N º 1 - S e t e m b r o 2 0 1 2 - D i s t r i b u i ç ã o g r at u i ta
Música no caminho da fé
Sonoridade e devoção no Círio de Nazaré
LITERATURA
CULTURA POP
ENTREVISTA
Escritores paraenses e a paixão pelas letras.
Grafite conquista o comércio da periferia da Grande Belém.
Paulo Chaves, da Secult, define os rumos da cultura no Pará.
É
uma ação do governo do Estado que nasceu em 2004 e foi retomada em 2011, sob a coordenação da Imprensa Oficial do Estado (IOE). O objetivo é estimular a doação de livros usados a espaços e instituições que necessitem criar ou mesmo ampliar suas atividades de leitura e afins. É também oportunidade para a IOE colocar em prática sua missão de incentivo ao acesso e ao hábito à leitura, com vistas a contribuir para o crescimento e desenvolvimento do cidadão, bem como para a inclusão social. Pretende, as-
sim, fortalecer, por meio do estímulo à leitura, valores como cidadania, solidariedade, igualdade e dignidade entre os participantes e os beneficiários diretos do projeto. Pautado nessas noções e valores, o projeto se reforça e só sobrevive com a participação social. É sob essa tutela que ações voluntárias se nutrem e promovem diversas e, muitas vezes, inesperadas transformações sociais. O “Livro Solidário” é, portanto, uma ação que valoriza, sobretudo, a capacidade que o ser humano possui de dividir conhecimentos por meio da doação.
Participe você também! Doe livros. Divida conhecimento.
Contatos
(91) 4009-7847 / 4009-7800 email: livrosolidario@ioe.pa.gov.br
Doações:
Imprensa Oficial do Estado
Tv. do Chaco, nº 2.271 - bairro: Marco - Belém - Pará
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Ao leitor
O primeiro número
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is o primeiro número do Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado do Pará. Um canal livre para a difusão de ideias, debates e informações sobre a cultura paraense. A iniciativa é da Imprensa Oficial do Estado do Pará (IOE), com o apoio do Instituto de Artes do Pará (IAP). A publicação circulará encartada no Diário Oficial do Estado. Além disso, será distribuída para prefeituras, repartições públicas e organizações sociais. Nesta edição, destacam-se a musicalidade do Círio de Nazaré, a produção literária exposta na Feira Pan-Amazônica do Livro, a cultura da moda em Belém e a tradição dos pássaros juninos. O leitor também vai saber mais sobre políticas culturais numa entrevista exclusiva com o secretário estadual de Cultura do Pará, Paulo Chaves. Confira ainda os papeis da IOE e IAP. Lei também os artigos sobre o legado do filósofo paraense Benedito Nunes e sobre o uso da grafitagem por pequenos comércios da Grande Belém. É bom lembrar que um conselho editorial é quem define o conteúdo do nosso suplemento e uma equipe de jornalistas corre atrás para transformar sugestões de pautas em textos que retratem a cultura paraense que ultrapassa as divisas do Estado e as fronteiras do País. É uma nova visão sobre aquilo que faz parte do nosso cotidiano. Para todos, uma boa leitura! Conselho Editorial do “Grão-Pará”
GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ Governador Simão Jatene Vice-governador Helenilson Pontes Secretário Especial de Estado de Promoção Social Nilson Pinto de Oliveira Secretário Especial de Estado de Gestão Helenilson Pontes IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DO PARÁ Presidente Cláudio Rocha INSTITUTO DE ARTES DO PARÁ Presidente Heitor Márcio Pinheiro
CONSELHO EDITORIAL Cláudio Rocha e Carmen Palheta (IOE) Heitor Pinheiro e Tito Barata (IAP) Edição Cary John Redação Jecyone Pinheiro, Ronaldo Quadros e Selma Amaral Colaboradores Daniel Leão Jeferson Medeiros Keila Rodrigues Nélio Palheta Vladimir Cunha
Projeto gráfico e diagramação André Rendeiro e Fernando Sette Câmara Arte Finalista Gilson Magno Impressão Gráfica da Imprensa Oficial do Estado do Pará Tiragem inicial 5.000 exemplares Grão-Pará é uma publicação da Imprensa Oficial do Estado do Pará (IOE) e Instituto de Artes do Pará (IAP).
IOE Travessa do Chaco, 2.271 Marco – Belém - Pará CEP: 66.093-410 Telefone: (91) 4009-7800 Site: www.ioe.pa.gov.br IAP Praça Justo Chermont, 236 Nazaré – Belém - Pará CEP: 66035-140 Telefones: (91) 4006-2932 / 2923 / 2924 Site: www.iap.pa.gov.br
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MÚSICA OLHAR LITERATURA RECOMENDAMOS ENTREVISTA CRÔNICA INSTITUCIONAL HISTÓRIA ESTILO CULTURA POPULAR PERFIL S e j a
sons da devoção Hinos religiosos e canções populares embalam o Círio de Nazaré
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tarso sarraf Imagens daquele que tem a alma do repórter fotográfico
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Arte de escrever A paixão pelas letras dos escritores paraenses
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Visagem Programa da Rádio Cultura do Pará é inspiração para livro
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paulo chaves fernandes Secretário estadual de Cultura revela os novos projetos
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grafite Vladimir Cunha mostra a expressão artística na periferia da Grande Belém
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saiba mais Em destaque: a Imprensa Oficial do Estado e o Instituto de Artes do Pará
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acervo Centro de Memória da Amazônia incentiva pesquisa sobre o Judiciário
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moda Nossos estilistas conquistam o mercado com profissionalismo
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pássaros juninos Manifestação cultural une música e teatro
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benedito nunes Conheça o homem que foi muito além da filosofia
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Colaborador FOTO DA CAPA
D a n i e l L e ã o Daniel da Silva Leão é arquiteto e urbanista, especialista em aplicações web, vice-coordenador do curso de Comunicação Social com habilitação em Multimídia, do Iesam, e mestrando em Educação, Gestão e Difusão Científica pela UFRJ. Fotografa por hobby e gosta de estimular seus alunos a usar a fotografia como linguagem, além da técnica, discutindo sociabilidade e educação através da imagem. Veja mais trabalhos de Daniel Leão em: http://www.flickr.com/photos/13665556@N07/ Q u e r pa rt i c i pa r ? Envie e-mail para o seguinte endereço: suplementocultural@ioe.pa.gov.br
Seu trabalho passará pela análise do Conselho Editorial do suplemento e poderá ser publicado na próxima edição do Grão-Pará.
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música
Santa sonoridade
Foto: Márcio RM
Maior festa religiosa do País é embalada por hinos e canções populares
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ossa história começa em 1909 quando o maranhense Euclides Farias escreveu a composição “Vós Sois o Lírio Mimoso”. Tempos depois, a obra de Euclides, que ganhou um estribilho de autoria do advogado paraense Aldebaro Klautau, se tornava o hino oficial do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém. Os anos se passaram e outros artistas da música seguiram o exemplo do maranhense. Transformaram o Círio de Nazaré, que acontece há mais de 200 anos, num mar de sonoridade que invade a capital paraense a cada outubro. Nossa Senhora é cantada em verso e prosa. São hinos de louvor entoados por devotos em celebrações religiosas e doze romarias oficiais. Mas há também canções de apelo popular em ritmos variados. Tem até zouk, gênero musical originário das Antilhas. A diretoria da Festa de Nazaré aprova essa mistura de sons no louvor à Virgem. “O Círio é do povo e as manifestações surgem de maneira natural. O que não aprovamos é o louvor de forma insultuosa e que não contribua para a evangelização”, afirma Carlos Sérgio Fernandes da Silva, que é diretor de Evangelização da Festa de Nazaré. Segundo ele, quem faz a escolha dos hinos e canções entoados pelos devotos nas romarias oficiais e também nas peregrinações que antecedem o Círio são os diretores da festa, cujo presidente é o padre José Ramos. “Nesse ano tivemos a ajuda também do padre Jaime Sidônio”, completa Carlos. Mas qual a importância da música na evangelização promovida pela Igreja Católica? Para o padre Geffison Silva, barnabita da Basílica Santuário de Nazaré, “a música surgiu na igreja para nos ajudar a rezar, pois toca o coração; por isso, é tão importante como um instrumento de evangelização, pois, tem a finalidade de atingir a sensibilidade, o afetivo”. “Já dizia Santo Agostinho: quem canta, reza duas vezes”, frisa. A prova disso é o Coral Arquidiocesano das Mil Vozes. Homens e mulheres ensaiam um repertório musical variado para homenagear à Virgem de Nazaré durante as duas maiores romarias oficiais: a Trasladação e a Grande Procissão do segundo domingo de outubro. “A emoção de participar do coral é enorme, pois já alcancei muitas graças através de Nossa Senhora”, diz a aposentada Cleonice Maria Siqueira, que canta no coral desde 1997, quando o grupo foi fundado pelo então bispo auxiliar de Belém, dom Carlos Verzeletti. Foi o próprio dom Verzeletti, hoje bispo da Diocese de Castanhal, no Pará, quem regeu os mil cantores na primeira apresentação do coral, quando ainda era o cura da Igreja da Sé, em Belém. “Sou classificada como soprano”, afirma Cleonice.
Vital Lima escreveu, em 2000, a letra da canção “Círios”, a pedido do cantor paraense Marco André.
Foto: Tarso Sarraf
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Na boca do povo Morando há 30 anos no Rio de Janeiro, o cantor e compositor paraense Vital Lima escreveu, em 2000, a letra da canção “Círios”, a pedido do também cantor e compositor paraense Marco André. “Um dia, o Marco Aurélio, um outro parceiro muito querido, estava em casa e eu comentei com ele sobre o pedido do Marco André. Mostrei a ele um embrião melódico e a canção nasceu, sem letra, mas nasceu...”, conta Vital. “Nós gostamos do resultado. Mas faltava a letra”, recorda Vital, que, ainda criança, foi coroinha da Basílica Santuário de Nazaré, em Belém. A letra viria mais tarde, num momento especial de inspiração. “Eu me emocionei muito enquanto escrevia. Lembrava das minhas experiências de menino naquela procissão. Meu pai me carregando nos ombros para que eu pudesse ver a passagem da berlinda. Tão misterioso é o caminho que leva tantos ao arrebatamento no instante de ver aquela imagem, aquela representação da Mãe de Jesus. De fato, as mães estão todas representadas ali. É sempre incrível esse momento”, afirma. Para Vital, a musicalidade está incorporada ao Círio de Nazaré por ser imaterial. “O ‘Vós Sois o Lírio Mimoso’ é a cara do Círio. É a trilha sonora de parte da vida dos paraenses. Como diz a letra de ‘Círios’: ‘...outros outubros tu verás/ e outubros guardam histórias/ São muitas histórias de Círios,/ histórias de cada um,/ da vida de cada um,/ e sempre com a música no fundo”. Outra canção popular em homenagem à Virgem de Nazaré é o “Zouk da Naza”, do compositor paraense Almirzinho Gabriel. Compostos em 2003, os versos de “Naza, Nazarezinha, Nazaré Rainha...” fazem sucesso até hoje. Almirzinho, que morou no bairro de Nazaré, conta que, desde a infância, escutava os sinos da Basílica Santuário nas “horas grandes”. “Fazíamos silêncio no badalar de meio-dia, das seis da tarde... Era como uma reverência que eu não entendia, mas respeitava. Também acompanhei o Círio com a minha mãe por vários anos, sempre meditando e agradecendo”, relembra o compositor, que ao compor o “Zouk da Naza” pensou em Nossa Senhora “como o nosso senso de divino da mulher; nosso amor e respeito pela figura feminina, pela Mãe de Jesus”. Na composição, Almirzinho trata a Senhora de Nazaré como “Naza”, uma apelido carinhoso adotado pelos paraenses para as mulheres que têm o mesmo nome da santa. “Achei que poderia chamá-la de Naza e Nazarezinha, pois sempre fui seu ‘ vizinho’ e estabeleci uma certa intimidade carinhosa. E assim surgiu o ‘Zouk da Naza’, uma forma de agradecimento por tudo”, diz o artista. “De fato, nunca achei que estivesse faltando com respeito à devoção religiosa. Fiz um zouk para Nazaré para ver as pessoas cantarem felizes e orgulhosas de sua fé”. Almirzinho adora a sonoridade do Círio de Nazaré como a do choro contido dos devotos ao ver a berlinda passar na procissão; das conversas animadas em família na hora do almoço em homenagem à santa; da queima de fogos de artifício e aqueles produzidos pelos brinquedos artesanais de miriti. Mas um som é o que faz a emoção transbordar. “É o do nosso coração quando a imagem da Nazaré se aproxima de nós naquela multidão. Só nós ouvimos, ou melhor, mais sentimos do que ouvimos. Todo mundo fica igual nessa hora”.
Foto: Márcio RM
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Almirzinho: “Fiz um zouk para Nazaré para ver as pessoas cantarem felizes e orgulhosas de sua fé”.
Sagrado ou profano? Qual a explicação desse encontro entre o religioso e a música? Meste em Ciências da Religião e doutor em Educação, o pesquisador e professor Antonio Jorge Paraense, da Universidade do Estado do Pará (Uepa), explica que “essa relação é quase natural”. “Mas pode-se se pensar esse fenômeno com duas chaves. A primeira seria olhar essa fusão a partir da religião. É que para estar mais próxima das pessoas e ampliar o número de adeptos, busca-se uma linguagem musical dentro da estética das comunidades, das palavras e ritmos utilizados por esses grupos. A segunda seria a dos músicos e do mercado fonográfico”, explica. Paraense lembra que o mercado de música religiosa cresceu nos últimos anos. Assim, essas composições passaram a ser mais um objeto de consumo do que um estímulo
à meditação e aproximação com o que é sagrado. “No caso do Círio, as músicas populares seguem o mesmo raciocínio. Sendo paraense e católico, dificilmente não se é tocado por essas composições”, diz. Paraense ressalta ainda que uma das características do Círio é a quase impossibilidade de se separar o que é sagrado do que é profano. “Nas famílias católicas, se diz que ‘o almoço do Círio é sagrado’, mas se fôssemos rígidos não poderíamos dizer que este é um momento sacro. No caso da música, se pensarmos a partir da perspectiva da emoção, não haveria música sacra ou profana. Existem aquelas que te emocionam e te fazem sentir próximo ao sagrado e é isso que importa”. Para ele, há um ponto em comum entre as diversas religiões: o uso da música em seus ritos. “A musicalidade no Círio é uma das marcas dessa festa. Muitas emoções são alimentadas pelas músicas executadas ao longo das romarias e isso torna a caminhada dos devotos mais próxima do que é divino”, pontua.
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Foto: Fernando Sette Câmara
Trechos dos hinos oficiais do Círio de Nazaré:
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VÓS SOIS O LÍRIO MIMOSO Vós sois o lírio mimoso do mais suave perfume que ao lado do santo esposo a castidade resume. Refrão: Ó Virgem Mãe amorosa fonte de amor e de fé dai-nos a bênção bondosa, Senhora de Nazaré. VIRGEM DE NAZARÉ Virgem de Nazaré, Mãe de concórdia / derrama sobre nós misericórdia! Refrão: Virgem de Nazaré, luz que nos guia, / Ave Maria!, Ave Maria! MARIA DE NAZARÉ
NOSSA SENHORA DA BERLINDA
PELAS ESTRADAS DA VIDA
Maria de Nazaré, Maria me cativou Fez mais forte a minha fé E por filho me adotou Às vezes, eu paro e fico a pensar E sem perceber, me vejo a rezar E meu coração se põe a cantar Pra Virgem de Nazaré Menina que Deus amou e escolheu Pra mãe de Jesus, o Filho de Deus Maria que o povo inteiro elegeu Senhora e Mãe do Céu
Porque eu tenho esperança e muita fé Porque eu quero ter amor bem mais ainda Porque te amo, Senhora de Nazaré Quero puxar a corda da berlinda
Pelas estradas da vida nunca sozinho estás contigo pelo caminho Santa Maria vai.
Refrão: Ave, ave ó Senhora da Berlinda Ave Maria, este é meu grito de fé Ave, ave, Deus te fez a flor mais linda Ave, ave Maria, Senhora de Nazaré
Refrão Oh! vem conosco, vem caminhar Santa Maria vem....
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Olhar Fotos: Tarso Sarraf
Foto: Pedro Rodrigues
Tarso Sarraf
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sse paraense de 34 anos de idade carrega o fotojornalismo no sangue. Com dez anos de carreira, Sarraf tem a alma do repórter fotográfico. Por isso, mesmo sendo evangélico, diz que a cobertura
do Círio de Nazaré é sempre emocionante. “É um momento de revelação da fé do povo católico”, diz Sarraf, do jornal “O Liberal”. É o que o leitor comprova nas fotografias publicadas nesta edição.
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Feira Pan-Amazônica do Livro é uma das maiores vitrines do mercado editorial em todo o Brasil
Foto: Elcimar Neves / Agência Pará
literatura
Sob o signo da paixão Arte de escrever alimenta o espírito dos que nasceram em terras paraenses
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ual o elo de ligação entre uma senhora de 93 anos de idade que vive no Rio de Janeiro, um paraense que inventou uma livraria itinerante e um professor aposentado que ganhou fama com os “causos” dos caboclos amazônidas? É a paixão pelas letras. Juntos, Dulcinéa Lobato Paraense, Eduardo Santos e Walcyr Monteiro são a síntesse desse amor pelo ofício de escrever. Cada um com uma história – ou seriam, histórias?! – para contar. “Não sei o número do meu telefone. Afinal,
nunca ligo para mim mesma!”, diz a poetisa Dulcinéa, demonstrando que o bom humor é um santo remédio em qualquer idade. Nascida em Belém, no ano de 1918, ela foi uma das primeiras mulheres a adentrar numa redação de jornal. “Naquela época, era muito difícil ser mulher e trabalhar em jornal. Muitos me olhavam torto, pois achavam estranho aquela situação”, recorda ela, que mora no Rio de Janeiro desde meados da década de 40 do século passado.
Foto: Eliseu Dias / Agência Pará
Já Eduardo é conhecido como o “Poeta das Praças”. Inventou a livraria itinerante, adaptada numa bicicleta, para difundir a literatura entre crianças e adolescentes. Paraense, entrou para o “Guiness Book”, o Livro dos Recordes, como o maior produtor de livros artesanais do mundo. Chegou a produzir cerca de 1,2 mil exemplares por mês. “Fiz tudo por necessidade. Não era fácil conseguir gráfica e editora. Fui original e chamei a atenção para o que fazia”, observa. Aos 71 anos de idade, Walcyr ganhou fama com os “causos” do caboclo paraense. O livro “Visagens e Assombrações de Belém” virou um clássico regional. Com seis edições (a primeira saiu em 1986), a obra conta os mistérios e lendas da capital paraense.
O mundo gira... Em 93 anos de vida, Dulcinéa nunca havia lançado um livro. Mas já assinou centenas de artigos e críticas literárias publicadas nos extintos jornais “A Folha do Norte” e “O Estado do Pará”. E, assim, viu florescer a veia poética. “Faço poesia sobre tudo o que me impressiona naquela exata hora, seja uma pedra no meio do caminho, uma árvore caída.... Qualquer observação do cotidiano que chame minha atenção pode virar poesia”. Além dos jornais, seus poemas também ganharam as páginas de revistas que circulavam em Belém como “Guajarina, “A Semana”, “Pará Ilustrado” e “Brasileis”. Com o passar do tempo, o trabalho de Dulcinéa se tornou referência entre os modernistas da terra. Entre seus poemas, destacam-se “O destino do silêncio”, “Retrato” e “Símbolo”. Mas o ano de 2011 reservou surpresas para a paraense com o lançamento do primeiro livro da carreira dela. Intitulada “Dulcinéa Paraense - a flor da pele” (Editora Secult), a obra foi organizada pela pesquisadora Lilia Silvestre Chaves e tem poemas escritos por Dulcinéa entre as décadas de 30 e 80 do século passado. Para Dulcinéa, a poesia é um conforto para a alma. “É um retiro de esperança”, completa a escritora que perdeu a mãe aos dois anos e foi criada por uma tia. Nunca se casou. Mas diz que isso não se tornou um problema para a sua existência.
Sobre duas rodas Inventor da “bicicleta-livraria”, Eduardo é um homem “virado”, como dizem os paraenses. Faz palestras e oficinas sobre literatura em escolas e universidades. Mas o xodó dele é a livraria adaptada numa bicicleta. Foi com ela que Eduardo percorreu os quatro cantos da capital paraense para divulgar e vender livros. Em 2008, a engenhoca apareceu até em emissoras de televisão de 16 países da Europa, através de uma reportagem produzida pela Amazon TV. Em 2010, ele decidiu mergulhar no mundo editorial. Criou a SANTmel Editora. “Agora sou editor de livros artesanais. Montei minha própria editora e gráfica para lançar o trabalho de outros escritores”.
Dulcinéa Lobato Paraense: “Faço poesia sobre tudo o que me impressiona naquela exata hora”
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Autor de “O amor prevalece”, “Sua pele pede poemas” e “Vida em versos”, Eduardo diz que seus poemas são para leitores de todas as idades. O escritor tem 12 livros publicados, 4 CDs de poemas narrados, um DVD de vídeo-poemas e é personagem de um filme de 37 minutos sobre a sua produção literária.
Foto: ASCOM / FCPTN / Agência Pará
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Páginas sobre assombrações
Walcyr Monteiro: “Enquanto viver, lutarei pela preservação e divulgação da cultura amazônica”
A nova edição da Feira Neste ano, a Feira Pan-Amazônica do Livro chega a sua décima-sexta edição tendo Portugal como o país homenageado e celebrando o centenário de nascimento do maestro paraense Wilson Fonseca. A promoção é do Governo do Pará, por meio da Secretaria de Estado de Cultura (Secult). De 21 a 30 de setembro, no Hangar Centro de Convenções e Feiras da Amazônia, estarão, na capital paraense, escritores como Ariano Suassuna e Luís Fernando Veríssimo. A feira também vai celebrar os centenários de nascimento dos autores brasileiros que conquistaram o mundo através de suas produções literárias: Nelson Rodrigues e Jorge Amado. Quinhentas editoras, 218 estandes, 90 mil publicações em exposição e 450 mil visitantes. Esses são alguns números da nova edição do evento. “A feira é um espaço aberto para pessoas de todas as faixas etárias”, diz a coordenadora do evento, Andressa Malcher. Para o público infantil, haverá rodas de leituras, oficinas e contação de histórias, além de espetáculos teatrais. A sustentabilidade também é tema da feira através de seminários e exposições sobre preservação dos recursos naturais. Há ainda a gincana literária com a participação de autores paraenses. A feira tem entrada gratuita com visitação das 10 às 22 horas.
do Livro
Foto: Nailana Thiely / Agência Pará
“Visagens e Assombrações de Belém” tornou o escritor Walcyr Monteiro um dos mais populares entre os que fazem literatura na Amazônia. Publicadas pela primeira vez, em 1972, nas páginas do extinto jornal “A Província do Pará”, as narrativas viraram livro em 1986. “As histórias têm sido publicadas em livros didáticos e serviram de tema para peças teatrais, filmes e documentários”, lembra o escritor. Walcyr se tornou tão popular que sua história serviu de inspiração para os sambas-enredos de agremiações carnavalescas de Belém. Walcyr afirma que decidiu escrever sobre o assunto numa tentativa de preservar um traço cultural de Belém que estava desaparecendo com a chegada da televisão. “Foi também uma atitude de resistência cultural. Enquanto viver, lutarei pela preservação e divulgação da cultura amazônica”. Licenciado em Ciências Sociais e bacharel em Economia, Walcyr ressalta que as narrativas de “Visagens...” vem sendo utilizadas em, pelo menos, seis cursos de graduação em universidades paraenses. No ensino médio, centenas de escolas de Belém e do interior do Estado também utilizam as histórias como recurso didático. “Fico muito feliz por essa utilização, sobretudo pela criatividade de professores e alunos, que sempre fazem releituras nos seus trabalhos”, diz. Walcyr, que é professor aposentado, é um caboclo corajoso. Não tem medo de visagens e assombrações da Amazônia. “Como escrevo sobre elas, tornaram-se minhas amigas. Mas as assombrações de Brasília.... essas me deixam arrepiado”, brinca o escritor.
Andressa Malcher, coordenadora do evento: 500 editoras, 218 estandes, 90 mil publicações em exposição e 450 mil visitantes
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recomendamos
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m programa radiofônico diferente que mesclava o non sense, com histórias surreais. Assim era definido o “Visagem”, transmitido entre 2003 e 2010 pela Rádio Cultura FM do Pará. Toda essa ousadia inspirou a pesquisadora Sandra Sueli Garcia de Sousa a mostrar, nesta obra, como a linguagem radiofônica comporta inovações. Poesia, músicas alternativas, humor, além da experimentação de formatos, mixagens e efeitos, faziam parte da miscelânea do programa idealizado pelo escritor e jornalista Guaracy Brito Júnior. Autora: Sandra Sueli Garcia Projeto gráfico e impressão: Imprensa Oficial do Estado
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livro aborda, de forma lúdica, o maior “bicho-papão” das crianças: a tabuada. Ao buscar alternativas que facilitassem o aprendizado de todos, o autor transformou a tabuada tradicional numa divertida brincadeira, na qual as cores estimulam o raciocínio, transformando a dificuldade em prazer. Autor: Dilmar Batista da Cunha Impressão: Imprensa Oficial do Estado
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período iniciado em 1780, marcado pela chegada dos negros oriundos da África, foi a inspiração para o resgate da história da exploração da mão-de-obra escrava na comunidade da Baía do Sol, na Ilha de Mosqueiro, um distrito administrativo da capital paraense. A obra tem como fontes os documentos transcritos do acervo da biblioteca do Arquivo Público do Pará, em Belém. Autores: Francisco Antônio Almeida Pereira/ Maria Beatriz Pacheco Mendes Projeto gráfico e impressão: Imprensa Oficial do Estado
extinção do Diário Oficial publicada em suas próprias páginas e a proibição do casamento entre pessoas com deficiência auditiva são exemplos de curiosidades contidas nos atos dos interventores federais no Pará, entre os anos de 1937 e 1947. Elas compõem o 3º volume da coletânea Atos dos Governadores, organizada pelo pesquisador Ribamar Castro, e traz os principais atos governamentais durante o Estado Novo. Foram consultados cerca de 2,5 mil exemplares do Diário Oficial e mil atos administrativos para compor a obra. Autor: Ribamar Castro Projeto gráfico e impressão: Imprensa Oficial do Estado
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eitura que desperta o interesse de crianças e adolescentes, a obra é uma homenagem à coceira “carinhosa”, que foi herdada dos índios. É uma obra interativa: o leitor ouve a música e acompanha as letras dos poemas no livro. Meio ambiente e poesia fazem parte dessa obra. Autor: Heliana Barriga Projeto gráfico e impressão: Imprensa Oficial do Estado
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obra organizada pelas professoras Líliam Barros e Ana Maria Adade apresenta produções dos pesquisadores Vicente Salles, Lia Braga Vieira e da própria Líliam Barros sobre a prática pedagógica musical do Instituto Carlos Gomes. A obra congrega pesquisas em história da música e dos músicos paraenses. Autoras: Líliam Barros e Ana Maria Adade Projeto gráfico e impressão: Imprensa Oficial do Estado
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entrevista
À
frente da Secretaria de Estado de Cultura (Secult) do Pará pela quarta vez, o arquiteto e urbanista Paulo Chaves Fernandes acumula experiências e aborda, com desenvoltura, assuntos como políticas e projetos culturais e preservação dos patrimônios histórico, artístico e arquitetônico. Paraense, Paulo Chaves sonhava fazer cinema, mas acabou concluindo o curso de Arquitetura e Urbanismo na primeira turma da Universidade Federal do Pará (UFPA), nos idos de 1960. Na década de 70, foi para o Rio de Janeiro, onde fez os cursos de graduação em Cinema e de mestrado em Comunicação Social. Ainda na capital fluminense produziu alguns filmes como “Destruição cerebral”, que conta a história de um operário que saiu de São Paulo para se suicidar em Belém. A produção ganhou prêmios em festivais europeus. Em 1978, ele retornou com a família para Belém e passou a atuar como professor do curso de Comunicação Social da UFPA. Em 1983, Paulo Chaves se tornou assessor de urbanismo da Prefeitura de Belém. Nesse período, executou projetos importantes como as reformas do complexo do Ver-o-Peso e do Mercado de São Brás. Anos mais tarde, assumiu o comando do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Titular da Secult por doze anos consecutivos (de 1995 a 2006), o arquiteto e urbanista se tornou o autor – e executor - de projetos que fizeram a capital paraense renascer como polo turístico da Amazônia: Estação das Docas, Mangal das Garças, Hangar Centro de Convenções, Complexo Feliz Lusitânia, Parque da Residência... Na entrevista exclusiva ao “Grão-Pará”, Paulo Chaves, que retornou ao comando da Secult no início de 2011, com a posse do governador do Estado, Simão Jatene, aponta os rumos da política estadual de cultura. “Devemos exorcizar o populismo e deixar que as formas de expressão artística existam sem tutelas e cooptações, ou seja, dizer ‘não’ aos Sistemas que pretendem ‘aparelhar’ o fazer cultural, sobretudo o legítimo”, afirma. Revela ainda quais os projetos que já estão sendo elaborados pela atual equipe da Secult. Veja a entrevista a seguir:
Fórum de Secretários de Cultura, onde fui presidente por dois anos consecutivos. Quanto às leis estaduais, há sempre o que se aprimorar, regionalizando-as, orientando a elaboração e execução de projetos, por intermédio de cursos e seminários, sobretudo no interior; estimulando as empresas a participarem; aperfeiçoando permanentemente, junto à co-
agora colhemos. É claro que a escolha das equipes que organizaram e voltaram a organizar, agora, a feira, desde a singeleza de seu início, teve a paixão necessária como princípio e o rigoroso sacerdócio como finalidade, adotando o livro como santo padroeiro. Este é o segredo da feira. Aliás, qualquer ato cultural com esses ingredientes está fadado a dar certo. Belém renasceu como polo turístico após as inaugurações da Estação das Docas, Hangar Centro de Convenções, Parque da Residência e Mangal das Garças. Para o senhor, o que ainda precisa ser feito pelos patrimônios históricos e arquitetônicos da capital paraense? Os exemplos citados na pergunta, ao que tudo indica, não foram suficientes para estimular a consciência coletiva quanto à preservação da nossa memória. Não obstante, há que se perseverar contando com campanhas educativas, rigor na aplicação das leis patrimoniais, nas três esferas de Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário), e, acima de tudo, contagiar, de todas as maneiras, a opinião pública, mobilizando-a para defender a sua própria história.
Em defesa da cultura
No comando da Secult pela quarta vez, Paulo Chaves Fernandes é um defensor da livre expressão artística
O senhor acredita que as leis que dão incentivos à cultura cumprem o seu papel ou precisam ser modificadas? Sinto-me à vontade para falar dessas leis. O Pará foi um dos primeiros Estados a adotar uma lei de incentivo à cultura, durante a minha gestão na Secult (Lei Semear, de número 5.885/95), além de acompanhar, durante anos, a discussão nacional em torno da Lei Rouanet (Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991), inclusive no
missão julgadora, conceitos e critérios a serem adotados na seleção das propostas, avaliando se os orçamentos apresentados são compatíveis com os valores praticados no mercado; acompanhando a execução dos projetos e cobrando a prestação de contas dos recursos aplicados. A Lei Rouanet é ainda mais complexa, apresentando sérias distorções, sujeita à influência de lobistas poderosos e bem articulados, tanto com o poder em Brasília quanto com os interesses de várias empresas, cujas diretorias, inclusive as de marketing, estão instaladas no “Sul Maravilha”. Conclusão: o que sobra para os Estados do Norte e Nordeste são migalhas insignificantes e incompatíveis com as nossas eternas carências. Enfim, um exemplo desastroso da utilização de recursos públicos na área de cultura pelo governo federal há anos. A política estadual de cultura está consolidada ou é preciso repensá-la? Repensar, discutir, questionar, duvidar e aperfeiçoar sem cessar. No entanto, um princípio, urge ser adotado: política de cultura não deve ser cultura para política. Devemos exorcizar o populismo e deixar que as formas de expressão artística existam sem tutelas e cooptações, ou seja, dizer “não” aos Sistemas que pretendem “aparelhar” o fazer cultural, sobretudo o legítimo (alhos e bugalhos não são as mesmas coisas). Promovida pela Secult, a Feira Pan-Amazônica do Livro conquista o público e o mercado editorial a cada nova edição. A que o senhor atribui o sucesso desse evento? A semente plantada em 1996, quando estava secretário (estadual) de Cultura, foi fértil e gerou os frutos que
Qual o projeto da Secult para o prédio que abriga o Arquivo Público do Pará? De acordo com a recomendação do Ministério Público do Estado, o imóvel, que faz parte do patrimônio arquitetônico de Belém, precisa ser restaurado com urgência, já que o acervo corre risco. A “polêmica” em torno desse assunto foi construída a partir de interesses políticos bem demarcados. O Arquivo foi mais um dos problemas deixados pelos “combativos companheiros”, em conjunto com os demais espaços que estão sob o gerenciamento direto ou indireto da Secult. Projetos de recuperação e restauro estão elaborados. Em alguns casos, os recursos já estão liberados; em outros, estão sendo processados. Em breve, os teremos todos de volta à cena da cidade e mantidos com o zelo que deveriam ter sido tratados sempre. No caso particular do Arquivo Público, apesar da intervenção mais imediata já em vias de licitação, estamos cogitando transferir, em médio prazo, o seu valioso acervo para outro local, sem os percalços do caos urbano onde se encontra, inclusive com o risco de incêndio do velho casario, com as precárias instalações elétricas, que
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Foto: PAULA SAMPAIO
estão em seu entorno. A solução definitiva já vem sendo pensada e, em breve, noticiaremos as boas novas.
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A música popular paraense encantou a mídia de todo o País. Isso deu maior visibilidade para os artistas do Estado. Para o senhor, esse fenômeno cultural de massa pode ou não render bons frutos para quem faz música no Pará? Depende. Talvez sim, talvez não. A música, tanto popular quanto erudita (e esses limites são tênues), que se faz há mais de cem anos no Pará é, sem favor algum, a mais rica e a mais diversificada no Brasil, de Gama Malcher ao Mestre Lucindo, de Marapanim, passando por Paulo André Barata e Waldemar Henrique, por exemplo. Por que será que somente agora descobriram o
talento paraense com os seus excelentes compositores e instrumentistas? A indústria cultural tem a tendência de esgotar as
Devemos exorcizar o populismo e deixar que as formas de expressão artística existam sem tutelas e cooptações” expressões artísticas mais genuínas, massificando-as como novidade folclorizada da estação e depois, habi-
Paulo Chaves Fernandes, secretário estadual de Cultura do Pará: “Política de cultura não deve ser cultura para política”
tualmente, após banalizá-las, costuma descartá-las sem nenhum pudor, e corre atrás do que vai ser o “fashion” do próximo “verão”. Qual projeto que o senhor gostaria de executar nesse retorno ao comando da Secult? Recuperar, como já estamos fazendo, todos os espaços culturais que foram degradados e restaurar o Palacete Faciola. Continuar interiorizando os projetos, como já se faz, por exemplo, com a Feira Pan-Amazônica do Livro; estimular, cada vez mais, a linha editorial e as gravações de CDs e DVDs; executar os Jardins das Palmas; ampliar as coleções e os acervos museológicos e, ainda, implementar o Parque do Utinga.
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CRÔNICA
Em Belém, o grafite virou expressão artística e também o ganha-pão das estrelas não reconhecidas da periferia
Consumo e cultura pop
Vladimir Cunha
A
Jornalista
periferia de Belém do Pará vive hoje um estranho ponto de mutação. A interseção entre o seu passado rural e uma nova percepção de realidade mediada pela tecnologia e pela cultura pop. E quando adicionamos a isso o acesso ilimitado a bens culturais por conta da pirataria, o nó dialético que se forma ao tentarmos explicar corações e mentes dos filhos do Novo Brasil que circulam com desenvoltura por esse território torna-se ainda mais intrincado. Não à toa que Belém do Pará é uma das cidades onde a série de TV “Todo Mundo Odeia o Chris” (Estados Unidos) tem a sua maior audiência. Afinal, os problemas e as angústias pré-adolescentes são iguais em todo o mundo; esse senso de inadequação temporária que vem desde Holden Caulfield em plena Era da Prosperidade da América Branca até Johnny Rotten vociferando impropérios contra o Jubileu da Rainha Elizabeth II. E que,
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quando não plenamente resolvido através do amor ou da arte, deixa cicatrizes que carregamos pelo resto da vida. Brooklyn, Londres, bairro do Jurunas... Até que ponto, na percepção cada vez mais fragmentada do adolescente urbano de hoje, essas fronteiras fazem algum sentido? Quando questões de visibilidade e gênero são tão importantes quanto a sobrevivência, é na cultura pop, na tecnologia e na pirataria que o jovem pós-pós-moderno da periferia belenense encontra as suas armas para construir um mecanismo de sobrevivência que funcione a curto ou médio prazo. Para esse adolescente não é possível lidar e entender o mundo sem essa mediação da indústria cultural. Por ser onipresente, é ela quem constrói a sua percepção de realidade e as suas ferramentas de ataque e defesa. Moda Shiroi Neko e Transformers, rap e desenhos japoneses, a cultura gay, Britney Spears, a novela “Rebelde” e os ruídos chapados do tecnobrega. Vale tudo na construção de uma identidade e de uma percepção que sobrevivam à dureza dos bairros mais pobres de Belém. Um processo que resvala em todos os aspectos do cotidiano: nas roupas das turmas de rua, na preferência por um determinado modelo de celular e nas opções estéticas e de consumo das classes C e D. Visualmente, talvez nada represente isso tão bem quanto o grafite que hoje é feito na periferia de Belém do Pará. Originalmente - junto com o break, o rap e o DJ - ele chegou à cidade como um dos quatro elementos da cultura hip-hop. No entanto, como todo produto da cultura pop que se infiltra na periferia, logo ele se descolaria do seu caráter original, fundindo-se assim ao inconsciente coletivo dominante das baixadas e palafitas.
Em Belém, o grafite virou expressão artísticae também meio de vida, o ganha-pão das estrelas não-reconhecidas da periferia, que levantam uns trocados ornamentando a fachada de oficinas mecânicas, mercadinhos e toda a sorte de pequenos comércios típicos de lugares que a mão pesada das grandes corporações ainda não conseguiu alcançar. Aqui, também, trata-se de visibilidade e afirmação. Não da maneira violenta das gangues de pichadores em sua eterna disputa territorial, mas numa tentativa de, através de uma abordagem puramente visual, enobrecer o produto, a loja ou a vendinha de secos e molhados cujo dono ainda anota as dívidas num pequeno caderno com arame em espiral. A mesma segurança psicológica e estética almejada por um adolescente de tênis Nike pirata nos pés e camisa Ecko comprada por R$ 10 na banca do ambulante. É aí que o grafite feito em Belém acaba se tornando uma extensão visual desse processo de mutação. Não só por ser feito por jovens com essa nova percepção de realidade fragmentada e multicultural, mas também porque talvez seja
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essa a única linguagem possível nessa nova configuração de consumo dos produtos da indústria do entretenimento. No final das contas, os signos e símbolos que mediam a criação artística desse tipo de grafiteiro são os mesmos que movem a moda, a música e os gostos pessoais dos moleques das classes C e D que assistem a “Todo Mundo Odeia o Chris” com a mesma naturalidade que frequentam as festas de tecnobrega ou batem tambor em um terreiro de umbanda. Certa vez, em 2006, no bairro do Icuí-Guajará, no município de Ananindeua, vi grafitados, lado a lado, em uma venda de açaí, o “Thor”, de Jack Kirby, um “Goku” em posição de combate e um “Bob Esponja”. Quase cinco décadas de cultura pop na fachada de um comércio caindo aos pedaços em um dos bairros mais violentos da Região Metropolitana de Belém. Lá dentro, um rapaz de cabelos aloirados, vestindo uma camisa pirata da Puma, ouvia, em um volume ensurdecedor, um dos primeiros lançamentos do tecnobrega. Naquele momento, vi, pela primeira vez, as contradições dessa nova forma de consumo de bens culturais. Desde então, as coisas nunca mais foram as mesmas.
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Imprensa Oficial do Estado
INSTITUCIONAL
Trajetória da IOE é marcada pela transparência ao longo de décadas de história
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m 1890, o Pará começava a respirar os ares republicanos. Nesse cenário, nascia a Imprensa Oficial do Estado (IOE). Até então, não havia publicação oficial que registrasse os atos do governo. O jornal “A Província do Pará” é que desempenhava esse papel no Estado. “Foi o jornal que publicou, em 18 de abril de 1890, o decreto de criação da IOE - um marco para a memória da administração pública e, efetivamente, o primeiro ato do que viria a ser a Imprensa Oficial”, comenta o pesquisador e servidor da IOE há mais de 40 anos, Ribamar Castro. A decisão de criação da IOE foi tomada nos primeiros momentos da adesão do Pará à República. Justo Leite Chermont governava o Estado. Foi ele quem assinou o Decreto nº 137, de 14 de abril de 1890, criando uma das mais
antigas Imprensas Oficiais do Brasil. Da criação do órgão até o surgimento do Diário Oficial passaram-se 14 meses. No dia 11 de junho de 1891, circulava a primeira edição. Nomeações, exonerações, convênios e demais atos que regulamentam, dão vida e permitem o funcionamento do Estado estão impressos nas páginas do Diário Oficial. “É nele que a administração pública se vê e é vista, o que o fortalece como instrumento essencial para dar publicidade àquilo que é realizado com o dinheiro público”, resume o presidente da IOE, jornalista Cláudio Rocha. Desde a criação aos dias atuais, a autarquia ampliou sua missão. Além do Diário Oficial, também publica e estimula o lançamento de obras de caráter histórico e literário. No contexto tecnológico, dá mais um passo e lança o Certificado Di-
gital - espécie de carteira de identidade eletrônica que permite que transações realizadas via internet sejam extremamente seguras. Para Cláudio Rocha, “trata-se de mais uma ferramenta que alia confiabilidade e segurança para o cidadão, além de ser elo indispensável na relação entre governo e sociedade”. A IOE também publica obras assinadas por escritores e pesquisadores paraenses. Em parceria com o Instituto de Artes do Pará (IAP), por exemplo, a IOE participou, em 2011, da edição do livro “A Menina Amarela”, coordenada pelo jornalista Tito Barata, gerente da área de Literatura e Expressão de Identidade do IAP . Trata-se de obra com contos infantis inéditos de Haroldo Maranhão. Essa foi a primeira publicação viabilizada pelo convênio assinado entre IOE e IAP.
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Fotos: Fernando Sette Câmara
Instituto de Artes do Pará Treze anos investindo e valorizando as produções culturais e artísticas no Estado
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Instituto de Artes do Pará (IAP) foi criado pela Lei nº 6.235, de 21 de julho de 1999, e surgiu da necessidade de se trabalhar especificamente com a produção artística e com os artistas do Pará e da Amazônia, buscando a qualidade, a criatividade e o espírito moderno, na valorização da arte e da cultura. Ao longo desses treze anos, consolidou valores fundamentais à formação profissional nas diversas áreas artísticas, incentivando a capacidade de iniciativa, invenção, autonomia, conhecimento, espírito crítico, autenticidade e, principalmente, a consciência social. O IAP é o agente cultural por excelência da criação, desenvolvimento e aperfeiçoamento artístico. Seu espaço é voltado para a reflexão, debates, intercâmbios e qualificação do artista, condições fundamentais para a construção de uma cultura criativa contemporânea de qualidade. A partir desses desafios, os artistas são convocados a estimular seus limites, suas possibilidades e as suas verdadeiras potencialidades, podendo crescer como força criadora e contribuir para que a arte feita no Pará atinja a maturidade e se torne um veículo de inserção cultural, econômica e social. Desde sua criação, ocupa o prédio construído na se-
gunda metade do século XIX para abrigar o Quartel do 15° Batalhão de Infantaria do Exército, porém, seus traços mais recentes são do século seguinte e, possivelmente, datam da década de 20 do século passado. Ao longo de sua história abrigou outras unidades militares como o 47°, o 26° e o 24° Batalhões de Caçadores, além do CPOR e a 8ª ICFEX. O prédio é dotado de uma infraestrutura que possibilita um cotidiano artístico permanente no que respeita a criação, experimentação e divulgação: anfiteatro, auditório, sala de dança, atelier e sala de multimeios.
Veja algumas das ações realizadas pelo IAP Programa de Bolsas/ Circuito das Artes O programa de bolsas para Criação, Experimentação, Pesquisa e Divulgação Artística incentiva a produção artística beneficiando artistas que atuam nas diferentes linguagens, residentes em Belém e nos demais municípios paraenses, com recursos na ordem de R$ 15 mil para o desenvolvimento e finalização de projetos inéditos de caráter experimental, desde a sua concepção até a apresentação dos resultados na mostra “Circuito das Artes”, com a montagem de espetáculos teatrais, musicais e de dança, produção de e-book, CDs e exposições. Prêmio IAP de Literatura/ Edições Culturais Instituído por meio de edital, o prêmio IAP de Literatura - Edições Culturais contempla, anualmente, 16 escritores com obras inéditas, em oito categorias de premiação que objetivam incentivar a produção literária no Estado e homenagear ícones da literatura paraense de expressão nacional: poesia (prêmio “Max Martins”), ensaio (prêmio “Vicente Salles”), conto (prêmio “Maria Lúcia Medeiros”), romance (prêmio “Haroldo Maranhão”), dramaturgia (prêmio “Nazareno Tourinho”), livro reportagem (prêmio “Euclides Chembra”), memorialístico (prêmio “José Sampaio de Campos Ribeiro”) e infanto-juvenil (prêmio “Heliana Barriga”). Mapeamento das Artes do Pará Com o objetivo de preencher uma lacuna na construção de uma fonte de referência da produção artística do Estado, foi criado o projeto “Mapeamento das Artes do Pará”, que possibilitará a identificação e registro de informações as quais integrarão um amplo cadastro de artistas, técnicos,
produtores culturais, grupos artísticos, espaços culturais e instituições que atuam nas áreas de arte e cultura no Pará. As informações coletadas serão disponibilizadas on line no Portal do IAP, com o objetivo de dar visibilidade à produção artística paraense, incluindo ainda publicações (catálogos e antologias) e exposições temáticas itinerantes. Arte: conhecimento e circulação A formação, atualização e o aperfeiçoamento artístico também são realizados por meio de cursos, oficinas, palestras, seminários, workshops, fóruns e debates em Belém e nos demais municípios paraenses, na perspectiva de favorecer o intercâmbio por meio de diálogos culturais. ProPaz Arte e Cultura Realização de ações que possibilitem a criação, experimentação, formação e circulação artística nas diversas linguagens (verbal, sonora, corporal, visual e cinestésica), por meio de oficinas, cursos, laboratórios, exposições, circuitos, shows e espetáculos, onde crianças, adolescentes, jovens e artistas vivenciam a arte como processo criativo vital para uma nova forma de perceber, estar e pertencer ao mundo, favorecendo a aproximação solidária entre as pessoas e a natureza. Torna-se relevante compreender que a arte e cultura exigem hoje ações mais diversificadas do que em outras épocas. Como disse o escritor futurista Alvin Toffler, doutor em letras, leis e ciência: “O analfabeto deste século não será mais aquele que não sabe ler nem escrever, mas aquele que não for capaz de aprender, desaprender e reaprender”. E é esse o compromisso do IAP no processo de aperfeiçoamento artístico, missão dominante do instituto.
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HISTÓRIA
Documentos das áreas cível e criminal podem ser consultados por estudantes e profissionais Fotos: Fernando Sette Câmara
Missão: preservar a memória Centro de Memória da Amazônia guarda o acervo do Judiciário paraense
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ano era 1902. Antônio Ferreira da Silva foi condenado a 30 anos de prisão pelo estupro e assassinato da jovem Severa Romana, morta aos 19 anos de idade. O crime abalou a pacata cidade de Belém pela característica cruel e pelo fato de a vítima estar grávida de nove meses. O processo que investigou o crime tem 157 páginas e faz parte do acervo do Centro de Memória da Amazônia (CMA), que utiliza o episódio para contextualizar na contemporaneidade a Lei Maria da Penha como elemento jurídico de punição aos envolvidos em casos de violência doméstica. A nova concepção de recontar o passado e transportá-lo para o presente de forma inteligente e didática também utiliza outras metodologias com ferramentas de cunhos musical, cinematográfico, fotográfico, artístico e literário. O CMA funciona na antiga gráfica da Universidade Federal do Pará (UFPA), no bairro do Reduto, em Belém. O local é aprazível e foi completamente reformado após a assinatura de
convênio entre a UFPA e o Tribunal de Justiça do Estado (TJE) do Pará. Por meio desse convênio, a UFPA ficou responsável pela guarda, conservação e organização de um acervo com 35 toneladas de documentos das áreas cível e criminal entre o período de 1785 a 1970. O dia 31 de janeiro de 2007, data da assinatura do convênio, marcou a criação oficial do CMA. Em cinco anos, foram investidos R$ 3 milhões em obras de reforma, movelaria, climatização e qualificação profissional dos bolsistas dos cursos de História, Museologia e Ciências Sociais da UFPA que atuam no centro. O acervo recebido do TJE ainda está sendo catalogado. Grande parte dos documentos já está disponível para ser consultada por estudantes, pesquisadores e público em geral. Paralelo ao trabalho de catalogação e conservação do acervo, o CMA desenvolve diversas atividades culturais e está aberto à visitação pública de escolas, faculdades, universidades e grupos de pessoas interessados em conhecer um novo modelo de recontar o
Otaviano Vieira Junior, diretor do CMA: investimento na cidadania
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Prédio da antiga gráfica da UFPA foi recuperado para abrigar as instalações do CMA, no Reduto
passado. Segundo o diretor do CMA, professor Otaviano Vieira Junior, o local também pode ser visto como um centro de treinamento voltado ao incentivo da política de memória. “Estamos abertos para receber o público. Queremos fazer valer o investimento feito pela UFPA”, destaca. Mil e quinhentas pessoas já passaram pelo local nos últimos cinco anos. O novo conceito aplicado pelo CMA valoriza o cidadão. Não existem personalidades, mas sim episódios, casos que são contextualizados e transportados para o presente por meio de palestras, debates, vídeos, cinemas e literatura. O caso da jovem Severa Romana é apenas um dos exemplos. A inquisição também explica os casos de bullying e todas as formas de intolerâncias do mundo moderno relacionadas à sexualidade e religiosidade. O CMA também desenvolve as chamadas “mesas temáticas”. Os temas das próximas edições são devoção (outubro), morte (novembro) e loucura (dezembro). No local ainda funciona uma emissora de rádio, que transmite os assuntos relacionados à programação do mês, além de uma ferramenta de computação (chronos web) que permite ao usuário identificar imediatamente o documento que ele está pesquisando. Exemplo: o acervo do TJE do Pará continha documentos das áreas cíveis e criminais como o processo sobre a morte de Severa Roma-
na, casamentos, inventários e testamentos que incluem até os escravos como bens materiais das ricas famílias da Belém de séculos passados. Por meio do site da CMA, o internauta também pode consultar o documento do mês e visualizar os processos que já foram catalogados. Sobre esse novo modelo de refazer a memória de um povo, o professor Otaviano Junior diz que se trata de uma tendência que veio para ficar. Ele citou museus modernos como o da Língua Portuguesa e do Futebol, ambos em São Paulo, como a tradução desse novo significado. “Hoje, trabalhamos a valorização da memória com a temática voltada para a cidadania, mas esse viés fica a critério de cada um. É possível conceber um projeto de valorização da memória voltado para outros temas como educação, cultura e lazer. Tudo está sob uma mudança constante e do potencial do acervo que se vai trabalhar”, explica.
Parceria Funcionando há cinco anos, o CMA já firmou parcerias com vários órgãos públicos. A que tem com a Imprensa Oficial do Estado (IOE) vai permitir a realização de um projeto fotográfico que vai resultar na publicação de uma revista com imagens da Belém do século XIX sob os olhares de idosos e crianças. São 12 imagens em litografias que
foram doadas ao CMA por José Mindlin que mostram ruas, avenidas e os Largos da Trindade e do Carmo. A primeira parte do projeto envolveu a visitação aos idosos do abrigo Pão de Santo Antônio, no bairro do Guamá, em Belém. Eles viram as imagens e agora vão fotografar os mesmos logradouros. Os estudantes da Escola Estadual Benjamim Constant também farão parte do projeto. Todos vão fazer cursos de fotografias na técnica artesanal para depois refazer a imagem do século XIX sob um novo olhar. “A ideia é descobrir que dentro de Belém existem várias cidades. Nós ainda estamos no começo do projeto, mas a expectativa é de um grande trabalho”, diz o professor Otaviano Junior. “Estamos abertos às orientações das políticas da memória. Grupos de estudantes, de amigos, de pesquisadores e de escolas podem nos procurar. Teremos muito prazer em atender. Temos uma equipe especialmente qualificada para realizar esse trabalho e queremos valorizar o recurso público que foi investido na criação deste espaço”, completa.
Serviço:
O CMA funciona à travessa Ruy Barbosa, 491, no bairro do Reduto, em Belém. As visitas podem ser agendadas através do telefone 3252-2843.
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ESTILO
Nossa moda, nossa cultura Estilistas paraenses mostram que estão prontos para conquistar o mundo com estilo e organização
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oda é cultura ou é a cultura que faz a moda? Essa é uma pergunta que muitos se fazem. De fato, a cultura é uma das maiores influenciadoras da moda. A prova disso está na produção dos estilistas paraenses, que, na última década, criaram identidade própria. O estilo, no caso, é feito a partir de referências culturais, de fragmentos do cotidiano. Tudo embalado pela criatividade e também pela exclusividade das peças. “A moda reflete as transformações culturais de cada época, de cada povoado num sentido muito amplo. A moda está hoje nos grandes museus do mundo, como o ‘Metropolitan’, em Nova York, onde se montou uma exposição da obra de Alexander McQueen, que se dizia um artista que usou a moda como instrumento para divulgar suas ‘esculturas’ de moda”, explica a professora Edila Porto, do curso de graduação em Moda da Universidade da Amazônia (Unama). “Como a moda reflete as transformações sócio-antropológicas de um tempo, a cultura, que também sofre influência destas mudanças, se tranforma de acordo com as acomodações de cada década. É claro que tudo vai acabar influenciando nao só a moda, mas tambem a arquitetura e o design como um todo”, completa.
Fotos: Rogério Uchôa
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Mas se inspirar no regionalismo é um bom caminho na hora de se pensar numa coleção de moda num mundo globalizado? Para Edila, “o artesanal está em alta, por trazer um diferencial neste mundo da industrialização, do tudo igual, do globalizado. Então, o momento é de criarmos identidades individuais com o uso de materiais regionais e não mas buscarmos uma identidade brasileira, pois esta seria universal”. “A pesquisa em moda não é uma tarefa fácil. O estilista precisa direcionar o conhecimento. Na maioria das vezes, essa descoberta só ocorre na universidade, onde cobramos disciplina, atenção e frequência dos alunos”, reforça Fernando Hage, que também dá aulas para o curso de Moda da Unama. “Essa necessidade de conhecimento para fazer moda acaba empurrando o aluno a ter outra consciência e até de associar o curso de Moda com o de Design ou Publicidade e Propaganda”, completa. Todos sabem que a Amazônia é um santuário de inspirações e de possibilidades a partir da diversidade da matéria-prima encontrada na região. “Temos riquezas variadas que precisamos traduzir em nossas roupas. Sabemos que é difícil, pois a concorrência com as grandes marcas é muito forte. Mas se quisermos fazer algo novo temos que trabalhar muito”, reforça Fernando, que se formou em Design e é mestre em Moda, Cultura e Arte.
Divisor de águas Organização. Essa é a palavra-chave para que a moda paraense cresça e apareça no cenário nacional. Assim, surgiu, em 2006, o projeto “Caixa de Criadores” idealizado por Clara Carneiro, Diogo Carneiro, Fernando Hage, Junior Oliveira e Jackye Carvalho, que “respiram” moda todos os dias. Na última edição do projeto, um desfile reuniu 16 marcas da Região Metropolitana de Belém e atraiu mil pessoas ao Boulevard das Feiras, na Estação das Docas, em junho do ano passado. Tudo sob o patrocínio do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) do Pará. Na última edição, o tema foi “Cartografia da Moda”. Houve até lançamento de um mapa com os endereços onde é possível comprar as peças produzidas por marcas paraenses. Para Junior Oliveira, da “EuBelém”, o Caixa de Criadores é um divisor de águas na moda paraense. “Não tem mais como voltar atrás. O futuro é promissor”, filosofa. Na “EuBelém”, o estilo da marca é a cultura paraense. A coleção “Saudades”, por exemplo, retrata a riqueza do final do século XIX e início do século XX, quando Belém viveu a “Belle Epóque” por conta do dinheiro que circulava com o mercado da borracha. Os modelos trazem estampas de fotos e ilustrações de prédios, objetos e costumes importados da Europa. Além do “Caixa de Criadores”, os estilistas também
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A Amazônia serve de inspiração para as coleções masculinas e femininas dos profissionais da moda no Pará
estão reunidos na Associação Moda Pará. “O projeto e a associação ajudaram a fomentar o mercado da moda”, afirma Junior Oliveira. A estratégia do grupo é sempre agregar as marcas. A “EuBelém”, por exemplo, se juntou a “ADUE”, de acessórios em couro e aço. “Nossa coleção é caracterizada pela ausência do óbvio, inspirada no universo pop”, diz o estilista Alan Favacho, que assina a coleção juntamente com o seu sócio, o designer Airton Mariano. A união de marcas num só endereço facilita a vida de quem consome a moda produzida por aqui. Para Alan, o Caixa de Criadores é uma iniciativa importante para o setor. “Antes (do projeto) tudo era mais difícil. Hoje, nós temos uma noção completa de como administrar e melhorar o negócio”, afirma. Motivo? O Sebrae promove cursos e treinamentos sobre planejamento, empreendedorismo e abertura de empresas.
Formação para o mercado Faz alguns poucos anos que Belém passou a contar com cursos de graduação em Moda. Um na Universidade da Amazônia (Unama) e outro na Estácio FAP. Há também um curso de curta duração organizado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) do Pará. A formação acadêmica e a qualificação profissional ajudam a consolidar
a moda como um patrimônio cultural do Estado. Passa-se a produzir com mais qualidade, a partir de pesquisas de materiais, formas e estilos. Tudo sempre pautado pelo que é inovador. Mas, é claro, a moda mira o mercado consumidor. Além da Unama, Fernando Hage dá aulas no recém-criado curso do Senac do Pará. Para ele, quem busca essa qualificação sabe que o mercado da moda está cada vez mais exigente na hora de contratar profissionais. “O cenário é promissor e o Pará pode se destacar na moda nacional. Vivemos um processo de maturação da cadeia produtiva do setor”, destaca a estilista Isabela Jatene, que é mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). “É preciso trabalhar muito nesse mercado. Sempre com criatividade, inspiração e pesquisa”, orienta a professora Graziela Ribeiro, do curso de Moda da Estácio FAP, que, na última edição do “Caixa de Criadores”, assinou uma coleção inspirada no “caldeirão de sons e cores do centro comercial de Belém”. O que atraiu a atenção durante o desfile da marca de Graziela foi que, na passarela, além dos modelos, estava um personagem comum no cenário urbano da capital paraense: um propagandista com a sua bicicleta e caixas de som reproduzindo músicas que iam do brega romântico do passado ao tecnobrega que atrai multidões para as festas de aparelhagem. Tão Belém!
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Iracema Oliveira é a coordenadora do grupo “Tucano” , fundado em 1927, no bairro do Telégrafo, em Belém
Foto: Cristino Martins
CULTURA POPULAR
No mundo dos pássaros juninos Espetáculos misturam música e teatro numa manifestação exclusiva da capital paraense
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adas, princesas, feiticeiras e nobres... Até parece uma daquelas histórias clássicas transformadas em desenhos animados por estúdios americanos que dominaram – e dominam - o imaginário infantil de gerações pelo mundo afora. Mas não é nada disso. Esses são alguns personagens que transitam pelos cordões de pássaros juninos, uma manifestação cultural que só se registra na capital paraense, onde não faltam – acredite! - índios e caboclos. São encenações construídas com pitadas de
heroísmo, toques de vingança, disputas amorosas e doses extras de vilania. O enredo do cordão de pássaro “Guará”, de Icoaraci (um distrito da capital paraense), é um exemplo disso. Conta a história de um pescador que encontra um filhote de guará, uma espécie de ave brasileira, perdido numa praia e o vende para uma marquesa. A jovem compra a ave para dá-la de presente de aniversário a uma princesa. Encantada com o pequeno animal, mas preocupada com o destino
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dele, a princesa entrega a ave aos cuidados de um guarda que vive num bosque da família real, que é habitado, segundo a lenda, por uma fada e uma feiticeira. Mas a presença do guará no bosque real atiça a cobiça de um caçador, que sabe que a captura da ave não será tão fácil por conta do guarda designado pela princesa como protetor do animal. Só que o caçador é esperto. Pede ajuda da feiticeira, que, para fazer o mal, deixa o guarda enfeitiçado para a alegria do caçador. O guará é ferido e capturado. Só que a fada entra na história. Liberta o guarda do feitiço e conta tudo para a princesa, que chama o seu exército para prender o caçador. Como não conhece bem a mata, o capitão, que comanda a tropa da princesa, pede ajuda aos índios da tribo tupinambá. O caçador acaba preso pelos indígenas. Mas a nossa história ainda não acabou. É preciso curar os ferimentos do guará com a ajuda dos matutos, que chamam o pajé. Com a intervenção dele, a ave fica curada e é devolvida para a princesa. Um final feliz, sem dúvida! “Os cordões de bichos são uma alegoria popular, que resulta numa defesa da flora e da fauna da Região Norte”, diz um dos trechos do livro “A Conquista da Amazônia” (1956), de autoria do folclorista e etnólogo Edison Carneiro. “Em palco armado nas cidades do interior, a representação dramática-burlesca gira em torno de um caçador, que ora por inadvertência, ora por maldade, alveja, mortalmente, um pássaro encantado. Da trama fazem parte pajés e fadas, matutos e índios, estes como perseguidores do caçador e sentinelas da floresta”. Os pássaros juninos, diz Carneiro, são uma adaptação urbana desses cordões de bichos das cidades do interior. “Uma estranha mistura de novela de rádio, burleta e teatro de revista, a que não falta certa cor local”, define. Na encenação dos pássaros juninos, há várias narrativas pontuadas pela música. Os ritmos são variados. Tem valsa, rumba, samba e carimbó misturados com “O Guarani”, de Carlos Gomes. No palco, os personagens contam suas histórias. Uma criança – quase sempre uma menina - interpreta o pássaro encantado. No figurino dela há plumas, lantejoulas, vidrilhos, pedrarias e bordados. É para atrair os olhares de quem está na plateia.
Guardião do presente, passado e futuro Amor, respeito e dedicação do “guardião” garantem a preservação dos pássaros juninos da capital paraense. Um deles é uma senhora de 75 anos de idade. A radialista Iracema Oliveira é a cabeça do grupo “Tucano”, fundado em 1927, no bairro do Telégrafo, em Belém. Assumiu o papel de “guardiã” em 1981. Cabe a ela preparar a encenação a partir de cada mês de março para que, quando junho chegar, esteja tudo pronto para as apresentações em praças, teatros e outros espaços públicos. Iracema conta que se encantou com a manifestação cultural ainda criança. Incentivada pelo pai Francisco Oliveira, interpretou o pássaro aos sete anos de idade. “Meu pai escrevia histórias para
Foto: divulgação
Fantasiada de ave, a menina representa o personagem central de um espetáculo popular
vários cordões de pássaros e bichos. Aprendi tudo com ele”, diz. O guardião do “Guará”, de Icoaraci, é Raimundo Marcos da Silva, de 38 anos. Surgido na década de 60 do século passado, o grupo tem origem no município paraense de Vigia de Nazaré. Foi criado pelo avô de Raimundo. Na autoria das toadas do “Guará” estão, além de Raimundo, os tios e primos. Um “negócio” bem familiar. A história dos pássaros juninos mudou com o passar dos anos. No “Tucano”, a ave não é morta pelo caçador desde a apresentação de 1980. Só fica ferida pelas mãos do vilão. Tudo em nome do politicamente correto. É para não dar exemplo ruim para as crianças que estão na plateia. “Caso contrário, elas iam sair do espetáculo achando normal matar passarinho”, esclarece Iracema. A efervescência cultural promovida pelo ciclo da borracha na Amazônia do final do século XIX, quando os costumes na capital paraense sofreram forte influência europeia, favoreceu o surgimento dos cordões de pássaros. Para o sociólogo Carlos Eugênio Marcondes de Moura, autor de “O teatro que o povo cria. Cordão de pássaros, cordão de bichos, pássaros juninos no Pará; da dramaturgia ao espetáculo” (Editora Secult), essa
manifestação cultural surgiu da harmonia entre música e teatro. Destaca o mestre em Artes Cênicas, Marton Maués, que esse pássaro “mais urbano” apropriou-se de elementos desses espetáculos, ocupando inclusive seu espaço: o palco. Há duas vertentes de pássaros juninos: os cordões de pássaro e o pássaro melodrama fantasia. Diz a doutora em Artes Cênicas, Olinda Charone, que uma das características dos cordões de pássaros é a permanência em cena da maioria dos brincantes, que, distribuídos em semi-círculos, vão ao centro do palco para representar. Em seguida, retornam à posição de origem. Isso, segundo ela, permite que essa encenação seja feita em qualquer espaço. Já o pássaro melodrama fantasia requer palco, camarim e cortina. É que os brincantes, durante as apresentações, precisam trocar o figurino várias vezes. As cortinas são utilizadas para a finalização de cenas e quadros. Outra diferença é que o pássaro raramente é ferido ou morto, mas é perseguido, passando, muitas vezes, a fazer parte de temas secundários. Quase sempre a história gira em torno da vida de nobres, onde não pode faltar o vilão que arquiteta contra os mais fracos, que, com a ajuda dos índios e matutos, conseguem vencer e se livrar das maldades.
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Foto: Elza Lima
Benedito Nunes: filósofo, crítico, ensaísta e professor
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perfil
Muito além da filosofia... NÉLIO PALHETA
Jornalista
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uase na esquina da então Avenida Tito Franco (hoje Almirante Barroso) com a Travessa da Estrela, o funcionário público Benedito José Vianna da Costa Nunes construiu sua casa, em 1952. O bairro do Marco era um lugar quase remoto de Belém e na esquina passava o trem da Belém-Bragança. A cidade cresceu; o bairro urbanizou-se; o trem sumiu da paisagem e, recentemente, a travessa perdeu o nome quase poético (hoje se chama Mariz e Barros). A casa mantém o jardim; na frente há um puxado de dois andares, apelidado de “Torre”, que ainda hoje abriga a biblioteca principal da residência. Sim, mais sete espaços da casa foram ocupados por livros. Muitos livros, fontes de abastecimento do filósofo, crítico, ensaísta e professor em que se transformou Benedito Nunes, falecido em fevereiro de 2010. Estrela é metáfora apropriada para explicar o intelectual que tinha “algo diferente” – disse Clarice Lispector quando o visitou em Belém. Estava em andamento um projeto de relançamento de suas obras, quanto Benedito faleceu. “A Clave do poético” foi lançado em 2007; no mesmo ano saiu “João Cabral: a máquina do poema” (organização e prefácio de Adalberto Müller). De 1966 (quando veio à luz “O mundo de Clarice Lispector”) até então, haviam sido publicados 16 livros. Os lançamentos, desde 2011 até agora, são um recorde. Em setembro de 2011, na XV Feira Pan-Amazônica do Livro, foram lançados os três primeiros volumes dos 18 Diálogos de Platão - O Banquete, Fédon e Fedro - todos com prefácio original da primeira edição, escrito por Benedito, e um novo em parceria com Victor Sales Pinheiro. Os três livros ganharam lançamento nacional, no Rio de Janeiro. “Não há um projeto editorial de obras completas, mas estamos reeditando todos os livros do Bené por editoras diferentes, gradualmente”, diz Victor. Em novembro do ano passado, a Secretaria de Estado de Cultura (Secult) do Pará lançou “O amigo Bené, fazedor de rumos”, coletânea de
depoimentos organizada por Lilian Chaves. No final do ano saiu “Pensamento poético – a obra de Benedito Nunes”, também organizado por Victor Pinheiro e Luís Costa Lima. Neste ano, a Loyola relançou a obra clássica de Benedito, “Passagem para o poético - poesia e filosofia em Heidegger”. A mesma editora prepara a reedição de “Crivo de papel”, “Introdução à filosofia arte”, “No tempo do niilismo e outros ensaios” e “Tempo na narrativa”. E vem mais: “A Rosa o que é de Rosa – literatura e filosofia”. “Do Marajó ao arquivo: breve panorama da cultura no Pará” será lançado na Feira do Livro deste ano. Ambos foram organizados por Victor, dedicado a estudar a obra do mestre com o objetivo de republicá-las.
Efervescência intelectual A obra de Benedito foi fruto de uma efervescência intelectual. Concentrara-se principalmente em Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa. Ele estudou também Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Fernando Pessoa, T. S. Eliot, Nikos Kazanktzákis, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e a poesia do amigo Mário Faustino. “O diálogo dele entre literatura e filosofia é singular na cultura brasileira ao abordar questões culturais, pedagógicas, históricas e amazônicas desde muito cedo”, avalia Victor. Colaborou com o “Suplemento Literário” do jornal A Folha do Norte, dirigido pelo amigo Haroldo Maranhão, e com o suplemento “Artes e Letras”, do jornal A Província do Pará; dirigiu as revistas literárias “Encontro”, com Mário Faustino e Haroldo Maranhão, e “Norte”, com Max Martins e Orlando Costa. No âmbito nacional, publicou ensaios de filosofia e crítica literária nos jornais Estado de São Paulo, Estado de Minas Gerais, Jornal do Brasil e Folha de São Paulo. E colaborou com inúmeras revistas acadêmicas. Clarice Lispector disse-lhe, ao visita-lo em Belém: “Você não é um crítico, mas algo diferente, que não sei o que é”. A frase emble-
mática o perturbou; ao interpretá-la, o filósofo concluiu que a escritora foi certeira ao emitir um “juízo encomiástico, aturdido”, “lendo o que escrevi (percebeu) que o meu interesse intelectual não nasceu nem acaba no campo da crítica literária”. Tornou-se o maior crítico da escritora. E foi o primeiro, em qualquer idioma, a fazer uma leitura filosófica de Fernando Pessoa, correspondendo ao próprio: “Fui um poeta impulsionado pela filosofia, e não um filósofo provido de faculdades poéticas”. Mas, a revelação de Benedito para o mundo deu-se pela relevância e originalidade dos estudos sobre as obras de Martin Heidegger e Hegel.
Exílio em Belém Natural de Belém, Benedito graduou-se em Direito, foi professor secundarista e um dos fundadores da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará, onde ingressou em 1961. Em 1998, recebeu o título de professor emérito. Em Paris, no Collége de France, frequentou, em 1960, os cursos de Paul Ricoeur e Merleau-Ponty. Na mesma década fez pós-graduação no Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Sorbonne, pesquisando o modernismo brasileiro. Não ficaria parado em Belém: como professor convidado, ministrou cursos e conferências nas principais universidades brasileiras e também em Portugal, França, Estados Unidos e Canadá. Foi ácido ao falar de Belém. Seu pensamento é contundente e atual: “A modificação de Belém foi um rebaixamento da cidade. Ela cresceu sem planejamento e continua crescendo desordenadamente... Vejo um desprezo muito grande pela cidade. A cidade, em si, ela desaparece”. Mais ácido ainda foi sobre o modelo de “desenvolvimento”. Disse no prefácio do livro “A casa e suas raízes”, do amigo Armando Mendes, que os grandes projetos para a região são de “concepção distorsiva” e “estimulam um crescimento predador da Hiléia”. “A cargo de grandes empresas, trans ou multinacionais, com centros de decisão
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fora da região, é para fora da região que vai a riqueza por eles gerada, enquanto a integridade regional da Amazônia se desagrega”. O papel do homem local nesse processo foi sintetizado por Benedito na frase que se lê no parque do Mangal das Garças, em Belém: “O homem que deixou de ser escravo da natureza tampouco é o senhor que nela impera, deveria ser seu vigilante guardião”. Em 2010, ele ganhou os dois prêmios literários nacionais mais cobiçados, o “Jabuti” - pelo livro “A Clave do poético” - e o “Machado de Assis”, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. No ensaio “Meu Caminho na Crítica”, Benedito revela, sustentado por profundas teorias filosóficas, que a linguagem é o elo entre filosofia e literatura. Para ele, “filosofia era uma espécie de poesia, e a poesia uma espécie de filosofia” - a tal mão dupla de filósofos e poetas, uma relação fecundante, quase erótica. “Os primeiros transando com os segundos e vice-versa”.
Foto: Fernando Sette Câmara
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Pelotão de frente da crítica brasileira Profundo conhecedor do modernismo brasileiro, Benedito pertence a uma fértil geração de ensaístas brasileiros (Antônio Cândido, José Guilherme Merquior, Luiz Costa Lima, Luiz Leyla Perrone-Moisés, Alfredo Bosi e Walnice Nogueira Galvão). Destacou-se entre eles ao aprofundar o pensamento estético, a hermenêutica filosófica e o pensamento modernista, tendo valorizado e diálogo com a crítica da sua geração. “... É um tesouro nacional, guardado na Amazônia há décadas. ‘Guardado’ e não ‘escondido’, como costumam ser os tesouros, por que este já foi descoberto há muito tempo”, diz, no prefácio de “A clave do poético”, a professora emérita da USP Leyla Perrone-Moisés. Ao anunciar o prêmio “Machado de Assis”, em 2010, a Academia Brasileira de Letras o classificou como “um estudioso capaz de construir pontes entre a interpretação do texto literário e a sondagem filosófica”. Maria Sylvia Nunes, a viúva de Benedito, professora aposentada de Teatro na UFPA, garante que ele não deixou nada sobre ele próprio porque estava sempre numa lapidação permanente. Mas, pensou no assunto e até imaginou um título: “O sobrinho da professora”. Talvez, na “Torre” da casa de número 2.735 da antiga Estrela, encontrem-se metódicas anotações que abasteceriam obra que ele não teve tempo de escrever.
Victor Sales Pinheiro: “Não há um projeto editorial de obras completas, mas estamos reeditando todos os livros do Bené por editoras diferentes”
O homem das letras O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto é um raro necrologista da imprensa de Belém. No seu “Jornal Pessoal”, não deixa passar em branco o falecimento de intelectuais, artistas e políticos. Foi assim com Benedito Nunes, a quem chama de “Bené”. Amigo do filósofo, conhecedor da sua obra, Lúcio diz, neste depoimento, por que
Benedito escapou do ostracismo em vida e depois da morte.
Distinção entre os filósofos
“Bené tinha um grande valor pessoal. E uma característica rara na cultura brasileira: dominava, ao mesmo tempo, filosofia, crítica literária, estética e história. Tinha acesso a leituras em
cinco línguas. Essa características o distinguia ainda mais no restrito universo dos filósofos. Mas, como escrevia bem e pensava com clareza, foi além dos filósofos: tornou-se um grande ensaísta. E pode frequentar a Europa e os Estados Unidos, trazendo na volta o eco do referendo internacional, que reforça a perenidade e a admiração do momento”.
Sobre a Amazônia
“Ele escreveu alguns bons textos sobre a região. O que faltou foi o Bené intervir mais nas questões do dia a dia da região. Sua acuidade e profundidade teriam sido muito úteis à compreensão da conjuntura. Mas é uma questão de estilo, embora, no caso dele, o que mais faltou foi ele ser provocado a se manifestar sobre esses temas, que eram do seu interesse também”.
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