Pedras Soltas

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TÍTULO Pedras Soltas AUTOR Fernando Saiote DESIGN E COMPOSIÇÃO GRÁFICA Augusto Silva MONTAGEM DE CAPA Filipe Santos IMPRESSÃO estúdios da edium editores ACABAMENTO Tipografia Aliança, Porto 2008, edium editores de A.S. Castelo Branco Rua Santo António do Telheiro, 293 4465-249 S. Mamede de Infesta Tel: 309 916 268 – email: ediumeditores@gmail.com www.ediumeditores.wordpress.com ISBN: 978-989-8169-26-6 DEPÓSITO LEGAL: xxxxxxx/08 1.ª EDIÇÃO, Novembro 2008

Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor

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PREFÁCIO

O que dizer sobre o autor das obras expostas neste livro? Falar do Fernando Saiote em termos literários é, um pouco, descrevê-lo na sua forma de pessoa. A sua escrita é profícua em adornos e muito rica na sua composição vocabular. Quase se poderia dizer que cada texto é filtrado várias vezes, em busca da perfeição, antes de ser mostrado ao leitor. A poesia é, por excelência, o seu género de eleição. Sublinha que não tem um estilo mas, a tendência para o rigor das rimas marca a grande maioria dos seus textos. O autor mostra-se num registo dirigido a quem o lê “(...) Estas divagantes poesias Que a todos se dedicam… Escritas ao passar dos dias Em memória daqueles que não ficam. (...)”

in “Prefácio” Segue na primeira pessoa, onde revisita memórias e o seu imo. Oferece-se assim e deixa margem para ser reinventado num jeito de quem o deseja. Leia-se o texto “Eu” que marca um saudosismo, que é latente em parte da sua obra: “ (...) Chora comigo esta existência e seu destino, Partilhemos só nós este momento divino, Saber que um dia até o Homem foi menino. (...)”

in “Eu” Reconhece-se uma tendência bastante acentuada, a dado passo, para o épico, para o grandioso e complexo relato 3


criativo de odisseias de carácter histórico e para as obras de fundo, como acontece com o “Divago”, texto dividido em dez partes ou o “Octetos”. Não sendo um poeta “mono-temático”, navega de forma fácil em várias águas, onde, privilegia o feminino como fonte inesgotável de inspiração: “Calam-se os teus passos, O teu respirar ofegante. Soltam-se letras desse olhar, As mãos suadas tremem (...)”

in “Palavras para o feminino” Ou, por exemplo “Bebi-te num beijo perfumado, Naveguei o teu corpo só Tomado no cetim dos lençóis, No calor de mil Sóis, Pele nua em olhos de dó De silêncio imaculado. (...)”

in “Poema romântico-sexual” Este livro reflecte, de uma forma fiel, o autor. Fernando Saiote é o que aqui se lê, um poeta critico, pomposo, prolixo, solene e, no entanto, claro e recto. O excerto, aqui descontextualizado, “(...) A revolta desta vida filha de puta, Que dorme ao relento à porta da caserna Ao frio, ao passado... ao mar.”

in “Dura Faina” 4


podia resumir uma vida e a vontade rija da escrita indomada que lhe flui das entranhas. Que não restem dúvidas quando se diz que todo o espólio literário, passado, presente e, certamente futuro, é fruto de uma vivência rica e da ímpar capacidade de transformá-la em texto. Esta é uma capacidade inata que se reconhece aos que a sabem domar e esses, não são muitos, pois é requerido gosto e trabalho. Ao falarmos do Fernando, porque é fácil falar dele se o lermos, respondemos ao que na primeira linha deste prefácio inquirimos. “(...) Sou moldado em barro seco, Esculpido em dor de cinzel Por doutrinas de anciães Mãos rasgadas de amor. Sou verbo nulo, arquisseco, Vírgula solta de aranzel, O orgulho de tantas mães, Raio de Sol sem vigor. (...)”

in “Gargarejos” Este é um livro do autor e, ao mesmo tempo, um livro que nos dá o autor. Este é um livro para lermos quem assina por Alemtagus.

M. J. M. Saiote (Valdevinoxis)

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PREFÁCIO

Estas virtuosas palavras Que vivem perdidas no universo intenso, Que não são minhas, Mas de um povo imenso, Cortam, como lâminas, o tempo Vindas da boca dos amigos Misturadas neste verde campo, Mundo de esperança e de perigos. Estas divagantes poesias Que a todos se dedicam… Escritas ao passar dos dias Em memória daqueles que não ficam. Escritas e esquecidas Num futuro que não existe, Apenas lidas e relidas Por quem sabe o que é ser triste. Significados íntimos De muitos e variados vícios Profundos mas ilegítimos. Mortais e enfadonhos dilúvios. Palavras grandes, enormes, Mas também irracionalmente pequenas De rostos irritantes e infames Nas suas horríveis cores vagas. 7


MEDO

Medo É Saber e não dizer, É caminho de ida sem volta, Árvore tosca sem raízes. São crianças de sorrisos infelizes Homens que não gritaram a sua revolta, Escrever sem saber ler. Medo É ter um dia conhecido a coragem, Amar porque uma vez se odiou, Fechar os olhos à realidade. É dizer sim quando é não de verdade Calar uma palavra que se roubou, Dizer que o amanhã é miragem. Medo É estar vivo, Morrer um pouco aqui, outro ali Olhar em redor e ver... nada. É sentir esta vida parada Esquecer de me lembrar de ti, É não saber para que sirvo. 8


A PALAVRA

Aquela pergunta que se faz, Num certo momento… crucial Sobre uma guerra que mata, Porque procura aquela paz Do bem e do mal. O que não ata nem desata. Momentos que fogem Por entre dedos que já não fecham, Os punhos cerrados Dos homens que não morrem E da dor dos que já não se levantam Para serem chorados. Passam os dias, Os meses, os anos… As vidas. Momentos que querias, Em pensamentos insanos, Matar com guerras santas. 9


Já não há cemitérios, Enchem-se as praças De cheiros nauseabundos Flutuando dos necrotérios. Juntam-se as massas Contra soldados vagabundos. Da guerra não há culpa Nem de quem matar, Nem de quem morrer. Só os Homens não têm desculpa Pois querem amar, Sem querer. Palavras a mais, Menos ainda se faz… Faz-se o medo Das merdas reais. Acaba o respeito por quem jaz, Por quem morre cedo. É de amor que por aí se fala Nestes tempos que por aí correm, Mas o que há para os que sofrem… Em comum… uma vala.

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MENTIRA!

A quem já não vive… Um brinde apocalíptico Com o copo que se levanta. Um cavalo que se monta Tal desejo místico De uma vida que não tive. Uma dívida que não se deve Num momento cíclico Da vida de uma santa, Onde ninguém se conteve Ao ouvir o relato bíblico Da mentira que aumenta. É esse deus quem tenta Mostrar a quem é louco Que o mundo também se move? Se vem o Sol ou se chove Não interessa nem um pouco Mais uma mentira que se inventa… Eis que cada qual come o ódio que alimenta. 11


PAISAGEM

Minha caneta chora lágrimas de tinta no papel Risca erros e traça destinos, Suposições de tudo aquilo que é possível. Consigo ouvir tocar os melhores hinos Pelo afilado conjunto da banda do quartel Que desafina nos graves e agudos No soar de uma flauta de Bisel. Corro pelos campos enevoados Com cheiros de Begónias e mel. Flores perdidas nos descampados Numa tarde nua e inesquecível. Amores-Perfeitos e descontrolados Com sua beleza inigualável. Rumores de ciúmes sentidos, Soltos num abraço impossível. 12


CAMPOS DE MENINICE

Campos verdejantes De calma profunda Envaidecem o meu olhar, Alegram as minhas recordações. Arame farpado de ódio nas vedações, Corda na forca com ordem para matar, Doença do Homem de mente imunda… Campos de sangue, estonteantes. O suor do escrevinhar da caneta Que enaltece a tristeza do escritor, Testemunho das suas memórias. Lembranças turvas da infância… Quando menino reinava a tolerância Ria ao ouvir de seus avós belas histórias, Finais felizes, propaganda ao amor, Estraçalhadas pelos donos do planeta. 13


Campos verdejantes de saudade, Espigas que corriam mais que o vento Que passava nesses montes e vales, Qual tapete de cores florido. Sentir o desejo de já ter morrido, Banido deste terra todos os males, Não olhar para trás a todo o momento… Saber, por fim, toda a verdade. Sou passado, presente e futuro… Antes para lembrar o que foi esquecido, Agora para esquecer o que se passou, Depois para emendar os meus erros. Caminho pelos rio, subo esses cerros, Reinvento tudo aquilo que se inventou E recupero todo o tempo perdido. Derrubo para sempre o maldito muro.

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EU

Um pássaro que canta num ramo poisado, Uma árvore que decora um chão queimado, Um Homem que sofre num mundo perdido. Uma esperança que volta no brotar de uma flor, Um grito que se ouve e se julga de dor, A vontade de sentir do Sol o seu calor. O desejo de te olhar e de te chamar amigo, O medo de, entre amigos, estar o inimigo, O orgulho de nunca mais gritar perigo. A vida que definha por não haver pão, Outro dia que por nós passa nesta perdição, O triste sabor que fica pela última saudação. A paixão louca que nasce entre nós dois, A manhã em que só acordo um dia depois, A flor que no dia a dia pelo jardim dispões. Chora comigo esta existência e seu destino, Partilhemos só nós este momento divino, Saber que um dia até o Homem foi menino. Vamos tomar banho nas lágrimas da chuva, Juntos, debaixo da silhueta da Lua Nova, Dando ao nosso afecto a fatídica prova. Não me deixes mais sofrer este amor, Ata-me o coração num suspiro com fulgor, Não me deixes viver em espinhos e dor. 15


AMOR DE PO ETA

O calor que me corre pelas veias O sangue que me faz amar, São tudo palavras cheias… Desejo de não mudar. O prazer de estar contigo Numa bela realidade, Junto ao coração amigo Merecedor de felicidade. Saem-me estas rimas Sem destino ou razão, Ao amor que me destinas, A essa louca paixão. O sabor de ter alguém Para amar junto de mim, Ser como mais ninguém E sentir-me assim. Sentir-me assim Por não ser igual a ti, Porque agora, enfim Já não és mais o que eu senti. Bem no fundo do coração, Pois é de lá que vem esse amor. Surge a dúvida… o senão O medo de sentir a mágoa… a dor. 16


SUSANA

Em terras distantes de onde estou De verdes paisagens altas, Cerradas de nuvens e água, Distância de uma mágoa Azedume pelas minhas faltas Ao meu amor novo que se encontrou. Durmo sem poder esquecer Uma palavra ou uma feição, O teu sorriso bonito, O meu olhar no infinito Ao sentir o bater do teu coração Aqui, mesmo sem te poder ver. Cruel será este fado Que nos juntou sem pensar, Naquele dia que trago em memória E que sempre ficará na minha história, Para de ti me lembrar Nesta essência sem rumo traçado. 17


Muitos amores já eu tive Na minha vida atribulada. Tormento de boémio estudante Trajado ao bom Infante, Palavras ocas que dizem nada E provam que este amor ainda vive. O afecto que jamais se esquece Terna sensação de paz de alma, Sacode a memória profana, O teu belo nome… Susana! Simples, apaixonada, calma O brilho nos olhos, o amor que padece.

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DO PENSAMENTO

Só, na escuridão do momento, No momento mais azul de todos os tempos, Em que ouço a música do vento Ao longe, muito longe nesses campos. Sorris para mim… Como se me visses pela primeira vez. Durmo e sonho enfim, Contigo minha bela Inês, Quem por medo mataram, Mas não só a ti Também a mim tocaram Nesse tempo que não vivi. Não te pude ver e adorar, Chorar no teu peito, Mostrar-te como posso amar Chegar-me ao teu leito. 19


CASTELO EM RUÍNAS

Pedras soltas de história Carregadas de dor e paixão Perdidas no esquecimento da memória Soterradas por anos de solidão. Relatos intermináveis de batalhas De sangue pela pátria derramado. Conquista de mares… velhas muralhas. Homens que nos deram um passado. Alfarrábios que nos contam lendas De gloriosos e valentes guerreiros Com honras de mortais contendas Proclamando liberdade aos prisioneiros. Chamas de um fogo apagado Pelo desleixo de futuros tardios, Avivadas por heróis desejados Que aquecem o passado em dias frios. 20


A revolta que supera o medo, O brandir dessas armas toscas Que se ouve ao longe… morre cedo. Testamento de palavras ocas. O presente e decrépito discurso Daqueles que se dizem sucessores, Que destroem todo um percurso, Que fazem de nós opressores. O engano e a mentira que juntos cavalgam, Seus corcéis loucamente Dantescos, No arfar poluído em que governam Impérios outrora gigantescos. Este castelo que agora me acolhe Que me fala baixinho no silêncio da Lua, De todos os mortos que ela escolhe De cada querela que tem como sua. As árvores que o rodeiam alinhadas São como hordas que se erguem À voz de comando chamadas, Prontas a morrer por quem defendem. Sujeitam-se ao sacrifício final Às honrarias inerentes De um último golpe brutal Decretado por homens dementes. Descerra-se um nevoeiro intenso Que esconde fantasmas e temores, O calor da guerra que é imenso, A vida em todos os seus horrores. 21


Recosto-me neste eterno paraíso Onde ouço o falar de aves canoras Que palram em tons de aviso, Sobre o fim… que está por horas. Vivem-se generosos minutos Que cantam logros mundanos, A antiga alegria dos putos, O leve passar dos anos. Alegra-se o incauto que não crê, O louco infeliz que não sente, O cego que sabe, mas não vê, Todo o Homem que a si mente.

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ALFABETOS DE ESCÁRNIO

Algumas palavras que se escrevem Bordadas com fios de ouro, Caídas de um tempo esquecido, Do livro de alguém que as pensou, Escreveu e divulgou. Folhas de um poeta destemido Guardadas na alma com um tesouro. Hiatos temporais que de nada servem, Inevitavelmente inúteis, Jazigos brancos ao Sol quente Lavados pela chuva que cai. Mortos enterrados num culto, Nascidos a meio de um tumulto… Ossadas de alguém que um dia foi pai Perdidas num desejo evidente Querelas frequentes e irascíveis Revoluções e valores políticos Situações provocadas por seres raivosos, Tentativas coloridas de viver Um dia de cada vez neste mundo insano, Versões diferentes do conflito humano, Xadrez jogado sem nada a temer. Zelos desculpados por olhos mentirosos… 23


DIVAGO

I Um coração que aperta Nas horas mais loucas, Na vida de um Homem. A dor que se suporta Quando se sabem poucas As esperanças que ele tem. Uma breve canção Cantada numa nota qualquer Que não lhe sai do ouvido. Transborda tanta emoção Sem saber o que se quer Ou tão pouco o que lhe foi pedido. Com ou sem amor O ódio que se espalha Como o fumo que paira no ar. Não se perde o valor Quando o Homem falha… Ser humano é errar. Aquela terra que se lavra Com um gasto arado, Por um trabalhador velho. O soar de uma palavra, O rosto amado Reflectido no espelho. 24


II O vento que passa Cortante por entre portas, Abertas pela corrente. A verdade que é falsa Quando se diz pelas mentiras, Frio arrepiante. Algarismos perdidos Em contas sem fim Nas sebentas de um estudante. Mistura e letras e números… Uma mixórdia, enfim, Que enfeitam a estante. As palavras que cantam Ao som de uma guitarra… Acorde desafinado e irritante. Pensamentos que se evaporam Como neve no cume da serra, Um Sol de mil vontades, tão brilhante. A Lua que não traz paz, Nem descanso a ninguém… Só o sono de quem se diz importante. Este momento tão fugaz E tão só também… Infeliz sobrevivente. 25


III Do sangue liberto nas veias, Como tinta de uma caneta A escrever as minhas ideias Num tom de cor preta. Saem-me estes momentos, Jamais sentidos, pensados, Nunca antes escritos. Composição de poemas imaginados. Corrompo-me pelo estudo, Pela dialéctica da demagogia À qual me faço surdo Perante inútil pedagogia. Palavras sem destino Que me deixam pensar Nesse corpo feminino Sempre disposto a amar. Pensamento ignorante de desleixo Que paira nesta fútil existência Vida farta que não deixo… Tortura, sofrimento, penitência Anos feitos de delírio Na essência desencontrada Nunca vivida em tom sério, Sucumbindo por sentir… nada! 26


IV As fartas luzes que saem à noite do céu Por entre chuvas e cerradas nuvens Que pairam num ar quente e húmido, Poder afastar suavemente o sedoso véu Das vergonhas sentidas pelos homens No seu estranho pensar estúpido. A vontade de sair sem receio às ruas Gritar amor, céu, futuro Esgueirar-se por entre as gotas que caem, Ter a sensação de ver silhuetas nuas Um corpo sensual de olhar puro Espetar farpas que já não saem. Perdidos no mundo sem saber onde A revolta efémera de ser cego Não poder apreciar o que é oferecido, Alegria de um sorriso que se esconde O som do martelo que bate no prego No mundo sem saber onde… perdido. Xadrez invulgar sem rei ou rainha, Desejo de poder dominar o que domina, Relâmpago que cai não avisa, Vida que definha, Vida fina, Indivisa. A criança que não chora As lágrimas que não saem O fado que não espreita Cavalo que sente a espora Ideia brutal do Homem Imortalizar a maleita.

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V Olho pela janela A noite calma e escura, Penso em ti à luz da vela Minha amada futura. Vejo-me em teus olhos, Tão belos que serão, Jardins de flores aos molhos Que apertam em meu coração. Fogo vivo e ardente, Amor de toda a gente De ténue chama cintilante Que me fustiga a mente. Teu corpo…iguaria rara Que se vê, adora, saboreia Preciosidade exótica e cara, Jóia digna de quem não odeia. Teus cabelos cor de mar, Olhos pintados por deuses no céu, Tudo perdido num simples amar Coberto por um fino véu. Faz de meu amor a tua vida, De mim o teu fruto proibido, A ti, mulher perdida Entrego tudo o que tenho vivido. Perco-me nos confins deste infinito Num mundo meu e de ninguém Qual ser só e esquisito Que procura algo sem saber quem.

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VI Ao cair da noite, Vulgar como as demais, Duas estrelas que se apagam Qual luzes de pirilampos Que voam em deleite Juntos a dois ou mais. Eles que nunca param, Que competem com os candeeiros Desarrumados em desertas ruas, Como velas negras acesas Num efémero jantar romântico… A dois. Sonhos reais de ninfas nuas, Resplandecentes belezas Agora com semblante pacífico, Com lágrimas soltas… depois! Depois de tudo… depois de nada, Neste infinito que não existe Iluminado pela luz que não se vê Num longínquo grito de dor. Mãos de fada De uma África que não desiste, Livro da vida que não se lê, Mas sente… como sente o amor. 29


VII Uma luz que se reflecte pela janela Atingindo os olhares curiosos, Queimando mentiras descomunais Como sendo mil pavios de uma vela Acesa pelos desejos ociosos De quem os sonhe, vivê-los… jamais. A Lua amada como uma mulher Que se perde em suaves horizontes, Num infinito deserto de nada, De um sentimento falso que não se quer, Que passa fugidio pelas mentes. Histórias de uma vida privada. Ideias primitivas Que puxam pela memória De quem nunca pensou, Como se fossem decisivas Para uma frustrante vitória De quem não voltou. Sons que se cheiram, Que se sentem e nos consomem, Que trazem uma suspeita forte, Paixões que não se respeitam, Anátemas de um velho homem, De quem já não sabe a sua sorte. 30


VIII Momentos de tédio e descanso, Sons que batem, mas não doem, Vozes que não se calam, Que dizem tudo o que penso Que nem a verdade sabem, Não sabem do que falam. O estudo que não fica Por força que não é minha. À mesa de uma esplanada A tomar a minha bica, Que nem açúcar tinha, Que não sabia a nada. Um ardor na mente Que me leva para fora, Que se perde no escuro, Bem longe de toda a gente, Como um sonho que me devora Qual sentimento impuro. Arde uma fogueira, Atiçada pelo pensamento Regado a doce licor Separar erros com a joeira, Alma em desentendimento Olhar clássico de pudor. 31


IX O poeta que não mente, Por entre verdades e mentiras, Não é o poeta que sente As mentiras verdadeiras. O poeta sonha O sonho dos homens, Nas fraldas de sua fronha, Nos ideais revolucionários dos jovens. Não há homens-poetas Só poetas-escritores Não há canetas e penas, Apenas… grandes amores! 32


X Dias que dormem Ao Sol de Agosto, Vozes que cantam Entoando fúnebres cânticos… Não vivem os que morrem, Desejos e desgostos, Lágrimas que lavam Tantos corpos e rostos, Um dado que se joga, Com dinheiro perdido Numa casa escura, Numa mesa partida… Terra antiga, Orgulho ferido, Morte à espera… Feliz e decidida, Preto no branco, Cores a mais Em pincéis que tingem telas, Sujam panos, venha o que vier. Uma porta que eu tranco, Com muitos sinais, De almas tão belas, De quem vive a sofrer. Sombras e arrepios, Filmes de terror, Sala de espelho convexo, Mil e uma frases, Dias quentes e frios, Noites más de amor… Todo o dia: sexo. 33


O ENGANO

Trovejam os céus impiedosos Cinzentos, imponentes, pejados de subtileza. Chuva insistente contra a janela Qual lágrimas de uma história tão bela Por onde passámos… eu, tu e a tristeza. Mundo repleto de sentimentos poderosos! Sonho contigo na primeira pessoa, Numa língua tão estranha quanto antiga, Num tempo tão perfeito como distante. Sinto-me confuso, perdido… ofegante, O gélido calor da tua mão amiga. Tudo num grito de liberdade que ecoa. Em todas as direcções ouço passos, Correntes, risos… dor e sofrimento! Sinto nojo, raiva, aflição. Instintivamente largo a tua mão… Voltam os trovões ao meu pensamento, Luzes de esperança em reduzidos espaços. 34


Músicas de notas perdidas Que suavemente me embalam o dormir Que serenamente me hipnotizam, Enganam e exorcizam. Tons ridículos que fazem rir, Que me lembram outras vidas. O berço em que dormia quando criança, Qual navio em mar revolto… É agora uma mera lembrança Da ténue relação com a esperança, Um tijolo num muro solto, O elo da inocência e da confiança. Espectros negros em chamas, Incandescentes faúlhas que iluminam as estrelas, Firmamentos em tons de mágoa. Teus olhos com o brilho da pura água, Lágrimas que caem singelas… Saber que ainda me amas.

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OCTETOS

Tentando consumir tantas falhas, Por entre tormentos que não se esquecem. Homens a fumar pequenas mortalhas Em noites distantes que se enriquecem. O cheiro e o gosto das batalhas Consumadas nos campos que estremecem Ao sentir milhares de corpos nas fornalhas Acesas por aqueles que nem a vida merecem. As feridas que reabrem na recordação Dos mistérios desvendados sem glória De, em dia algum, terem preocupação Ao abrir mais um livro de história, De lembrar toda aquela solidão Em que soaram trompetas de vitória Por entre tanta confusão Nos pensamentos que me correm a memória. A incongruência humana Que se mostra em actos vis e dementes E em tudo o que o Homem emana Nos seus diálogos surdos tão evidentes Todos os dias da semana. Estas formas de vida inteligentes Que não são mais que gente insana, Em busca de sonhos diferentes. 36


O ar distanciado do sofrimento Esboçado em faces descoloridas Pela fome que não tem sentimento, Nem sofre por matar vidas De crianças, velhos… todo um regimento Que não têm culpa dessas acções desmedidas Que os loucos fazem a todo momento Achando-as sempre divertidas. O infame riso nos lábios do carrasco Que vive do sofrimento e do mau trato. Como se fosse carne para churrasco, Para um barbecue indiscreto. Um homem desconhecido que mato, Por considerar a vida um fiasco, Uma vida de assassinato… Fruta podre que descasco. Este mundo em que vivemos Nós os miseráveis, há milénios, Que desprezamos aquilo que temos. Nós os grandes génios Pelo que inventamos e fazemos, Polivalentes em todos os domínios, Mesmo os que não conhecemos, A dor dos nossos infortúnios. Cinzentas tardes de cheiro a carvão, Queimando carne nos cemitérios Completamente dilapidados pela população Que destrói todos os impérios, Pelas mãos da revolução, Como se fossem homens sérios Que não ligam à discriminação Ou a todos os outros mistérios. 37


Nesta incompleta história arrepiante Que não começou, nem tem fim, Mas que tem um desenvolvimento chocante Em que todos dizem que sim, Como heróis sem semblante Que andam perdidos assim, Temendo diariamente o onerante Que é seu ego… enfim. Por entre jogos de sorte, Máfia de indivíduos facinorosos Cuja ocupação é a morte. Os nossos pensamentos ociosos, Qualquer coisa que ninguém suporte Por serem tão meticulosos, Nada que a mim importe. Incompetência de fiscais criteriosos. Páginas infindáveis de velhos compêndios Perdidas na biblioteca da nossa vida Que nada mais é que censuráveis vilipêndios De forma repressiva e desmedida Que alastram como se fossem incêndios Resultantes da colossal força perdida Em terras para além dos silêncios, Terras de entrada proibida. A todos se apresenta a indiferença, Lobo disfarçado em pele de cordeiro Adulterando tudo na sua presença, Como se fosse ele o primeiro De todos aqueles com a sua semelhança. Espelhos espalhados num terreiro Que multiplicam a falsa esperança, Que fazem autópsias de luz a algo verdadeiro. 38


Por entre agendas e calendários, Contando e marcando os dias, Guardando-os em mil armários, Envoltos em pútridas porcarias, Como se fossem objectos primários Escondidos pelas pratarias. Prateleiras forradas a luxos imaginários Em modestas alfaiatarias. Devaneios sistemáticos Por entre pensamentos dispersos De acontecimentos enigmáticos Vindos de ilhéus Atlantes submersos, Cheios de vida, com Duendes simpáticos Que ludibriam esses momentos adversos, Simples e problemáticos. Medalhas de ferrugentos reversos. Odes e maldições lançadas ao acaso Em sonhos que mostram belezas do infinito Seres desconhecidos, caso a caso, Algo que mais não é senão bonito Como um constante e sombrio ocaso Incessante olhar de homem aflito Num momento em que o defendo e arraso Em quão perene conflito. Veleiros e barcaças que se cruzam Em mares altos de tempestade Adamastores que pegam na chuva e sopram Mostrando desequilíbrio e desigualdade Entre homens que se usam, Fantoches encordoados da divindade Que a tudo se escusam Perante o chicote da verdade. 39


Astrónomos enterrados em ciências perdidas Em livros que são agora ilegíveis Carregados de letras indefinidas, Que relatam experiências impossíveis Com as habituais cobaias iludidas Por promessas sempre irrecusáveis, Tapando os olhos às mortes imerecidas. Pensamentos inimagináveis. Aquela força que nos faz perecer Entre fumos de incêndios irreais, Excessos cometidos ao velho entardecer, Cuja morte não lhe chega jamais. Centenária sede de viver, Cada vez mais, sempre mais, Infindáveis caminhos do conhecer Que nos tornam algo superior a animais. Poetas miseráveis que vão escrevendo, Procurando suas amadas seduzir À luz de uma vela que lhes acendo, Em candelabros de prata sempre a luzir, Escorrega a cera que vai derretendo Até a nada se reduzir, Coisas simples que não entendo, Nestas terras mouras sem Grão-Vizir. A distância que nos separa, interminável… Entre dias e noites de obscenos pensamentos Que mostram um lado de todos nós, memorável… Um dia esquecido nos teus sentimentos Neste mais do que certo amor, inviável… Em todos os sentidos partem meus juramentos De uma vida sempre sem destino, instável… Sempre viajante, em infinitos firmamentos. 40


Desejo de continuar um romance perdido Entre palavras e milhentas desaprovações, Daqueles que não são mais que um amigo… fingido, Que aparece… desaparece… situações, Para desgosto meu, homem ofendido Velho e cansado por estas humilhações, Demónios e vermes que me vêm perseguindo, Espaço cada vez maior entre nossos corações. O silêncio da escuridão Em noites de nevoeiros e temporais, De chuvas lacrimosas em dia de Verão, Quentes saunas de produtos naturais De antigas florestas abatidas como solução, Desastres não ecológicos mas laboratoriais Feitos pela ciência louca que adora a solidão Estar rodeada por ninguém, entre animais. Saindo de uma batalha… incólume, Eis o nobre guardião eterno, Tapado pelas honras do costume, Qual Lúcifer em seu inferno De cor amarelo lume, Que obedece a um subalterno Que espalha enxofre e seu perfume No vento cortante do Inverno. Como num evidente acto sexual, Um espasmo de alegria que se solta No meio da multidão, com voz natural Como se fosse iniciar a revolta, De contornos definidos e fundamental. Tantos problemas à minha volta Que me rodeiam nesta vida brutal Que o mar cobre e exulta. 41


Secundíparas que choram em conjunto Pela morte terrena dos seus Que juntam a cada dia mais um defunto. Cemitério de Muçulmanos e Judeus Um caixão em cada vala, tudo tão junto, Que esperam os milagres de um qualquer Deus, Vidas angustiantes sem assunto, Que diferem em credos, meus ou teus. Acções incontidas de enormes prazeres Que controlam as vidas como num sonho, Que nos mostram os mais belos dizeres Vindos do povo em músicas que componho, De dentro de pautas que tu escreves, Em tudo o mais, eu suponho A guerra, a paz e tudo o que defenderes. Eu dito, tu fazes… tu pões, eu disponho. Monólogos inconstantes da consciência Que se bate no dia a dia por qualquer razão Não encontrada jamais na inteligência, Navegante em limbos e paraísos de ilusão Que se cruzam sistematicamente na demência, Na procura infindável da única solução Que deriva de uma qualquer consequência Que nunca teve razão ou motivo de ser uma equação. Dormem os Deuses nos seus leitos de prazer Sobre compêndios divinais a ouro paginados, Os Sátiros que os lêem sem saber. Horas que são anos e meses misturados Em todo o tempo, sem nada a fazer Nestes Olimpos perdidos de névoas cercados, De oásis adornados por Vénus a seu bel-prazer Com seu menestrel cantando odes a seus pais amados. 42


No desabrochar das flores mais belas Das cores que iluminam o campo sem nada, Como se fossem simples e esguias velas Iluminando uma cripta abandonada Junto a confessionários de igrejas e capelas Ao lado de uma pequena campa plantada Em memória de divas e donzelas Tiradas à pressa de histórias de banda desenhada. Objectos inúteis que ornamentam um quarto, Embelezado por cortinas levantadas pelo vento, Mostram a memória que me fica quando parto, Conseguindo esquecer tudo aquilo que não tento, Que desta triste vida vou ficando farto, Esperando o futuro que parece tão lento Como o andar de um pesaroso lagarto, Que vai parando a todo o momento. Mulher de olhos azeitona que amou, Com riso sempre sarcástico e bonito Que mais um coração enfeitiçou, Que outros olhos pôs olhando o infinito, Numa dimensão distante que a todos escapou, Por nosso alcance ser tristemente finito, Por não sabermos que só o amor matou A quem não ama e não ouve este grito.

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AVÓS

O pomar está cheio... As árvores cantam a chuva Nos dias que passam perdidos, Nos campos rasgados pelo arado. O esvoaçar dos pássaros pelo meio, Que vão bicando grainhas de uva, Por entre os ventos revoltados Que adormecem no montado. Alongam-se as jornas… Os dois bois que puxam a charrua Ornam o horizonte que se funde no céu, Misturam-se cores de fim de dia. As manhãs são agora mais mornas, Os velhos no adro da igreja, na rua, Falam do antigamente, senhoras de véu, Dinheiro que não se contava, mas dividia.

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Pão na mesa… Calejado… do dia anterior Deixado endurecer para açorda, Chouriça e queijo no fio da faca. À noite, a luz do candeeiro acesa, Junto à lareira, a sentir o calor, A velha cozinheira gorda Senhora simpática, bonita, fraca. Corpos que ressacam… Dores sem as quais não se vive Afagadas com um copito de tinto, Remédio sagrado dos nossos avós. Arcaicas mezinhas que nos cicatrizam, Que nos lembram como se sobrevive, Que alteiam o digno instinto Lembranças que não nos deixam sós.

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MENDIGO

Um cão trôpego que percorre a praia De olhar abandonado e infeliz, Um velho pescador que olha o infinito Que se distrai a coser as redes da faina. Esconde-se o Sol impiedoso que aqui reina, Esgota-se-me o pensamento... medito! Ouço curioso o que a consciência me diz, Duvido de mim e dos da minha laia. Consumo um breve olhar de estupidez, Uma prostituta que se esgueira na janela, O seu perfil debaixo de uma luz fosca... Fraco o negócio, vê-se no cabelo desgrenhado. Não tenho nada, sou vadio, estou abandonado! Gozo o que me resta desta vida tosca, Faço do meu passado uma sequela, Enlouqueço... passo-me de vez. 46


Lembro de repente o que não cheguei a ser, Do ralhar dos meus pais à noite, à ceia, Da correria que fazia com os meus irmãos, Não distingo mentira de verdade. Sinto a velhice nesta tenra idade, No olhar desses homens que julgo sãos. Vejo assustado o sangue a correr na veia, Vejo que um dia podia ter aprendido a ler. Quis ser médico, outras vezes soldado, Quis ser qualquer coisa, até mesmo gente E nada sou... navego triste na vida, Esqueço-me dela o vinho e no cigarro. Existência ténue que já não agarro, A que estendo esta mão tremida. Procuro alguém que seja inteligente, Alguém que de mim se possa ter lembrado.

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CONVERSAS PARA UM CORPO SÓ

Sabes mão! És tu quem me aplaca a dor, O isolamento Nesta cadeia de solidão. Sentes o frio, o calor, Agarras-te à vida em pensamento, És tu quem afaga os seios, Os olhos da mulher desejada, Os cabelos espreguiçados ao vento. Apertas os mais íntimos receios Do amanhã que não tarda nada, No bater deste coração, tão lento. Pegas com delicadeza a flor, A criança que daí brotou, Vives nua, ao relento, Abres-te na ironia do amor, Qual asas de pássaro que voou, Flor mãe e seu rebento. Trocas palavras com outras mãos, Entrelaças com nós seus dedos Na agonia de um momento, Na alegria de dois irmãos, Nesta purga dos nossos medos, Neste chão em que me sento. 48


DURA FAINA

A chuva cai insistente e impiedosa, Fustiga a caravela que dança na vaga, A chusma desnorteada prega aos céus... Sufocam-se as vozes que clamam compaixão, Perversos deuses que permitem a ilusão Dos homens que labutam e se tornam réus Julgados sem culpa no mar que os apaga Mãos pintadas de sangue em tons de rosa. Família amargurada que perde seu pai, Que a fome decepa por culpa de ninguém... Culpa solteira que é de tantos Culpa envergonhada que traça corações. Olha-se ao longe o brilho dos arpões Em terra, rostos gastos pelos diários prantos, No bolso contam-se os trocos, de vintém em vintém, Espera-se o fim da faina quando a Lua cai. 49


O sal queima-lhes as rugas salientes, As suas roupas fétidas não escondem o trabalho. As gaivotas... essas sim voam divertidas, Avisam os homens para quando a tempestade São mensageiras da desgraça e da verdade, Conhecem as marés, os ventos e estas parcas vidas. Praias desertas cobertas de cascalho, Viúvas chorosas e impacientes. Semblantes carregados de triste olhar, A velhice passada na mesa da taberna A lembrar os mares revoltos que davam luta, As redes cheias do melhor peixe do mercado, Andar lento e trôpego de pescador revoltado. A revolta desta vida filha de puta, Que dorme ao relento à porta da caserna Ao frio, ao passado... ao mar.

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ESCULTURA

Fui rebelde no teu desejo, No simples afagar da alma, Cruel no acenar do adeus Que todos os dias revejo, Preso em correntes de calma, Destes momentos sempre teus. Vagueei nos rumos da sorte, Do esperar por tua doce voz, Eclipse de carinhoso sorriso Olvidado em mãos de consorte, Tu e eu, os dois aqui, a sós Tudo o que agora preciso. Faço-me cais do teu navegar, Gávea soprada pelo vento Em odor do teu maio belo. Rebento como onda nesse mar Na fúria louca do desalento Nos murais de teu castelo. Seduzes-me em lauta beleza De lúzios cor de eternidade, Brilho raro e ofuscante Que esconde tamanha tristeza Paixão feita simplicidade, Corpo esculpido, viciante. 51


GARGAREJOS

Num mundo de não sei o quê, Feito de espelhos curvos, Árvores sem braços E Homens sem ramos, Desfolhado em forma de Vê. Margem de rios turvos Com flores em seus regaços Pai de seres anfígamos. Sou moldado em barro seco, Esculpido em dor de cinzel Por doutrinas de anciães Mãos rasgadas de amor. Sou verbo nulo, arquisseco, Vírgula solta de aranzel, O orgulho de tantas mães, Raio de Sol sem vigor. 52


Castrada consciência muda, Decepada no falso horizonte, No ténue dealbar da mente Rascunho de vida. Segredos que fazem a dor aguda, Portas férreas do aqueronte, Bactéria negra depascente Em universo apólida. Pensamento afrodisíaco De nudez pura e religiosa, De curas sedentos de carne, Lésbios homens sem voz. Carrasco de passado aríaco De olhos secos, boca silenciosa, Cãs cor de cirne, Pulido lioz.

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FOLHAS CAÍDAS

Folhas que se embalam no vento Em velhos ramos pregados como numa cruz Enquanto esperam adormecidas o Outono, Caem desamparadas no chão molhado, Findam a vida para alimentar o passado, Despertam a tristeza que dormia o seu sono Tapadas pela chuva num último raio de luz, Para dar vida ao futuro a qualquer momento. Choram os céus lágrimas de saudade Com gritos de trovões que se calam no escuro, O debandar dos pássaros para o Sul Que adivinha mais um Inverno rigoroso. Sorri o Sol outrora poderoso, Por entre nuvens que acinzentam o azul Num quadro belo, cruel, mas tão puro… Imagem que nos conforta a eternidade. Orquestra do tempo que toca afinada Em cordas de harpas pintadas a ouro, Cantadas por vozes ímpares de Sereias, Serenatas indignas de nós mortais, Espectáculos divinos, celestiais Impregnados de sentimentos que semeias. Tu! Guardião de inigualável tesouro, Protector de tudo e de nada. 54


Eis que passa o frio do Inverno A vida toda em forma de sons da natureza Que majestosa se eleva no ar Como os fumos poluentes que saboreamos, Memórias de que não nos lembramos, Baleias que dominavam o Mar… Essas criaturas e rara beleza, De estúpido sofrimento eterno. Rompemos os laços umbilicais, Queimámos a vida que nos dava vida, Preservámos o medo que à noite nos acordava, Tivemos filhos para não sofrermos a sós. Custa muito a crer, mas sim… fomos nós Egoístas porque só a fome não chegava Hipócritas numa existência ressacada Capazes de comer os nossos restos mortais. Inebriamo-nos no sangue que corre nas veias, Qual néctar servido em festivas orgias, Não lemos na história iguais erros ancestrais Guilhotinados pela sabedoria e evolução, Pelo gosto de viver e sentir emoção. Conclui-se que somos piores que Chacais Que caçam a prazer todos os dias… Somos aranhas presas nas nossas próprias teias. Cabeças que rolam na dor do arrependimento, A estrada ruindo sempre que damos um passo, Más lendas de um futuro que nos esquece Ervas daninhas do nosso próprio jardim, Autores de um princípio que não quer fim, Filhos do ódio num mundo que padece, Estrelas num firmamento oculto no espaço… Folhas que se embalam no vento. 55


PAI E MÃE

Lembro agora o que me disse o futuro, Os companheiros dos copos que conhecia, Nas palavras cegas deitadas na mesa do café Sobre a vida que era para ser, mas não é, Cantadas em desconforto ou por simpatia. Como se fossem vidas meadas por um muro. Corrida contra o tempo que ousa não parar, Deixando atrás o presente que se reitera, Que ecoa nas vozes roucas das lembranças. Ricas e ténues heranças, Gritos calados por tanto que se espera, Momentos passados desta vida secular. Quero ir... Quero voltar a estar onde estive, Abrir as asas e voar, sonhar, recordar, Sentir todos os minutos para me saborear. Aprender de novo como se vive, Como se ama a terra, sem fingir. Imagino como era, como ainda será, O sorriso dos meus pais, o seu abraço, A saudade que os percorre, como a mim. Um desejo, a vontade que não tem fim, Ocupar o meu mundo, o meu espaço Devolver este sorriso a quem mo dá. 56


PALAVRAS PARA O FEMININO

Calam-se os teus passos, O teu respirar ofegante. Soltam-se letras desse olhar, As mãos suadas tremem Por entre palavras que se cedem, Os sentidos querem amar Esse teu coração viciante Apertado nos meus abraços. És céu desenhado a mil cores, Nuvem que me alimenta Sentada no firmamento, Estrela entre as estrelas, Museu de coisas belas. Mulher que eu invento Nesta paixão que não aguenta... Campo coberto de flores. 57


Corpo esculpido a cinzel De olhos marinhos pintados, Pele doce desvirginada, Sulcada por marés e ventos De brilhos loucos e sedentos. Cinderela engraçada De sorrisos envergonhados. Folha branca de papel. És Primavera em dias cinzentos, Chuva que inunda os jardins Onde tu choras tantas alegrias. Pedra preciosa da minha vida Louca, desgostosa e tão perdida, Aconchego das manhãs frias, Caminho de tantos fins Cofre dos meus pensamentos.

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PEQUENA CARTA À MINHA MÃE

Mãe, hoje o dia é teu, Este dia em que és criança Feliz, de brilho no olhar, Coração recheado de esperança Em tudo o que a vida prometeu. Não fui o filho que querias, O doutor, juiz, professor, Mas sou um filho que te ama, Que sente ainda o teu calor Naquele sorriso que me fazias. 59


POEMA ROMÂNTICO-SEXUAL Bebi-te num beijo perfumado, Naveguei o teu corpo só Tomado no cetim dos lençóis, No calor de mil Sóis, Pele nua em olhos de dó De silêncio imaculado. Diluí-me no teu suspiro, Em leves toques da tua mão Perdida num cheio luar, Num deserto de mar Cativo na solidão, Na pureza que te tiro. Sei-me um pedaço de ti, Pele rosada dos teus seios, Palavra solta em tua boca De ti mulher louca Sombra dos meus receios, Que tão bela nunca vi. Rasga-se um sorriso no prazer Numa lágrima de alegria, De desejo escondido do passado, Pensamento assim, ousado, Gritado em sã histeria Para mais ninguém saber. Leio-me nas tuas linhas, Masturbo todas as palavras Pintadas de tantas cores, Decoradas como flores Nestes olhos que lavras, Neste amor que me tinhas. 60


POSFÁCIO

Há quem considere a escrita poética como a busca do EU, a tentativa de um ser penetrar noutro ser, de obter respostas para os grandes dramas da condição humana. Há quem veja nela a revelação de um olhar, um estar no mundo, desperto. Há quem a entenda como um desejo de evasão, uma viagem pelo universo dos sonhos. Há os que pensam que escrever poesia é, sobretudo, tentar encontrar outras palavras, outras frases, outros sentidos, outras verdades. Se possível, a verdade. Finalmente, há ainda os que entendem a escrita poética como uma espécie de respiração, uma necessidade, uma urgência. Em Pedras Soltas, encontra-se um pouco de tudo isto, nomeadamente, essa necessidade urgente de respirar. Através dos seus versos, o poeta exprime, de forma fragmentada, as suas vivências íntimas, em que os tons dominantes são a tristeza e a solidão. O poeta desnuda-se, mostra-se tal qual julga que é. É curiosa a relação mantida com os vários tempos: o presente, o passado e o futuro. O presente revela-se instável, carregado de pessimismo, de angústia. De quando em vez, transparece um desejo enérgico de mudança, mas logo se sobrepõe um receio de viver em sofrimento, o medo de uma vida que parece definhar-se. Relativamente ao passado, pode-se considerar que há dois momentos distintos: o da meninice, das “belas histórias” dos avós, que transporta uma sensação de calma, de paz e também de alguma nostalgia; o da juventude estudantil, boémia, povoada de excessos, de recordações eufóricas, mas

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também de pesadelos, que suscitam um sentimento de culpa e de arrependimento. Ainda em relação ao passado, se, por um lado, surge uma crítica escarninha apontada a gerações anteriores, sente-se, por outro lado, uma admiração, uma solidariedade para com algumas figuras da história, em particular as que experimentaram a dor, o sofrimento amoroso. Aliás, a questão dos afectos é recorrente em vários poemas do livro, sobretudo os afectos relacionados com a figura feminina. Quanto ao futuro, este revela-se incerto, inexistente, um não-futuro. Apesar do tom melancólico, pessimista, confessional, não se pense que o poeta é incapaz de se indignar. Por diversas vezes, solta a voz, levantando-a firmemente contra os “donos do planeta”, os detentores do poder, os senhores da guerra, denunciando-lhes a sua hipocrisia e acusando-os de proferirem discursos a mais e pouco ou nada fazerem em prol do ser humano, em particular, dos mais fracos. Também a natureza, tantas vezes desrespeitada pelo Homem, merece a atenção do poeta. Para ele é sinónimo de libertação, de inspiração, ao som da música, dos cheiros e das cores. Pedras Soltas, tal como o título sugere, não obedece a uma unidade temática e muito menos a um esquema formal uniforme. Isto não invalida o trabalho árduo e exigente que se adivinha na escolha da palavra certa, na procura da construção perfeita. Numa linguagem clara e ao mesmo tempo rica, o poeta utiliza uma diversidade de recursos, de que se destacam as imagens, algumas delas a roçarem o surreal. Este livro de poesia prende a atenção de quem o lê, sobretudo de quem está sempre à espera do inesperado.

Prof. Vítor Guita 62


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ÍNDICE

Prefácio de M.J.M. Saiote

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Prefácio Medo A palavra Mentira! Paisagem Campos de meninice Eu Amor de poeta Susana Do pensamento Castelo em ruínas Alfabetos de escárnio Divago I II III IV V

7 8 9 11 12 13 15 16 17 19 20 23

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24 25 26 27 28


29 30 31 32 33 34 36 44 46 48 49 51 52 54 56 57 59 60

VI VII VIII IX X O engano Octetos Avós Mendigo Conversas para um corpo só Dura faina Escultura Gargarejos Folhas caídas Pai e Mãe Palavras para o feminino Pequena carta a minha Mãe Poema romântico-sexual

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Posfácio de Vítor Guita

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