a metrópole e o espelho

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A METRÓPOLE E O ESPELHO FERNANDO TÚLIO SALVA ROCHA FRANCO ORIENTADOR: PROF. DR. MÁRIO HENRIQUE SIMÃO D’AGOSTINO TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO BANCA: PROF. DR. GIORGIO GIORGI JUNIOR PROF. DR. MÁRIO HENRIQUE SIMÃO D’AGOSTINO PROF.A DRA. OLGÁRIA CHAIN FERES MATOS SÃO PAULO, JUNHO DE 2012



À ausente presença de Carlos Antônio Ferreira Rosa



AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, prof. Dr. Mário Henrique S. D’Agostino, pelas precisas palavras. Aos membros da banca, prof.a Dra. Olgária Chain Feres Matos e prof. Dr. Giorgio Giorgi Junior, pela gentíl presença. Aos colaboradores: André Miziara Bachur, Bianca Mimiza, Carlos Eduardo Miller, Carlos Eduardo Marino, Catherine Otondo, Eduardo Pompeo, Fábio Riff, Guilherme Kafé, Guilherme Toledo, Guido Otero, Isis Marks, Marina Grinover, Rafael Urano e Raffaella Saad Yacar, pela sinceridade e incentivo. Aos que indiretamente participaram deste trabalho: Adriano Bechara, Ângelo Ursini, Guilherme Aguiar, Marília Salva Rocha Franco, Pedro Bruschi e Pedro Serrano, pelas conversas. Aos meus familiares pelo carinho. À Raffaella, em especial.

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RESUMO Ensaios de deformação fotográfica da paisagem urbana propiciaram, primi lumi, um percurso, nos domínios da visibilidade, por duas sendas reflexivas; uma teórica e outra prático-experimental. Paris, cidade dos espelhos. Tal definição dada por Walter Benjamin à, por ele mesmo descrita, “capital do século XIX”, marco emblemático do início da modernidade, orienta este estudo que busca compreender a profusão de reflexos e espelhamentos na arquitetura da cidade como elemento simbólico da condição de vida metropolitana. Nas metrópoles, centros da economia monetária, tudo se homogeneíza e se arruína sob a égide do novo. Consoante a um tempo efêmero, fragmentado e acelerado, o espaço assume forma abstrata e continuamente descontínua. Analisar e explorar as permutas entre vidente e visível, entre imagem e olhar, por meio do conceito benjaminiano de imagem dialética, pode ser revelador dos moventes que, sob forja monetária, perfazem as fantasmagorias da abstração na metrópole moderna.

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SUMÁRIO 05 AGRADECIMENTOS 07 RESUMO 17 INQUIETAÇÕES ESTÉTICO-TEÓRICAS 29 MODERNIDADE, ESPELHOS NA METRÓPOLE

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Paris, a cidade dos espelhos

35 metrópole e modernidade 36 o tempo fragmentado 42 a coisificação do eu 47 o sex-appeal do inorgânico 52 o espaço abstrato 61 61 65 68

imagem e olhar o olhar da ciência e do pintor o olhar da tautologia e da crença a imagem dialética

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considerações finais

78 BIBLIOGRAFIA



“A cidade se espelha em milhares de olhos, em milhares de objetivas. Pois não apenas o céu e a atmosfera, nem apenas os anúncios luminosos nos bulevares noturnos fizeram de Paris a Ville Lumière. - Paris é a cidade dos espelhos: o espelhado do asfalto de suas ruas. Diante de cada bistrô recantos envidraçados: aqui as mulheres se vêem mais do que em qualquer outro lugar. Destes espelhos é que sai a beleza das parisienses. Antes que o homem as viste, elas já experimentaram dez espelhos. Uma profusão de espelhos também cerca o homem, sobretudo nos cafés (para clarear o interior destes e para dar uma extensão agradável a todos os diminutos cercados e estabulozinhos nos quais se subdividem os locais parisienses). Espelhos são o elemento intelectual desta cidade, seu brasão, no qual se inscreveram os emblemas de todas as escolas poéticas. Como espelhos, que devolvem rapidamente todos os reflexos, apenas deslocados simetricamente, assim também faz a técnica de chavões das comédias de Marivaux: espelhos lançam no interior de um café o exterior agitado - a rua -, tal qual um Hugo, um Vigny gostavam de captar ambientes e situar suas narrações diante de um fundo histórico. Os espelho que, nos bistrôs, pendem turvos e desalinhados são o símbolo do naturalismo de Zola; como se refletem um ao outro numa sequência imensa, um equivalente da infinita lembrança da lembrança na qual se transformou a vida de Marcel Proust sob sua própria pena. Aquela novíssima coleção de fotografias intituladas ‘Paris’ termina com a imagem do Sena. Ele é o grande e sempre desperto espelho de Paris. Diariamente a cidade lança neste rio suas sólidas construções e seus sonhos de nuvens como se fossem imagens. Magnânimo, ele aceita as oferendas e, em sinal de agradecimento, as fragmenta em mil pedaços.” Walter Benjamin, Paris, a cidade no espelho. Obras Escolhidas II. Rua de mão única, p. 197

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INQUIETAÇÕES ESTÉTICO-TEÓRICAS ‘’Quando vejo através da espessura da água o revestimento dos azulejos no fundo da piscina, não o vejo apesar dá agua, dos reflexos, vejo-o justamente através deles, por eles. Se não houvesse essas distorções, essas zebruras do sol, se eu visse sem essa carne a geometria dos azulejos, então é que deixaria de vê-los como são, onde estão, a saber: mais longe que todo lugar idêntico.[...] É essa animação interna, essa radiação do visível que o pintor procura sob os nomes de profundidade, de espaço, de cor.” Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 37 “Benjamin nos deu a compreender a noção de imagem dialética como forma e transformação, de um lado, como conhecimento e critica do conhecimento, de outro. Ela é portanto comum - segundo um motivo um tanto nietzschiano - ao artista e ao filósofo. Não é mais uma coisa somente ‘mental’, assim como não deveria ser considerada como uma imagem simplesmente ‘reificada’ num poema ou num quadro. Ela mostra justamente o motor dialético da criação como conhecimento e do conhecimento como criação1.” Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, p. 179

1.

Sobre a imagem dialética como dialética do conhecimento, cf. R. Tiedemann, Études sur la philosophie de Walter Benjamin, p. 478. 19


[3 e 4]


As inquietações estético-teóricas que motivaram o desenvolvimento deste trabalho encontram-se depositadas em uma série de fotografias intituladas TRANS[LÚCIDO]. Este registro da deformação da paisagem urbana por meio da inserção de superfícies translúcidas foi realizado em uma disciplina de comunicação visual do primeiro ano da FAUUSP, em 2006. Estruturou-se, em virtude do trabalho final de graduação, cinco anos mais tarde, uma pesquisa fundamentada em duas frentes de trabalho que se desenvolveram concomitantemente; uma teórica e outra prático-experimental, que não necessariamente deveriam se afirmar como partes distintas e complementares, ou como decorrentes e encadeadas, mas como coalescentes num mesmo esforço de reflexão. Deste percurso, ora contraditório, ora consonante, que oscilou entre palavras e imagens, emergiu o trabalho; nos dois casos uma primeira e singela aproximação. Desde o princípio buscou-se incorporar a linguagem audiovisual como matriz de reflexão da pesquisa experimental, procurando investigar meios de transcender os limites visíveis, a silenciosa aparência, de uma determinada imagem, aproximando-se assim, de algum modo, ainda muito instintivo, do universo da sua invisibilidade. Das zebruras em suspensão revela-se um olhar que ao deparar-se com a cidade vê tudo menos ela mesma. Uma cidade presente em sua ausência. As imagens refratadas, mediante filtros translúcidos de diferentes cores, serviram de ponto de partida para ambas as pesquisas sem que o intuito fosse reproduzir em movimento o mesmo processo de deformação, de cor e forma, da paisagem urbana. Foram realizadas, durante todo o processo de pesquisa teórica, uma série de exercícios audiovisuais com o objetivo central de explorar a ressignificação de imagens por meio da 21


[5]


investigação dos possíveis olhares que se dirigem a elas e das diferentes formas de captação, edição e projeção; outras formas de acolher seus rastros de luz, seus sinais fugidios, seus modos de se insinuar entre ermas esquinas e janelas chuvosas. A dimensão teórica do estudo surgiu da correlação entre a natureza óptica do processo de deformação e o nome dado àquele trabalho de um aluno recém ingresso, em que foi separado o prefixo ‘trans’ do sufixo ‘lúcido’ com o objetivo de ressaltar que as imagens turvas e desfiguradas, em contraposição às imagens ‘reais’, apresentavam-se, de certa forma, mais iluminadas, mais lúcidas, dada sua “útil ilusão”2. Aproximavam-se assim, mais do que as imagens pacificadas pelos olhos, das sensações lancinantes condicionadas pelo modo de vida metropolitano na modernidade. Com as reflexões sobre Paris, a capital do século XIX, desenvolvidas por Walter Benjamin, encontraram uma possibilidade de diálogo. O prefixo ‘trans’, à percepção destas imagens, acrescenta uma dimensão de transitoriedade, de movimento, um “motor dialético”, que acompanha estas deformações, revelando uma intersecção fluida entre imagem, significação e percepção. Do olhar que vê a cidade e não a reconhece, emergiram as inquietudes estético-teóricas que encontraram neste interstício, neste ‘vazio’, simultaneamente visível e invisível, um caminho para investigar os meandros desta presente ausência.

2.

Charles Baudelaire, Ceuvres ed. org. por Le Dantes, vol. II, Paris, 1932, p. 237 (“Salon de 1859”, seção VIII: “Le paysage”) in: Walter Benjamin, Passagens, p. 578. 23



2


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vazio cidade no espelho dinheiro em espelho espelho do espelho reflete o quĂŞ?



MODERNIDADE, ESPELHOS NA METRÓPOLE “Onde foram fabricados estes espelhos? E quando surgiu o costume de decorar os estabelecimentos com eles?” Walter Benjamin, Passagens, p. 580 [R 1.5] “A maneira como os espelhos captam o espaço livre, a rua, e o transportam para o café, isso também faz parte do entrecruzamento dos espaços - o espetáculo pelo qual o flâneur se sente irremediavelmente arrebatado. ‘Por vezes sóbrio durante o dia, mais alegre à noite, quando brilham as chamas a gás. A arte da aparência ofuscante alcançou aqui a perfeição. A mais comum das tabernas tem a pretensão de iludir os olhos. Através de paredes de espelhos, que refletem as mercadorias dispostas à direita e à esquerda, todos esses estabelecimentos adquirem uma extensão artificial, uma grandeza fantástica à luz das lâmpadas.’” Karl Gutzkow, Briefe aus Paris, Leipzig, 1842, vol. I, p. 225. Horizontes amplos, claros como o dia, estendem-se então por toda a cidade ao cair da noite” Walter Benjamin, Passagens, p. 579 [R 1.1]

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PARIS, A CIDADE DOS ESPELHOS

Os motivos que permitiram Walter Benjamin descrever a cidade de Paris no século XIX como “a cidade dos espelhos” carregam uma série de significados que este trabalho pretende compreender e explorar. As condições que permitiram tal afirmação orientam esta pesquisa que tem como pressuposto a compreensão do reflexo como experiência simbólica da condição de vida do homem metropolitano. 3

A denominação de Paris como “cidade dos espelhos” ou ainda, como cidade dos reflexos, ou das imagens refletidas deve-se, sobretudo, a multiplicação de passagens com vitrines envidraçadas, centros das mercadorias de luxo e precursoras das lojas de departamento , bem como de espaços interiores, como lojas e cafés, decorados com espelhos que configuravam-se para os indivíduos como um desafio às formas tradicionais de percepção. 4

Nas passagens, além dos espelhos, as imagens da cidade e, a noite, as luzes das chamas a gás refletiam-se no ferro e no vidro, expressões do domínio técnico-cientifico de uma época . Criava-se assim uma atmosfera peculiar, uma “arte de aparência ofuscante”, que tratava “não de clarear o espaço interior, como em outras construções em ferro, mas de atenuar o espaço exterior.” 5

6

3. 4. 5. 6.

Walter Benjamins, Rua de mão única, p. 197. Walter Benjamin, Paris, a capital do século XIX, p. 39. Luciano da Costa, Imagem dialética e imagem crítica, p. 21. [R 1a,7] in: Walter Benjamin, Passagens, p. 581. 33


No excerto extraído do Guia Ilustrado de Paris, os novos templos da adoração e do culto à mercadoria , foram assim descritas: 7

“Essas passagens, recente invenção do luxo industrial, são corredores com teto de vidro, revestidos de mármore, que se estendem através de quarteirões inteiros de prédios, cujos proprietários se reuniram para tal empresa. Alinhadas em ambos os lados desses corredores, que recebem sua luz do alto, estão as mais elegantes lojas, de forma que a passagem é uma cidade, um mundo em miniatura, em que os consumidores encontrarão tudo de que precisam. Durante súbitas pancadas de chuva, as passagens são um lugar de refúgio para o desprevenido, a quem oferecem um passeio seguro, embora restrito - do qual também os comerciantes se beneficiam.”8

No entanto, esta definição não pode ser feita apenas em função destes ambientes, virtualizados, já que as grandes cidades como um todo configuravam-se como o lugar das transformações paradigmáticas nas formas de organização do tempo, do espaço, das relações sociais, da produção, do trabalho, entre outras. Na modernidade, o espaço metropolitano é o locus dessas transformações nas quais o dinheiro, como um espelho, tudo iguala. Súmula: universaliza-se como um ideal de civilização , em que o modo de produção capitalista favorece o desenvolvimento de trocas baseadas em interesses intelectualmente calculistas . Os produtores, entre si e com os consumidores, estabelecem uma relação abstrata em que a produção, provida quase que inteiramente para o mercado , se faz, moeda corrente, visando lucro. Deste modo, com o objetivo de manter ou ampliar a renda 9

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11

Patricia de Freitas Camargo, A câmera obscura de Walter Benjamin, p. 64. Citação retirada do Guia Ilustrado de Paris (PW, p 93) in: Patrícia de Freitas Camargo, A câmera obscura de Walter Benjamin, p. 64. 9. Olgária Matos, A cidade perversa e o esgotamento do prazer, p. 08. 10. Georg Simmel, A metrópole e a vida mental, p. 16. 11. Idem, p. 16. 7. 8.

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torna-se necessário criar condições, sempre que possível, para aumentar tanto o mercado consumidor, constituído, sobretudo, por compradores genéricos, como o consumo. Para tanto, por meio das mais diversas estratégias, são produzidas, em larga escala, necessidades, muitas vezes, virtuais ou fantasmáticas, reveladoras da submissão do querer e do prazer ao culto da mercadoria. A mercantilização de todas as esferas da vida, em que o próprio homem coisifica-se, revela e sintetiza a natureza deste processo em que o dinheiro se estabelece como o denominador comum de todos os valores. Permite-se assim que seja arrancada a essência das coisas, o seu valor específico e a sua incomparabilidade . 12

A experiência do homem na multidão, de maneira análoga à impessoalidade característica das relações de trabalho, impõe uma condição de indiferença aos indivíduos que, como em um jogo de reflexos, veem-se igualados na sua condição espectral de existência. Reconhecem-se, uns aos outros, como desconhecidos, ao vaguear pelas ruas de Paris, pelos meandros de uma massa homogeneizante. Tal condição, intensificada pela fragmentação, racionalização e aceleração do tempo, condena os indivíduos àquilo que Walter Benjamin definiu como a “impossibilidade de experiência”, ampliando os laços abstratos, impessoais, coisificados e vazios entre eles de modo a transformar o tempo vivido em uma sucessão de instantes , momentâneos e fragmentários, reveladores do caráter efêmero da existência. 13

12. 13.

Idem, p. 19. Walter Benjamin, Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 34. 35


[8]


METRÓPOLE E MODERNIDADE “[Colapso] da distância espacial nos frenéticos embates da multidão na cidade, colapso da distância social, através da uniformidade do trabalho assalariado, colapso da distância temporal na espamódica acumulação de momentos vazios – em suma, [a modernidade é] a oclusão da distância aurática através da amorfa homogeneidade do dado.” Rebecca Comay, Walter Benjamin: Culturas de la Imagen, p. 147

Como um espelho diante do outro, a metrópole reflete a modernidade. A compreensão dos processos de metropolização e o avanço da modernidade deve se estabelecer de forma correlata e dialética. As transformações nas condições de vida, tanto na esfera individual como coletiva, características da modernidade, encontram na metrópole seu locus stand por excelência. Tais mudanças são, simultaneamente, reflexo e elemento indutor; não podem ser observadas, portanto, como uma simples relação entre causa e efeito14. Ambos os processos realizam-se, ainda hoje, sob o jugo da economia monetária. A nova organização do tempo, as novas formas de sociabilidade, a taylorização e a proletarização do trabalho, a imersão integral do homem no “reino da matéria”15, bem como as significativas alterações na dinâmica perceptivo-corpórea, permitidas pelo avanço técnico-científico e pelo rápido crescimento do espaço urbano, são alguns divisores da complexa rede de transformações que se vinculam à universalização do dinheiro como um ideal de civilização atrelada à cultura do excesso16.

14. 15. 16.

Georg Simmel, A metrópole e a vida mental, p. 17. Olgária Matos, A cidade perversa e o esgotamento do prazer, p. 08. Idem, p. 08. 37


No século XIX, a cidade de Paris assume, segundo Walter Benjamin, um papel fundamental; é o marco simbólico do início da modernidade17. A epígrafe deste capítulo ilustra os acontecimentos que exprimem o ar da capital oitocentista em que as contradições revelam uma cidade de “duplos”. Nesta, segundo Olgária Matos, modernidade e capitalismo fetichista não se separavam da democracia política; ou ainda, as formas avançadas de capitalismo e estado de exceção coexistem com revoluções operárias e o estado de direito. Tais contradições impõem uma mudança na estrutura da experiência e uma crise da percepção18, acompanhada por transformações na própria capacidade de olhar. Pela reprodução seriada, as obras de arte e as imagens perdem seus vínculos com a autenticidade, o aqui e agora, com sua existência única, sua tradição. O comando das imagens na sociedade contemporânea, mesmo que fantasmáticas e voláteis, seu amplo domínio sobre a cultura, conecta-se às novas formas de experiência de tempo e de espaço, em que o sujeito metropolitano, coisificado, “imerge no reino da matéria”.

o tempo fragmentado “O capitalismo mundializado tende a unificar o tempo global segundo a religião capitalista do cálculo e do interesse, que proíbe o ócio.” Olgária Matos, A cidade perversa e o esgotamento do prazer, p. 13

As experiências perceptivo-corpóreas, com a modernidade, deixam de fundamentar-se em um moto continuum ao passo que transferiram-se para 17. 18.

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Walter Benjamin, Paris, a capital do século XIX. Walter Benjamin, Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 52.


um outro, fragmentado e efêmero19. Na transição de uma sociedade agrário-tradicional para uma urbano-industrial20 o tempo acelera-se, racionaliza-se e abstrai-se. Submete-se, na metrópole, segundo Simmel, à realização da mais pontual integração de todas as atividades e relações mútuas em um calendário estável e impessoal. Unificação abstrata cuja contraface é a dispersão. As inovações tecnológicas que se difundiram essencialmente a partir do século XIX, tais como os relógios de bolso, a luz elétrica e o fósforo substituíram um conjunto de operações complexas por um único gesto, criando assim condições para a intensificação dos estímulos nervosos21 e para a ampliação da quantidade de horas potencialmente produtivas de um dia. A experiência do tempo adquiri assim uma dimensão abstrata, completamente distinta da noção não-urbana, ou natural, em que as alterações das estações, do dia e da noite prevaleciam como determinantes. Com o desenvolvimento e a generalização das técnicas de iluminação artificial, nas grandes cidades, a luz do dia espelha-se na noite. Nas passagens, “cenário da primeira iluminação a gás [...] a arte põe-se a serviço do comerciante”22; o reflexo das mercadorias adquire uma “grandeza fantástica à luz das lâmpadas”(Gutzkow). Encontravam, durante a noite, a admiração daqueles que ebriamente vagueavam pelas ruas de Paris. Os novos meios de comunicação, transmissão, transporte, conservação de alimentos, entre outros, assim como o aumento demográfico das 19.

Virilio acena ainda para a importância dos novos meio de comunicação e transmissão que com a possibilidade de realização ‘ao vivo’ encontram seu apogeu de uma duração ultracurta em que, segundo o autor, o tempo extensivo é substituído pelo tempo intensivo. “Uma eternidade intensiva.” in: Paul Virilio, A máquina de visão, p. 97. 20. Otávio Guilherme Velho, O fenômeno urbano, p. 10. 21. Georg Simmel, A metrópole e a vida mental, p. 14. 22. Walter Benjamin, Paris, a capital do século XIX, p. 40. 39


grandes cidades contribuíram para a aceleração da produção e do consumo em larga escala. Tal ritmo reorquestrou o tempo nas cidades capitalistas; com a máquina, atividades como a autoconservação e a contemplação não foram potencializadas, pelo contrário: os sujeitos eletrizados automatizaram-se. Com a produção comandada pelo alto grau de especialização, automatização e divisão técnica das forças produtivas, as relações de trabalho cientificizam-se e impessoalizam-se. Em caso extremo, diante da taylorização o trabalhador, na linha de montagem, perderá a noção do processo produtivo; uma determinada peça surge e é subtraída do seu campo de trabalho a sua revelia. Este corte do vínculo com as coisas, presente no trabalho assalariado, é similar ao comportamento que regula os jogos de azar em que a cada jogada recomeça-se tudo “a partir do zero”. Em ambos os casos não há acumulo de experiência23, não há exercício24, mas sim uma sucessão de instantes vazios, fragmentados e efêmeros. Em Sobre alguns temas em Baudelaire, Walter Benjamin descreve essa aproximação da seguinte maneira: “Toda e qualquer intervenção na máquina é tão hermeticamente separada da que a precedeu, como um coup no jogo de azar é distinto do coup imediatamente precedente. E a escravidão do assalariado a seu modo se equipara à do jogador. O trabalho de um e do outro é igualmente independente de todo conteúdo.”

Segundo Marx, no capitalismo não é o trabalhador que se vale das condições de trabalho, mas são as condições de trabalho que se utilizam do trabalhador; somente com a maquinaria tal inversão adquiriu uma realidade tecnicamente palpável25. Neste sentido, a condição de sujeição 23. Walter Benjamin, 24. Idem, p. 44. 25. Ibidem, p. 43.

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Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 46.


do trabalhado assalariado, como um espelho, também se equipara à do jogador26. Para “manter a máquina de consumo em funcionamento”, faz-se necessário, segundo Olgária Matos, que “o consumidor não se dê conta de que talvez já esteja satisfeito com o que tem”27. A organização do tempo metropolitano é fundamental nesse sentido. A estrutura urbana a reflete e a faz refletir; uma outra espacialidade, ambientalmente qualificada, requereria necessariamente uma outra temporalidade, não alienante. Diante desta cultura do excesso a todo momento “nos falta tempo”, nossos corpos mantem-se eletrizados; o tempo é consumido com e pela produção e consumo. As atividades contrárias à idolatria do útil e do trabalho28, nas quais a finalidade é interior a si mesma, como a autoconservação e o ócio, são substituídas pela vivência de um tempo e de uma percepção acelerada e fragmentada.29 Benjamin denominou esta experiência perceptivo-corpórea efêmera e fragmentária, realizada pelos indivíduos que vagueavam inertes pelas ruas em meio às massas citadinas, de choc. Este encontra na relação dos operários com as máquinas seu equivalente; é como um “caleidoscópio com consciência”30, ou ainda, um jogo de espelhos em que o real e o virtual confundem-se diante da infinidade de imagens cindidas que se transformam em um movimento acelerado de rupturas contínuas, definidas por Georg Simmel como: “o rápido agrupamento de imagens em mudança, a descontinuidade acentuada no alcance de um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões impetuosas.”31 26. Ibidem, p. 45. 27. Olgária Matos, A cidade perversa e o esgotamento 28. Idem, p. 09. 29. Ibidem, p. 12. 30. Definição dada por Charles Baudelaire, in: Walter

do prazer, p. 30.

Benjamin, Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 08. 31. Cit. In: Leo Charney, Num instante: o cinema e a filosofia na modernidade, p. 31. 41


[09]


Na sucessão de momentos fugidios e fragmentados que não se articulam, os indivíduos, atomizados e anestesiados, resignados à infinidade de estímulos que lhes chegam, tentam proteger-se racionalizando-os. Tal resposta permite que as impressões deixem de ser incorporadas como experiência correspondendo assim ao conceito de “vivência”32. Como uma imagem refletida, fundamentam-se em impressões fortuitas e imediatas. Dos ocos ecos da existência espectral emerge, segundo Walter Benjamin, o choc como componente central na obra de Baudelaire. Mais do que uma alegoria, do que uma estratégia poética, os espelhamentos e as reflexões são constitutivos do modo de vida condicionado pela modernidade. A definição baudeleriana “caleidoscópio com consciência” encontra uma série de equivalências na obra do filósofo, tais como as descrições do universo visual das passagens, dos espaços interiores, da imagem do novo, que em um jogo de espelhos reflete a repetição do sempre igual, ou ainda na definição da capital do século XIX como “a cidade dos espelhos”. Diante do caráter efêmero e momentâneo da modernidade observase, o esvaziamento do presente33. Com a separação entre “a sensação, que sente o instante no instante, e a cognição que reconhece o instante somente depois dele ter ocorrido”34, inscreve-se uma estrutura fundamental na vida diária que, no entanto, no momento da visão pode encontrar, por meio da valorização das respostas sensoriais, corporais e pré-racionais, um momento de êxtase, de redenção, em que seria possível experimentar o instante35, o tempo presente perdido. 32. Walter Benjamin, Sobre alguns temas em 33. Heidegger, Ser e tempo, 1962, p. 388. in: 34. 35.

Baudelaire, p. 34. Leo Charney, Num instante: o cinema e

a filosofia da modernidade, p. 319. Idem, p. 319. Esse instante passível de experimentação, nesse contexto, é também, segundo Leo Charney, um choque. Esta noção aparenta ser contraditória e o é, já que “a história e a crítica dos choques fugazes e fragmentários da modernidade serão em si fugazes, fragmentários e chocantes.” 43


Benjamin associou este estado de consciência, disparado pela visão, como o “agora da reconhecibilidade”, Este momento poderia, como um flash de luz, descortinar o presente esvaziado, espelho do tempo fragmentado e efêmero em que os objetos, fetichizados, mimetizam o orgânico. a coisificação do eu “A pessoa em nenhum lugar se sente tão solitária e perdida quanto na multidão metropolitana.” Georg Simmel, A metrópole e a vida mental, p. 23

Diante da hegemonia da economia do dinheiro nas mais diversas esferas da vida o individuo coisifica-se. Como um reflexo, diante da multidão, volatiza-se. Assume assim, em função das condições de vida impostas pela metrópole na modernidade, uma atitude de reserva36, contraface daquela “mecanizada”, quase instintiva, imposta pelos grandes fluxos urbanos. A multidão impõe ao homem metropolitano uma condição de indiferença tal como a impessoalidade característica da uniformidade das relações de trabalho, ditadas pela mercantilização, que favorece o esvaziamento dos vínculos afetivos; em Paris todos eram igualmente estrangeiros, igualmente desenraizados. Em Sobre alguns temas em Baudelaire, Benjamin descreve esta multidão que entrecruza-se com pressa pelas ruas das grandes cidades, despertando angústia, repugnância e espanto37, tanto aos que configuravam-na 36. 37.

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Georg Simmel, A metrópole e a vida mental, p. 22. Walter Benjamin, Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 42.


quanto àqueles que pretendiam fazer dela presa poética: “não se trata de nenhuma classe, nenhum coletivo articulado e estruturado; trata-se unicamente da multidão amorfa dos transeuntes, do público das ruas.”38 Reduzidos, pela economia monetária e pela racionalidade calculista, a um número na multidão, os indivíduos, isolados, regressam a um estado similar ao selvagem na medida em que, segundo Valéry, “o sentido de estar necessariamente em relação com os outros, a princípio continuamente reavivado pela necessidade, torna-se pouco a pouco obtuso, no funcionamento sem atritos do mecanismo social.”39 Engels, em Situação das Classes Trabalhadoras na Inglaterra ao relatar a dinâmica da vida em Londres, por igual revela como na cidade - produto social - as possibilidades de desenvolvimento humano não se realizam plenamente: “esses londrinos (...) tiveram que sacrificar a melhor parte de sua humanidade para realizar os milagres de civilização que sua cidade fervilha; (...) centenas de forças latentes neles permanecem inativas e foram sufocadas.” 40 Neste contexto, da mais alta impessoalidade, os indivíduos reagem, segundo Simmel, com atitude blasé; i.e.: o resultado dos estímulos contrastantes que, em rápida mudança e compreensão concentrada, são impostos aos nervos, de tal modo que os indivíduos tornam-se incapazes de reagir a novas sensações com a energia apropriada, dada a rapidez e contraditoriedade destas. São as grandes cidades principais centros do intercâmbio monetário e da mais alta divisão econômica do trabalho que, segundo o autor, configuram-se como a localização genuína da atitude blasé. 41 Esta estrutura, da mais alta impessoalidade, implica racionalização, abstração e intelectualização dos indivíduos. A fragmentação do tempo 38. 39. 40. 41.

Idem, p. 35. Ibidem, p. 43. Ibidem, p. 48. Georg Simmel, A metrópole e a vida mental, p. 18. 45


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encontra assim no sujeito seu equivalente, seu espelho. Este além de coisificar-se, fragmenta-se. Diante de uma existência espectral, ao passo que multiplica-se em meio à multidão, desconstrói-se em partes diante das contradições inerentes ao processo de coisificação de sua existência. Tal fato consiste “no embotamento do poder de discriminar”, na medida em que a interiorização, pelos indivíduos, dos valores oriundos da economia do dinheiro, conduz a que “o significado e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias coisas”, sejam experimentados como destituídos de substância.42 A atitude caracterizada pela indiferença, encontra na multidão metropolitana o seu meio. Simmel ainda sugere que a atitude de reserva, ou recolhimento íntimo, revela um comportamento de natureza social ainda mais negativo, qual seja; “uma leve aversão, uma estranheza e repulsão mútuas, que redundarão em ódio e luta no momento de um contato mais próximo”. Uma antipatia, antinatural, redefine as distâncias “sem as quais este modo de vida não poderia ser absolutamente mantido.” A partir destes mesmos estímulos, nos embates com a multidão, emerge o flâneur, indivíduo que, diante das transformações em curso, sente-se um estranho na grande cidade, ora paisagem inóspita, ora acolhedora. Este deambulava pelas ruas de Paris na primeira metade do século XIX calmamente, “a fazer botânica do asfalto.”43 Levado pelo acaso encontrava, por muitas vezes, nas passagens os “sonhos e os desejos de uma época”, orientados pelo mito do progresso44. Seduzido pelas imagens, colecionava-as embriagado pelas sensações despertas pelo fetiche das mercadorias, carregava consigo uma ambiguidade; seduzido pelo novo mas nostálgico com relação ao passado. 42. 43. 44.

Georg Simmel, A metrópole e a vida mental, p. 18. Walter Benjamin, 1989, p. 34. Luciano Bernardino da Costa, Imagem dialética e imagem crítica, p. 22. 47


Benjamin assim descreve a última viagem do flâneur: “A última viagem do flâneur: a morte. Seu destino: o novo. ‘Ao fundo do desconhecido para encontrar o Novo!’ O novo é uma qualidade independente do valor de uso da mercadoria. É a origem da aparência que pertence de modo inalienável às imagens produzidas pelo inconsciente coletivo. É a quintessência da falsa consciência cujo agente infatigável é a moda. Essa aparência do novo se reflete, como um espelho no outro, na aparência da repetição do sempreigual. O produto dessa reflexão é a fantasmagoria da ‘história cultural’, em que a burguesia saboreia sua falsa consciência.”45

O vazio que se estabelece em função de um estilo de vida mecanizado e de consumo compulsivo, reproduz no corpo a mesma lógica pautada pela impossibilidade de experiência. Este, principalmente nos dias de hoje, é um símbolo desta condição. A constante e crescente mania com a aparência, com a imagem, é revelada, por exemplo, pelo aumento da preocupação em apagar o registro da passagem do tempo, não importando o preço das cirurgias e da dor. Ou ao contrário, pela sujeição dos corpos no limite extremo do completo descuido com sua autopreservação, à deformação e busca insaciável pela satisfação dos prazeres imediatos. Os corpos, expostos como mercadorias diante da generalização do valor de exposição, multiplicam-se nas grandes cidades, abstratos; como objetos, desprovidos de passado, coisificados, habitam as vitrines da cidade dos espelhos, da cidade das passagens em que os objetos ganham vida, transpiram a sex-appeal46. Diante destas ambiguidades fantasmáticas surge a possibilidade de estranhar-se e inquietar-se. Tal contradição, capaz de abrir um “espaço critico e reflexivo”, é assim descrita por Luciano da Costa: 45. 46.

48

Walter Benjamin, Paris, a capital do século XIX, p. 48. Idem, p. 45.


“Fantasmagorias com potência de reconhecimento do indivíduo por si mesmo em sua temporalidade, orientado por esse olhar que se assombra com as frações do percebido na metrópole, mergulhando no encontro entre o vivido e o rememorado, de modo a abrir um espaço critico e reflexivo, a partir das imagens oníricas que o capitalismo cultiva.”47

o sex-appeal do inorgânico “Na modernidade capitalista, a integralidade das esferas de valores que compõem a vida (cultura, arte, trabalho, tradição etc.) é colonizada pela abstração morta do fetichismo próprio à forma-mercadoria. Mas esta abstração fetichista tem o estranho estatuto de um inorgânico que transpira sex-appeal, de um objeto mortificado que ganha vida por ser investido libidinalmente pelo nosso ‘amor pelas coisas’. Um morto que age como se estivesse vivo e que, talvez, seja o que há de mais vivo na nossa sociedade.” Vladimir Safatle, O sex-appeal do inorgânico, p. 02

A fantasmagoria48 é o elemento mais “real” da relação, estabelecida na contemporaneidade, entre sujeitos e objetos49. A “imersão do homem no reino da matéria” corresponde, na modernidade, à transferência da dimensão aurática dos objetos para uma outra, fetichizada. 47.

Luciano Bernardino da Costa, Imagem dialética e imagem crítica: fotografia e percepção na metrópole moderna e contemporânea, p. 23. 48. Este excerto ilustra o entendimento que se dá ao termo fantasmagoria: “A propriedade pertencente à mercadoria como seu caráter fetichista adere também à sociedade produtora de mercadorias - não como ela é em si , certamente, mas ainda mais como ela se representa e pensa compreender-se quando abstrai o fato de que produz precisamente mercadorias. A imagem que ela produz de si mesma dessa forma, e que normalmente rotula como sua cultura, corresponde ao conceito de fantasmagoria. (...) Esta é definida por Wiesengrund ‘como um item de consumo no qual não há mais nada que deva nos lembrar de como ele veio a existir. Ele se torna um objeto mágico, na medida em que o trabalho acumulado nele vem a parecer sobrenatural e sagrado no exato momento em que deixa de ser reconhecido como trabalho’” [X13a] in: Patrícia de Freitas Camargo, A câmera obscura de Walter Benjamin, p. 85. 49. Vladimir Safatle, O sex-appeal do inorgânico, p. 01. 49


A partir do desenvolvimento da xilogravura e posteriormente da imprensa e da litografia, uma série de inovações tecnológicas permitiram a reprodução serial de um dado objeto ou de uma obra que, consequentemente, segundo Benjamin, perdem sua autenticidade, seu aqui e agora, inerentes ao domínio da tradição. Deste modo, por um lado, perdem sua historicidade mas, por outro, amplia-se sua autonomia e a possibilidade de colocar a cópia em lugares antes impossíveis para o original. Este fenômeno deve ser considerado, segundo o autor, pela análise das transformações sociais e do estado de percepção que as permeiam. A destruição da aura - aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja - está intimamente vinculada à difusão dos movimentos de massa e deriva de duas circunstâncias centrais decorrentes da possibilidade de reprodução seriada: o desejo de fazer as coisas ficarem mais próximas e de superar o seu caráter único. As obras de arte, neste contexto, são destacadas do domínio da tradição, perdem assim seu valor de culto; com a reprodução “aumentam as ocasiões para que elas sejam expostas”50, estas assumem uma função inteiramente nova: “A mudança de ênfase de um pólo para outro corresponde a uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu na pré-história. Com efeito, assim como na pré-história a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a ‘artística’, a única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária.” 51

50. Walter Benjamin, 51. Idem, p. 173.

50

A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, p. 173.


Tal fato implica, para as artes, numa alteração paradigmática da sua função social, já que deixam de fundar-se no ritual e passam a fundarse na política52. Com a prevalência do valor de exposição, ou exibição, a função “artística” de uma determinada obra de arte, não raro, revela-se secundária. Explorar e colocar em questão esta condição em que o inorgânico, reproduzido industrialmente, ganha vida e capacidade de flertar é um dos caminhos para as artes; expor a prevalência do valor de exposição revelando assim a contradição inexorável deste processo de inversão de papéis entre sujeitos e objetos revela-se como um horizonte amplo e aberto. Ou seja, a reprodução “das ilusões e mistificações que fazem a essência real da nossa sociedade”53, configura-se como uma possibilidade de enfrentar os nossos fantasmas por meio da representação deles mesmos. Aos objetos esta nova condição não escapa; emerge da relação destes com os sujeitos uma experiência fetichizada, que transpira a sex-appeal, em que a fantasmagoria, como um espectro visual, torna-se o elemento mais “real”. Nas palavras de Vladimir Safatle: “A aura perdida da arte disruptiva acaba sendo substituída pela falsa aura da mercadoria, [...] fantasmática que serve de embalagem aos objetosmercadorias, ao sexo-industrial.”54

Nas palavras de Benjamin: “[a moda] se encontra em conflito com o orgânico, unindo o corpo vivo ao mundo inorgânico e fazendo valer no corpo vivo os direitos do cadáver. O fetichismo subjacente ao sex-appeal do inorgânico é seu nervo vital. O culto das mercadorias coloca-o a seu serviço.”55 52. 53. 54. 55.

Ibidem, p. 172. Vladimir Safatle, O sex-appeal do inorgânico, p. 01 Idem, p. 02 Walter Benjamin, Paris, a capital do século XIX, p. 45. 51


[11]


Os objetos, diante da prevalência do valor de troca e de exibição, transfiguram-se em mercadorias cuja finalidade primordial é a reposição. Independentemente do valor de uso, torna-se cada vez mais imprescindível possuir as coisas. A produção maciça de bens descartáveis ou com uma vida útil reduzida revela uma relação com as coisas equivalente à experiência de tempo fragmentada e acelerada, em que sua razão de existir, praticamente, reside no próprio fato de serem descartáveis e demandarem assim sua rápida substituição ou reaquisição. O trabalho das prostitutas é simbólico desta condição56. Para elas, bem como para os seus clientes, a relação de trabalho é completamente desumanizada57; ao cliente a coisificação revela-se como um espelho, na medida em que também ele só vale pelo dinheiro que deve ser dispendido para a satisfação do prazer. Tal relação encontra-se, portanto, embriagada pela lógica de mercado; a busca pelo prazer imediato captura aqueles que como o indivíduo no meio da multidão vagueavam pelos interstícios fantasmáticos das passagens parisienses. Neste contexto a imagem da prostituta, mesmo que ambígua, é a síntese da inversão de valores em que os objetos, humanizados, mesmo que por alguns poucos instantes, ganham vida, transpiram a sex-appeal, ao passo que os corpos, inorgânicos, coisificam-se. Na cidade contemporânea e, de modo correlato, na Paris dos espelhos, o espaço metropolitano, sob a prevalência do dinheiro como valor universal e do avanço das novas virtualidades técnicas adquire, como o tempo, uma dimensão abstrata, análoga a profusão dos reflexos das mercadorias em que, nas passagens, “a arte da aparência ofuscante alcançou [...] a perfeição”(Gutzkow). 56. 57.

Idem, p. 48. “O amor com a prostituta [...] aparece como a apoteose da empatia com a mercadoria.” In: Patrícia de Freitas Camargo, A câmera obscura de Walter Benjamin, p. 65. 53


o espaço abstrato “[Paris] É uma cidade cosmopolita, [...] o habitante da própria cidade perde a experiência de pertencimento porque o espaço, como o tempo, deixam de ser qualitativos e passam a ser abstratos, teleguiados pelo consumo ou pela bolsa de valores sob Louis Napoléon.” Olgária Matos, Pós No16, Revista do programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da FAUUSP, p. 15

Com a prevalência da economia do dinheiro tanto o espaço construído como a experiência perceptivo-corpórea espacial, de maneiras conexas, adquirem, na metrópole, uma dimensão abstrata; refletem, como um espelho n’outro, os traços fisionômicos mais vertiginosos da modernidade. Sob a hegemonia dos aspectos quantitativos e matemáticos, “da amorfa homogeneidade do dado”, organiza-se, tecnicamente, o espaço para o consumo; a estrutura físico-espacial é por ele condicionado ao passo que, reciprocamente, o intensifica. A cidade, organizada sob esta premissa monetária, estrutura-se como um espaço simultaneamente homogêneo e diferenciado. O desenho das infraestruturas, condicionado pela visão tecnicista, fragmenta e fratura o tecido urbano que, como um caleidoscópio, torna-se continuamente descontínuo e labiríntico. Neste processo acumulamse espaços residuais. A prevalência das regras matemáticas, abstratas, na orientação do traçado das cidades, aniquila os critérios qualitativos, subvalorizados. A concentração desigual de investimentos em determinadas regiões gera espaços diferenciados, áreas da cidade mais valorizadas, produtos do interesse pela realização e concentração da renda que respondem ao imperativo máximo do dinheiro, do valor de mercado. Na busca 54


pelo lucro a especulação financeira conforma a metrópole visando o fluxo, sobretudo, dos bens de consumo. Espaço, tempo e dinheiro configuram “um nexo substancial de poder social.”58 Como advertiu Benjamin, a misantropia burguesa é refratária às novas virtualidades técnicas como meio de consumar uma nova ordem social59. O crescimento das cidades e o desenvolvimento da cultura de massa não garantiram a potencialização da vida em comum60. Com a sociedade de consumo, os indivíduos igualam-se pelo fascínio da posse, do sentimento competitivo de querer justamente aquilo que apenas o outro tem61. Como o tempo, os sujeitos e os objetos, o espaço também se mercantiliza revelando a generalização do dinheiro para todas as esferas da vida62. Na relação dos indivíduos com o espaço perde-se a noção de pertencimento; desenraizados, em meio a um ambiente estranho respondem a ele de modo similar à atitude blasé dos sujeitos imersos na multidão metropolitana. Como estrangeiros, refugiam-se das cidades dos espelhos em que não há a possibilidade de experiência, tanto temporal como espacial, já que em ambos os casos a percepção é automatizada, fragmentada e efêmera. Recolhem-se no intérieur. Seja pela dimensão adquirida, seja pela dinâmica de vida que se desenvolve, inexiste, nas metrópoles, a possibilidade de síntese. O espaço para o indivíduo apresenta-se como a máquina ao operário, fantasmático como as imagens das mercadorias refletidas nas vitrines das passagens. Tudo é espelho. 58. 59. 60.

David Harvey, Condição pós-moderna, cap. 14. Paris, a capital do século XIX, 1939, p. 67. Que se pense na definição clássica de cidade, “espaço da vida em comum segundo os valores da democracia e da filosofia, da política e da contemplação, da ética e da estética.” In: Olgária Matos, A cidade perversa e o esgotamento do prazer, p. 08 61. Olgária Matos, Pós No16, Revista do programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da FAUUSP, p. 16-17. 62. Olgária Matos, A cidade perversa e o esgotamento do prazer, p. 08. 55


[12]


Sua percepção equivale à experiência do choque. Como um caleidoscópio, dissolvem-se os limites entre real e imaginário; uma imagem refletida que se fragmenta em múltiplos espectros revelando, “como um espelho no outro, [...] a aparência da repetição do sempreigual”, simbólica da descontinua continuidade do espaço das grandes cidades. Ruína, obsessão pelo novo, renovação voraz do espaço, sem história, sem memória. Nas passagens e nos “recantos envidraçados” da Paris oitocentista revelava-se a dimensão fantasmática e espectral do espaço; mais do que iluminar o interior pretendia-se “atenuar o espaço exterior”. No entremeio dos espaços, do dentro e do fora, na extensão artificial dos estabelecimentos “a arte da aparência ofuscante alcançou a perfeição”, iludindo os olhos, arrebatando o flâneur. Neste estado em que se perde a apreensão da “profundidade”, ao descrever a cidade contemporânea, Olgária Matos a definiu como “cidade perversa”63. Segundo ela, por meio do “capitalismo pulsional” contemporâneo, alcança-se a generalização do valor de exibição fazendo assim com que nada seja realmente proibido mas também nada seja verdadeiramente possível. Em suas palavras: “nessa atividade [cotidiana] acelerada e por princípio ilimitada, não é possível criar ou reconhecer valores, pois estes necessitam de relações estáveis e laços duradouros; com o que se desfaz a diferenciação do proibido e do permitido, os únicos valores sendo antivalores”64. O capitalismo de consumo, ainda segundo a autora, é “a desinibição de todos os tabus, da linguagem à sexualidade”. “Platão fundou, para o Ocidente, a ideia de desregramento dos desejos como desordem da alma, evocando sua desmedida como o que transforma razão em tirania, as paixões em paixão da glória, vaidade em ambição, os 63. 64.

Referindo-se à expressão de Dany Robert Dufour. Olgária Matos, A cidade perversa e o esgotamento do prazer, p. 13. 57


prazeres do sentido em concupiscência, cuja continuidade se encontra em Santo Agostinho, que denominou libido sentiendi, o excesso dos prazeres do sentido, libido dominandi, a paixão de possuir sempre mais, exercendo poder sobre corpos e consciências, e libido sciendi, a paixão de ver e saber ilimitados. Avidez e excesso, ligados ao corpo, são, como já o observaram os gregos, pleonexia - desejo de ter e ver cada vez mais,- diretamente vinculados à porneia, ao sexual.”65

O contraesquecimento perde espaço na metrópole. O estado de contemplação é substituído “pela aceleração do tempo e pela fragmentação perceptiva”.66 O tempo necessário para a autoconservação e a busca pela virtude e conhecimento são substituídos por atividades mecanizadas e destituídas de autorreflexão. Diante deste vazio generalizado, conexo ao cálculo monetário, desta matematização e geometrização - ou homogeneização - do espaço existencial, movimentos vanguardistas os mais diversos - nas artes, na arquitetura, na poesia - desde os alvores do século passado buscam refundar a metrópole. Quiçá a ambiguidade surgida da fantasmagoria possa permitir aos indivíduos flagrar no brilho do olhar algo da sua condição humana; um reconhecimento que, como num golpe de astúcia, venha a ser transformador. Imagens deslocadas, abertas à poesia e à ressignificação. A percepção abstrata do espaço comporta a vertigem especulativa. A experiência do choque, para além do embotamento, no âmago da sua ambiguidade, pode desencadear “um encontro traumático com o real”67; uma aproximação que permite o estranhamento daquilo que é aparentemente familiar:

65. Idem, p. 13. 66. Ibidem, p. 12. 67. Vladimir Safatle,

58

O sex-appeal do inorgânico, p. 02.


“[A experiência traumática] pode se dar quando nos deparamos com o estranhamento de imagens que pareciam nos ser totalmente familiares. Jogo entre estranhamento e familiaridade que provoca um colapso nas articulações costumeiras entre identidade e diferença, entre proximidade e distância.”68

Nesse mundo de espelhamentos, do “colapso da distância” o estranhamente familiar foi, por Anthony Vidler, associado aos reflexos: “O psicanalista Mahmoud Sami-Ali foi mais longe explicando essa associação do estranhamente familiar [uncanny] com reflexões, a partir do estádio do espelho de Lacan e, argumentando que a proximidade, observada por Freud, do familiar e do estranho causam ‘uma modificação profunda do objeto que de familiar é transformado em estranho, e enquanto estranho em algo que provoca inquietação devido à sua proximidade absoluta’. Sami-Ali propôs que o próprio espaço é deformado pela experiência. Se, como Freud havia sugerido, ‘o sentimento do estranhamente familiar implica o retorno àquela organização particular do espaço onde tudo é reduzido para dentro e fora e, onde o dentro é também o fora’ então o espaço do espelho encontraria precisamente essa condição: um espaço de normal binocular, visão tridimensional, modificado por ser privado de profundidade. Isto levaria à fusão, no mesmo plano visual, do familiar (visto) e do estranho (projetado). Neste caso do estádio do espelho, isso implicaria uma complexa sobreposição da imagem refletida do sujeito e, confundida com esta, a imagem projetada dos desejos do sujeito – o outro: ‘sendo simultaneamente ele mesmo e outro, familiar e ao mesmo tempo estranho, o sujeito é aquilo que não tem rosto e cuja face existe a partir do ponto de vista do outro.’”69

O estranhamente familiar é o espaço vazio interior recolhido no espelho. Um território contraditório, claustrofóbico,70 em que os corpos fragmentados, entregues ao mundo dos simulacros, deixam de distinguir os limites entre interior e exterior, real e irreal. Ao aproximarem de si mesmos, como quem se aproxima do outro, entre a vigília e o sono, 68. Idem, p. 02. 69. A. Vidler, The architectural uncanny, essays in the Modern unhomely, p. 222-23. 70. A. Vidler, Uma teoria sobre o estranhamente familiar. In: Kate Nesbitt (org.), Uma

nova agenda para a arquitetura, p. 620.

59


[13]


reconhecem-se na sua presente ausência71; um ser familiar, um vazio estranho e inquietante. No espaço da averiguação contábil a apreensão da realidade, abstrata, é homóloga à da ciência clássica72. Pauta-se em um conhecimento que se quer neutro, objetivo, no qual a percepção e o olhar subordinam-se ao cálculo, à precisão matemática, laboratorial, desligando-se do “estofo sensível” da existência. Um olhar inquieto, instável pode desestabilizar a apreensão abstrata e quantificadora da ‘realidade’, compreendendo-a para além reificação. No ato da visão, uma imagem, para além do processo de coisificação, pode interpelar o sujeito, surpreendendo-o pelos vestígios auráticos, pela carnalidade oculta, ausentemente presente.

71. Idem, p. 617. 72. Merleau-Ponty,

O olho e o espírito, p. 13. 61



IMAGEM E OLHAR “A visão não é um certo modo do pensamento ou presença a si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro à fissão do Ser, ao término da qual somente me fecho sobre mim.” Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 42

Em oposição ao processo de desencantamento da vida, um outro olhar, uma outra relação do homem com o mundo, alheios ao constructo da ciência moderna, foram investigados por Merleau-Ponty em uma vertente distinta de Walter Benjamin. Reversa à percepção fundada na relação abstrata com a realidade, Merleau-Ponty almeja uma outra forma de crítica, a constituir uma relação não reificada com o mundo, mediando-se pelo olhar do pintor. Tal crítica contrapõe-se à perspectio do sujeito do conhecimento, da ciência moderna, que conserva “o sentimento de opacidade do mundo”73, distante do real, que interpreta objetivamente as coisas renunciando habitá-las74. Em paralelo Didi-Huberman desvenda a neutra presunção das formas estabilizadas de ver, olhar crente, cego aos múltiplos estratos de uma imagem. o olhar da ciência e do pintor “A pintura então não é mais que um artifício que apresenta a nossos olhos uma projeção semelhante àquela que as coisas neles inscreveriam e neles inscrevem na percepção comum, ela nos faz ver na ausência do objeto verdadeiro como se vê o objeto verdadeiro na vida, e sobretudo nos faz ver espaço onde não há espaço.” Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 27 73. Merleau-Ponty, 74. Idem, p. 12.

O olho e o espírito, p. 12.

63


Nas antípodas do esprit géométrique, as investigações de Merleau-Ponty se contrapõem ao olhar objetivo, opaco, fundamentado em um regime clássico de visualidade. A ciência moderna, orientada pela noção de progresso, não se pergunta “sobre os fins últimos, o sumo bem, a felicidade”75, sobre o sentido de suas manipulações, a se constituir como uma outra forma de reificação. Segundo Olgária Matos, o simples fato destas perguntas “terem se tornado absolutamente ociosas já diz muito sobre o contemporâneo.”76 A pintura não celebra outro enigma senão o da visibilidade77. Para Merleau-Ponty, os olhos “são muito mais do que receptores para as luzes, as cores e as linhas”78; os corpos videntes, pela mediação do olhar, podem transcender uma relação ‘físico-óptica’79 com o mundo. Deste modo a pintura deixa, segundo o autor, de imitar o visível tornando-se ela mesma visível, “a épura de uma gênese das coisas”80; torna-se um existir: “O pintor retoma e converte em objeto visível o que sem ele permanece encerrado na vida separada de cada consciência: a vibração das aparências que é o berço das coisas. Para um pintor como esse [Cézanne], uma única emoção é possível: o sentimento de estranheza, e um único lirismo: o da existência sempre recomeçada.”81

Com a pintura os limites entre “essência e existência, imaginário e real, visível e invisível” são rompidos, confundidos; nas coisas desdobramse o “universo onírico de essências carnais, de semelhanças eficazes, de significações mudas”82. 75. Olgária Matos, Pós No16, Revista do programa de pós-graduação em arquitetura e

urbanismo da FAUUSP, p. 17.

76. Idem, p. 17. 77. Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 20. 78. Idem, p. 19. 79. P. Klee, ver seu journal, trad. fr. P. Klossowski

(Paris: Grasset,1959). [Ed. bras.: Diários, trad. João Azanha Júnior. São Paulo: Martins Fontes,1990]. 80. Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 39. 81. Merleau-Ponty, A dúvida de Cézanne, p. 133. 82. Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 23. 64


Cézanne realiza este feito em que não há distinção entre a alma e corpo, pensamento e visão.83 Ao deparar-se como uma paisagem, esta, segundo ele, “pensa em mim e eu sou sua consciência.”84 Não há, neste processo, a separação rígida entre o vidente e o visível; é o paradoxo de abrir-se em dois.85 O olhar do pintor dá existência visível ao que a visão profana crê invisível86 ou “um distúrbio dos olhos” de um bêbado limpador de janelas87, e amplia os horizontes do ver para além do visível, para além da visão objetiva. Diante de uma montanha, de uma paisagem esta se mostra segundo Merleau-Ponty, como um espelho, e “interroga com o olhar” o pintor cujo “espírito sai pelos olhos para passear sobre as coisas”. A visão, deste modo, “é, como disse um filósofo, espelho ou concentração do universo”88. Diante de uma imagem, somos também pintores, os quais observam-se diante do espelho ao fumar um cachimbo: “Esse olhar pré-humano é o emblema do olhar do pintor. Mais completamente que as luzes, as sombras e os reflexos, a imagem especular esboça nas coisas o trabalho da visão. Como todos os outros objetos técnicos, como as ferramentas, como os signos, o espelho surgiu no circuito aberto do corpo vidente ao corpo visível. Toda técnica é ‘técnica do corpo’. Ela figura e amplifica a estrutura metafísica de nossa carne. O espelho aparece porque sou vidente-visível, porque há uma reflexividade do sensível, que ele traduz e duplica. Por ele, meu exterior se completa, tudo o que tenho de mais secreto passa por esse rosto, por esse ser plano e fechado que meu reflexo na água já me fazia suspeitar. Schilder89 observa que, ao fumar cachimbo diante do 83. Merleau-Ponty, A dúvida de Cézanne, p. 131. 84. Idem, p. 131. 85. Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, p. 29. 86. Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 20. 87. Merleau-Ponty, A dúvida de Cézanne, p. 123. 88. Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 20. 89. P. Schilder, The image and Appearance of the human body [1935] (Londres: Kegan, Nova

York: Internacional Universities Press, 1950). [Ed. bras.: A imagem do corpo, trad. Rosanne Wertman. São Paulo: Martins Fontes, 2000.] In: Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 22. 65


espelho, sinto a superfície lisa e ardente da madeira não só onde estão meus dedos, mas também naqueles dedos gloriosos, naqueles dedos apenas visíveis que estão no fundo do espelho. O fantasma do espelho puxa para fora minha carne, e ao mesmo tempo todo o invisível de meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante meu corpo pode comportar segmentos tomados do corpo dos outros assim como minha substância passa para eles, o homem é espelho para o homem. Quanto ao espelho, ele é o instrumento de uma universal magia que transforma as coisas em espetáculo, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem em mim. Com frequência os pintores sonham sobre os espelhos porque, sob esse ‘truque mecânico’ como sob o da perspectiva,90 reconheciam a metamorfose do vidente e do visível, que é a definição da nossa carne e a da vocação deles.”91

O espelho de Merleau-Ponty é um espelho mágico, que busca o reencantamento do mundo, da vida. Contrapõe o olhar abstrato da ciência com o espelhamento do eu no mundo. Não aborda diretamente o conceito de aura, mas compreende no alargamento da relação do eu com o mundo uma possibilidade de re-auratização. Outro é o espelho de Walter Benjamin, fantasmagórico, outros os desafios: como reestabelecer a experiência emancipatória no interior dos próprios processos de reificação? Como, no coração mesmo deste universo, dos vestígios pulsantes da aura, encontrar formas de driblálo, subvertê-lo? Dois espelhos, um mágico, outro fantasmagórico; por sendas distintas, perscrutam, no visível, formas de desvendar a reificação, por meio de um outro olhar, uma outra percepção.

90.

Robert Delaunay, Du cubisme à l’art abstrait, cadernos publicados por Pierre Francastel (Paris: SEVPEN, 1957). In: Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 23. 91. Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 22-23. 66


o olhar da tautologia e da crença “O túmulo, quando o vejo, me olha até o âmago [...] porque impõe em mim a imagem impossível de ver daquilo que me fará o igual e o semelhante desse corpo em meu próprio destino futuro de corpo que em breve se esvaziará, jazerá e desaparecerá num volume mais ou menos parecido.” Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, p. 38

Análogo ao olhar da ciência moderna, para Didi-Huberman a pretensa objetividade das formas estabilizadas de ver cega a polifonia do visível. Tautológico é o olhar que crê ver “um ponto, nada mais”. Indiferente, para ele não há metafísica à vista a rejeitar os múltiplos sentidos latentes no ato de ver. O trabalho do tempo, da memória, das metamorfoses do visível, serão desprezados assim como sua aura.92 A tautologia, uma esquiva em forma de mau truísmo ou de evidência tola93, é o desejo de evitar a angústia, de denegar o vazio; desejo de manter-se atento às “arestas discerníveis do volume, em sua formalidade convexa e simples”. Um olhar de evitamento, falaz aparelho retínico. Aquilo que faz da experiência do ver tal exercício de crença se constitui como uma forma de recusa, de recalque94, “nada ver para crer em tudo.”95 Em nome de sua significação teológica, pseudometafísica, a imagem, cindida dos múltiplos sentidos que abre, escamoteia sua própria capacidade esvaziante ou angustiante: “o homem da crença verá sempre alguma outra coisa além do que vê”, atitude emblemática diante 92. 93. 94. 95.

Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, p. 39. Idem, p. 39. Idem, ibidem, p. 41. Ibidem, p. 42. 67


[14]


da morte. Diante do movimento do olhar para além do visível, este encontra-se condicionado, prefere “esvaziar os túmulos de suas carnes putrescentes, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens corporais sublimes, depuradas, feitas para confortar e informar - ou seja, fixar - nossas memórias, nossos temores e nossos desejos.”96 Trata-se da projeção de um alento post-mortem, um “apaziguamento” da dor frente ao passamento. Renúncia angustiada diante da tumba, “esvaziamento do lugar real, terrestre, de sua última morada”. Segundo Didi-Huberman o olhar da crença, apesar de metafísico, é sempre previsível. O olhar tautológico, sob o equívoco da unicidade do “real”, recusa o poder da imagem de impor sua visibilidade como uma abertura, inquietante. Entre o olhante e o olhado, no instante da cognição a imagem pode evocar uma dupla distância - uma trama singular de espaço e tempo97 -, em que emerge o “agora da reconhecibilidade”. Índice de uma perda, de um silêncio pulsante que nos olha, nos toca. Uma experiência visual única e estranha, um rapto da imagem que “levanta os olhos”. Contraditórias, críticas e instáveis, as imagens dialéticas são potencialmente reveladoras da condição de existência espectral dos sujeitos metropolitanos. Demandam outro olhar, aurático, correlato ao olhar do artista, distinto do científico, crente ou tautológico.

96. 97.

Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, p. 48. Idem, p. 147. 69


a imagem dialética “Em Benjamin toda a reflexão sobre a historia, tendida entre luto e desejo, entre uma memória e uma expectativa: limiar interminável - ‘porta estreita’, ele próprio dizia - entre o que um dia teve e o que terá um dia terá fim.” Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, p. 249 “A ambiguidade é a manifestação imagética da dialética, a lei da dialética na imobilidade. Esta imobilidade é utopia e a imagem dialética, portanto, imagem onírica. Tal imagem é dada pela mercadoria: como fetiche. Tal imagem é representada pelas passagens, que são tanto casa quanto rua. Tal imagem é representada também pela prostituta, que é vendedora e mercadoria numa só pessoa.” Walter Benjamin, Paris, a capital do século XIX, p. 48

Diante do declínio da aura sob o “poder da proximidade”, consecutivo à reprodutibilidade e à possibilidade de manipular imagens, as imagens dialéticas, contraditoriamente98, como um turbilhão que agita o curso do rio ou como as imagens fragmentadas de Paris refletidas no Sena, permitem uma experiência aurática, “uma verdadeira ritmicidade do choque”99. Síntese autêntica100, um olhar em crise, inquieto e crítico, capaz de reconhecer o tempo presente. Sob uma nova temporalidade e percepção fundamentadas no efêmero, no fragmentário, no “colapso da distância”101, característicos da modernidade, a possibilidade da realização de uma experiência aurática não se esgota; no momento da visão, em que “o Agora encontra o Pretérito num relâmpago para formar uma constelação”, uma imagem pode iluminar o tempo presente. 98. Didi-Huberman, O que vemos, 99. Idem, p. 173. 100. Ibidem, p. 177. 101. Comay Rebeca, Walter Benjamin:

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o que nos olha, p. 154. Cultura de la Imagen, 2010, p. 147.


“De um lado, a imagem dialética produz ela mesma uma leitura crítica de seu próprio presente, na conflagração que ela produz com seu Pretérito (que não é portanto simplesmente sua ‘fonte’ temporal, sua esfera de ‘influência’ histórica). Produz uma leitura crítica, portanto um efeito de ‘recognoscibilidade’ (Erkennbarkeit), em seu movimento de choque, no qual Benjamin via ‘a verdade carregada de tempo até explodir’. Mas essa leitura, porque explosiva, portanto fascinante, permanece ela mesma ilegível e ‘inexprimível’ enquanto não se confrontar com seu próprio destino, sob a figura de uma outra modalidade histórica que a colocará como diferença.”102

Nesta dupla distância, trama singular de espaço e de tempo, o próximo e o distante coexistem no presente emergente sem que seja dissolvida a lonjura. Faz-se assim com que o passado coloque o presente em “estado crítico”.103 Nesta operação dialética a imagem, que não é pura sensorialidade nem pura memoração, torna-se o “índice de uma perda que ela sustenta visualmente, [...] uma obra da ausência que vai e vem, sob nossos olhos e fora da nossa visão”104. Neste momento é abalada a estabilidade, “tudo parece desfigurar ou transfigurar-se”. “A dialética da imagem [...] estaria em ser ela mesma o instrumento de revelação de algo que como imagem ela encobre. E esse algo não seria um objeto, mas uma relação: não é a coisa que chega ao conhecimento, mas sua imagem, aquilo que se forma a partir de uma determinada perspectiva e desaparece com uma simples mudança de posição. Assim, para Benjamin, no contexto do conhecimento histórico, a imagem não se constituiria como reconstrução, e sim como iluminação ou lampejo.”105

O movimento dialético, deste modo, situa-se no interior da própria imagem, nas contradições entre sua aparência e tudo aquilo que pode visualmente transcendê-la. Este movimento, conforme descrito por Patrícia de Freitas Camargo, é análogo ao sonho: 102. Idem, p. 183. 103. Walter Benjamin, Passagens, [N7a,5]. 104. Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, p. 148. 105. Patrícia de Freitas Camargo, A câmera obscura de Walter

sobre a imagem dialética no trabalho das Passagens, p. 50

Benjamin: um estudo

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“As imagens do sonho são formadas a partir da percepção do presente, mas se organizam como mascaramento de um trauma inconsciente, reprimido pelo esquecimento. [...] Na tarefa de interpretação dessa imagem, o crítico não procura compreender a narrativa do sonho, aquela que se deixa ver, mas o código imagético que condensa a significação das imagens. Nisso seu trabalho se aproxima daquele do colecionador: arranca o objeto de seu contexto e o coloca lado a lado com seus semelhantes, para reconhecer sua significação escondida nesse novo conjunto. Ao propor um novo ordenamento para as imagens do real [...]. Ele constrói os objetos do conhecimento histórico como imagens capazes de revelar a origem recalcada dos fenômenos - residindo aí sua dimensão estética.” 106

Surge, diante desta dupla distância que nos olha e nos toca, um novo campo de significação, franqueado pela “memória involuntária”. Criticamente abre-se espaço para o despertar, para uma revelação; “memória de um esquecimento reivindicado”107, produto de uma ausência em estado de perturbação. “Alegoria do despertar. [...] ‘Imagem dialética da imagem dialética’ [...] a noção do despertar evoca o chamado da razão, que Benjamin tomava diretamente do materialismo histórico e da formulação de Karl Marx: ‘a reforma da consciência consiste apenas em despertar (aufweckt) o mundo... do sonho que ele faz consigo mesmo.’108 Isto significa exatamente, nos termos de Benjamin, que a dimensão da história deve ser aquilo mesmo que pode dissolver nossas mitologias. Dessas mitologias, desses arcaísmos, ela fornecerá portanto a crítica, dissociando-se assim de todo elemento de nostalgia ou de ‘busca das fontes’, dos arquétipos. Mas esta tese é acompanhada da antítese que a inquieta e a fundamenta num certo sentido. Pois não há despertar sem o sonho do qual despertamos.”109

106. Idem, p. 104-5 107. Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, p.190 108. K. Marx, Carta a ruge, 1843, citado por W. Benjamin,

XIX, p. 473 109. Ibidem, p. 188-9

Paris, a capital do século

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O sonho moderno radica-se na “atrofia da experiência”, em que as fantasmagorias da forma-mercadoria se constituem como o centro articulador. Associa-se o despertar à possibilidade de superação da ilusão, de um sonho mortificante. Tal processo, segundo Walter Benjamin, finda-se na dupla distância da imagem dialética. Dentre as imagens capazes de subverter o vazio do instante o cinema configura-se para Benjamin como o agente mais poderoso do violento processo de abalo da tradição110. Uma linguagem emergente que poderia “empurrar o sujeito moderno para o reconhecimento tangível da presença do presente” por meio do choque. Com a rápida mudança de imagens o cinema aproxima-se das experiências perceptivo-corpóreas que se realizam em meio às massas citadinas. Por meio da montagem, deformações e estereotipias, poder-se-ia sensibilizar o espectador para as potencialidades libertárias do aparelho. Introduzia-se, assim, segundo Benjamin, “uma brecha na velha verdade de Heráclito segundo a qual o mundo dos homens acordados é comum, o dos que dormem é privado.”111 As imagens dialéticas, como imagens que saltam do passado, rastros de sonho, podem pelo reconhecimento que invitam a um olhar interessado descerrar o vazio existencial, iluminando reminiscências poéticas, talhadas sob o lampejo incandescente das profundezas encantadas do ser.

110. Walter Benjamin, 111. Idem, p. 190.

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A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, p. 169.



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CONSIDERAÇÕES FINAIS “Um olhar sobre a ambiguidade das passagens: sua riqueza de espelhos que aumenta os espaços de maneira fabulosa e dificulta a orientação. Ora, este mundo de espelhos pode ter múltiplos significados e até mesmo uma infinidade deles - permanecendo sempre ambíguo. Ele dá uma piscadela, é sempre isto e jamais é um nada a partir do que uma outra coisa surge imediatamente. O espaço que se transforma o faz no seio do nada. Nestes espelhos turvos, sujos, as coisas trocam olhares à Kaspar Hauser com o nada. É como se fosse uma piscadela ambígua vindo do nirvana. E, novamente, alcança-nos com um sopro gelado o nome ridículo de Odilon Redon, que como ninguém captava este olhar das coisas no espelho do nada e que, como ninguém, sabia se meter na cumplicidade das coisas com o não-ser. Um sussurro de olhares enche as passagens. Não há coisa alguma aqui, quanto menos se espera, que não lance um rápido olhar, fechando os olhos com uma piscadela, mas a um olhar mais atento, ele já desapareceu. O espaço empresta seu eco ao sussurro destes olhares. ‘O que terá acontecido em mim? - pergunta, piscando’ Nós hesitamos. ‘Sim, o que terá acontecido em você?’ Assim devolvemos-lhe a pergunta, baixinho.” [R 2a,3], p. 583

Cidade de espelhos, fantasmagorias, sequestro da humanidade pelas coisas, reluzentes sob a prevalência da exibição. As engrenagens replicantes do organismo maquinal a tudo estendem seu ritmo multiplicador. Ecos dodecafônicos do concreto. Imagens efêmeras e fragmentadas, entorpecem os olhos com a repetição do sempre igual. Na espiral do excesso, narcótico do novo, a experiência desfalece. Passagens, espelhos, a ofuscar os confins entre real e irreal, dentro e fora. Matéria-prima da percepção das massas citadina, o choc habita o vazio de fragmentos acelerados, estilhaços do visível colhidos nos reflexos do asfalto. No quadrante racionalista do homem metropolitano, o olhar 78


adere ao cárcere epidérmico da métrica monetária. Caleidoscópica matemática do espaço e do tempo, em que tudo presta contas ao abstrato. Defronte ao espelho, vis-à-vis, imagens flertam espectros. Igualados pelas vitrines translúcidas do nada, rendem-se ao canto silente das mercadorias. Olhares asfixiados, vazios de memória, a segar o visível, tolhendo-lhe o ar. Nesses seios hipnóticos, uma imagem ambígua interpola tempos distintos, presentes do estranhamento, desalienante. Qual o preço da perda quando, em refração, estrelam inquietudes oníricas? Entre o espelho mágico e o fantasmagórico, nos entremeios da utopia e do existente, descortinar caminhos, arquiteturas do reconhecimento...

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tiragem: 06 exemplares miolo: sulfite, 90g/m2, alta alvura capa: couche, 230g/m2, laminado fonte: garamond e helvética crédito imagens: Fernando Túlio. S. R. Franco 1 à 5: trans[lúcido], 2006 6, 8, 9, 11, 12, 13 e 16: noite em São Paulo, 2012 10: corpos em movimento, 2011 14: projeção sobre tela, 2012 7 e 15: cidade de Nova York, 2011




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