fiz com você minha cama na est�ada
fer�ando amarante
escrito por Fernando Amarante
Itajubรก, Minas Gerais - 2012
Me encantou mais a espera: nunca quis beber a água do rio. Ainda me encontro sentado à margem esperando o dia de ser o rio. O rio é tanto que esperar ser rio é tanto. Minha sede é tão maior que meu corpo que minha única saída é tornar-me rio. Minha fome é saudade da terra.
A boca mexia e nada era dito, como se mastigassem o som.
Quem conhecendo a vida hesitaria? O ápice só me serve para não habitar nele. O alimento oferecido gera. O equívoco propaga a vida. Cobaia contínua de nós mesmos. Reconheço o que esfria e é a maior parte que toma qualquer explicação. A totalidade se constitui no desespero de ir, na profusão dos instrumentos, da imersão da história na sucessão dos acontecimentos, algo como eu escrever sob a música que diz tudo o que deve ser escrito e eu nunca aprendi a lê-la e ela me consome em palavras para que eu não morra. A música nunca nasce no presente. Repousa na ressonância que se entrega nas sombras do corpo daquele que se expõe.
Um corpo condicionado a se recuperar, eficaz convite da escravidão como dádiva.
O cerne eterno de uma prostituta feliz, ela que se mataria sem seu homem escreve tudo quando enfim chega o dia e a chamam a voltar pra casa, ser novamente a criança e criança é escolha. Ela pediria só a escolha para ter a certeza de nunca ter sabido verdadeiramente escolher. Era na criança que a escolha se concretizava por não ser e poder ser tudo. Até que voltaria aos homens, escreveria tudo, sentiria cada pele novamente e faria um filho.
As tramas que compõem o escuro absorvem o calor único da sedimentação do toque, enlevados pelo alarde da leviandade, participando da resignação do ouvinte, atrelam suas pernas na caminhada e conduzem intrigados a perpetuação do momento, manejando com perícia os traquejos, abstendo-se das invasões e permanecendo julgados no perigo e no deleite. Ruminados adquirem seus desejos e ela se deita ao som da música, fecha os olhos e absorve como eu sempre esperei. Acompanha o ciclo e é invadida pelo espectral desígnio presente no som, pela proliferação do sentimento nas palavras ecoadas dos instrumentos, aplacando a conduta que, por mais indesejada que seja, necessária se mostra quando aflora à pele, toma os nervos e constitui a determinada moção de agora, adequando o desintegrar dos segundos no instintivo prazer da carne, a que revestida de pele é tocada e ferida, a que produz o sangue e o corte, que é ingerida pelo animal feroz, pelo intuito incapaz da ramificação: um interligado noutro.
Delineado o absurdo e acolhendo a prostituição como uma forma dolente de se martirizar o apego, sentindo o arrepio da pele no toque sutil dos lábios, adornando a condição num fluxo incessante de propagação insulada, arrefecendo o litígio e abençoando o repúdio, com a convicção aderente da massificação, recebendo e doando o sêmen no último suspiro da petrificação, intensificando o repúdio e mal dizendo o instinto, condenando-o à intenção da forma e à destituição incapaz da reminiscência. Protegidas as maculadas inépcias, sente-se no calor da relação o sotaque estrangeiro do cigarro na boca, jubiloso e comprazido, obliterando o instante e transformando-o no doce alento da restituição. Quando ela se delicia ao som do blues incessante e avassalador, no toque da suavidade possessa, aprisionando os preceitos e absorvendo a resignação como um convite ao ensurdecedor gemido. Fiz com você minha cama na estrada. Colidi os sinais e calcinei a entrada de nossos desvios com a mais pura coerência do toque, proliferando nosso auxílio, remanescendo a perseverança, redefinindo nossas maneiras ineptas da sanidade e do desmanche, colocando no esteio da fidelidade nossa pacata esperança, tão sofrida e judiada no imaginário dos justos. Ardente união, promulgada na desova, no hábito da promessa e na certeza do contato perpetuar os dias, que se perdem dentro da nossa sabedoria de passar pele a pele suas horas, de desmantelar seu ciclo na insaciável demanda de dois intrusos nas certezas do mundo. Compartilhamos nossa rendição como desacomodados da vida, cansados de sua retidão e de seu contentamento massivo. No nosso mundo é permitido o esquecimento a dois, condição primária para que mudemos a história um do outro.
e como se Deus fosse ainda tudo o que pudesse suportar, ainda as palavras que eu soubera dizer e não disse, por um qualquer traço que me trouxera quando eu não pude respirar e me contive em não me despir da vida, quando pude me ater a olhar uma forma estranha e repetida, sem notar o medo que sentia. Poderia então falar tanto que nunca deixaria um dia que fosse a certeza de ter sido e de perpetuar a ternura, a malícia, a suavidade que me carrega pelos dias e que eu não soube tratar como minha. A leveza que é sincronizar os dias pelas horas e também de ser apenas como um dos tantos que são e não se cansam.
Como se quer ouvir todos e também saber do ocorrido, das notícias que corriam e de todas as antigas vezes em que desapareciam e nunca mais ouviram falar sobre, quando sobre disseram e mesmo assim alegaram não ouvir. Poderiam as mesmas coisas sempre e quando, nas menores casas, nas noturnas campanas, todas as vezes em que desapareciam e voltavam. Sentiam como a última coisa a ser sentida, feito o desespero de estar tomado e não se conter em debater-se tanto mas tanto que se fere a ponto de chorar e só saber do choro. Estende quanto mais a dor condena, quanto mais se impõe e nada fala, quando poderia ter visto e se perdeu ao longe, até mesmo quem distinguia antes e agora é tudo o que se fala. Conheceria quem um dia viesse e se despedisse no mesmo tanto que se é, até tudo soltar e então ser.
Ainda tudo como disseram, das palavras dispostas como pintura, da corrida pelo ouro, da insatisfação que gera e da impotência diante da vida. Filhos da Havi, também são à palavra pura e de completa modéstia, da situação felina dos matizes, de qualquer obstáculo à frente. Pondera-se ainda a melhor culpa, a mais traduzida angústia de um dia ter ficado ausente e seria essa ainda a melhor forma de se ter. Mas que renovaria é certo como as coisas que brotam, como o orvalho incerto e vivo, como se faria diante do maior problema.
O fogo é muito sutil. Sua maneira imaculada de me dizer: a gente é fogo; ele destrói, consome. E ela tenta me explicar que é como a batida de um coração a forma como ele queima, a forma que ele queima o papel, destrói e deixa uma sutil marca, como as pontas de seus dedos percorrendo a superfície da minha pele. E como num último suspiro ela me diz: o nosso amor é um rastro de fumaça, de um fogo que já queimou, de um fogo que já consumiu. O sexo é o fogo. Na sua entrega reconheço a confissão: não sei viver pela metade.
Na contumaz ojeriza e flamejante, estipula consentir com o danoso périplo, investir seus dias, a lançar-se. Mentecapto, retorna reticente e prolixo, desestruturado pela jornada e quase inconsciente. Revigorado adentra as casas desesperado, conduz todos ao perigo, obriga e tateia suas escondidas formas. Reduz-se ao centro, pormenoriza suas conquistas e êxitos, suborna-os e difama seus antepassados. Reagem à maneira quista, são postos a lutarem, a defenderem seu antigo posto e sua incontestada veste onírica. Avançam e destroem tudo, as convicções e os anseios, seu invasor e suas proferidas rezas. Remexem assim a casca, vigorada e transgredida, que agora, possessa, situa-se no mais retirado quinhão de suas metades, na perseguida miragem e no delinquente esquivo.
Pela criança que um dia através da palavra descobrirá a si mesma. Sirvo a água que fiz. Como o alimento preparado pelo fogo que tenho às mãos além de sua desgraça. Reage à maneira que o olho, implacável. Uma sólida parede de ar. Da água tão dura quanto a terra que ondula feito luz que um dia parou. E do fogo só utilizaram a quietude do respeito mútuo. Não se atrevem a olhar nos olhos.
Não é de todo simples o saber. É como manejar o fogo e saber que ele pode te matar, mas mesmo assim mantê-lo brando, sob controle. Ter que saber e não morrer sufocado de não poder nunca mais parar de ter consciência de tudo, de qualquer passagem, de qualquer mísero detalhe que me livraria dos dias se não fosse tão crucial. Poderia acabar tudo como quando começou, no absoluto silêncio da virgindade.
Poderia ser da eterna magnificência do céu, do negrume que envolve a luz dos homens, do estalar da chuva na escuridão da cidade imóvel, e das cores que só o homem vê. O grande presépio das pessoas presas em casa, a luminosidade emergida da fragilidade de nossos pulsos: é alguém entrar à porta e assassinar. São os passos que não são dados ao ouvi-los na noite dos ouvidos que os criam.
desenhos por Melina Lisboa contato: fernandoamarantedao@gmail.com