhavam sob o olhar atento de censores e pessoas desapareciam, mas sua impressão – compartilhada pela maior parte da juventude combatente – ainda era a de onipotência, a de que aqueles horrores nunca a assombrariam, de que seus cuidados sempre seriam suficientes e de que sua ideologia nunca seria descoberta pelo regime. A jornalista ainda não conhecia o medo. Pessoas que estavam envolvidas no combate à repressão não necessariamente lidavam pessoalmente com os tão conhecidos sequestros de militares, explosões e o enfrentamento armado em si. Muitos participavam das chamadas “redes de apoio”, ou seja, ficavam disponíveis para eventuais necessidades que organizações da resistência pudessem ter. Nessa época, N. conta que estava ligada à rede de apoio de organizações e morava sozinha em São Paulo porque seus pais haviam se mudado para o Rio de Janeiro. Estar independente ampliou ainda mais sua noção de invencibilidade e onipotência. Ela mantinha contato com muitas pessoas ligadas à resistência devido aos grupos de estudo dos quais participara durante a faculdade. ”Eu era bastante amiga de vários membros do grupo, desse grupo de estudos. A gente terminava as aulas e discutia, dentro ou fora da faculdade, na casa de um, de outro, etc”, relembra. Foi então que um de seus amigos, professor universitário no Rio 37


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de Janeiro e que conhecia seu posicionamento, sua revolta com a situação política do País, lhe pediu o favor que culminaria nos piores meses da vida de N. “Ele me disse: ‘Olha, tenho uma amiga e o irmão é muito procurado. Ela e a mãe vão ter que sair da cidade’. Era costume, se não pegassem o rapaz iam pegar a mãe, a irmã, o filho, o tio...” Disposta a ajudar seus companheiros, N. aceitou abrigar a moça e a recebeu em seu apartamento. Durante os aproximados oito meses em que viveram juntas, sua rotina era consideravelmente desgastante. “Eu vivia em um prédio onde só havia velhinhos”, conta, rindo um pouco. Os outros moradores do prédio em questão se reuniam todos os dias e falavam sobre tudo o que acontecia na vizinhança, portanto N. alertava sua hóspede para que permanecesse dentro do apartamento durante o dia todo. À noite, N. retornava do trabalho e, quando era possível, a levava para um passeio de carro, já que, por não ter contato com seus familiares, a mulher hospedada em sua casa tornou-se profundamente deprimida. Por chegar em casa todos os dias durante meses e se deparar com a hóspede tão triste e sem esperanças, N. conversou com pessoas da organização da qual o irmão da moça fazia parte e pediu que pudesse fazer um contato com ele. Assim foi feito, e a jornalista encontrou-se com o rapaz por duas ou três vezes em bares e lugares movimentados. Nesses encontros, informações de grande importância não eram trocadas por questões de segurança. A pessoa que lhe passara tal contato, uma mulher, era alguém muito importante dentro da ALN, e viria – após tortura extrema – a ocasionar a prisão de N. Em meio a seus relatos, N. faz questão de frisar que não guarda rancor de ninguém que possa ter facilitado os acontecimentos que se desenrolaram a partir daquele momento. Pessoas, para ela, são 38


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como um bambu. Frágeis, podem se quebrar a qualquer momento. “Todo mundo tem, no meu entender, um limite. Se você admite que você é humano, que você pode falar e que você tem limite a dor, a sofrimento, a ver gente ser espancada na sua frente, a sofrer uma série de coisas, então você aprende a dialogar com a tortura. Então não adianta, não existem heróis.” Explica também que nomes pouco importavam; ninguém estava interessado em saber informações pessoais uns dos outros, o único interesse era o de se organizar contra um mal maior. Para isso, usavam nomes falsos, sem valor e, hoje, para manter-se distante do universo do qual fez parte e lhe trouxe tanta angústia, prefere não citá-los.

“Não adianta, não existem heróis”

Após se encontrar poucas vezes com o irmão da mulher que estava hospedando em sua casa, N. soube que seu contato dentro da ALN, a pessoa que a havia ajudado a encontrar o rapaz (extremamente procurado pelos órgãos repressores), estava presa. Até hoje, N. não descobriu como a encontraram, mas sabe que ela chegou ao limite: após ser terrivelmente torturada e levada a um hospital, quebrouse, assim como o bambu, e atirou-se da janela. Mesmo assim, continuou sendo interrogada no próprio hospital, e optou por dizer nomes de alguns companheiros que não estavam inteiramente envolvidos com lutas armadas ou com a parte mais agressiva dos movimentos de resistência. Um deles, foi o de N. Foi em seu local de trabalho que a jornalista soube que estava sendo procurada. Mino

“Eu sabia que estavam atrás de mim e mais cedo ou mais tarde chegariam” 39


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Carta, o coordenador da Veja naquela época e que tinha muito carinho pela jornalista, a alertou. “Foi quando ele me chamou e disse: ‘Olha, a polícia veio aqui, estão procurando alguém assim, assim, assim, eu acho que é você’”. A partir desse momento, N. passou a viver em um clima de tensão que nunca havia experimentado antes. “Eu sabia que estavam atrás de mim e mais cedo ou mais tarde chegariam. Saí do meu apartamento e disse para a moça que morava comigo: ‘Estão atrás de mim e você precisa sair. Eu não quero saber para onde você vai. Você tem um, dois dias para sair’.” Segundo ela, fez isso para protegêla. Diz que, se encontrassem a mulher que estava hospedada em seu apartamento – fragilizada como estava –, “fariam picadinho”. Entregou-lhe algum dinheiro e não voltou a vê-la. Hoje, recuperada, é capaz de ver a situação à distância, como se colocasse tudo o que passou dentro de uma caixa que não permite que as lembranças a machuquem como faziam antes. Ela relata, com calma, séria, e fazendo algumas pausas, como foram os dias que antecederam sua prisão. Após deixar seu apartamento, N. passou uma semana alternando os locais onde dormia e recebendo notícias cada vez mais tenebrosas. Um dia, ficava na casa de um amigo. No dia seguinte, outro amigo. No próximo, na casa de sua avó. Nesse momento, seus pais vieram a São Paulo para tentar ao máximo protegê-la. Durante a semana, porém, dois de seus colegas repórteres na revista foram procurá-la em seu apartamento. Como já havia gente de tocaia para prendê-la, levaram os dois à Oban. Com isso, N. foi aconselhada a adotar uma conduta menos defensiva. “Aí eu recebi um conselho, me disseram: ‘Olha, você tem pouco envolvimento, eles não têm nada muito concreto contra você, vai lá e presta um depoimento’.” E assim a jornalista fez. 40


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Apreensiva, decidiu seguir a sugestão e compareceu à Oban para prestar seu depoimento alegando que não sabia nada sobre o tão procurado rapaz. Chegando ao local, logo na escadaria de entrada, N. conta que seu pai – decidido a acompanhá-la – foi tratado com truculência e impedido de entrar com ela. Mal havia entrado no local e já foi levada direto para uma cela feminina (descrita com um pequeno quarto com cerca de dez mulheres) e começou a ser interrogada. Em um primeiro momento, N. relata que teve uma sorte considerável. Seu avô, já falecido na época, fora comandante do II Exército e, por isso, sua avó conhecia algumas pessoas que tinham passe livre parar entrar em locais como a Oban. Contatado, um homem amigo de seu avô a visitava todas as semanas e, com isso, ela não enfrentou – enquanto presa naquele local – métodos extremos de tortura. Além disso, com ela os militares não tiveram o benefício da dúvida; tão logo fora presa, toda sua família já sabia e já se mobilizara para reverter a situação. Em casos em que ninguém sabia que a pessoa estava “desaparecida” o preso ficava inteiramente nas mãos da repressão. Ainda assim, quando era interrogada sobre o paradeiro do irmão da garota que havia hospedado por oito meses, levava choques nos pés. Não era todo dia que a levavam da cela para questioná-la, mas, mesmo assim, o clima sob o qual vivia na Oban era de vigilância constante. N. passara a não dormir e permanecia observando tudo o que acontecia em busca de fragmentos de informação sobre o que estava guardado para seu futuro. “A cela feminina tinha uma parte do vidro quebrada. Nisso, a gente conseguia ver o portão, então eu cheguei a ver minha família, meu pai, minha irmã, meu cunhado, mas não os deixaram entrar. Vi uma vez o Mino Carta, o Roberto Civita, da Abril... Também não conseguiram”, diz ela sobre os momentos de angústia em que esteve quase totalmente incomunicável. Sua única fonte de informações pelo mundo e, de certa forma, segurança, ainda era o amigo de seu avô.

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Um dia, ele não apareceu. Após três meses na Oban e aproveitando que seu protetor fora a Brasília para um compromisso inadiável, retiraram N. da cela e a transferiram para o Dops. Sem saber o motivo e aflita por não poder avisar ninguém, N. foi torturada com violência extrema pela primeira vez. Logo que chegou ao Dops, suas roupas foram arrancadas e a colocaram no pau-de-arara e a questionaram longamente sobre o paradeiro do tão procurado rapaz com quem havia se encontrado pouquíssimas vezes. Ao ver que aquilo não surtiria efeitos, colocaramem um camburão e Pela primeira vez, na saíram pela cidade pedindo a jornalista temeu que ela mostrasse quais foram os lugares onde se a morte encontraram. O desespero de N. só crescia, já que, por causa do hábito de não trocar informações pessoais, ela realmente não sabia nada sobre ele. Pela primeira vez, a jornalista temeu a morte. Como não acreditavam em suas informações, fizeram-na descer do veículo em vias movimentadas de São Paulo e andar no meio delas enquanto era questionada com armas sendo apontadas e ouvia ameaças. Segundo ela, esta foi a pior noite de todas. “Eu pensei: ‘Bom, se eles querem sumir comigo agora, é a hora’. Durante o processo você não sente medo, você tenta sobreviver de alguma maneira com todas as forças que você tem, mas, nesse momento, eu tive medo. ‘Aqui é ponto final’.” Tudo na rotina do Dops trazia mal-estar. “Eram maiores as salas, acredito que havia umas 12 mulheres. Não tinha colchão, a gente dormia em cima de jornal, as luzes ficavam acesas o tempo todo, não tínhamos privacidade, o banheiro era um buraco no fundo 42


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da cela. Nós fazíamos cabaninha umas para as outras. Banho era em um banheiro só para todas as celas, masculinas e femininas, e um só um por semana... Tudo isso enfraquece a moral da pessoa”, afirma. A sala onde a tortura era praticada ficava exatamente em cima da cela onde N. ficava e a rotina no Dops era clara: todos os interrogatórios em que se utilizava das mais perversas formas de tortura aconteciam após as 18h. Era preciso muita determinação para manter a conduta indicada por companheiros e “dialogar” com a tortura. Ela conta que pensava constantemente em histórias reais que serviam como respostas às perguntas dos torturadores, mas que não prejudicariam terceiros. Para que a fala parecesse mais verídica o possível, a presa deixava que a torturassem por algum tempo e depois soltava fragmentos de informações sem importância. Ela revela também que tinha um meio próprio de se sentir mais firme: “Eu tinha um mocassim com um salto mais alto, sabe? Se me acontecia ser chamada depois das 18h eu o colocava. Era uma maneira de eu me sentir mais segura, entende? Se eu fosse de chinelinho ia complicar minha cabeça. Ter a cabeça clara me fazia enfrentar as perguntas com mais calma. A grande preocupação era não envolver outras pessoas”. Apesar de não achar que, nela, foram aplicados métodos diferenciados de tortura por tratar-se de uma mulher, N. afirma que havia, de fato, alguns artifícios a mais usados contra elas. “Tanto para mulheres quanto para homens, me parece que se estabelece uma relação entre o torturado e o torturador, onde ele vai saber onde está o ponto mais fraco do outro, é um negócio físico”, explica. Mulheres grávidas ou que já fossem mães (estando ou não com o filho por perto) tinham um ponto fraco muito claro: os seres que dependiam delas. Por, na época, não ter filhos, não sofrera coisa parecida, mas afirma ter ouvido ameaças feitas a grávidas ou mulheres que já eram mães, além de relatos de abuso sexual. 43


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Após quase um ano no Dops, o processo que envolvia N. começava a ser investigado. Normalmente quando se chegava a esse estágio, o indivíduo era transferido para outro lugar. No caso da jornalista, levaram-na para o presídio Tiradentes. Ela pensou que, como lá a forma de fazer interrogatório era outra e que poderia, finalmente, receber visitas, seu estado mental melhoraria. Porém, suas expectativas não se realizaram e a impressão de que sua liberdade nunca estivera tão longe aumentou. “Quando você está presa e tentando manter a lucidez, sobreviver, é uma coisa. Mas em Tiradentes você já entra em uma rotina, um cotidiano. As celas eram decoradas com desenhos, com recortes de jornal, de fotografia, as pessoas se organizavam em turnos para limpar as celas, cozinhar, e aquilo tudo, aquela sensação de ‘casinha’, do ‘passou o perigo imediato’.” Conta ainda que, por isso, entrou em depressão, e sua mãe passou a visitá-la toda semana. Mais uma evidência do estranhamento causado por uma mulher envolvida com movimentos de resistência – frequentemente chamadas de “terroristas” – foi vivida por N. Os dias de visita na prisão em Tiradentes eram praticamente um evento; as presas escolhiam suas melhores roupas, faziam trocas de peças entre si, se maquiavam e faziam o maior alvoroço. Em um desses dias, uma comissão de deputados foi visitar o presídio e a jornalista ouviu comentários indignados sobre a forma que se apresentavam. “Essa imagem não batia com a imagem de presas torturadas esquerdistas que as pessoas iam buscar lá dentro”, diz, confirmando o estereótipo tão reforçado pela sociedade de que mulheres envolvidas em assuntos geralmente tidos como masculinos (como política) são malcuidadas e não podem ser femininas. A presença delas em movimentos de resistência era praticamente uma afronta à ditadura. 44


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No começo da década de 70, concluíram – após meses – que N. não era importante para as investigações e a soltaram. Ela conta que foi um choque: “É como se você saísse de uma caverna e de repente está todo mundo na rua, feliz... E eu acho que já não sabia nem andar pela rua”. Com a euforia de estar finalmente em liberdade, parecia que as coisas estavam inteiramente normais, e N. se sentia completamente saudável. Na mesma semana, voltou para a Abril, onde trabalhava quando fora presa, e prontamente a aceitaram. Logo, sua liberdade passou a se tornar uma ilusão. Alguns dias após seu retorno, foi procurada na redação por uma figura estranha: um homem vestindo um grosso casaco de neve em um dia de verão pedindo que o N. o ajudasse com relação a contatos dentro do movimento de resistência. A jornalista explicou a ele que acabara de ser solta e que não queria mais se envolver com nada do tipo. Após aceitar algum dinheiro dado por N., o rapaz foi embora. Poucas semanas depois, jornais informavam que ele havia sido morto por grupos de esquerda. “Suspeitavam que ele provavelmente era um informante infiltrado ou então, como eu te disse, a hora que quebram a resistência de uma pessoa, quebram a fibra de uma pessoa, ela fala e faz qualquer coisa. E provavelmente foi o que aconteceu com esse rapaz, foi muito forte para mim”, explica N., que passou, a partir disso, a perceber que não estava tão bem quanto imaginava. Certo dia, saindo Viver na cidade grande do trabalho, e encarar multidões a conta que sua perna travou trazia muito desconforto completamente. Ela explica que interpretou esse como um sinal físico de que não estava mentalmente sã. Contrariada, buscou um tipo de terapia bastante usado na época, um método de tratamento que envolvia 45


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estímulos elétricos na sola dos pés. Percebendo que aquilo a fazia reviver os episódios em que levou choques nos pés enquanto esteve presa, ela deixou o tratamento de lado. N. já não se entendia com o mundo, sentia como se tivesse chegado aqui de outro planeta. Tinha dificuldades de lidar com pessoas, tanto próximas quanto desconhecidas. Viver na cidade grande e encarar multidões a trazia muito desconforto e ela tornava-se cada vez mais introspectiva. Após tudo o que passara, não se sentia mais a jovem onipotente e cheia de forças para combater as injustiças do mundo. Para se recuperar, foram necessários anos longe do convívio habitual: optou por viver no interior de Minas em uma comunidade de artistas, onde era possível fazer atividades que a permitissem olhar para si mesma e tentar remendar tudo o que sua vivência durante a ditadura destruíra. Como forma de terapia, escrevia, lançava livros para crianças, bordava e visitava São Paulo uma vez ao mês para fechar uma revista. Quando o regime militar chegou ao fim, N. conta que já estava casada e criando seus filhos. Houve uma tentativa de viver em São Paulo, mas a cidade grande ainda a incomodava, portanto passou a viver em uma chácara no interior. Ligava-se às notícias sobre a situação política pura e simplesmente por ainda estar exercendo a profissão de jornalista e conta que chegou a assistir às passeatas que pediam eleições diretas apenas pela televisão, mas nunca mais teve contato direto com movimentos ou buscou pessoas que participaram de seu passado. Revirar seu interior e trazer à tona os traumas do passado, ainda hoje, é doloroso para ela. Apesar disso, afirma que o tempo não pôde apagar lembranças, mas faz com que pudesse enxergar tudo com mais leveza. “O processo de aprisionamento muda você por dentro, para mim mudou. Independente de qualquer outra circunstância você vive uma realidade fechada, com pessoas sofrendo ou sofridas, minha cabeça mudou. Amadureci”. 46


3 O bambu que não se quebra Autodidata no jornalismo, amante da história, fonte inesgotável de discussões sobre direitos humanos e justiça social, Rose Nogueira, assim como N., não chegou a participar diretamente da luta armada, mas teve seus laços familiares, sua vida profissional e sua cidadania profundamente afetados pelos dez meses que passou presa na mão dos mais sádicos torturadores durante o regime militar. Amante de animais e plantas, Rose se mostrou tremendamente entusiasmada em me contar suas experiências e me convidou à sua casa para passar o dia. A primeira impressão – que fica até o fim da entrevista – é a de estar diante da mulher de 69 anos mais enérgica, disposta, sensível e forte que já conheci. Uma mulher resistente. Apesar de sua mãe ter dado à luz em Jacareí, em 1946, Rose passou toda a vida em São Paulo e desde sempre esteve mergulhada em discussões sobre política graças a sua avó. Vinda de uma família de mulheres trabalhadoras, Rose cresceu com histórias permeadas pela desigualdade de gênero e pelo machismo. É possível ver em seus olhos o orgulho que sente da trajetória de sua família, mesmo das questões mais absurdas. Seu tataravô italiano veio ao Brasil na 47


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primeira leva de imigrantes que chegou aqui, mas não gostou. Ao retornar a seu país de origem, decidiu que embarcaria sua filha para casar-se com um homem que ele conhecera aqui. Apesar de, para a época, ser absolutamente comum que mulheres se casassem sem conhecer os maridos e que virassem sua propriedade, a história que Rose conta parece até falsa a olhos acostumados com os relacionamentos dos dias atuais. “Tanto era machista que ela [bisavó] se chamava Genoveva, mas o marido não gostou do nome dela. Colocou outro nome, de Virgínia. Eu só fui saber que ela se chamava Genoveva quando ela morreu, aos 109 anos, era um segredo familiar.” A bisavó, muito vaidosa, invocava o mote de que mulheres deveriam casar-se e cuidar da família, já que fora tão feliz mesmo em um casamento arranjado. Sua avó, por sua vez, foi operária durante toda a vida, além de lavar roupas para conseguir dinheiro extra durante os fins de semana. Mal paga, trabalhava durante 14 horas por dia (inclusive aos sábados) e chegou a esconder ao máximo a barriga quando engravidou da mãe de Rose, já que mulheres grávidas eram demitidas por justa causa naquela época. Trazia consigo o mote de que mulheres devem ser trabalhadoras e nada mais. Foi ela quem ensinou a Rose que sempre se deve enxergar o melhor de uma situação. Mesmo quando se está presa em uma cela úmida e infestada de baratas. Rose perdera o pai aos quatro anos de idade e alguns anos mais tarde, quando já frequentava um colégio católico só para meninas, na Zona Sul de São Paulo, sua mãe casou-se novamente com um homem que já era pai. Segundo ela, a família exótica à qual pertencia contrastava com os ensinamentos do colégio conservador no qual completou os estudos. 48


Legenda: Rose Nogueira, presa em 1969, hoje com 69 anos; não lhe falta bom humor Foto: Fernanda Labate Reprodução de documentos: Memória Política e Resistência (Arquivo DEOPS/SP)

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Nele, havia disciplinas de etiqueta social onde as meninas (a aula não era ministrada para meninos na unidade masculina do colégio) aprendiam diferentes configurações para uma mesa de jantar, entre outros afazeres domésticos. Rose conta que, para se referir às alunas, as freiras e madres diziam que estavam falando com “mocinhas da sociedade” que um dia receberiam pessoas em casa e precisariam saber a maneira certa de organizar pratos e talheres na mesa. Em contrapartida à disciplina e à feminilidade impostas pelo colégio, Rose -vivia desenhando caricaturas das colegas e das funcionárias com uma de suas amigas. O hábito fez com que uma das madres superiores dissesse a seu padrasto que ela era – desde cedo – uma garota insubordinada. “Eu achava tudo isso muito ridículo porque na minha casa era tudo informal, com duas famílias que se juntaram, com um monte de cachorros, entende? Com gente muito diferente, muito legal. Então fui criada meio assim, tive a educação formal da escola mas tive também uma certa liberdade.” Todas essas vivências formaram a mulher que, ao acabar a escola, desejava ser arquiteta. Mas, mesmo em pleno século XX, a formação que tivera no colégio católico não fornecera base alguma em matemática, impossibilitando-a de prestar vestibular para o curso de que tanto gostava. Por ter o hábito de inventar suas próprias reportagens na máquina de escrever do padrasto, Rose então pensou em ser jornalista e prontamente passou a correr atrás de seu destino. Começou no ano em que o golpe ocorreu, em 1964, na Editora Abril em um cargo parecido com o de um estagiário; sua missão era a de passar em todas as emissoras de televisão existentes na época (Tupi, Record e TV Paulista), anotar toda a programação e organizar um guia, a Revista Intervalo.

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Ao observar a vida de Rose, tudo parece uma sequência de coincidências para alguém que deixava tudo acontecer, se deixava


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levar. Durante esse período, Rose acabou conhecendo muitas pessoas, entre elas aquele que considera como sendo sua faculdade particular, o homem que a ensinou tudo sobre o jornalismo e a contratou para trabalhar no pequeno Shopping News: Hermínio Sachetta. “Ele falou: ‘Nossa, que bonitinha, quer ser jornalista, eu vou te dar muitas leituras, filha, e você vai ser uma boa jornalista’.” Após algum tempo no Shopping News fazendo e refazendo reportagens como seu editor lhe pedia, Rose passou a aprender na prática tudo o que fazia parte da rotina jornalística e também se apaixonou pela primeira vez. A aprendiz de jornalista passou a se relacionar com um homem mais velho que ela, um colega de trabalho e que era membro do Partido Comunista, o Partidão, como ela prefere chamar. Assim, ela passou a frequentar almoços e eventos do partido na clandestinidade. Desde o início deixou bem claro para quem quisesse ouvir que seu posicionamento era inteiramente contra o regime militar. Ao finalizar sua experiência no veículo, a jornalista passou a encontrar seu namorado com muito menos frequência, e acabaram terminando. Ela iniciou seus trabalhos como repórter na Folha da Tarde, que, segundo ela, atendia um nicho específico. “E esse jornal era tido como esquerdóide, eles procuravam atender a quem se interessava por assuntos mais alternativos. Era o nicho dos estudantes.” Foi no período em que esteve no veículo que Rose casou-se com seu editor, Luiz Roberto Clauset. E também foi durante este período que fora presa junto do marido e apenas um mês após dar à luz ao primeiro e único filho do casal. Mesmo dando todo o apoio a movimentos de resistência, os dois não participavam ativamente do planejamento de ações nem nada do gênero. Rose relembra, emotiva, a forma que escolheram para fazer sua parte na luta contra a repressão. “Fomos morar 51


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juntos e alguém pediu nossa casa emprestada para fazer algumas reuniões políticas clandestinas. Tanto ele quanto eu concordamos. Concordava mesmo e faria de novo. E nessas reuniões foi onde a gente conheceu Carlos Marighella. A gente ficava no quarto e eles na sala” Carlos Marighella chegou a ser considerado o inimigo número um da ditadura. Era político, membro do Partido Comunista, tornouse um dos maiores líderes da luta armada contra a repressão e tinha objetivos de instaurar um sistema aos seus moldes no Brasil, ou seja, comunista. O mínimo envolvimento que Rose e o marido tinham com o Partido Comunista fez com que, na madrugada do dia 4 de novembro de 1969, o grupo apelidado de “esquadrão da morte” batesse à sua porta. Inicialmente e desde antes da ascensão do regime militar no Brasil, grupos de policiais e delegados, tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, utilizavam táticas extremamente violentas para combater crimes, principalmente o tráfico de drogas. Durante a ditadura, estes grupos se aliaram ao regime e alguns deles eram até amigos dos militares da chamada linha dura, ou seja, os que sugeriam a repressão mais tensa possível. Nesta época, estes grupos foram institucionalizados para que combatessem os desafetos do governo, ou seja, pessoas como Marighella, que lideravam organizações adeptas da luta armada.

Rose permaneceu amarrada ao braço do sofá de sua sala e podia subir ao quarto de seu filho caso ele chorasse 52

Rose não sabe até hoje de onde tirou forças e coragem para tal – e também não entende por que não preferiram


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levá-la à força –, mas até no momento de sua prisão e na presença um dos notórios torturadores da época, Sérgio Fleury, ameaçando-a, a jornalista resistiu ao ouvir que seu filho seria mandado ao juizado de menores. “Nós fomos presos pelo Dops e o Fleury falou que ia usar violência. Eu disse que poderia usar, mas eu não iria. Não posso me considerar rebelde, né? Defendi meu filho. Aí ele pegou dois tiras, deixou na minha casa, levou meu marido algemado, amarrado, e eu fiquei”, conta, sempre enfatizando que a luta real travada no período da ditadura no Brasil fora feita pelos militares contra a própria população e não o contrário. Durante a noite em que até o zelador do prédio onde morava foi levado ao Dops, Rose permaneceu amarrada ao braço do sofá de sua sala e podia subir ao quarto de seu filho caso ele chorasse. Era o começo dos piores dez meses de sua vida. No dia seguinte e após revirar a casa inteirinha sem sequer encontrar algo que incriminasse Rose e o marido (“pareciam ratos!”), os homens que a mantinham presa concordaram em levar o filho dela à casa de sua sogra antes de prendê-la no Dops. Ao falar sobre o momento, Rose aperta os braços contra o peito como se realmente segurasse um bebê e que, em breve, tivesse que deixá-lo. A separação foi difícil e dolorosa, mas em sua mente estava claro que era o melhor a se fazer já que conhecia casos em que filhos de presos chegavam a ser colocados para adoção como se estivessem abandonados. A jornalista juntou os pertences do bebê e o deixou na casa da mãe de seu marido – que não estava no local – com apenas um bilhete ditado por um dos militares. “O cara que subiu comigo me mandou escrever ‘estou no hospital com uma amiga que operou a garganta’. Lógico que ela achou esquisitíssimo, mas cuidou do meu filho durante o primeiro ano de vida dele e eu só posso agradecer”, lembra, com ternura. 53


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Naquele dia, conta Rose, muita gente foi presa, desde pessoas sem envolvimento algum e que mal sabiam o que estavam fazendo ali (qualquer pessoa que estava na casa ou no lugar onde os presos foram pegos), até membros do “apoio logístico” – como Rose apelida as pessoas que estavam apenas dispostas a ajudar os movimentos de resistência como pudessem – e o próprio Marighella, morto a tiros naquela mesma noite. Ao chegar ao Dops, Rose e todas as outras mulheres levadas com ela foram encaminhadas para fazer um cadastro que consistia no nome completo, nomes do pai e da mãe, impressão digital e uma foto. Ela conta que não foi interrogada logo de cara e até hoje suspeita que um dos maiores motivos para que prendessem tanta gente inocente era o de assustar a população, mostrar as celas cheias de “terroristas” como costumavam alardear. Além disso, Rose confirma o que foi comentado por N.: as Polícias Civil e Militar competiam entre si para saber quem agradaria mais o governo, ou seja, quem prenderia, torturaria e conseguiria mais informações para que a repressão se mantivesse justificada. Rose não chegou a passar pelos métodos “tradicionais” de tortura quando começaram a interrogá-la; nunca a amarraram no tão vergonhoso e desconfortável pau-de-arara, não a sentaram na cadeira do dragão para que levasse choques violentos. Além disso, nunca a procuraram para extrair informações valiosas. Passadas algumas semanas que Rose estava nas dependências do Dops, o motivo de optarem por mantê-la presa tornou-se bastante claro. Sempre que a procuravam queriam saber a mesma coisa: o paradeiro de Frei Betto. O religioso, que também militava contra o regime, frequentava reuniões na casa de Rose e, durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, foi assessor especial do Presidente. Um detalhe importante e do qual Rose nunca poderia saber enquanto estava presa, era que Frei Betto já havia sido sequestrado, estava preso 54


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no Rio Grande do Sul e a instituição que a mantinha encarcerada tinha conhecimento disso. Hoje, Rose sabe que a motivação para mantê-la ali ultrapassava sua forma de pensar, de militar ou o número de pessoas procuradas que conhecia. “Insistiam porque aí qual é o grande problema? Você é bonitinha! Tinha um tarado lá, um grande tarado chamado Tralli que tirava minha roupa. Ele era totalmente louco, era do esquadrão da morte junto com o Fleury, e quando ele me via ele fazia uns gestos...”, conta Rose, encenando a expressão que o homem fazia quando passava por ela: mordendo o lábio e esfregando as mãos como se estivesse diante de um prato de comida. Por ter sido presa durante o período de resguardo, ou seja, os quarenta dias contados desde o dia em que deu à luz a seu filho, Rose conta que ainda produzia muito leite. Como as presas não tinham quase nenhuma muda de roupa e o banho era limitado para uma vez ao mês apenas – conduta que, apesar de “Esfregava o jornal também ter sido utilizada em mim e falava: com homens, fragilizava ainda mais a mulher, já ‘Viu, Miss Brasil? que não dispunham nem Sua vaca leiteira!’” de absorventes higiênicos –, o leite e outras secreções que produzia devido à gravidez tão recente permaneciam impregnados em seu corpo. Não bastasse tal desconforto, esse aspecto particular carregado por ela desencadeou uma situação que levou Rose a temer para sempre as palavras “Miss Brasil”. “Teve uma vaca que ganhou um concurso de vaca leiteira e saiu no jornal, fizeram uma manchete com isso e o nome dela era Miss Brasil. E aí o cara, esse Tralli, trouxe o jornal e rasgou minha roupa. Esfregava o jornal em mim e falava: ‘Viu, Miss Brasil? Sua vaca leiteira!’”

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O homem, relembra, costumava prendê-la e debruçá-la nua para seu próprio prazer. Em uma das vezes, se masturbou. Em outra ocasião, violentou Rose com os dedos. Em ambas, deixando claro que estava sendo punida por não ser digna de respeito após aliar-se à resistência. Como forma de tornar a experiência mais agradável para si mesmo, o homem que reclamava do cheiro de Rose em todas as vezes que a recrutava para interrogar (ou seja, fazer as mesmas perguntas sobre o Frei Betto, para as quais já havia respostas) e abusar sexualmente da jornalista ordenou que, durante a noite, aplicassem nela uma injeção que cortasse a produção de leite materno. “Eu ainda resisti, não sabia o que era, achava que iam me matar com aquela injeção. Mas o cara me deu na coxa”, conta ela, transparecendo a desolação que sentiu quando acabaram com a única coisa que ainda a fazia sentir a presença do filho. Além de rejeitá-las como cidadãs aptas ao envolvimento com política, o instinto maternal das mulheres e qualquer outro aspecto físico inerente ao sexo feminino, foi frequentemente usado como arma para desestabilizá-las e fragilizá-las em favor dos que – aos olhos do patriarcado – devem estar na posição de poder. A história de Rose – e a própria opinião da jornalista sobre o que sofreu durante os dois meses em que permaneceu no Dops – comprova que os ideais machistas estão tão profundamente enraizados na sociedade que acabam comprometendo tanto a mulher adepta a cumprir o papel social que lhe é imposto (casar-se e ter filhos, opção que os pais de N. gostariam que tivesse escolhido em vez da faculdade) quanto a que prefere ampliar horizontes e seguir o caminho que seus interesses lhe apontam. Rose foi a primeira pessoa a me relatar a presença de uma mulher envolvida com a repressão. Não havia mulheres torturadoras, delegadas, juízas ou em qualquer cargo considerado importante para o aparelho repressor. Quando se envolviam com o regime militar, eram utilizadas única e exclusivamente como acessório, 56


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um mero instrumento com o qual podiam conquistar a confiança tanto de homens quanto de mulheres. A moça com a qual Rose teve contato foi a notória Maçã Dourada. Durante aquela época, e não se sabe como, uma voluptuosa mulher de cabelos louros fora recrutada para “serviços especiais” ligados ao regime, chegando a manter relacionamentos com homens importantes para o movimento de resistência, como José Dirceu. “Sei que ela foi desmascarada e tinha até foto dela no jornal! Aí a Elza [Elza Lobo, companheira de militância e de cela] e eu reconhecemos ela porque a colocaram na nossa cela por um dia ou dois. Ela ficava lá em cima o dia inteiro e voltava para tentar tirar informação da gente! Um instrumento, infiltrada como se ela fosse uma moça presa e nós duas idiotas... Só que nós a reconhecemos.” Apesar de dizer que faltava informação e até inteligência para a moça – que dormia na cela com dois dedos na boca – e de que ela não passava de uma tola, Rose se mostra indignada com o modo que fora usada. Nem quando queriam aliar-se à ditadura, mulheres podiam ocupar posições de destaque. Passados aproximadamente 50 dias do abuso e da violência relatados, Rose foi transferida para o presídio Tiradentes em São Paulo. Como lá a rotina se modificava (não havia mais tortura física, as presas podiam receber visitas), ela pensou que estaria livre do inferno. Porém, como é de se esperar, no momento em que a tortura acaba, as consequências deixadas por elas passam a se manifestar. Rose ainda não sabia, mas estava profundamente doente. Após a injeção que recebera para cortar o leite – a qual, no Tiradentes, Rose foi informada de que continha uma concentração prejudicial de hormônios -, a jornalista passou muito mal. Sentia enjoos, tinha dores e febre constante. No momento em que se está sob ameaças recorrentes, a adrenalina e o clima de vigilância 57


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Algo se tornara irreversível: ela nunca mais poderia engravidar

constante fazem com que a pessoa faça de tudo para resistir. Com isso, deixa de prestar atenção nos sinais do próprio corpo.

Em seu novo cárcere, Rose recebeu a visita de uma médica que a diagnosticou com uma infecção puerperal (se manifesta no aparelho reprodutor e é comum quando há falta de cuidados com a mãe após o parto) em decorrência da injeção e das condições de higiene precárias. Com um antibiótico, a jornalista ficou parcialmente curada, mas algo se tornara irreversível: ela nunca mais poderia engravidar. “Desgraçou totalmente a nossa vida. Como é que pode alguém interromper os sonhos dos outros?”, lamenta, indignada, enquanto traga seu segundo cigarro em uma hora, hábito que também adquiriu na prisão devido ao estresse. Conta também, com certo brilho nos olhos, que praticamente conheceu seu filho na prisão, já que passara apenas um mês com ele antes de ser presa. Apesar de o clima no Tiradentes ser mais tranquilo, com a permissão de visitas e presentes de familiares, Rose relembra que tudo ainda era meticulosamente vigiado. As refeições festivas que seu pai tentou levar a ela no Natal e no Ano Novo foram totalmente esfareladas para certificar que não havia nada perigoso no interior. O medo do que havia sofrido no Dops somado à desconfiança que ainda pairava sobre os presos no Tiradentes faziam com que Rose, apesar de sentir uma saudade angustiante de seu bebê, implorasse que sua sogra não o levasse mais nas visitas. Ela temia que o sequestrassem. Dez meses após ser presa, Rose e todas as outras mulheres que eram apenas do apoio a organizações de esquerda e não faziam parte da luta armada foram soltas, porém com certas condições. “O juiz perguntou se concordávamos com os termos que eram 58


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‘não sair depois de tal hora da noite’, ‘não viajar sem autorização’, era liberdade vigiada! E ‘não trabalhar’! Tinha isso também. A ditadura inventou um negócio chamado ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’. Então era um jeito da gente ter que ir embora, porque não podia trabalhar.” As desventuras na vida de Rose, porém, não pararam quando foi solta, e ela conta que mal teve chance de lamentar, compartilhar as experiências com alguém ou buscar auxílio. Sua mãe, já viúva, não tinha como sustentar a família, e Rose, teoricamente, não podia trabalhar. Optou então por engolir tudo o que havia enfrentado, fingir que nada havia acontecido. “Eu fui trabalhar mesmo não podendo. Fui para uma revista técnica de construção da Editora Pini chamada Construção em São Paulo. Eles não sabiam de nada e eu achava que sendo técnica, eles nunca iam me encher o saco”, conta. Ela pensava que a liberdade vigiada consistia apenas em apresentar-se em um tribunal uma vez por semana e assinar um documento comprovando que não saíra da cidade e outras coisas proibidas, mas havia de fato pessoas vigiando quem havia sido solto. Tempos depois, quando foi buscar os documentos correspondentes à sua prisão, encontrou informações precisas sobre onde trabalhou durante os dois anos em que precisou viver sob normas da prisão, mesmo fora dela. No relatório, atestavam que apesar da jornalista estar descumprindo a condição de não trabalhar, ela não representava perigo. “Como se algum dia tivesse representado”, brinca. Após seu julgamento e absolvição, a editora onde trabalhava ficou sabendo de sua experiência como presa política por meio de uma reportagem de jornal com a foto dela na capa. Por isso, a demitiram na porta de entrada do prédio enquanto a chamavam de terrorista e gritavam que ela havia colocado a empresa em risco. Anos se passaram e a jornalista atuou novamente na Editora Abril, na revista Quatro Rodas e em fascículos sobre educação. Foi então 59


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para a TV Cultura, onde os episódios relacionados ao período que passara presa voltaram a assombrá-la de perto. A jornalista relata que tudo o que sabe sobre o ramo televisivo, aprendeu pessoalmente com Vladimir Herzog, um dos símbolos dos que sofreram tortura e acabaram morrendo em cárcere. Um dia antes de, voluntariamente, prestar seu depoimento, Vlado – como Rose carinhosamente se refere a ele – conversou com a jornalista e esta contou pela primeira vez que havia sido presa política. O homem solicitou a ela que se afastasse temporariamente, pedido que Rose prontamente acatou e viajou para Campinas com o marido. No dia seguinte, souberam que Vlado estava morto, e que se alegava suicídio. Uma foto do até então diretor da TV Cultura passou a circular e, nela, ele estava com uma corda amarrada ao pescoço pendendo da grade de uma janela. A história do suicídio disseminada pelos militares poderia ter sido mais bem-sucedida, não fosse a altura a que Vlado se encontrava do chão: nenhuma. O homem aparece quase ajoelhado, mas as contestações sobre o assunto foram silenciadas na época. Hoje, sabe-se que Herzog morreu vítima de tortura no DOI-Codi. Apesar de não estar mais sob liberdade vigiada, Rose conta que ameaças específicas à TV Cultura eram frequentes. O Shopping News, veículo que abrigara Rose antes que fosse presa, tornarase um periódico tomado pela ideologia do próprio regime e composto por profissionais que compactuavam com ela. “Certa vez um homem que trabalhava lá disse que o ‘hotel da rua Tutóia’ (o DOI-Codi) estava esperando o pessoal da TV Cultura para ir passar uma temporada lá”. Mesmo com toda a correria que permeava sua vida, Rose permanecia assombrada pelos fantasmas da tortura, e foi só após 60


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26 anos dos acontecimentos que a jornalista tocou no assunto publicamente. “Eu fui na Unicamp e teve uma palestra lá, fui com a mulher do Marighella, o filho dele e outros presos. Aí de repente eu falei a minha parte e comecei a chorar muito. Porque eu não falava.” Apesar da maior parte de seus traumas que, com o tempo, tornaram-se meras lembranças sem poder de controlar sua vida, Rose sempre se manteve firme. Sua passagem pela prisão e a tortura que sofreu fizeram com que se tornasse cada vez mais ligada a assuntos relacionados a justiça social, política e direitos humanos. Já separada do marido, passou anos trabalhando na Rede Globo e sofrendo com censura e ameaças dentro de seu próprio departamento: tudo o que fazia era analisado cuidadosamente não só por censores, mas por outros jornalistas que eram contra sua ideologia. Ela era incansavelmente questionada sobre os materiais que produzia e constantemente posta contra a parede como se tivesse cometido crimes com suas reportagens. Por isso resolveu se demitir e, alguns dias depois, foi convidada a voltar à Rede Globo, mas para comandar a TV Mulher, o primeiro programa voltado exclusivamente aos direitos e hábitos femininos. Criou ainda projetos independentes de investigação sobre chacinas, desaparecimento de mulheres e projetos ligados à proteção de pessoas da periferia. É ainda presidente do projeto Tortura Nunca Mais, grupo criado primordialmente por familiares de desaparecidos e presos políticos. Até hoje, toda a sua vida gira em torno do assunto, como se esta fosse a forma que Rose encontrou para seguir em frente e tornar sua experiência algo bom, como sua avó transformava o cansaço de trabalhar durante 14 horas em flores coloridas de crochê ao ensiná-la a costurar. Ao ser questionada sobre como manteve a sanidade mental estável enquanto esteve presa, Rose responde com carinho que deve isso 61


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inteiramente às companheiras. “Eu estava no Na prisão, eram companheiras Tiradentes com em matar baratas nas celas com o inseticida providenciado pelo as pessoas mais guarda. Hoje, mantém contato extraordinárias próximo, encontram-se com da minha vida” frequência, se acompanham ao hospital e têm seus números de telefone decorados. “Eu estava no Tiradentes com as pessoas mais extraordinárias da minha vida. Até hoje, não conheci ninguém melhor. Ninguém, nenhum grupo, nada, impressionante como éramos unidas, uma ajudava a outra. Tinha gente com um drama parecido com o meu, mas muito pior, e outras que chegavam arrebentadas de apanhar, não é? Uma sempre ajudava a outra, uma estava do lado da outra, é impossível romper esse companheirismo. Um cimento psicológico, afetivo.” Rose, se inserida na metáfora feita por N. de que pessoas são como o bambu, é a mais resistente das hastes. Mesmo perdendo grande parte das folhas e envergando ao balanço do vento, não se quebra jamais.

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4 Resistência que corre nas veias Rita Sipahi é uma mulher interessante. Por um lado, vai contra os ideais de sua família brasileira originária do Ceará e composta por grandes fazendeiros. Por outro, traz consigo, como dizia seu pai, os genes da revolução e da resistência, assim como grande parte de sua família turca - seus descendentes paternos – composta por vários militantes e presos políticos na Turquia. A vaidosa mulher me recebeu em sua casa, na Vila Buarque, em São Paulo, e me contou sobre sua participação na resistência ao regime militar. A calma com que se expressa e o adorável sotaque do Nordeste trazem leveza a acontecimentos pesados que assombram sua vida até hoje. Desde pequena, Rita carregou consigo pensamentos bastante divergentes dos que tinham seus familiares. Bisneta de uma baronesa e neta de grandes latifundiários, passou a infância e a adolescência frequentando as fazendas dos parentes durante as férias. Tinha, porém, hábitos diferentes dos donos das terras. “Inventei uma brincadeira uma vez, eu nunca esqueço, sugeri que fôssemos ao roçado colher algodão, todos os primos, o dia todo. Aí nós fomos colher algodão. Meu tio deixou. No fim do dia, o saco de algodão não pesava nada... Tão leve! Então eu pensava: ‘É por isso que os trabalhadores ganham tão pouco!’”, conta, explicando que ela 63


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e um dos irmãos levavam broncas frequentes por comportamentos como ir pescar com os empregados da fazenda ou passar o dia em suas casas ouvindo sobre a dureza da vida que levavam. Até hoje, ela tem certeza de que toda a sua noção de justiça e a tendência a seguir determinadas linhas políticas vieram dessa época. “Aquilo não fazia parte. Aquilo era construído. Depois é que eu vim elaborar desse jeito, mas era alguma coisa que era feita por um sistema de exploração que quando se começa a estudar fica mais fácil entender.” Parte da família considerava seu comportamento e seus ideais tão revolucionários e errados que alguns tios chegaram a proibir um de seus primos de conversar com Rita única e exclusivamente porque ela era a favor da reforma agrária. Apesar de ter uma família com perfil tradicional para a época em que nascera (1938), conta que o núcleo familiar que compreendia ela, seus dois irmãos, seu pai e sua mãe era considerado uma ovelha negra em termos comportamentais. Seu pai, ainda adolescente, saíra da Turquia em uma viagem pelo mundo com amigos. Resolveu ficar pelo Brasil e conheceu a mãe de Rita no Ceará. Mesmo optando por morar aqui, os costumes turcos sempre prevaleceram na educação que deu a seus filhos. Apesar de ser um povo que, segundo Rita, está acostumado a respeitar e valorizar as escolhas e pensamentos dos jovens, ainda assim é uma sociedade machista e acostumada, por exemplo, com mulheres que usam burca. Rita diz que a lógica machista de seu pai não era explícita; ele não ditava regras em sua forma de se vestir ou dizia que ela deveria casar-se e ter filhos, como era comum que esperassem de uma mulher naquela época. Às escondidas, porém, pedia que seu irmão a vigiasse e se reportasse a ele quando a visse com algum garoto. Em relação ao envolvimento com a militância de esquerda, o pai de Rita também fazia diferenças. Quando informado que um de 64


Rita Maria de Miranda Sipahi, presa em 1971. Hoje, aos 77 anos, exala tranquilidade. Foto: Fernanda Labate Reprodução de documentos: Memória Política e Resistência (Arquivo DEOPS/SP)

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seus filhos, Aytan Sipahi, era membro de um partido de esquerda e militava contra o regime, ele disse que seu filho era “um líder nato”. Apesar de não proibir o envolvimento de Rita com, por exemplo, o movimento estudantil (justamente onde ela iniciou sua militância), não enaltecia seu comportamento. Seus pais também não interferiram em suas escolhas universitárias. De início, Rita queria prestar agronomia no vestibular. Começou a estudar em um cursinho para ajudá-la a ingressar na faculdade, mas interrompeu os estudos para passar uma temporada na fazenda de uma tia próxima, em Belém. Quando voltou, se sentiu despreparada e resolveu prestar o exame para outra carreira, apenas para não perder o ano de estudos. Foi então que em 1959 e impulsionada por seu senso de justiça, passou no vestibular de direito e resolveu começar a cursar. Simultaneamente, passou também a exercer a militância como membro da JUC, Juventude Universitária Católica. A organização surgiu em 1950 e era, segundo Rita, muito avançada. “Eram filósofos franceses que inspiravam toda uma ideia de que o cristianismo e o catolicismo, no caso, eram a concretização da identificação com o oprimido.” Tinham como objetivo, além de difundir seus ideais – não como forma de pregação e sim relacionando-os com o sistema político –, compartilhar conhecimento e contestar a sociedade. Por criticarem o modelo capitalista e incluírem ideais marxistas em suas discussões, muitos membros da JUC tornaram-se lideranças ou grandes organizadores de movimentos ligados à esquerda: se uniram à UNE (União Nacional dos Estudantes), à AP (Ação Popular, um dos principais grupos de resistência à ditadura), entre outros. Com Rita, não foi diferente: mais tarde coordenaria organizaria eventos da UNE. Já que, desde pequena, Rita tivera a impressão de que algo estava errado com a sociedade, o envolvimento com a JUC servia-lhe 66


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como uma luva, e é com muito orgulho que ela se lembra da grande participação dos movimentos estudantis de seu Estado em atos de contestação política. “A gente tinha que transformar esse país para que tivéssemos uma igualdade. Um país que aceitasse a reforma agrária, a reforma estudantil... A reforma universitária, por exemplo, foi desencadeada no Ceará, por um movimento que nós participamos e que foi muito forte”, conta, explicando que havia grande diferença entre manifestações por justiça social no Nordeste e no resto do país. Ao iniciar o curso de direito na faculdade, Rita ainda tinha certa vontade de interrompê-lo e tentar prestar agronomia novamente, mas durante o segundo ano na universidade sua mãe faleceu. Ela conta que foi um baque muito grande já que sempre fora muito ligada com sua mãe por ela ser uma mulher diferente do resto dos familiares, muito compreensiva e permissiva. O movimento estudantil lhe serviu como válvula de escape. “Eu não tinha força nenhuma para fazer outro vestibular e aí eu fui me encaminhando para a política universitária, entende? Aí eu encontrei uma brecha, uma alternativa para a minha vida nisso. Depois já não voltei para agronomia mesmo, continuei em direito. Desisti de uma vez.” A estudante se jogou de cabeça nos movimentos que a cercavam e de que tanto gostava e passou a participar de ações como a tomada de um centro de convivência universitária para irradiar uma transmissão radiofônica de ideais esquerdistas para a vizinhança. Apesar do clima de tensão no qual vivia já em meados dos anos 60, Rita conta que as pessoas com quem se relacionava quando passou a fazer parte da Ação Popular (organização proveniente dos movimentos estudantis, mas de maior abrangência) nos movimentos dos quais participava eram todas muito alegres, unidas, e que todo o companheirismo do qual desfrutou a faz muito feliz até hoje. 67


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Quando aconteceu o golpe, em 1964, Rita havia se mudado para Recife e já havia dado à luz seu primeiro filho com o presidente da associação de servidores da Sudene, Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, órgão que buscava promover o desenvolvimento e a inclusão social. No dia em que a ditadura se instaurou, ela foi às ruas. “A massa foi para a rua. Pernambuco teve uma diferenciação do resto do país, tínhamos um governo de esquerda e comprometido com as reformas, mas era um governo que estava isolado então as notícias demoravam a chegar”, explica, contanto também que, há algumas semanas, havia recebido um telegrama de São Paulo que a aconselhava a organizar a resistência para o que estava prestes a acontecer. Tal telegrama foi, por sorte, interceptado por um de seus conhecidos e não chegou ao conhecimento da repressão. Ela ainda estava relativamente segura. Pelo caráter de igualdade social das ações que a empresa em que trabalhava buscava, seu marido foi preso pelo Dops. Foi então que Rita teve seu primeiro contato com a diferenciação que o regime fazia entre homens e mulheres. Acompanhada de uma amiga sua que, na época, era uma artista bastante reconhecida, a advogada foi ao Dops procurar o marido preso. “Aí o diretor do Dops a reconheceu porque ela era filha do diretor da faculdade de medicina de Pernambuco e disse: ‘O que você faz aqui? Isso não é lugar para você’.”

“O que você faz aqui? Isso não é lugar para você”

Alguns dias depois, porém, seu marido foi solto e, até hoje, Rita não entende o motivo, já que não demorou muito para que decretassem a prisão preventiva dele e fossem buscá-lo em casa. Felizmente, a missão não teve êxito já que o casal resolvera prontamente partir para São Paulo. Ela se recorda que um dos padres com quem tinha 68


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ligação por conta da JUC havia ido morar na Europa e chegou a convidá-los para ir também. O gene da resistência presente em Rita, porém, não deixou que ela o fizesse. “Eu tinha a sensação de que ‘se todo mundo sair, quem vai continuar?’.” Ao falar sobre a época que passou morando em São Paulo, o tempo fecha na expressão de Rita. Foi o período de maior tensão em sua vida já que sabia que o marido era procurado. Na capital paulista, o casal recebeu auxílio de padres dominicanos de quem eram amigos para mobiliar a casa que arranjaram no bairro de Perdizes. “Eu morava em uma casa na Pompéia que era um grande aparelho da Ação Popular, usavam para reunião, para imprimir revistas, tudo, era uma casa de fundo.” Rita conseguiu então um estágio em um escritório de advocacia enquanto seu marido passou a trabalhar em uma agência bancária sob um nome falso. A tranquilidade e o sentimento de realização que aquilo trazia foi, por sua vez, muito momentâneo. Em um dado momento, o dono do escritório onde Rita trabalhava foi preso. Ela não sabia até então que ele tinha qualquer envolvimento com movimentos de esquerda, assim como ele não sabia dela. Por ser apenas um simpatizante, como chamavam na época, o homem logo foi solto e, ao deixar a prisão, receoso e apavorado, disse a Rita que lhe fizeram muitas perguntas a respeito dela. Nesse momento, a advogada conta que passou a perceber que estava sendo constantemente seguida por um homem que ficava na esquina da rua em que morava. Certo dia, o diretor do escritório em que trabalhava resolveu dar-lhe uma carona e durante o tempo em que estiveram juntos, conversaram sobre tudo o que haviam perguntado sobre ela. Foi então que Rita soube que já estavam ligando seu nome ao de seu irmão, Aytan, envolvido profundamente com o PCBR, Partido 69


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Comunista Brasileiro Revolucionário. Ele então lhe disse que não a queria mais trabalhando naquele escritório. Profundamente decepcionada e deprimida por ter que deixar o trabalho e pensando em todas as oportunidades que estava perdendo para que concretizassem algo maior, Rita ainda recebeu a notícia de que seu irmão havia sido preso. Ela e o marido ainda tentaram viver em outra casa; mudaram-se para o Brooklin, mas, como continuaram a segui-la, foram para o Rio de Janeiro. Rita explica que, nessa época, houve uma cisão na Ação Popular. Isso fez com que ela migrasse para o PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores) por questões de ideologia. “A gente questionava a concepção do caráter da revolução naquele momento, achávamos que tinha necessidade de uma organização mais sólida.” Segundo ela, era um momento extremamente frágil no qual ações ofensivas tornavam qualquer organização muito vulnerável. A ideia, portanto, era a de recuar para que pudessem se organizar melhor. Foi durante tal momento frágil e em que Rita procurava desligar-se do movimento momentaneamente que outro membro do PRT foi preso e, sob tortura, revelou que ela estava no Rio. Foi pela localização da placa de seu carro que, no início dos anos 70, a equipe do DOI-Codi do Rio de Janeiro (a mando da Oban, em São Paulo) a encontrou. Rita lembra-se de estar sozinha com seus filhos em casa – o marido estava em Recife a serviço – e já esperava que algo acontecesse, já que naquele mesmo dia fora parada por alguns homens que questionaram o fato da placa de seu carro ser de São Paulo. “Foi logo depois que cheguei em casa, estava colocando os meninos para dormir depois do teatro e a Camila [filha] disse a eles ‘você está nos atrapalhando, minha mãe está colocando a gente para dormir, vai contar uma história’.” Por estarem agindo a pedido da Oban, atenderam o apelo de Rita de que seus filhos ficassem na casa de conhecidos. No DOI-Codi, a advogada passou dois dias esperando seu transporte para São Paulo e, mesmo que 70


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aquelas pessoas não soubessem qual informação buscavam extrair dela na Oban, já começaram a interrogá-la e a torturá-la. Por suposição de que conhecia outras pessoas que haviam sido presas no Rio, colocavam-na nua encarando o canto de uma sala enquanto perguntavam sobre informações as quais ela não tinha. Quando respondia que não sabia de nada, a empurravam contra a parede. Já fragilizada, ela foi levada para a Oban em São Paulo, onde descobriu que a informação que esperavam conseguir com ela era um endereço. Para sua total aflição, ela sabia qual era. Rita então desmentiu tudo: disse que não sabia de nada e não conhecia ninguém sobre quem lhe perguntavam. Por dois dias, teve forças para manter tal história. “O torturador não quer só que você fale, ele quer te destruir. Ele quer que você seja um instrumento na mão dele, um objeto”, explica. Essa concepção somada à ideia tão propagada de que a mulher é, de fato, um objeto, e à noção histórica de que ela tem menos valor, transforma-se em uma forma de validar a tortura aos que a estavam executando. Ela conta ainda que, nua, recebeu choques na vagina, foi colocada no pau-dearara e experimentou, nos intervalos da tortura física, a tortura psicológica. Em seu relato sobre a postura de um dos torturadores, que tentou obter informações dela apenas com uma conversa ameaçadora e persuasão, é possível enxergar - novamente - o quão ultrajante era para aqueles homens a existência de mulheres fortes e resistentes como as tantas que foram presas naquela época. “Um dos torturadores me disse: ‘Você é muito jovem. Você tem dois filhos. Você parece com a minha mulher’. Nunca vou esquecer. ‘Você é 71


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uma pessoa que não tem sentido, por que você está aqui? Não é esse o seu lugar, se você me falar o que a gente quer saber, isso se resolve, você volta para a sua casa e vai ficar com seus filhos’. Então ele passa a querer te convencer daquilo, mas numa situação de que você é frágil, de ‘eu quero te proteger’.” Ao usar esse discurso, o torturador implica que nunca admitiria que sua mulher estivesse no lugar de Rita, desobedecendo-o. Após muito resistir e lutar para mantê-los longe da informação que buscavam, Rita não aguentou e acabou falando o endereço em questão. Apesar de estar arrasada, conta que nada se compara ao alívio que se seguiu. “Aí me levaram na casa, até hoje me arrepia: não tinha ninguém no apartamento. As pessoas tinham saído. Tinha isso: você tinha que aguentar um tempo que era o tempo necessário, um dia ou dois, para que alguém avisasse e a pessoa procurada saísse.” Mesmo fragilizada e atordoada, Rita ainda teve a ideia de esconder algumas fotos que encontrou espalhadas pelo chão do apartamento enquanto ninguém estava olhando, assim não saberiam tão facilmente qual era a aparência daquelas pessoas. Sua alegria, porém, durou pouquíssimo. “Aí eu fiquei muito cheia de força, de energia, estava muito acabada, mas eles não conseguiram pegar. Eu consegui segurar e ninguém foi preso por minha causa. Quando voltei me torturaram muito mais porque diziam que eu era uma puta com cara de santa, fazia de conta que eu não sabia de nada mas sabia muita coisa.” A partir deste momento, passaram a ligar a advogada com diversas outras histórias das quais ela realmente não tinha conhecimento. Foi então enviada ao Dops para que lhe tirassem mais informações. “Lá no Dops o Fleury resolveu que eu sabia de uma médica que era do PCBR, a organização do meu irmão, e que eu estava enganando eles desde o início porque em cada lugar eu escrevia meu nome diferente para enganá-los, para não identificar que eu era irmã do 72


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Aytan.” Ela conta que passou horas com Fleury e um delegado que conversavam entre si para decidir o que fariam com ela. Rita teve então uma espécie de colapso mental que não consegue explicar até hoje. “Sabe aqueles barquinhos de papel? Eu fiz um pequenino, um maior, fiquei fazendo barquinhos de papel. Se você me perguntar por que eu resolvi fazer barquinhos de papel, se eu não estava bem, eu não sei. Não sei se a estratégia que eu tive naquele momento, consciente ou inconsciente, era fazer barquinhos para passar o tempo porque eu não podia fazer nada”, conta, exaltando que passou quase um dia inteiro esperando que tomassem a decisão final. Após confirmarem com a Oban de que já era conhecido o fato de Rita e Aytan serem irmãos, o delegado optou por não a torturar, e ela foi levada para a cela onde permaneceu pelos próximos quatro meses. De lá, foi transferida para o presídio Tiradentes e pôde receber visitas de seus filhos pelos dez meses em que ficou por lá. Em um desses momentos, o filho mais velho de Rita, com sete anos, disse que ela era a culpada de ele estar sozinho e longe dos amigos que tinha em São Paulo e, já adulto, chegou a ter alucinações de que o prenderiam por ser comunista. Por muito tempo, Rita não falou absolutamente nada sobre os horrores que enfrentara enquanto esteve presa. Ela conta que optou por guardar todas as lembranças em uma caixa e seguir a vida, assim como Rose, como se nada tivesse acontecido e julgando que o modo como conduzira sua vida desde que fora solta era suficientemente bom e estável. Porém, foi apenas em 2009, 37 anos após ser solta, que passou a entender em detalhes o quanto aquela experiência ainda a afetava até em coisas cotidianas. “Então por exemplo eu começo a trabalhar em um lugar, eu estou em uma reunião, aí as pessoas perguntam: ‘Onde está fulano de tal?’. E eu digo: ‘Está na cela ao lado’. É bem sintomático do que aconteceu.” O conhecimento de que aquilo ainda tinha controle sobre ela veio com sua participação em um grupo que, inicialmente, seria 73


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voltado para pesquisas “Falar começou a me encomendadas por trazer essas relações, uma psicóloga francesa sobre como havia sido a eu não identificava repressão com mulheres muito bem” no Brasil. Nele, Rita encontrava-se com outras mulheres e uma psicóloga (que também fora presa) para compartilhar experiências. Foi então que passou a perceber que vários desconfortos que sentia no dia a dia vinham de experiências traumáticas. “Por exemplo, eu estou numa fila. De repente eu começo a ficar angustiada, fila de banco, fila de médico, não sei por que eu quero sair dali. Era a espera das idas para a tortura. Aquilo me remetia a uma situação em que eu estava esperando que me acontecesse alguma coisa. Alguma coisa trágica ia me acontecer. Falar começou a me trazer essas relações, eu não identificava muito bem”, explica ela, pensativa. Além disso ela conta que, até hoje, prefere ficar longe de hospitais. Enquanto presa, recebera injeções como forma de ameaça. Não se sabe o que as seringas continham, mas a lembrança faz com que a ida a qualquer ambiente hospitalar seja aterrorizante para Rita. “A tortura tem o efeito de continuar em você e te dominar enquanto você não for capaz de falar sobre isso, de ter uma ação política. Na hora em que você é capaz de falar sobre isso, você se liberta dessa situação que o torturador te criou. Então o grupo foi muito importante para mim”, explica, com o semblante aliviado. Sua trajetória depois da soltura foi marcada por muitas mudanças. Rita não queria continuar no Rio de Janeiro e não tinha mais interesse em estar casada com o homem que fora seu marido até então. A razão principal era a de que ele queria se afastar da vida política, mas ela não. Assim como Rose, a experiência havia impulsionado seus interesses cada vez mais na direção para a qual sua bússola da justiça apontava. A prisão, porém, não lhe acrescentou apenas 74


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coisas ruins à sua vida. Seu segundo marido, com quem casou-se nessa mesma época, é alguém que ela conheceu enquanto esteve presa e, com ele, teve mais uma filha. Participou da criação do PT (Partido dos Trabalhadores) e teve uma atuação ampla dentro do partido enquanto trabalhava em um órgão da Prefeitura de São Paulo. Ao aposentar-se do serviço público, não parou: passou por assessorias de educação, pela Prefeitura de Campinas e por outro escritório de advocacia. Foi então que seguiu sua vontade de fazer algo relacionado a direitos humanos. “Eu fui indicada por algumas pessoas de São Paulo para integrar o conselho da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça. Não era um trabalho remunerado, mas era dever público, eu tinha que ir para Brasília e eu aceitei e foi uma das melhores coisas que eu fiz na vida em termos de profissão”, conta ela. Foi nesse emprego que conseguiu, como disse, transformar seus traumas em um ato político: propôs que o grupo de apoio psicológico o qual frequentava se multiplicasse por todo o país para que vítimas de tortura pudessem receber a ajuda de que precisavam e que, por vezes, nunca buscariam por conta própria. Tais organizações seriam batizadas de clínicas de testemunho. Além disso, seu trabalho no conselho da Comissão da Anistia é o de analisar casos de presos políticos e fazer com que estas pessoas sejam indenizadas, moral e financeiramente, pelo que o Estado as proporcionou. É inevitável que a tortura deixe marcas físicas ou psicológicas nas pessoas que passaram por ela, mas para Rita, a vida seguiu o ditado que diz: “o que não mata, te faz mais forte”. As situações terríveis pelas quais passou permanecem em sua vida até hoje, mas a advogada sempre encontra uma forma de transformar um trauma em algo produtivo. Como mãe, incentivou sua filha na criação do livro “Infância Roubada”, sobre a influência que as prisões realizadas naquela época tiveram nas vidas dos filhos dessas pessoas. 75


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Enquanto ajuda outras pessoas a encontrarem justiça pelo que sofreram e a recuperarem, pouco a pouco a dignidade, Rita também tira as lembranças da caixa em que guardou e as transforma em cura para as feridas que o período deixou.

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5 Dos traumas ao alívio A tortura ocorrida durante os anos em que o regime militar esteve presente no Brasil não foi algo que surgiu aleatoriamente; muitos outros fatores que permeiam a sociedade brasileira há séculos permitiram que tudo ocorresse como ocorreu e fosse então legitimado e abafado. Nada desse período teria tomado as proporções que tomou se o País não tivesse um histórico como o que tem, assim explica Adriano Diogo, ex-deputado estadual que presidiu a Comissão Estadual da Verdade: “Aqui nós tivemos escravidão e tudo o que foi opressão. As pessoas falam: ‘O Brasil é o Brasil do Ary Barroso. É lindo, mulato...’, né? O Brasil não é nada disso. É cruel, escravagista, homofóbico, um país barra pesada.” A legitimação da tortura – apoiada nos próprios governos com a criação de aparelhos investigativos quase autônomos, tais como o Dops e o DOI-Codi – criou, para muitos presos políticos, a sensação de que podiam ter feito algo errado, aspecto que, segundo as experiências pessoais de Adriano (que também foi preso e torturado durante a ditadura), não evaporam da mente com facilidade. “Você fica com uma síndrome de não fazer coisas erradas para não voltar a ser preso, desenvolve uma paranoia do certo e do errado. E isso de não fazer nada errado já é uma insegurança psíquica terrível, afinal quem dita o limite do certo e do errado?”. 77


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A confusão mental, as consequências emocionais, psicológicas e até físicas que a tortura deixa são incontáveis e, por vezes, imperceptíveis e difíceis de entender aos olhos de quem não passou por experiências tão terríveis como os presos daquela época. Tanto Adriano quanto Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes – psicóloga, psicanalista e fundadora do Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo – acreditam que as investigações das Comissões da Verdade (tanto da Nacional quanto das ramificações Estaduais, como a Rubens Paiva, em São Paulo) sobre os acontecimentos da época da ditadura ajudaram pessoas traumatizadas a encontrarem um rumo e recuperarem a fagulha de esperança e amparo que, há muito, se apagara. Durante os três anos em que esteve ativa, a Comissão Nacional da Verdade investigou documentos, reuniu relatos e expôs todas as descobertas em três volumes, que são acessíveis a qualquer um. “A Comissão da Verdade significou uma autorização, por assim dizer, para que a verdade dos envolvendo crimes que o próprio Estado cometeu pudesse ser contada publicamente”, comenta Maria Auxiliadora, ou Dodora, como prefere ser chamada. Adriano exemplifica a importância dos trabalhos da Comissão com suas próprias recordações. “Hoje eu tenho uma outra narrativa, um outro enunciado. Eu revisitei todos aqueles lugares e aquelas pessoas que ficaram congelados durante 40 anos na minha cabeça, né? Então a Comissão da Verdade foi uma chance espetacular que o Brasil teve para recontar sua história”, comenta ele. Adriano acrescenta ainda que, durante anos, ele não foi capaz de falar sobre os episódios nem para seus próprios ouvidos. Ele imagina ter sido assim para muitos outros já que, com a criação da Comissão, incontáveis histórias foram surgindo, impulsionadas pelo sentimento de que mais pessoas carregam o mesmo peso, o mesmo trauma. Não há dados exatos, mas muitas dessas pessoas foram mulheres. Mulheres acostumadas com uma sociedade que lhes exige desde sempre e injustamente o recato extremo, a 78


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escolha de roupas que cubram o corpo ao máximo, o casamento e a maternidade compulsórios, a feminilidade, a inocência e, acima de tudo, que estejam às ordens do homem na família. Mulheres que, em um piscar de olhos, viram-se nuas, ouviram comentários sobre seus corpos (que diariamente já são tratados como objetos), tiveram sua intimidade negada e sua feminilidade usada como forma de deslegitimar sua militância. Em uma sociedade onde mulheres estampam até garrafas de cerveja e têm cada milímetro de seus corpos fiscalizados antes de qualquer outro aspecto de seu ser (seja por revistas, por companheiros, por pais ou por médicos), a prisão na ditadura foi algo responsável por bagunçar até a mais impenetrável das mentes. “Todos são torturados nus, e essas questões podem produzir efeitos emocionais. Às vezes, os operadores ficavam fazendo comentários sobre o corpo da pessoa, se ela era gorda, se era magra, como que era o corpo, se excitava, se era um corpo que eles gostavam... Esse tipo de comentário fica para sempre na cabeça da pessoa, né?”, explica Dodora. A tese de que, para torturar mulheres, a repressão tinha diversas motivações peculiares é confirmada tanto por Adriano quanto por Dodora. “A ditadura foi ruim para todo mundo, mas para as mulheres tinha uma peculiaridade, uma perversidade... Aquele monte de homens, todos muito violentos, muito tarados, muito enlouquecidos. A primeira coisa que faziam era desnudar as mulheres. Depois, usavam as partes sexuais, a ponta dos seios, a vagina, os pelos pubianos, o ânus... Ficavam se insinuando o tempo todo, isso quando não usavam violência sexual mesmo”, diz Adriano. Dodora esclarece ainda outro aspecto da tortura direcionado principalmente às mulheres: a ameaça contra seus filhos ou contra 79


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sua capacidade de gerar um. “Uma mulher que conheci tinha um bebezinho de meses quando foi presa e durante o tempo todo da tortura eles ameaçaram de trazer a bebê dela e colocar dentro de uma banheira de gelo. Chegaram a ponto de trazer uma banheira cheia de gelo. E quando elas não eram mães, ainda não tinham tido filhos, eles torturaram, estuprando e dizendo: ‘Vocês não vão poder nunca mais ter filhos, vocês vão se tornar mulheres estéreis’”, conta. Além do extenso e rico material reunido pela Comissão Nacional da Verdade em suas investigações, existem também os trabalhos da Comissão da Anistia. Ela é responsável por analisar pedidos de indenização feitos por pessoas que se sentiram lesadas pelo Estado ao tornarem-se presas políticas. Segundo dados do site oficial, estima-se que 57 mil requerimentos tenham sido apresentados, e os trabalhos são feitos sob o lema “Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.”. Mesmo com trabalhos tão densos feitos por pessoas tão dedicadas, o clima que envolve os crimes ocorridos durante a ditadura ainda é o de impunidade. Segundo Adriano, é importante que nunca se pare de contar essas histórias. “A ditadura é uma coisa tão louca que, às vezes, você só entende pelo lado ficcional. Pelo lado da narrativa. Se não for em primeira pessoa, é muito difícil porque, por exemplo, ninguém aprende ditadura na escola. Ditadura na escola é tratada como ‘milagre econômico’.” O registro das lembranças de Dodora, Adriano, Guiomar, N.F., Rose e Rita neste livro têm o objetivo de ser um incentivo à memória, um alento a quem, até hoje, tem parentes e amigos desaparecidos misteriosamente, a quem presenciou a morte de entes queridos sem poder fazer nada, a quem ainda é assombrado por pesadelos envolvendo a tortura, a quem ainda tem medo de contar sua história. 80


Bibliografia ARNS, Paulo Evaristo, Brasil nunca mais, Petrópolis, Vozes: 1985. BORDIN, Laura Beal; LORIANNY, Suelen, Sem liberdade eu não vivo: Mulheres que não se calaram na ditadura, Curitiba: Compactos, 2013. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Capt. 9, 10, 11. Brasília, 2014. MERLINO, Tatiana, Direito à memoria e à verdade: Luta, substantivo feminino, São Paulo, Caros Amigos, 2010.

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