Quase Levy um fora - Lu Mounier

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Introdução.............................................................................................................................03 Capítulo 1..............................................................................................................................05 Capítulo 2..............................................................................................................................12 Capítulo 3..............................................................................................................................16 Capítulo 4..............................................................................................................................22 Capítulo 5..............................................................................................................................27 Capítulo 6..............................................................................................................................34 Capítulo 7..............................................................................................................................41 Capítulo 8..............................................................................................................................48 Capítulo 9..............................................................................................................................56 Capítulo 10............................................................................................................................60 Capítulo 11............................................................................................................................65 Capítulo 12............................................................................................................................71 Capítulo 13............................................................................................................................75 Capítulo 14............................................................................................................................86 Capítulo 15............................................................................................................................98 Capítulo 16..........................................................................................................................105 Capítulo 17..........................................................................................................................117 Capítulo 18..........................................................................................................................125 Capítulo 19..........................................................................................................................133 Capítulo 20..........................................................................................................................140 Capítulo 21..........................................................................................................................150 Capítulo 22..........................................................................................................................154 Capítulo 23..........................................................................................................................163 Capítulo 24..........................................................................................................................167 Capítulo 25..........................................................................................................................176 Capítulo 26..........................................................................................................................179 Bibliografia.........................................................................................................................180

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Fernando é um jovem de 19 anos que nunca havia trabalhado. Devido a seus conflitos familiares, vai em busca de seu primeiro emprego. Com sorte ele consegue, e tudo em sua vida começa a melhorar. Já em seu trabalho novo e recente namoro, o destino encarrega-se de apresenta-lo a Levy, fazendo-o apaixonar-se à primeira vista. Consciente que seria um amor impossível, Nando não cria expectativas, pois o Levy sendo heterossexual jamais teria chance. Seu namorado parecia ser o homem perfeito, até que a vida começa a lhe mostrar a real face, uma verdade escondida sob uma beleza invejável. Tornando-se refém de uma relação violenta, Nando pede ajuda ao seu amigo Levy que arrisca sua vida para ajudá-lo. Violência, aventura, intrigas e amor que envolvem essa história de início ao fim.

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Lu Mounier®

Estudante na área de Comunicação Social, nasceu e foi criado em São Paulo. É o autor de @mor.com.br; A marca de batom; Um estranho dentro de mim; Prazer em conhecer; Eles perguntam, ele responde; O que olhos não veem, coração também sente. Começou a escrever livros aos seus 17 anos, trazendo como temas centrais romances, transgressões culturais, envolvendo também os acontecimentos mundiais e problemas atuais que o país enfrenta. Explicando das formas mais simples que todo ser humano possui sua identidade própria, vontades e sentimentos que os diferenciam do perfil ideal criado pela sociedade. Sendo visados como pecadores, marginais, acabam sendo vítimas de preconceitos, discriminações, injustamente, quando na verdade eles apenas são diferentes.

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I

NDEPENDÊNCIA gritou Dom Pedro I às margens do Rio Ipiranga em uma viagem de Santos à São Paulo. No dia 13 de maio de 1888 foi abolida a escravatura no Brasil, tornado os escravos livres, e em 1934 a mulher conquistou o direito de votar nesse país. A palavra INDEPENDÊNCIA vem acompanhando a humanidade há séculos. Todo mundo sonha em ser independente um dia, viver sem ter que ficar dando satisfações pra alguém, ganhar seu próprio dinheiro, poder amar livremente sem ser reprimido, coisa muito difícil em nosso meio cheio de preconceitos e obstáculos. Foi em uma quinta-feira que tudo começou. Viver na cidade de São Paulo é conviver com as quatro estações do ano em um dia só. De uma hora pra outra o tempo muda e quando isso acontecia, eu sempre acabava ficando doente. Naquele dia eu acordei cedo. Tomei um banho bem gostoso e quentinho antes de sair para ir à aula de inglês. Dentro do metrô já comecei a me sentir mal, não sei se foi o sanduíche que eu havia comido, só sei que minha barriga estava doendo muito. Sorrindo, a professora entrou na sala exclamando: -Good afternoon! -Hello... A metodologia da escola era muito boa, pois as aulas eram todas dinâmicas e bem participativas, mas devido ao enjôo e dor de cabeça não consegui me concentrar na matéria. Sentada ao meu lado estava a Maria, que ao reparar o quanto eu estava pálido perguntou sussurrando: -Fe, você está bem? Com a voz embargada respondi: -Não muito, Ma... -O que você tem? -Sei lá, estou com enjôo... -Você almoçou hoje? -Sim... Pão com hambúrguer... -Ai Fe, não fique comendo essas bobagens, faz mal... -Eu sei, Ma... Mas não tinha comida pronta em casa, e também não dava tempo de preparar antes de vir pra aula. Enquanto a professora montava o painel no quadro branco, continuávamos conversando baixo: -Sabe o que é bom? -O quê? -Chá de camomila... -Sério?

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-Sim... Quando você chegar em casa, faz um chazinho sem açúcar e toma. -Vamos ver se passa mesmo. Depois da aula, passei em uma lanchonete de comida árabe que havia em frente à escola e comprei algumas esfihas. Quem sabe depois de comer algo menos gorduroso e calórico, minha dor passava. Em menos de cinco minutos meu pedido já estava pronto. Peguei a caixa e fui direto para casa. Há dias eu já vinha me sentindo mal, achando que iria pegar uma gripe. Cheguei em casa febril. Meu irmão já havia ido pra escola, pois ele estudava à tarde. Antes de trocar de roupa fui até a cozinha, coloquei as esfihas dentro do microondas para não esfriarem, em seguida liguei o rádio da sala bem alto. Ainda me sentindo um pouco fraco, peguei o aspirador de pó e fui passar na sala de casa, pois já que eu estava sem fazer nada - não me custava - embora eu não estivesse muito bem. Minha febre só aumentava e minha tosse estava contínua. Tomei um antitérmico para ver se melhorava, pois a impressão que eu tira era de que minha cabeça iria explodir de tanto que latejava. Meus olhos lacrimejavam muito e espirros eram um atrás do outro. Deitei um pouco na minha cama depois de tomar o chá de camomila com um analgésico. Tremendo de frio, peguei um cobertor e liguei a TV. Com o controle remoto na mão, eu passava de canal o tempo todo, até que acabei adormecendo com o efeito do remédio. Embaixo daquele cobertor quentinho eu dormia bem gostoso, até ser acordado pelos latidos da minha cachorra com a chegada dos meus pais. Misturado ao som de passos ouvi a voz da minha mãe dizendo: -Ai que canseira... Deixa eu ir tirar essa roupa e depois lavar essa pilha de louça... Quase gritando, meu pai completou: -Olha o tanto de louça suja e ninguém tem coragem de lavar... -O Thiago, como você pode ver, está na rua. -E o marmanjo do Fernando? Não faz nada o dia todo, só fica dentro de casa... -O Fernando não anda bem, Vitor. -Frescura... Não quero nem saber, se até dezembro ele não arrumar um emprego, em janeiro vai trabalhar comigo no bar, não vou criar filho vagabundo dentro de casa. Mesmo que seja por um momento de fúria, ouvir aquilo de um pai dói, fere, magoa, marca. Meu peito apertou e as lágrimas começaram a descer sem que eu pudesse controlar. Suas palavras ficaram martelando em minha cabeça. Não estava em meus planos trabalhar com meu pai, pois sua arrogância insuportável o afastava de todos, inclusive da minha mãe. Era sempre assim. Eu poderia contar nos dedos às vezes que meu pai proferiu um elogio a meu respeito. Sempre seco e prepotente, não só comigo, porém, era algo que me entristecia demais, pois crescer sendo desprezado pelo próprio pai reflete psicologicamente em nosso futuro. No outro dia acordei cedo. A partir daquele diz eu decidi que iria tomar um outro rumo para minha vida. Peguei minha toalha e fui pro banheiro tomar um banho pra tirar o sono, antes de sair para procurar um emprego. Enquanto a água caia em minhas costas, eu chorava ao relembrar as palavras duras do meu pai na noite anterior. Não entendia o por quê ele me tratava daquele jeito. Eu nunca havia feito nada que o fizesse se envergonhar de mim, tirava notas boas na escola - e modéstia à parte - eu era um filho exemplar. Às vezes, a sensação era como se eu caísse dentro de um buraco e um caminhão de terra me cobrisse, sufocando-me pouco a pouco. 6


Lágrimas se misturavam à água que descia pelo meu corpo, enquanto passava xampu em meu cabelo e prometendo a mim mesmo que iria provar ao meu pai que eu não era nada daquilo que ele me chamava. A caminho do quarto, cruzei com minha mãe no corredor do quarto, que ao me ver saindo de toalha tão cedo perguntou: -Fernando... Aonde você vai? Pensando em uma desculpa rápida respondi: -Eu... Estou indo à dermatologista... -Ah... Preferi não contar a verdade por enquanto. Achei melhor dar a notícia só quando estivesse empregado, pois não queria ouvir de ninguém - principalmente do meu pai frases pessimistas que me deixassem pra baixo. Saí de casa antes do dia clarear. Tranquei a porta e ao pisar na calçada pensei positivo. No caminho até o metrô fui planejando meu futuro. Minha vontade era de poder morar sozinho e ter minha liberdade, receber quem eu quisesse em casa, sem ter que ficar dando satisfações dos meus atos. Chegando na estação, quase não acreditei quando tive que pegar uma fila enorme para comprar bilhete. No meu bolso só havia meus documentos e o dinheiro contado para ir e vir, pois era o que havia sobrado de troco do dia anterior, quando fui ao curso de inglês. Depois de passar quase quarenta minutos na fila pra comprar bilhete, tive que pegar uma outra fila pra passar pela catraca. Lá se foram mais quinze minutos até chegar à plataforma. Eu não gostava de pegar metrô na parte da manhã, porque além de ser cheio, é muito desagradável viajar amassado igual sardinha em lata. Sem contar que as pessoas são muito sem educação. Empurram a gente na pressa de entrar e acabam nos machucando. Tudo bem que têm pessoas que necessitam chegar logo no trabalho, mas devemos ter a consciência de que vivemos em uma civilização, sendo assim, cada um deve respeitar o espaço do outro para o bem estar de todos. Com o fluxo muito alto de pessoas querendo embarcar para o mesmo sentido ao mesmo tempo, o metrô se torna mais lento, sendo assim, atrasando ainda mais nossa vida. Depois de quase duas horas tentando chegar à agência de empregos, finalmente consegui. Como se já não bastasse, tive que pegar uma fila enorme na porta, para completar bem o meu dia. Caminhei até o final da rua onde começava a fila e fiquei aguardando a distribuição de senha. A manhã estava um pouco fria. Sentei-me no canto da calçada enquanto o vento gelado cortava meu rosto. Ali parado - de braços cruzados - eu via os ambulantes passando de um lado para o outro, vendendo chocolate quente, bolo, pão de queijo. Minha barriga chegava a doer de tanta fome, mas eu não tinha nem um centavo no bolso para comprar um pedaço de bolo se quer, assim como muita gente daquela fila. Peguei a senha de número 1314. Esfregando os braços entrei no galpão de espera. No relógio da entrada já passavam dás 09h00. Sentei-me em uma cadeira branca de plástico que ficava enfileirada com várias outras, enquanto ouvia um radinho de pilha que eu levava no bolso. No teto havia alguns altos falantes que ficavam informando a todo tempo sobre algumas vagas remanescentes, intercalada com a chamada das senhas. Meus olhos já estavam pesados de sono. De braços e pernas cruzadas, acabei cochilando enquanto aguardava meu número ser chamado.

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Minha barriga doía de fome e meus músculos tremiam de frio. Assim permaneci até ouvir chamarem a senha de número 1314. Até que enfim eu seria atendido, pelo menos era o que eu pensava. Junto com outras pessoas, fui levado até uma outra sala dentro do prédio, onde fiquei aguardando por mais um bom tempo antes ser chamado. Nessa outra sala havia TV e ar condicionado, tornando o ambiente mais agradável, diferente do clima onde eu estava anteriormente. Olhei no relógio e já passada dás 12h00. A cada minuto que passava, minha barriga doía ainda mais, roncando desordenadamente de fome. Esperei por mais uma hora até ser chamado para fazer o cadastro. -Bom dia! -Bom dia! -É a primeira vez que você vem aqui? -Sim. -Então vamos fazer seu cadastro, ta bom? -Tudo bem. -Empresta pra mim sua carteira de trabalho, RG e CPF? -Deixa eu pegar... Ta aqui. -Eu vou te fazendo algumas perguntas e você vai me respondendo pra eu registrar aqui, tudo bem? -Ok. A garota que me atendeu era bem simpática e muito atenciosa, além de ser educada e paciente. Geralmente essas pessoas nos atendem muito mal e com estupidez - mas ela foi diferente - ainda bem. Respondi algumas perguntas básicas como endereço, telefone, escolaridade, entre outras. Depois de efetuado o cadastro, ela me devolveu os documentos e começou a procurar uma vaga no sistema de acordo com meu perfil. -Prontinho Fernando, aqui estão seus documentos... -Obrigado! -Agora eu vou fazer uma busca pra ver se encontro uma vaga no seu perfil. -Uhum. -Vamos ver... Olha Fernando, tem uma vaga de teleoperador pra suporte à internet, te interessa? Quando ela falou que havia uma vaga de emprego para mim eu fiquei feliz da vida. -Sim! -Vou imprimir então a carta de encaminhamento para você ir pro processo seletivo. -Ta bom... Quando vai ser? -Hoje mesmo... às 14h00 no 9º andar... Tudo bem pra você? -Sem problemas. Entregando-me um envelope ela falou: -Então é só você subir lá e entregar esse papel... -Ok. Muito obrigado! -Por nada. Boa sorte, hein Fernando. -Valeu. Subi as escadas feliz da vida, passando por cima dos dizeres do meu pai e provando que eu não era nada daquilo que ele havia nomeado. De volta ao pátio, sentei-me em uma cadeira esperando dar o horário para passar pela seleção.

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Lá fora o clima já havia esquentado. Já não ventava mais e o sol tímido às vezes aparecia. À minha frente havia uma lanchonete e o cheiro de pão de queijo que vinha de lá fazia meu estomago roncar. Minha ansiedade era tanta que o tempo parecia não passar. Junto comigo haviam pessoas de vários tipos - todas com o mesmo objetivo que era encontrar um emprego. No Brasil, é grande a preocupação dos trabalhadores, dos sindicatos, das autoridades e dos estudiosos de problemas sociais, enquanto o IBGE fala em taxa de 12%, a Fundação Seade/Dieese fala em 18% na região metropolitana da Grande São Paulo. A verdade é que o país tem hoje, em qualquer família alguém desempregado, essa é uma realidade que está muito próxima de cada um dos brasileiros. (LIBRARY/ REFORMA, 2006: 21)

Minha fome só fazia aumentar. Não via a hora de chegar em casa e almoçar - até tontura eu já estava começando a sentir. Nunca havia passado por uma situação como aquela. De certa forma me senti humilhado, um lixo, um ninguém. Tive vontade de chorar ao ver uma criança passando na minha frente mordendo um cachorro quente, sendo que eu não tinha dinheiro para comprar um pra mim, e sendo filho de um pai comerciante com renda acima da média desse país. Finalmente o horário da seleção chegou. No hall do elevador já havia uma fila aguardando para receber a etiqueta e subir ao 9º andar. Uma infinidade de sonhos se passava pela minha cabeça, junto com a esperança de que aquela vaga estava destinada para mim. Depois que o funcionário terminou de entregar as etiquetas, passamos pela catraca, que era liberada por um segurança, em seguida fomos em direção ao elevador que ficava no final de um estreito corredor. Minha barriga gelava de ansiedade e roncava de fome. Perdida, uma garota que estava à minha frente começou a puxar assunto comigo, uma forma de disfarçar o nervosismo. -Você está indo pra seleção de banda larga? -Sim e você? -Também... Como você ficou sabendo dessa vaga? -Eu vim aqui hoje de manhã e me encaminharam... -Ah... -E você? -Uma amiga me avisou ai eu vim aqui... Ta com medo? -Um pouco... -Eu também. Qual seu nome? -Fernando e o seu? -Eliane. Olhando para o indicador de andar ela disse com o soar da campainha: -Nossa... Até que enfim o elevador chegou. Entramos no elevador e subimos calados até o 9º andar. Eu já estava suando frio, tamanho era o medo que eu estava de fazer algo de errado e não ser selecionado.

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Assim que saímos do elevador começamos a procurar a sala 3, onde aconteceria a seleção. Segurando um papel na mão a Eliane falou: -Ela falou pra procurar a sala 3... -Deve ser no final do corredor... Porque aqui é a 1... Apontando com o dedo indicador ela disse: -É ali. Caminhamos até o final do comprido corredor em direção a sala 3. Eram todas separadas por divisórias com números nas portas e painéis de vidro nas paredes. Sentei na cadeira ao lado da entrada e ao meu lado se sentou a Eliane, que nervosa não parava de tremer. Pouco tempo depois a selecionadora chegou, recolhendo as cartas de encaminhamento. Deixei a minha sobre sua mesa e voltei para meu lugar. Um frio na espinha corria de cima a baixo por ser o primeiro. Não sei por que quedas d’água ela escolheu justo a mim pra começar a entrevista: -Fernando Viana? -Eu... -Pode sentar aqui. -Obrigado. A saliva passou rasgando pela minha garganta. -Tudo bem com você, Fernando? -Tudo sim! -Já trabalhou com telemarketing alguma vez? -Nunca. -Certo... Vou pedir para você ler essas frases aqui pra mim... -Ta certo. Ela tirou uma folha de dentro de uma pasta azul com várias frases em formato de trava-língua e pediu que eu lê-se algumas. -Lê pra mim as frases 1, 3, 4 e 6? -Ok... 1- Cliente chato é um problema... Confesso que fiquei com medo de gaguejar no começo, pois nessas horas eu sempre metia os pés pelas mãos e acabava me ferrando. As frases não eram difíceis, mas se eu ficasse nervoso ou falasse muito rápido, acabaria falando "pobrema", "resistro"... Foi o que aconteceu com uma garota que foi chamada depois de mim. Conjugar corretamente os verbos e concordar plural com singular já é uma questão de costume. Embora a forma correta seja ensinada na escola, grande parte das pessoas têm a cultura de comer palavras, pois crescem ouvindo os pais falarem dessa forma e acabaram absorvendo o linguajar, acreditando que seja o correto. Rabiscando minha ficha ela falou: -Muito bem, Fernando. Agora é só aguardar no seu lugar... -Obrigado! Ainda com as pernas mole, voltei para a cadeira onde eu estava sentado anteriormente. Logo em seguida a Eliane foi chamada para ler aquelas frases idiotas, denominadas por eles de "teste de dicção". Pelo que observei, ela se saiu muito bem, tirando o fato de ter derrubado a pasta da selecionadora no chão ao se levantar da cadeira. Enquanto outras pessoas faziam o teste, eu e a Eliane arriscávamos alguns palpites: -Eai... Você acha que foi bem? -Não sei... Ela fez uma cara de indiferença...

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Segurando a risada ela comentou: -Pior foi eu que derrubei a pasta dela. -Nossa, até eu senti vergonha por você. -Hahaha... Nem me lembre. Depois de ficar quase uma hora aguardando todos fazerem o teste, a selecionadora informou que teríamos de fazer outra prova, correspondente a segunda fase do processo seletivo. -Eu vou passar essas duas folhas pra vocês... Respondam na segunda folha em branco... Enquanto cada um pegava a sua e passava o restante para trás, ela continuava a falar: -Não se preocupem que a prova não é difícil... É necessário uma nota mínima de 7 pontos para a vaga de "suporte banda larga". Quem não atingir os pontos necessários, não tem problema, nós indicaremos pro departamento de contas. Quando ela falou de prova, eu gelei. Esse negócio só serve mesmo pra liberar os candidatos distraídos. O pior de tudo é que ninguém utiliza aquele monte de babaquices que eles costumam perguntar nas provas. Se não fosse isso, muita gente teria a oportunidade de mostrar seu profissionalismo e potencial desempenhando sua função. Peguei uma folha do questionário e passei o resto para trás. Não tínhamos muito tempo para fazer a prova, então me concentrei ao máximo para terminar dentro do prazo e depois poder rever as respostas. O clima dentro da sala era de nervosismo total. Às vezes alguém dava uma espiada na prova do lado, mas tudo na maior discrição para não ser pego pela selecionadora. Naquele momento eu relembrei dos meus tempos de escola. As épocas de provas eram aquele tumultuo, onde todo mundo escrevia a cola na carteira, espiava a folha do colega e seguiam o dilema: "Quem não cola, não sai da escola". Assim que terminei minha prova, levantei da cadeira e a coloquei sobre a mesa da Tânia, que distraída nem percebeu. Voltei para o meu lugar e fiquei aguardando todos terminarem, estralando os dedos, roendo as unhas, tamanho nervosismo. Eu acho que essa é uma das piores partes de uma seleção, onde você fica esperando pelo resultado por alguns minutos que custam passar, parece durar uma eternidade. Caminhando entre o pessoal a Tânia falou: -Vão passando as provas pro colega da frente, por favor... Atrás de mim estava a Eliane, que ao me entregar as provas comentou: -E ai, foi bem na prova? -Humpft... Bem mal, que prova difícil era aquela? -Meu... Estava muito difícil... Nessa hora, um rapaz que estava ao lado da Eliane entrou na conversa, e juntos começamos a comentar sobre as questões: -Vocês acharam a prova difícil? -Demais. -Eu também achei. Coçando o olho, ele comentou: -Com certeza eu fui mal... Meu nome é Roberto, prazer! -Meu nome é Fernando. -Eu me chamo Eliane. Ficamos os três conversando por um bom tempo, até divulgarem o resultado. O Roberto era um cara alegre, divertido e bem falante. A Eliane também, falava pelos 11


cotovelos e quando os dois se juntaram para conversar, eu nem tive chance de interromper, acabei ficando com o papel de expectador.

Depois de quase vinte minutos, a Tânia, que era uma das selecionadoras, começou a chamar um por um para dar o resultado das provas. Como eu fui o primeiro a terminar, acabei sendo o primeiro a ser chamado: -Fernando Viana? -Eu... Entregando-me a folha, ela comentou: -Fernando, você não atingiu a pontuação necessária para as vagas de suporte... Sua média foi 6,5... -Por meio ponto? -Pois é, mas não tem problema... Você continua concorrendo à vaga para "contas", que foi para a qual você foi encaminhado desde o início. -Então pra que a prova? -É porque tem algumas vagas pra suporte que precisam ser preenchidas. Aqueles que conseguirem atingir a pontuação, nós encaminhamos... Se o candidato não passar, ele continua concorrendo à outra vaga... -Ah... -Mas o salário é o mesmo. -Tudo bem. -Então... É só você aguardar mais um pouco, já, já aviso quem vai pra dinâmica na semana que vem. -Obrigado! Voltei pro lugar onde eu estava, e fiquei aguardando por mais um tempo ela avisar quem passou para a dinâmica da semana seguinte. Claro que todos dentro daquela sala queriam ouvir uma resposta positiva, porém, foram apenas três pessoas que passaram na prova, o que deixou as outras revoltadas. -Calma pessoal... Tem cem vagas pra preencher... Não se preocupem que têm vagas pra todo mundo. Ouvir que havia mais de cem vagas a serem preenchidas, tirou um peso enorme das minhas costas. Pelo menos uma delas eu iria fazer de tudo para preencher, e chegar em casa esfregando na cara do meu pai, fazendo ele engolir tudo que havia falado injustamente a meu respeito. Pensando alto, sussurrei: -Nossa... Eu preciso estar entre esses cem selecionados...

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Cruzando as pernas, a Eliane comentou: -Minha amiga disse que não é difícil... -Tomara. Retornando à sala com uma lista na mão, a Tânia pediu atenção: -Pessoal... Os nomes que eu chamar, é que estão dispensados... Aqueles que eu não chamar, por favor, aguardem na sala... Nessa hora comecei a ranger os dentes. Minha mão ficou gelada. Senti um frio na espinha e no umbigo, ao mesmo tempo em que suava frio. Só fiquei em paz quando a Tânia falou o último nome, e dentre todos que ela chamou, o meu não estava. Cutucando meu ombro, a Eliane perguntou: -Chamou seu nome, Fernando? -Não... E o seu? -Também não. -Chamou você, Roberto? -Não. -Então eu acho que passamos. -Também acho. Ficaram poucas pessoas na sala junto com a gente. O tempo todo eu mantive a pose, e me segurei para não manifestar a alegria em que me encontrava, pois por dentro eu estava pulando, gritando de felicidade. Encostando a porta, a Tânia falou sorrindo: -Bom, parabéns para vocês que ficaram!... -Obrigado. -A partir de quarta-feira, vocês irão começar a fazer o treinamento na empresa... Todos que ali estavam murmuraram de contentamento. -Esse treinamento não é remunerado e pode ser eliminatório... Depois desse treinamento, vocês irão fazer o exame médico e levar a documentação no RH, para depois iniciarem o treinamento do produto no prédio onde vocês irão trabalhar... Levantando a mão, uma das meninas que sentava no fundo da sala perguntou: -Por quanto tempo vai ser esse treinamento de produto? -O treinamento do produto é de vinte dias... Nos primeiros quinze dias, vocês vão bancar o vale transporte de vocês, depois a empresa paga o retroativo até o final do mês... Curiosa, a Eliane já foi logo perguntando: -São remunerados esses vinte dias? -Sim... A partir do momento em que vocês forem registrados, já vão receber como funcionários... O treinamento começa na segunda feira às 09h00, anotem o endereço... Contente foi pouco. Fiquei hiper feliz por ter essa oportunidade de trabalhar em uma empresa multinacional.

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Finalmente minha vida estava começando a se arranjar, e dali pra frente, era só lutar pelos meus sonhos. No Brasil, apenas 36% dos jovens entre 15 e 24 anos têm emprego, outros 22% já trabalharam, mas estão desempregados atualmente. Em média os jovens demoram 15 meses para conseguir o primeiro emprego ou uma nova ocupação nas regiões metropolitanas, no total 66% deles precisam trabalhar porque todo o seu ganho, ou parte dele, complementa a renda familiar que não é suficiente para manter toda a família. (UOL, 2006: 01)

Os dias que antecederam ao treinamento pareciam não passar. A ansiedade tomava conta de mim. Não via a hora para que chegasse logo a segunda feira. Na noite anterior, nem consegui dormir direito. Rolei a noite inteira na cama, batendo a cabeça várias vezes na parede e tentando me imaginar desfilando com o crachá pela empresa. Por volta de 07h00 levantei a todo vapor. Peguei uma toalha e fui direto tomar um banho quente antes de sair. Procurei não enrolar muito, pois queria sair antes que meus pais acordassem, para não ter que ficar respondendo aos questionamentos idiotas do meu pai, e sem precisar ouvir suas palavras de incentivo que mais me deprimiam do que ajudavam. Saí da estação do metrô e comecei a procurar pela rua que estava anotada no papel. Depois de perguntar para três pessoas, finalmente achei. Atravessei o Viaduto do Chá apressado, com medo de me atrasar. Quando cheguei em frente ao prédio, havia muita gente aguardando. Perguntei as horas para um garoto que estava sentado em um degrau da escada e me acalmei por saber que ainda era cedo. O treinamento começaria às 09h00 e faltavam mais de trinta minutos. Logo depois de mim chegou o Roberto com um caderno na mão. Ao me ver, veio até mim me cumprimentar. Logo atrás dele avistei a Eliane, que parecia estar mais perdia que cego em tiroteio, no meio daquele monte de desempregado aglomerado. Batucando em seu caderno o Roberto disse: -Bom dia! -Bom dia. -Faz tempo que você chegou? -Alguns minutos apenas. Apoiando a mão direita em sua testa, a Eliane exclamou: -Bom dia, Fernando! -Bom dia, Eliane. -Será que esse pessoal todo é pra treinamento? -Acho que não... Tem alguns com crachá da empresa no pescoço... -É... Enquanto esperávamos, ficamos conversando sobre algumas experiências anteriores de trabalho. Morremos de rir com o Roberto falando de seu último emprego em uma loja de shopping.

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Já eram quase 10h00 quando o segurança chamou todos e pediu para que fizéssemos uma fila. Portando uma lista nas mãos, um a um foi sendo chamado pelo nome. Após responder presença, entramos no prédio e seguimos para a sala de treinamento. Fiquei um pouco perdido andando pelos corredores que mais pareciam um labirinto, com curvas e saídas para todos os lados. Ao encontrar a sala, escolhi um lugar bem no meio, para ter visão de todo o ambiente. As cadeiras eram estilo colegial, com braço apoio para escrever do lado esquerdo e assentos de couro preto, bem macio. Tudo naquela sala cheirava novo, inclusive as paredes com a nova pintura. Enquanto esperava, fiquei observando algumas pessoas. Não só eu, mas todos daquela sala estavam ansiosos e apreensivos, afinal, todos tínhamos um objetivo em comum, que era conseguir aquele emprego e aliviar o lado financeiro. Um silêncio mortal brotou dentro daquela sala quando uma moça cheio de pacotes nas mãos cruzou a porta e se apresentou como Cíntia. -Bom dia pessoal! -Bom dia! -Nossa... Mas que "Bom dia" desanimado... -Bom diaaaaaaaaaaaaaaaa... -Opa, começou a melhorar... Sua brincadeira logo de início deixou o pessoal mais descontraído. Enrolando o cabelo, ela começou a falar: -Galera... Meu nome é Cintia, ficarei com vocês por esses 3 dias de treinamento da empresa que também é eliminatório... Procurem não atrasar, não faltar, tudo isso será avaliado nesse período, portanto cuidado. À medida em que ela ia interagindo conosco, foi nos deixando mais à vontade. O seu jeito meigo de menina e divertido, ia nos tirando o medo e tensão. -Galerinha, eu vou passar pra vocês algumas informações a respeito da empresa, tudo bem? -Sim. -Cada prédio da empresa nós chamamos de "site"... O site que vocês irão trabalhar é o Oeste 1, um prédio bem alto, azul, todo espelhado próximo do metrô... Alguém já viu? Sorrindo, uma das meninas levantou a mão. -Eu... -Bonito, né?... Bom, a escala de trabalho de vocês será de seis por um, com quinze minutos de pausa lanche e cinco minutos de pausa particular... Vocês receberão um cartão lanche igual esse aqui... Com ele, vocês vão poder comprar lanche nas máquinas da empresa que ficam dentro do breack de cada andar... O beneficio do cartão pode ser flexibilizado, sendo cinqüenta por cento do valor no cartão lanche e cinqüenta por cento no cartão Vale Alimentação. Levantando a caneta o Roberto perguntou: -Mas isso é opcional? -Sim... No "check-list" que daqui a pouco vou passar pra vocês, tem a opção de flexibilizar o benefício ou deixar tudo no cartão lanche... O salário de vocês será aquele passado na entrevista. Estão todos cientes? -Sim!... E o vale transporte? -O vale transporte, a empresa paga em dinheiro até duas conduções, ou seja, duas ida e duas volta, que será depositado em conta corrente junto com o salário, todo último dia útil do mês... 15


Naquele dia a Cíntia basicamente só falou da empresa e dos benefícios que iríamos receber, nos entregou a lista de documentações necessárias e nos encheu de esperanças.

Embora eu praticamente já fosse funcionário da empresa, só me sentiria seguro quando carimbassem minha carteira com o registro da empresa, deixando de ser mais um jovem desempregado nesse país. Chegou o dia do treinamento de produto no site Oeste 1. Saí de casa duas horas antes com medo de me atrasar. Meu horário de treinamento seria dás 16h30 às 20h30. Claro que eu adorei, pois não teria que acordar cedo. Chegando na recepção do prédio, encontrei o Roberto na fila para pegar o crachá provisório. Logo depois de mim chegou a Eliane, toda perdida como sempre. -Boa tarde! -Oi Eliane, tudo bem? -Tudo e você? -Beleza, Fernando? -Beleza e você, Roberto? -De boa. -Vai ser em qual andar esse treinamento? -Décimo terceiro andar, Ala C. Parei em frente uma web can e tirei uma foto para receber o crachá de visitante, para poder cruzar a catraca e entrar no prédio. Depois de liberarem a "alma", subimos até o décimo terceiro andar, onde seria realizado o treinamento. Entramos por uma porta que ficava de frente à uma copa, cujo aviso na parede dizia ser a Ala A. Perguntamos para uma garota que passava pela operação e ela nos indicou onde ficava a Ala C. Seguimos pelo curto corredor, passando pela Ala B até chegar nas P.As (Posição de Atendimento) reservadas para nós. Colocando o caderno frente a boca, o Roberto comentou: -Nossa... O que é isso, um cemitério? -Hahaha... A Ala C parecia estar inutilizada há algum tempo, pois não eram todas as P.As que haviam computador, e as que tinham, na maior parte estavam quebradas. Algumas máquinas nem ligavam. -Você vai sentar onde, Eliane? -Posso ficar aqui? -Pode. Começou a chegar um monte de gente e ir ocupando as P.As do fundo. Como todas eram bem espaçosas, cada P.A era ocupada por duas pessoas. Pouco tempo depois chegou 16


um rapaz com um projetor de slides e começou a montá-lo em frente uma tela que estava armada à nossa frente. Sorrindo ele saudou: -Boa tarde, pessoal! -Boa tarde! -Meu nome é Douglas e sou eu que vou dar treinamento pra vocês de conexão... Antes de começar, vou passar a lista de presença, vocês devem preencher com o nome completo e assinar na frente... Só assinem na data de hoje, por favor... E procurem não rasurar. Começou a passar a lista de um por um, iniciando pela Karen que estava bem na ponta. Enquanto o pessoal ia assinando a lista, o Douglas falava sobre a entrega de documentos que seria adiada para o meio da semana. Quando chegou na vez da Eliane assinar, logo percebi que algo de errado estava acontecendo. Disfarçadamente estiquei o olho pra folha que estava na mesa dela, que sem graça me olhou. -Já assinou, Eliane? -Sim... -Mas hoje não é dia 06, é dia 05. -Ai... Fala baixo... -E agora? Vão perceber... -Pede outra folha para o Douglas... -Eu não, pede você. Batendo a caneta na P.A o Vinícius falou: -Eu quero assinar a lista, vocês vão demorar? -Calma... A Eliane preencheu a data errada... Nessa hora quase todo mundo ruborizou, chamando a atenção do Douglas que passava o slide na tela: -O que acontece? -A Eliane preencheu a data errada na folha... -Pessoal, tomem cuidado com essa folha, porque elas são controladas... Não temos muitas pra ficar passando. Tivemos que assinar outra folha, e dessa vez quem começou a assinar foi a Eliane, para não corrermos o risco dela errar depois que todo mundo já tivesse assinado e ter que refazer tudo outra vez. Durante aquela semana, aprendemos quase tudo sobre conexão e de como o serviço de banda larga funcionava no computador. Além disso, aprendemos como operavam os cabos de telefonia em São Paulo e também a mexer em alguns sistemas da empresa. Na sexta feira acordei um pouco desanimado e cansado. Parecia que um trator havia passado por cima de mim. Fui direto pro banheiro tomar um banho morno, para ver se relaxava um pouco. Depois, almocei e fui para o treinamento forçado, pois estava sem nenhuma vontade de sair de casa. Logo quando cheguei na empresa, peguei o crachá provisório e subi para o décimo terceiro andar. Chegando na Ala C não havia chegado ninguém e o pessoal do treinamento da tarde já havia ido embora. Sentei na última P.A do corredor e enquanto isso fiquei acessando meus e-mails na internet. Não demorou muito e a Eliane chegou: -O que você está fazendo, Fernando? -Vendo meus e-mails. 17


-Tudo bem com você? -Tudo. E com você, Eliane? -Tudo também... Só chegou a gente? -Acho que sim, fui o primeiro. -Você vai ficar aqui? -Vou, quer sentar nessa cadeira? -Guarda aí pra mim. Vou beber água e já volto. -Ta bom. Continuei checando meus e-mails, até que começou a chegar o pessoal. Fechei as janelas da internet e fiquei aguardando o treinamento começar. -Boa tarde, pessoal! -Boa tarde! -Vou passar a lista de presença e vocês já vão assinando que hoje tenho bastante coisa pra passar para vocês. -Sim. Abri meu caderno e comecei a anotar tudo que ele falava resumidamente. Meu braço já estava até doendo de tanto escrever. Não via a hora de chegar o horário da pausa para descansar um pouco e comer, pois eu estava morrendo de fome. Desligando o projetor de slides o Douglas falou: -Galera, vamos fazer uma pausa agora... E daqui vinte minutos a gente continua. Suspirando, falei aliviado: -Até que enfim, não agüentava mais. Fechando seu caderno a Eliane perguntou: -Você anotou tudo? -Sim. -Quantas folhas deu? -Seis. -Depois você me empresta? -Claro... Você vai descer até o TS? -Vamos? -Vamos. Mas antes, deixa eu ir até o breack esquentar o lanche no microondas. -Também quero esquentar o meu... Fomos eu e a Eliane até o breack e ao chegar, quase nem conseguimos entrar, pois estava lotado. Assim que esquentamos nosso lanche, descemos até o TS (Térreo Superior) para comer e respirar um pouco de ar. Dando uma mordida no sanduíche a Eliane comentou: -Eu não entendi nada do que ele passou hoje. -Nem eu, foi tudo tão rápido... -A gente aprende na prática quando entrar na operação. Assim que voltamos da pausa meu celular começou a tocar. Atendi rapidamente para não chamar atenção, pois não poderia usar celular no horário de treinamento: -Alô? -Fala viado, tudo bem? -Tudo e você, Rafa? -Também... Onde você está? -Estou no treinamento... -Que treinamento? 18


-Humpft... Eu não te falei que arrumei um trampo? -Mas que viado... Nem me falou nada, né? -Ué... Eu pensei que tinha te contado. -Pra mim não. Enfim... Te mandei um torpedo no celular, você viu? -Não recebi. -Caramba Fernando, mas você anda lesado mesmo. -Você ligou pra me xingar? -Claro... Que não. Liguei pra saber se você vai comigo na balada hoje. -Hoje? -É... Hoje. -Você sabe que eu não curto balada de sexta feira... -Pode parando... Nós vamos sim pra balada hoje. -Humpft... -Que horas você sai daí? -O treinamento termina às 20h30. -Bom, agora são 19h00, até você chegar na sua casa já vai ser umas 21h00, a balada começa a ficar boa lá pelas 00h00... -Pode parar. Me liga depois pra eu confirmar se irei ou não. -Mas... -Agora eu não posso falar, tchau. Desliguei antes que o Douglas visse e me chamasse atenção por estar falando ao celular, aliás, ele nem deveria estar ligado no horário do treinamento, mas como eu usava também para ver horas, acabava deixando no silencioso. O Rafael era meu melhor amigo. Nos conhecemos por intermédio de um conhecido meu que era namorado dele. O namoro deles acabou e nós continuamos amigos. Sempre tendo idéias malucas e me incluindo nelas. Essa mania que ele tinha de me chamar pra sair de última hora, me deixava louco de raiva. Não via a hora daquele treinamento acabar. Tudo que o Douglas falou naquele dia, entrou por uma orelha e saiu pela outra. Quando deu 20h30, fui um dos primeiros a pegar o elevador e ir embora, pois já não agüentava mais. Deixei o prédio louco para pegar logo o metrô e chegar em casa. Quando eu estava no meio do caminho, meu celular começou a tocar. Só poderia ser o Rafael outra vez, me chamando para ir a balada com ele. -Alô? -Nando... Te encontro 23h30 na catraca do metrô. -Rafael, eu já... -Tchau, Fernando. -Eu já disse que não vou. Se fazendo de coitado, ele tentava me convencer: -Amigo, por favor, eu preciso que você vá comigo... -Humpft... O que acontece? -Agora não dá pra explicar, te conto depois, ok? -Tudo bem. -Sabia que poderia contar com você. -Amigos são pra essas coisas... -Por isso que eu te amo.

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-Tchau, Rafael. -Até daqui a pouco. Chegando em casa, subi até meu quarto para deixar o caderno e a apostila do treinamento. Peguei minha toalha e fui para o banheiro tomar um banho bem rapidinho. Já era quase 23h00 e meus pais ainda não havia chego. Morto de fome, tive que ir até a cozinha preparar algo pra comer. Olhei dentro dos armários e não havia muita opção. Acabei escolhendo a mais fácil que era macarrão com um molho que havia congelado no freezer. Enquanto a água para o macarrão esquentava, o molho descongelava no microondas. Mandei um torpedo para o Rafael dizendo que iria me atrasar um pouco. Depois de jantar e arrumar toda a bagunça que havia feito na cozinha, escrevi um bilhete para minha mãe dizendo que passaria a noite fora, o pendurando na porta da geladeira. Quando cheguei na estação do metrô, avistei o Rafael andando de um lado para o outro, nervoso com meu atraso e bufando de raiva. Com certeza eu havia estragado algum plano que ele tinha em mente. Cruzei a catraca com o aviso do alto-falante: “Atenção, informamos que a partir desse momento, todas as nossas operações estão encerradas. Boa noite!” Batendo o pé direito no chão, o Rafael falou: -Mas que demora... -Pensou que eu não vinha mais? -Eu marquei com o garoto às 23h30, olha que horas são? -00h40... -Pois é, mais de uma hora de atraso. -Vai ficar brigando comigo? -Humpft... É melhor a gente ir logo... -Também acho, antes que eu me arrependa e volte pra casa. -Voltar pra casa sem metrô? -Pra isso existe táxi. -Ta bom, vamos parar de brigar. -Só se você me pedir desculpa. -Humpft... Desculpa. -Agora sim, vamos. Subimos a escada rolante correndo e seguimos em direção à balada. Caminhávamos em passos largos para ganhar tempo. A lua estava linda, e o céu todo estrelado. Já as ruas estavam quase desertas. Embora São Paulo funcione vinte e quatro horas, seu movimento era mínimo. De longe avistei a fila, que ia da porta da boate e chegava até a esquina. Era desanimadora. Pensei em desistir na mesma hora. Esse negócio de pegar fila não era comigo. -Você já viu o tamanho da fila para entrar? -Caralho! -Humpft... Você tem mesmo certeza que quer entrar aí?

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-Você não vai me deixar na mão agora, vai? -Claro que não... Mas vontade não me falta. Entramos no final da fila e ficamos em pé, aguardando aquela multidão consegui entrar e chegar nossa vez, o que praticamente estava parecendo ser impossível, pois a fila quase não andava. O Rafael não se continha de ansiedade para encontrar o garoto, no qual havia marcado o encontro. A cada dez minutos ele ligava para o moleque, mas o telefone só dava ocupado. Nervoso, ele resmungou: -Mas que porra... -O que foi? -O telefone dele só dá ocupado. -Deve estar fora de sinal, tenha paciência... -Ah ta... Se lá dentro não dá sinal, como vou conseguir falar com ele? -Mande um torpedo... Se por ventura ele passar em algum lugar que dê sinal, poderá receber a mensagem e vai saber que você está à sua procura... -Boa idéia... O que seria de mim se não fosse você? -Sem exageros. Em menos de dez minutos após ter enviado a mensagem, o garoto retornou para o Rafael, que desesperado para atender só deixou tocar uma vez: -Alô?... Estou na fila esperando pra entrar... Tudo bem... Te encontro lá... Espera por mim. Beijo! Sorrindo perguntei: -Aliviou a alma? -Nossa... Não vejo a hora de encontrar com ele... -Logo chega nossa vez, se acalme. A impressão que dava, era que o Rafael estava na seca total, ou então o garoto deveria ser muito bonito para deixá-lo naquela gastura de dar agonia. Depois de ter esperando por um longo tempo na fila, conseguimos entrar. A casa estava lotada. Mal dava pra andar, num descuido que dei acabei perdendo o Rafael de vista. Claro que ele foi ao encontro do garoto com quem ele estava flertando, e me largou sozinho no meio daquele monte de gente. Aquela boate não era muito grande, o que a tornava desconfortável, principalmente na questão do ar condicionado, que parecia não existir naquele ambiente, tornando o mezanino uma sauna de tão quente. Meia hora depois eu já havia me arrependido de ter saído de casa. O pior era que para ir embora, seria uma tarefa quase impossível, pois não conseguia dar nem um passo a diante, de tão cheio que o lugar estava. Transbordando de suor, parei no bar para me refrescar: -Por favor... Vê uma água? -Com ou sem gás? -Com gás... Obrigado! Passei o tempo inteiro ali, próximo aa pista. Bebi três garrafas de água de tanto que suei, mesmo estando parado. Um desespero começou a bater e uma vontade enorme de chorar me consumia. Se eu visse o Rafael na minha frente àquela hora, seria capaz de dar um soco em seu nariz, pra aprender a não fazer mais os amigos de palhaço.

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Por volta dás três da manhã o lugar começou a esvaziar. Finalmente um casal desocupou um banco próximo de mim, aproveitei para sentar e descansar minha perna, que já estava formigando e "gritando socorro". Encostei a cabeça na parede e borrifei um pouco da água no rosto, para dar uma refrescada. Fechei os olhos e quando estava quase pegando no sono, senti alguém batendo em meu ombro: -Eae Nando, não vai pra pista dançar um pouquinho? -Dançar?... Onde foi que você se enfiou que me deixou aqui sozinho? -Ué... Estava beijando na boca... -Estou vendo... Beijando na boca e bebendo todas, né? -Você é muito careta, bebe um pouco... -Sai pra lá com isso. Morri de vergonha com o vexame que o Rafael estava causando. Eu gostava muito dele quando estava sóbrio, pois quando ele bebia, deixava de ser gente. Segurando em seu braço eu falei: -Rafael... Vamos embora antes que eu me arrependa de ter te conhecido. -Fernando, calma. Eu ainda quero beijar a boca daquele carinha que eu to a fim... -Você ainda não beijou? Passou a noite inteira querendo ver o moleque... -Não estou falando desse, que por sinal também já beijei... Agora quero dar um beijo naquele ali. -Com esse bafo de cana, você espanta qualquer um... Vamos embora... No que eu peguei em seu braço para irmos embora, ele me empurrou com tudo em cima de um rapaz que estava sentado no banco atrás de mim. Ao cair, bati o braço na mão do garoto que segurava um copo com caipirinha de morango, derrubando tudo em sua camisa branca. Nervoso, briguei com o Rafael: -Olha o que você fez? Dirigindo-me ao rapaz eu falei: -Desculpa... -Não foi nada... O que me deixou com mais raiva, foi o Rafael ter me deixado falando sozinho e sair andando na maior naturalidade, resmungando, sem noção do que havia feito e me deixando na mão, mais uma vez. -Rafael volta aqui... Filho da puta... -Calma... -Que raiva desse maldito. -Por que vocês estavam brigando? -Porque eu quero ir embora e ele fica enrolando... Olha só como ficou sua camisa... Fala... 22


Quanto te devo? -Relaxa, não se preocupe com isso. -Ele me paga. -É seu namorado? -Bate na madeira... Sua amizade já me sai caro demais... -Hahaha. O Rafael tentou e conseguiu me irritar aquela noite, me fazendo chorar de nervoso e chamar a atenção das pessoas de uma maneira negativa. -Não fica assim não... -Humpft... Tentando amenizar o ocorrido, o rapaz perguntou: -Como você se chama? -Fernando. -Prazer Fernando, meu nome é Guilherme. Você mora onde? -Moro no Ipiranga. -Eu moro na Bela Vista, aqui próximo. -Que bom... -Se você quiser, eu te dou uma carona... Pra você não ir sozinho... -Imagina. -Deixa de bobagem, vai. Meu carro está no estacionamento aqui perto, não vai ser trabalho nenhum... Nessa hora o Rafael apareceu outra vez. Com a maior cara de pau, se intrometeu no assunto como se nada tivesse acontecido, o que me deixou mais irritado ainda: -O quê é que não vai ser trabalho nenhum? -Estou oferecendo uma carona para o seu amigo... -Obaaaaaa... Você pode me dar uma carona também? -Humpft... Rafael, não começa, pelo amor de Deus. Debruçando-se sobre o ombro do Guilherme ele falou: -Vou buscar minha jaqueta na chapelaria e fechar minha comanda. Não vão embora sem mim, rapazes. -Hahaha... Seu amigo é uma comédia. -Humpft... Ele só me faz pagar mico e prejuízos... -Relaxa, leve na esportiva. -Você fala assim porque não é com você. -Seu amigo já aceitou a carona, só falta você, agora. -Eu já derrubei a bebida na sua camisa, trabalho demais para uma noite só. -Não esquenta, amanhã eu compro outra camisa... -Humpft... Está bem... Se não for te incomodar, eu topo. -Deixa eu fechar minha comanda então... -Eu também preciso fechar a minha. -Vamos juntos... Subimos até o caixa e pegamos uma enorme fila. Depois que pagamos a comanda, deixamos a boate, e sem paciência nenhuma, ficamos esperando pelo Rafael na porta, que parecia ter esquecido de sair. Deveria ter entrado em coma alcoólico ou ficado sem dinheiro pra pagar as garrafas de bebidas que havia consumido. Esticando o pescoço em direção à porta o Guilherme perguntou: -Será que ele vai demorar? 23


-Não sei. Faz o seguinte, deixa que eu o levo até em casa, pode ir e obrigado pela intenção. -Pode parando... Seu eu disse que vou levar vocês, é porque eu to a fim. -A fim de quê? -Deixa pra lá. Feliz da vida chegou o Robson, abraçando-nos e perguntando: -Demorei, meninos? -Demais... -Já podemos ir se quiserem. -Você mora onde, Rafael? -Em Santana. -Você pode nos deixar no metrô mais próximo, Guilherme. -Nada disso, deixo vocês em casa. -Nos deixe próximo do museu do Ipiranga então. -Firmeza. Esperem aqui que eu vou buscar o carro... -Não demora, hein. -Rafael, cala essa boca, por favor. -Hahaha, deixa ele... Enquanto o Guilherme foi buscar o carro no estacionamento, eu e o Rafael ficamos aguardando na calçada, ao mesmo tempo pagando meus pecados com sua bebedeira. -Olha o Nando... Arrumou um “corpo” com carro... Não é fraco não, hein... -Rafael, pelo amor de Deus, fecha essa boca maldita... -Olha lá ele... E que carrão... Importado, banco de couro e tudo... -Tudo o quê? -Tudo que eu sonhei ter na vidaaaaaaaaaaaa... -Então pega pra você. -Não posso, você viu primeiro... Eu não seria um bom amigo se fizesse isso. O carro começou a buzinar. -Ele já está buzinando... -Eu escutei. -Então vamos lá. Fomos em direção ao carro, calados. Abri a porta da frente e levei um susto quando vi o Rafael tropeçar nas pernas de tão “mamado”. Colocando alguns CDs no porta luva, o Guilherme falou: -Fernando, fica no banco da frente para me ensinar o caminho. Sentando-se no banco traseiro, o Rafael resmungou: -Que preconceito é esse? Só porque eu bebi um pouquinho você acha que eu não conheço o caminho? -Não é isso... -Ignora o quê ele fala. -Onde você mora, Rafael? -Ele vai ficar na minha casa. -É... Hoje vou ficar na casa do meu amigão aqui, né Fe? -Humpft... É. -Mas quando quiser aparecer em casa... Já falei, moro em Santana... -Hahaha... Ok.

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Eu não sabia onde por a cara, de tanta vergonha. O pior era que o Guilherme estava se divertindo com a situação. Passei metade do tempo calado, já o Rafael não fechou a boca um minuto se quer. -Qual sua idade, Guilherme? -Eu tenho 25 anos, e você? -Tenho 20. -E você, Fernando? -Eu tenho 19. -Até que você não é muito velho, Guilherme. -Hahaha... Por que diz isso? -Porque o Fernando curte caras maduros... -Rafael, olha o mico que você está me fazendo pagar? -É verdade, Fernando? -Humpft... Sim. -Mas por que essa preferência por homens mais velhos? -Que assunto mais idiota... -Eu sou o contrário do Fernando, adoro um boyzinho com pele lisinha, novinha... -Hahaha... E por que você não namora, Fernando? -Talvez seja... Medo de sofrer. -O Fernando é um cagão. -Não fala assim dele... Por um lado ele tem razão. -Ui... Vai defender ele agora? -É o meu trabalho. -Como assim? -Eu sou advogado. -Uau... -Fernando, você tem certeza que não quer que eu te deixe em casa? -Não precisa, pode me deixar aqui mesmo. -Você quem sabe. -Vamos Rafael. -Valeu Guilherme, vamos marcar uma balada pra gente sair outra vez... -Demorou. -Então anota aí meu telefone... Enquanto eu ajudava o “pudim de cana” do Rafael descer do carro, ele ia falando o número do seu celular e o Guilherme anotando na sua agenda. -Anotado! -Vou esperar você me ligar, hein? -Pode deixar que eu ligo. Depois de tirar o Rafael de dentro do carro, me aproximei da porta e falei ao Guilherme: -Obrigado pela paciência e desculpa pelo transtorno. -Não se preocupe, foi divertido, eu é que agradeço. -Humpft... Obrigado! -Juízo... Cuide dele... -Deixa ele comigo.

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Nos despedimos do Guilherme e seguimos para minha casa. Sem muita paciência, tive que arrastar aquele “carma” até o portão, pois andar era algo quase impossível de se fazer no estado em que ele se encontrava. -Chegamos... Agora você trate de calar sua boca e dormir... -Pode deixar, não vou dar um piu. Dormimos até duas horas da tarde. Ao levantar, notei que em casa já não havia mais ninguém, pois meus pais já tinham saído para trabalhar e meu irmão deveria ter ido com eles. Curado do porre da noite anterior, o Rafael foi tomar um banho para tirar a ressaca. Enquanto isso, entrei na internet para ver se o Douglas já havia mandado a apostila de produto para eu estudar em casa antes do treinamento, mas como já era de se esperar, a caixa de e-mail estava vazia. Desliguei o computador e fui procurar algo para comer. No caminho cruzei com o Rafael, que saía do banho com uma toalha enrolada à cintura e pingando como uma cachoeira em todo o chão por onde passava. Com a mão esquerda na testa ele reclamava: -Nossa... Que dor de cabeça... -Humpft... Imagine a dor de cabeça que vou ter daqui pra frente... -Por quê? -Porque você me fez pagar o maior mico da minha vida essa noite. -Eu? -Você. Caminhando em direção ao quarto ele respondeu: -Não me lembro de nada disso... -Já esqueceu?... Lembra quando você me empurrou em cima de um cara derrubando bebida em sua roupa? -Só me lembro de você brigando comigo e olhando pro gatinho que deu carona pra gente. -Que história é essa de eu ficar olhando pro cara? -Hahaha... -Rafael, pode parando com isso... -Bom, deixa eu me vestir e ir pra casa me recuperar para a balada de hoje á noite. -Você vai sair outra vez? -Mas é claro, a noite é uma criança. -Humpft... Não vai querer comer algo antes? -Não, eu como em casa. No final da tarde, fui até o curso de inglês pegar minhas notas e saber se havia passado. Chegando lá, as listas já estavam expostas em um painel no jardim. Procurei pelo meu nome e respirei aliviado quando vi que minha nota estava acima da média. Só fiquei triste em não poder fazer a rematrícula, pois meu pai havia dito que não pagaria mais o curso, e como eu não tinha certeza ainda se permaneceria fixo no emprego, não arrisquei.

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Caminhava tranqüilo pela Rua Rodrigues Alves, quando o tempo começou a mudar. Apressei os passos para não ser pego pela chuva. A minha sorte era que a estação do metrô ficava bem próxima da escola de idioma. Ainda descia a escada rolante quando meu celular começou a tocar: -Alô? -Fernando? -Sou eu. -Aqui é o Guilherme... -Que Guilherme? -Aquele que você manchou a camisa... -Nossa! -Atrapalho? -Não... Estou indo pegar o metrô agora... Mas... Como você conseguiu meu telefone? -Liguei para o seu amigo Rafael e ele me passou. Nervoso resmunguei: -Filho da puta. -O que você disse? -Nada não. Conseguiu tirar a mancha da sua camisa? -Nem tentei... Depois mando pra lavanderia, lá eles dão um jeito. -Desculpa qualquer coisa... -Só desculpo se você vier jantar comigo. -Jantar? -É... -Mas... -Ficaria muito contente se você aceitasse meu convite. Parado próximo à catraca, perguntei: -Humpft... Quando? -Hoje. -Mas hoje... -Sem desculpa, vai.... Agora são 17h49, dá tempo de você chegar em casa, se arrumar e vim jantar comigo... -Eu nem sei onde você mora... -Não seja por isso... Posso muito bem te encontrar no metrô aqui próximo... -É que... -Não se preocupe, se você não se sentir à vontade sozinho comigo, pode trazer seu amigo com você... -Por tudo que é mais sagrado, não... Prefiro ir sozinho... Apesar de que nem se eu quisesse leva-lo ele iria, 27


-Por quê? -É que sábado a noite para ele é dia de balada. -Ah... Então quer dizer que você vem? -Humpft... Vou. -Oba! O que você gosta de comer? -Hum... Massas, saladas... -Ótimo. Deixa comigo... Eu vou preparar algo bem gostoso pra jantarmos... -Então ta bom. -Que horas eu te encontro? -Às 20h30, pode ser? -No metrô Brigadeiro? -Isso. -Beleza. Em menos de meia hora cheguei em casa. Tranquei a porta e subi direto para meu quarto pegar uma roupa limpa e tomar um banho para tirar o suor. Em seguida, peguei o telefone e liguei para o Rafael: -Alô? -Fala amigo da onça... -Eu? -Quem mandou você dar meu telefone para o Guilherme? -Ah... Ele me ligou e pediu seu telefone... Fiquei sem jeito de não dar... -Mas eu não te autorizei a passar. -Deixa de ser bobo, Nando... O cara ta mó a fim de você... Só quis te ajudar. -Você me perguntou se eu quero?... -Mas Nando... -Rafael, desista... Você não tem vocação para Santo Antônio. -Humpft... Desculpa... Vou ligar pra ele e... -Agora é tarde. Ele já me ligou e me convidou pra jantar em sua casa... Irritado ele começou a dizer: -Ah... Você me liga pra me encher o saco porque eu passei seu telefone pro cara, e ainda vai sair com ele? Mal tive tempo de responder, pois o Rafael desligou o telefone na minha cara. Até que em certo ponto ele tinha razão, já que eu aceitei jantar com o Guilherme, nem deveria ter ligado para reclamar, mas me senti na obrigação de reparar um acidente que o próprio Rafael havia provocado. Cheguei na estação do metrô e o Guilherme já me esperava. Encostado na parede, mantinha suas mãos no bolso da calça jeans meio caída, deixando parte da cueca à mostra. Ao me ver esboçou um sorriso e caminhou em minha direção. Cruzando a catraca perguntei: -Demorei? -Não, acabei de chegar também. O Rafael tinha razão quando dizia que o Guilherme era um cara muito bonito. Sua altura era proporcional ao corpo, cuidadosamente esculpido, com as medidas perfeitas. A simpatia com que tratava, fazia com que eu ficasse mais a vontade em sua presença. Enquanto caminhávamos em direção à saída ele comentou: -Pensei que você não viria... -Por quê? 28


-Achei que não tinha ido muito com a minha cara... -Hahaha... Relaxa, eu não tenho nada contra sua pessoa... Não faz essa cara, é sério. Com o olhar de cachorro abandonado ele respondeu: -Ta bom... Eu acredito em você. -Está longe sua casa? -Não, acabamos de chegar. Olhando para o topo do prédio perguntei: -Você mora aqui? -É... Eu sei que é grande demais para uma pessoa só... -Põe grande nisso. -Hahaha... É que eu gosto de espaço. O apartamento era enorme. Dois por andar, quatro dormitórios, duas salas. Eu me sentiria perdido morando sozinho dentro de um apartamento tão grande como aquele. Fechando à porta da sala ele falou: -Fique à vontade... Eu vou trocar de roupa e já volto. -Tudo bem. Sentei-me ao sofá branco de camurça e fiquei observando aquela sala de estar enorme. O vento que entrava por uma das vasculantes da sala, fazia a cortina creme dançar suavemente, projetando parte de sua sombra na parede texturizada. A estante de mogno escuro destacava-se no branco do ambiente, e uma televisão de plasma enorme ocupava o espaço de três prateleiras. Amarrando o cordão de sua calça ele falou: -Pronto! Demorei? -Até que não demorou muito... -Fui rapidinho... Vem comigo até a cozinha? -Vamos lá. Levantei do sofá e o acompanhei até a cozinha, onde já estava quase tudo pronto e arrumado sobre a mesa da copa estilo americana. O cheirinho de molho de tomate fazia meu estômago roncar de fome, parecia que eu não comia há dias. Abrindo a porta do microondas ele falou: -Eu preparei para nós uma lasanha à bolonhesa... -Hum... O cheiro está ótimo... Foi você que fez? -Na verdade não. Comprei em um restaurante perto da casa da minha mãe... Eu não sei cozinhar muito bem. -Mas deveria, já que mora sozinho... Assim não tem graça. -Ah, desculpa... Eu não ia te chamar pra comer um ovo cozido, já que é só o que sei fazer. -Humpft... O que importa não é a sofisticação e sim a intenção. -Que bonitinho!... Enquanto a lasanha esquenta, eu vou arrumando aqui a mesa, ou você prefere a sala de jantar? -Aqui está bom. -Você que manda. Conte mais sobre você?... Enquanto ele colocava o sus-plat sobre a bancada, continuávamos conversando: -O que você quer saber? -Há quanto tempo você está sozinho? -Há 19 anos, nunca namorei, lembra? -É verdade, desculpa. -Sem problemas. 29


-Você sente falta de alguém ao seu lado? -Têm dias que me sinto carente, sozinho, mas depois passa. Nada como um dia após o outro. Arrumando as taças ele perguntou: -Você não pensa em se relacionar com ninguém? Ou não quer? -Humpft... Tenho vontade, mas me falta coragem... Já gostei de alguém e me decepcionei, sofri um pouco, não foi fácil... -Mas isso faz parte da vida, não acha? -Eu sei, mas enquanto eu puder evitar ou adiar esses problemas é melhor... O importante é que estou feliz assim... -Isso é o mais importante. O microondas começou a apitar. -Opa... Nossa lasanha já está pronta. -Ta cheirando gostoso... -Pega ali o prato, por favor? -Esse? -Não, aquele maior ali... -Toma aqui. Fazendo careta por causa da caloria ele resmungava: -Ai... Ai... -Cuidado, se não vai cair... Espera que eu te ajudo... Abanando as mãos ele disse: -Deixa eu pegar uma espátula pra cortar... -Enquanto isso eu vou colocar na mesa. -Ta bom... Você quer beber suco, refrigerante, vinho? -Suco. -Suco? -É. -Ah não... Vamos tomar um vinho tinto comigo? -Eu não gosto de bebida alcoólica. Segurando uma garrafa nas mãos ele falou com os olhos esbugalhados: -É até um pecado você chamar isso de bebida alcoólica... Esse vinho que te ofereci não é qualquer porcaria... Uma garrafa dessa custa mais de trezentos reais... -Nossa! -É puro suco de uva. -Desculpa, eu não quis ofendê-lo... -Relaxa, gato... Se você não gosta, tudo bem. -Humpft... Vou beber só um pouquinho. -Pega ai uma taça então. -Aqui... -Vamos fazer um brinde. -E vamos brindar o quê? -A vida... Nossa amizade que nasce agora... -Saúde! -Saúde! Brindamos a ocasião com o vinho tinto importado que ele me ofereceu, depois jantamos a lasanha, que por sinal estava maravilhosa. A companhia também era bastante 30


agradável e encantadora. Seu sorriso iluminado me encantou com aquela boca bem feita e provocante. Olhando em meus olhos ele perguntou: -Gostou do jantar? -Adorei! -E do vinho? -Adorei também. -Quer mais um pouco? -Chega, não quero chegar em casa bêbado. -Hahaha... -Que horas são agora? -Agora... São 22h26. -Nossa... Preciso ir... -Mas já? Está cedo... -Eu dependo de transporte público para chegar em casa. -Não depende mais. Pode deixar que eu te levo. -Mas... -Eu já levei você e o Rafael hoje, lembra? -Sim. -Já conheço o caminho... -Minha mãe vai falar um monte... -Quer ligar pra ela? Diz que você está na casa de um amigo. -Vou ficar só mais um pouco, tá? -Oba! Vamos ver um filme? -Que filme? -Tem uma lista na TV a cabo que a gente pode escolher juntos. -Então ta bom, mas antes vamos arrumar aquela bagunça... -Deixa lá... Amanhã a Suellen vem limpar a casa e arruma. Vamos aproveitar o tempo que temos para ficar juntos. -Então ta. -Vamos lá pra sala? -Vamos. Levantei da bancada e toquei em sua mão que estava estendida pra mim. Após apagar a luz da cozinha, ele me deu um abraço, e assim caminhamos até a sala. Sentei no sofá de frente para a enorme televisão, enquanto ele foi pegar o outro controle para escolher o filme. -Sente aí no sofá... Olhando para a dimensão do ambiente perguntei: -Você não se sente mal morando sozinho nesse apartamento tão grande? -Às vezes... Eu ganhei esse apartamento do meu pai... Já pensei em me desfazer algumas vezes e comprar um menor, mas... -Entendo. -Posso me sentar ao seu lado? -Claro. Olhando para mim ele perguntou: -E tocar na sua mão? -Pode! 31


Seus dedos levemente tocaram os meus, entregando-me com sua outra mão o controle da TV, para que eu escolhesse o filme que iríamos assistir no menu de opções. -Veja a lista de filmes que têm... -Nossa... Bastante... -Pode escolher qual você quer ver... Foi difícil escolher um filme em uma lista com mais de cem nomes disponíveis. Tudo em ordem alfabética, alguns eu até já havia visto em casa, embora tivesse outros cujo já tinha ouvido falar muito bem. Levantando-se do sofá ele disse: -Vai escolhendo aí que eu vou apagar a luz... -Ta bom. Eu ainda não havia percebido, mas o sofá da sala do Guilherme era reclinável. Só me dei conta quando ele voltou e jogou seu corpo para trás, tornando o encosto quase uma cama. -Ai... -Assustou? -Claro, né? -Desculpa... Já escolheu o filme? -Já. -Pode dar um "clique" pra começar. -Peraí... Pronto! Tirando o controle da minha mão ele perguntou: -Posso te abraçar? -Sim... Seus olhos queriam dizer algo que não consegui identificar. Curioso perguntei: -Por que você está me olhando desse jeito? Tocando levemente em meu rosto e olhando para minha boca ele disse: -Eu vou te beijar... Fechando os olhos completei: -Então beija. Naquele momento deixei que o clima conduzisse a situação. Deitado sobre seu braço direito e de olhos fechados, sentia o peso do seu peitoral sobre o meu. Pouco a pouco passei a sentir o toque de seus lábios sobre minha face, logo já estávamos trocando altos beijos. Nossas mãos se confundiam por dentro das roupas, como se estivéssemos montando um quebra cabeça. O Guilherme beijava maravilhosamente bem. Além de ter uma pegada gostosa e forte que me fazia arrepiar. Aquele clima de romance ia esquentando cada vez mais, de forma a nos fazer suar. Fungadas eram intercaladas aos suspiros no auge da respiração. Meu pescoço era beijado, chupado com vontade. Quando me dei conta, já estávamos deitados no sofá, sem camisa e minha calça aberta. Ao sentir sua mão deslizar sobre a minha cueca eu me esquivei. Sem entender ele perguntou: -O que foi? -Melhor não... -Humpft... Tudo bem, não vamos fazer nada que você não queira. Olhei no relógio e disse em seguida: -Já está na hora de ir... 32


-Mas você nem terminou de assistir o filme... -E nem vamos assistir se continuarmos nesse clima. -Humpft... Está bem... Eu vou vestir uma calça e um tênis pra te levar, dá um tempo ae. Abotoando o zíper eu disse: -Não demore. -É rapidinho. Enquanto ele foi tirar a bermuda e vestir uma calça, peguei o celular e liguei pra casa. Provavelmente não havia ninguém em casa, pois o telefone tocou por várias vezes até cair na secretária eletrônica. Colocando um boné na cabeça o Guilherme caminhava em minha direção dizendo: -Estou pronto. Vamos? -Sim. Parando em frente à porta ele me olhou perguntando: -Tem certeza que quer mesmo ir? -Eu preciso... -Humpft... Gostei de você, sabia? -Eu também te achei um cara bacana. Abrindo a porta da sala ele falou: -Obrigado, Fernando! -Pelo quê? -Por ter vindo, pela companhia, pela noite maravilhosa que me proporcionou... -Hahaha... Não foi nada... Eu é que devo agradecer. -Quando poderei vê-lo outra vez? -A partir da próxima semana eu já começo a operar, pois o treinamento só vai até o fim da semana... Minhas folgas serão aos finais de semana alternados... Acariciando meu rosto ele perguntou: -Amanhã você trabalha? -Não. -Podemos nos ver amanhã se você quiser... Andar de bicicleta pelo Parque da Aclimação... Ir ao cinema, teatro... Podemos almoçar no shopping... -Ah... Vamos ver como vai ficar minha situação amanhã... -Eu posso te ligar? -Pode sim. A cada semáforo que o carro parava, era uma carícia que ele fazia no meu rosto. Com aqueles olhinhos de "cachorro abandonado", ele me olhava de uma forma que fazia amolecer meu coração. Estacionando o carro no canteiro ao lado do Monumento da Independência ele lamentou: -Bom... Infelizmente chegamos. -Por quê, "infelizmente"? -Porque você se vai, me deixando sozinho... -Não fale assim... A gente pode repetir outro dia. -Sério? -É. Tirando o cinto ele perguntou sorrindo: -Então quer dizer que você ainda quer me ver? -Eu gostei de você... Te achei um rapaz bacana... 33


-Isso quer dizer quê?... -Que eu ainda pretendo te ver outras vezes. Acariciando meu rosto ele comentou: -Fico feliz em saber disso... -Bom, desculpa, mas agora eu preciso ir mesmo. -Humpft... Se cuide. -Você também. Tirei o cinto de segurança, dei um selinho nele, abri a porta e saí do carro. Acenei um “tchau” e segui em direção à minha casa.

À noite estava muito agradável. O céu estava repleto de estrelas e a lua brilhante iluminava a rua. Ao me aproximar do portão de casa, escuto um carro buzinar atrás de mim. Quando me virei, notei que era o carro dos meus pais que chegavam àquela hora também. Enquanto meu pai manobrava o carro para estacionar, deixei o portão bem aberto e entrei para não ficarem me perguntando onde eu estava até àquela hora, afinal, eu não estava a fim de ficar dando explicações dos meus passos. Na manhã seguinte acordei com o corpo todo dolorido, pois de tanto me revirar na cama, acabei dormindo de mau jeito. Levantei um pouco tonto. Em seguida, desci até a cozinha para beber um copo de suco. O silêncio da casa era quebrado com meus passos pelo carpete de madeira da escada. Bocejando, abri a porta da geladeira e vi um bolo na última prateleira, que aparentemente estava muito bom. O coloquei sobre a mesa e cortei logo uma fatia. Puxei a cadeira e voltei até a geladeira para pegar o suco. Quando abri a porta, escutei meu celular tocando lá no quarto. Coloquei o jarro ao lado do bolo e subi as escadas correndo para atender: -Alô? -Alô... Fernando? -Eu. -É o Guilherme... Está ocupado? -Ah... Não... -Você demorou pra atender... Já ia desligar... -Desculpa, é que eu estava lá embaixo comendo um pedaço de bolo... -Hum... Se eu soubesse que gostava de bolo, teria te convidado para comer junto comigo... -Não faltarão oportunidades. -Humpft... O que vai fazer hoje à tarde? -Ficar em casa, não programei nada para fazer... 34


-Aceita pegar um cinema comigo? -Hoje? -É... Já que o bolo você já comeu... -Ah... Eu topo. -Beleza! Te encontro daqui meia hora em frente ao Parque da Independência... -Mas meia hora é muito pouco tempo. -De quanto tempo você precisa? -Acho que duas horas está bom. -Uma hora é o suficiente. -Tudo bem... Nos vemos daqui uma hora. -Ta bom... Beijos nessa boca gostosa. -Outros. Desliguei o telefone e corri para o banheiro. Precisava tomar um banho para tirar o peso do corpo. A água estava tão gostosa que não dava mais vontade de sair. Procurei não demorar muito para não me atrasar, pois não queria causar uma má impressão. Assim que terminei de me vestir, desci até a cozinha e continuei comendo o bolo e bebendo o suco de goiaba. O dia lá fora estava ensolarado. Vestindo uma regata, um boné e uma bermuda eu já estava pronto pra sair, mas antes, calcei um tênis e fui até o banheiro escovar os dentes. Tranquei a porta de casa com a minha chave e saí com o sol queimando o asfalto. Quando fui atravessando a rua, notei que um carro se aproximava de mim. Não demorou e ouvi uma buzina. Ao olhar para trás, avistei o Guilherme sorrindo de óculos escuro com a cabeça pra fora da janela. -Demorei? -Não, eu acabei de chegar também. -Podemos ir? -Claro! -Entra aí... Qual filme vamos ver? -Hum... Tem tantos... -Nem são tantos assim... Se for filtrar os legais sobram poucos. -É verdade... Que gênero de filme você gosta? -Bom, eu gosto de todos, mas tenho preferência por romance, ficção... -Eca! -Por que, “eca”? -Sei lá, não curto mentira... -E... -Ficção é pura mentira... Eu gosto de participar da história, sei lá... -Então vamos ver um filme baseado em fatos reais. -Hum... Tem algum em cartaz? -Não. -Melhor assistir uma comédia. -Pode ser. Qual? -Um nacional. O quê acha? -Será que o que está em cartaz é bom? -Vamos assistir pra saber... -Então ta.

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Chegamos em frente o cinema e não havia ninguém. Separava minha carteirinha de estudante quando vi o Guilherme comprando os dois ingressos. Coloquei o dinheiro e a carteirinha sobre o balcão e tocando em minha mão ele recusou. -Não precisa, amor. -Então eu pago a pipoca. -Pare com isso, gato. Dentro da sala havia poucas pessoas. Sentamos na fileira do meio, onde não havia ninguém. Antes do filme começar, o Guilherme olhou pra mim, pegou na minha mão e disse: -Você é muito lindo, sabia? -Não tenho nada de "lindo"... Sou um garoto comum. -Não é não. Você é lindo, especial... -Humpft... O filme vai começar... -Vamos ver então. Seria mentira se eu dissesse que não senti nada pelo Guilherme. Não tinha como não se apaixonar por ele com aquele jeito carinhoso e atencioso no qual me tratava. Ás vezes eu ficava pensando em algumas asneiras que o Rafael falava e percebia que em partes ele tinha razão, eu tinha que me permitir amar alguém e deixar ser amado. -Está gostando do filme? -É meio parado... -Ou seja, você não está gostando. -Hahaha. -Você tem um sorriso lindo, sabia? Com a mão direita segurando o meu queixo ele trouxe meu rosto pra perto do seu, aproximando nossas bocas até que iniciamos um longo beijo que durou até o filme acabar. -Nossa... Nem vi o tempo passar... -Você estava de olhos fechados, não tinha mesmo como ver. -Hahaha... Te adoro, Nando! -Vamos? -Já? -É... -Ah... Queria ficar um pouco mais com você. -Já está ficando tarde. -Ok. Vou te acompanhar até o metrô então. -Oba! Por volta de 10h00 da manhã seguinte acordei com o telefone tocando. Cambaleando um pouco e esfregando os olhos levantei da cama, tropecei no pé da cadeira que estava no meio do quarto, meu irmão sempre tinha a mania de deixar tudo que usava espalhado pela casa. Meus olhos que estavam ainda meio fechados por conta da claridade que entrava pela fresta da janela se abriram instantaneamente, tamanha era a dor imediata que senti. -Caralho... Alô? -Fala moleque... -Humpft... Isso são horas de me ligar? -Deixa de ser chato. Como foi lá no jantar com o "bacana"? -Foi legal. -Nossa, que desânimo... 36


-Olha a hora que você me liga... -10h15... -Eu estava dormindo, se não deu pra você notar... -Reparei pela sua voz roca... -Bom, depois a gente se fala. -Você vai desligar na minha cara? -Humpft... Não adiantaria, você ligaria de novo pra me encher o saco. Fala logo, o quê você quer saber? -Tudo! -Tudo o quê? -Rolou uns beijinhos? -Hum... Rolou. -Eu sabia que você não era burro. Ele é bom de cama? -Não sei. -Como não sabe? -Não provei. -Ah... Esqueci que você é cheio de manias esquisitas. -Vamos mudar de assunto? -Ta bom, o quê você fez ontem? -Fui ao cinema com ele... -Puta... Nem vou falar nada... -É melhor mesmo. -Vocês estão namorando? -Claro que não, só ficamos sábado e ontem. -E o quê você está esperando pra namorar? -Rolar um clima maior... Não tenho essa intenção... -Mas têm motivos. -Me dê um motivo então? -Posso te dar vários... Ele tem grana, ta afim de você, é bonito, é jovem... -Certo. Não basta... -Sinceramente, nunca entendi você. -Ninguém me entende. -Minha mãe está me chamando, depois eu te ligo pra marcar de nos encontrar e você me conta tudo. -Ok. -Beijos! -Outros! Depois disso não consegui mais dormir. Peguei meu cobertor, deitei no sofá da sala e fiquei assistindo à televisão até dar o horário de sair para o treinamento na empresa. Ao mesmo tempo em que eu estava feliz por ter encontrado meu primeiro emprego, também estava apreensivo, pois o dia de entregar a documentação no RH parecia nunca chegar. Enquanto eles não registrassem a minha carteira, eu não iria sossegar. -Boa tarde, Fernando! -Boa tarde, Eliane! -Sexta-feira da semana que vem cai o dinheiro do vale transporte, você já abriu sua conta no banco? -Já... 37


-Em qual agência você abriu? -Aqui na agência que fica dentro do mercado, e você? -Eu abri na agência do Centro. -Ah... Abrir conta em banco é a maior burocracia, principalmente quando não se tem como comprovar renda. No meu caso foi mais fácil, porque a agência aceitava o check-list da empresa como comprovante, mas depois pedia para entregar uma cópia do primeiro holerite. A Eliane acabou abrindo sua conta em outra agência de teimosa que era, mas não deixava de ser uma pessoa legal. Seu sotaque cheio de palavras desconhecidas e fora do cotidiano paulistano denunciava sua origem nordestina, o que serviu de base para as piadas do Roberto. -Caso o modem do cliente seja roubado, só poderá abrir ressarcimento se ele apresentar o B.O. para a empresa... -O que ele falou? "V.O?" -B.O, Eliane... -Ah... Eu tinha entendido V.O ... -"Voletim de Ocorrência"... -Hahaha... Pára Roberto... -Oh Doce... Conhece a "Doce"? -Por quê, "Doce"? -DOCEará. -Hahaha... Quando ele falou aquilo não teve como não rir, não só eu, mas todos que estavam por perto caíram na gargalhada, despertando a atenção do treinador. -O Douglas já está olhando pra nós. -É melhor parar... Por mais que a Elaine tentasse parar de rir ela não conseguia. Para o Douglas não ver que ela estava gargalhando sem parar, acabou entrando embaixo da mesa e assim permaneceu por uns cinco minutos. Chegou à hora da pausa para o lanche, pegamos sanduíche e refrigerante que eles distribuíam para o pessoal do treinamento e fomos para a copa esquentar no microondas. -Eu não agüento mais esse calor... -Eu adoro esse calor, lá em Natal é o ano todo assim. -Mano... Eu morro de vontade de conhecer a Bahia... -Falo aê, Daba. -Daba? -DABAhia. -Hahaha... -O Roberto é cheio de gracinha, dormiu com o Bozo? -O que foi, Tassi? -Por quê, Tassi? -TASSIachando... Os apelidos que o Roberto arrumava eram de chorar de rir, tanto que no decorrer do treinamento inteiro a Elaine ficou conhecida como a “Daba”, a Renata como “Tassi” e a Eliane como “Doce”. Saindo do treinamento meu celular começou a tocar. No visor apareceu o telefone do Guilherme. Meu coração começou a palpitar bem forte de emoção. 38


-Alô? -Fernando? -Sim... -Aqui é o Guilherme, tudo bem? -Tudo e com você? -Também, o quê você está fazendo agora? -Estou acabando de sair do treinamento, e você? -Acabei de sair do trabalho, quer jantar comigo? -É que... -Aceita, vai? Já to com saudade de você... -Tudo bem, onde podemos nos encontrar? -Ebaaaaa! No shopping. -Você vai vir de metrô? -Não. Você me espera na calçada em frente a entrada principal. -Ta bom. -Em 5 minutos eu to aí. -Ok. Caminhei até o shopping e fiquei esperando pelo Guilherme no local combinado. Assim que cheguei avistei seu carro chegando também. -Entra aí, gato. -Tudo bem? -Nossa, você está lindo, sabia? -Pare com isso... -Hahaha... Olha que tímido. Não falei nenhuma mentira. -Pra onde vamos? -Gosta de carne? -Sim! -Então vamos à uma churrascaria na Marginal. -Mas... -Faço questão de te levar nessa churrascaria, é a favorita do meu pai e minha também, a comida é ótima. -Humpft... Então ta bom. Ao chegar na churrascaria achei que estava fodido, pois o ambiente era um luxo só, e os preços absurdamente caros. No estacionamento só tinha carrão e os freqüentadores de alto nível. Tive vontade de sair de fininho e ir embora, mas como iria fazer isso sem decepcionar o Guilherme? A única alternativa foi sentar à mesa com ele e fingir que não estava com muita fome. -Boa noite, o quê os senhores vão querer beber? -Eu quero um Porto. -E o senhor? -Uma água. -Água? Não acredito nisso... -É quê... -Traga um porto para ele também. -Sim senhor. -O quê deu em você? -Eu não bebo álcool, já te falei, lembra? 39


-Bobinho, só um pouquinho não vai fazer mal. -Humpft... Ta bom. O Guilherme era uma tentação, quanto mais eu fugia mais ele vinha me empurrando o que eu não queria, encurralado eu não tinha o quê dizer, a não ser aceitar. -Com licença... -Fe... -Hum... -Você quer namorar comigo? Comecei a gaguejar. -Mas... Namorar... Eu... -É gatinho, namorar. Você quer namorar comigo? -Eu nunca namorei... -Eu posso ser o primeiro? -Humpft... Eu preciso pensar... -Tudo bem, mas pense com carinho, quero que saiba que eu gosto muito de você. -Eu também gosto de você! Achei muito legal o pedido dele de namoro, era um sinal de que ele tinha boas intenções comigo e queria algo sério. Nos tempos de hoje é muito difícil encontrar alguém que esteja afim mesmo de um compromisso, mas ainda não tinha certeza se era isso mesmo que eu queria. Vontade não me faltava, porém, o medo bloqueava a vontade de me entregar a alguém. Cheguei em casa quase 1h da manhã. Todos já estavam dormindo. Tranquei a porta da sala, liguei a TV e fui até a cozinha. Ascendi à luz e notei que as panelas ainda estavam quentes, sinal de que minha mãe havia feito a janta há pouco tempo. Peguei um prato no escorredor de louças, coloquei um pouco de macarrão, frango ensopado e botei pra esquentar no microondas. Com a comida quentinha, coloquei um pouco de refrigerante no copo e fui jantar na sala vendo um filme na TV. A comida que minha mãe fazia, modéstia a parte era ótima, principalmente seu macarrão com molho vermelho e bastante carne moída. Depois de jantar esperei passar 1 hora para começar a fazer as abdominais. Fiz uma série de cem abdominais, como já era de rotina todas as noites. Quase morri, mas eu via a recompensa quando me olhava no espelho reparava na minha barriga toda definida. Em seguida fui até o banheiro escovar os dentes e depois dormir.

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Finalmente chegou o dia de fazer escuta na operação. Tivemos que chegar um pouco mais cedo naquela tarde. Ficaríamos três horas fazendo escuta no primeiro dia e depois começaríamos a atender as reclamações dos clientes. A operação estava tumultuada, pois era muita gente entrando ao mesmo tempo, ocasionando uma bagunça total. Encostei ao lado da porta do breack e fiquei esperando ser chamado. -Você está esperando pra fazer escuta? -Sim... -Vem comigo... Senta aqui com ela que eu já te trago um read. -Ta bom. Sentei ao lado de uma garota muito simpática que começou a me explicar tudo sobre a prática dos sistemas que a ilha de contas utilizava. -É seu primeiro dia de escuta? -Sim... No meio daquela bagunça fiquei assustado ao ver uma das supervisoras gritando pela operação, causando pânico em nós novatos. Comecei a tremer de medo e nervoso. Tive vontade de abandonar tudo e sair chorando daquele lugar. -Mas quem mandou eles fazerem escuta com o pessoal novato? -Não tem mais operadores para eles sentarem... -Dê um jeito. Esse pessoal não tem nem um mês ainda. Um dos supervisores pediu para que eu o acompanhasse até a Ala B, onde havia alguns operadores com mais tempo de casa cujo eu poderia fazer escuta sem problemas. O acompanhei pelo corredor até chegar à P.A de um garoto. Pela sua cara parecia não estar para muitos amigos. Puxei uma cadeira ao lado e sentei observando o manuseio dos sistemas que a princípio não eram nada fácil. -Vou fazer escuta com você, tudo bem? -Beleza cara. Meu nome é Thiago, e o seu? -Fernando. -Você já conhece o sistema, Fernando? -Conheço pelo treinamento, mas me atrapalho nas telas ainda... -Então eu vou atendendo o cliente e você vai observando, qualquer dúvida que você for tendo é só ir me perguntando. -Tudo bem. -“Senhor Pedro?...” Obrigado por ter aguardado. Enquanto ele ia atendendo o cliente eu me perdia no abre e fecha de telas do computador, pois ele usava mais de onze janelas diferentes para consultar informações, sendo que cada uma servia para um procedimento distinto.

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Depois de um tempo a confusão era tanta que a tela do computador parecia girar na minha frente. Mesmo assim continuei atento a tudo que ele fazia e a maneira como ele tratava o cliente. Minha atenção acabou se perdendo quando se aproximou de nós um garoto. Naquele instante meu mundo parou, um holofote acompanhava cada passo que ele dava. O coração parecia querer sair pela boca. Ele não era um simples garoto, mas sim o garoto. Foi paixão à primeira vista. Eu nunca fui de acreditar nessas idiotices até surgir aquele anjo sem asas em minha frente, me fazendo perder todos os sentidos. -Ae mano... -Fala cara, bele? -Firmeza... Atrás de nós havia outra fileira de P.A, onde ele se sentou para dar início ao atendimento. A partir daquele momento eu não consegui mais prestar atenção em nada. O Thiago também ficou assim como eu, mas no seu caso foi ao ver uma loira passar pela nossa P.A. -Nossa... Olha aquela loira...? -Qual? -Essa que está vindo... Mano... Que isso... Gostosa, não é? -É... Demais. Até mesmo sem gostar tive que concordar com ele, porém, pra mim a menina tinha uma beleza comum, assim como o garoto que me chamou atenção, não tinham nada em especial. Nunca fui uma pessoa que se interessava pelas outras por beleza física. Sempre achei que o mais importante em alguém era seu jeito de ser, de tratar as pessoas, estilo de vida, enfim. Depois de três horas de escuta acabaram nos dispensando mais cedo, pois não havia P.A para a gente se logar e por ser o primeiro dia em atendimento eles nos deram uma trégua. No domingo eu havia combinado de sair com o Guilherme. Logo pela manhã meu celular começou a tocar me acordando. -Amor da minha vida... -Oi Gui, tudo bem? -Tudo fica ótimo quando falo com você. -Brigadu. -Já está pronto? -Não, eu acordei agora... -Então se apronte rapidinho que já, já estou passando ai pra te buscar. -Ta bom, vou tomar um banho e daqui a pouco estou saindo. -Não demore! -Pode deixar. Desliguei o celular e fui correndo tomar um banho. Pensei em vários lugares onde o Gui poderia me levar, mas certeza mesmo de onde iríamos eu não tinha, pois o Guilherme disse que seria uma surpresa e não quis me revelar. Em pouco menos de trinta minutos eu já estava pronto. O dia lá fora estava lindo. Um domingo ensolarado e agradável. A brisa fresca que batia no meu rosto, quebrava o clima abafado causado pelo calor do asfalto.

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Por volta de 10h eu já esperava pelo Guilherme que ainda não havia visto chegar. Embaixo daquele sol que começava a esquentar eu já me irritava de tanto esperar. Ao virar as costas para voltar pra casa meu celular tocou. -Vai ficar esperando ai até que horas? -Até eu me cansar de seu atraso e ir embora. -Mas eu cheguei primeiro que você... -E cadê o seu carro? -Na sua frente... -Só vejo uma caminhonete vermelha com uma moto... -Pois é, repare quem está no volante? -Ah... Cadê o seu carro? -Esse também é meu carro. -Mas... -Mas esse eu só uso para os finais de semana e para praticar esportes. -Entendi. -Chega de bater papo e vem logo pro carro se não vamos nos atrasar. Segui em direção à sua caminhonete e a porta se destravou. O cumprimentei ao entrar com um beijo na boca. Ao mesmo tempo, ouvi o barulho das portas se travando novamente. O ruído do ar condicionado era abafado pelo rádio que tocava Kid Abelha. -Não sabia que você tinha dois carros. -Pois é, eu tinha três carros e uma moto, me desfiz de um deles e fiquei só com esses dois e a moto. -Para onde vamos? -Vou te levar para assistir uma competição de motocross. -Motocross? -É...Pensei que você já soubesse que eu participava... -Nem desconfiava. -Agora você já sabe. -Aos poucos vamos descobrindo mais coisas um do outro. -E cada dia que passa eu me apaixono mais por você. -Pára, você está me deixando sem graça. -Você fica tão lindo quando está envergonhado... O Guilherme era muito carinhoso, às vezes chegava até enjoar sua melosidade e zelo comigo, mas confesso que eu adorava seus paparicos. Aqueles abraços quentes e seus beijos safados me faziam bem. Seguimos para Rio Claro onde ia acontecer à competição. Eu nem sabia o que era esse tal de motocross, na verdade eu nunca tinha ouvido falar. Enquanto eu admirava as paisagens ao redor da estrada ao som de Marisa Monte o Guilherme ia me fazendo declarações de amor. -Amor, vou pedir pra você um favor. -Qual? -Fique bem longe da pista de competição, não quero que nada de mal te aconteça. -Ta bom. Eu pensei que chegando lá teria uma pista de asfalto, com uma arquibancada enorme e um monte de motos barulhentas correndo pela pista, mas me enganei.

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Paramos com o carro em um terreno cheio de pedras. Ali próximo havia um outro campo enorme de terra vermelha, cheio de obstáculos. No estacionamento reparei a quantidade de pessoas que lá estavam e aparentemente todos de alto nível social. Vários rapazes bonitos com suas motos adaptadas para subir e descer morros, pedras, atravessar grandes obstáculos. A grande maioria, se não todos naquele lugar, eram muito bem sucedidos financeiramente e jovens, assim como o Guilherme. Acho que pobre ali só tinha eu. -Gato, eu vou pegar a moto e treinar antes da competição. -Boa sorte, Gui. -Vou ganhar essa competição pra você. -Não fale assim que se não eu começo a chorar... -Te adoro, Nando. -Também te adoro. Em 1897 os Werner, irmãos franceses que seguiram os passos dos engenheiros alemães, criaram a expressão motocyclette, batizando o 1º motociclo fabricado fora da Alemanha. A “nova” técnica foi sucesso imediato, despertando o interesse de outros engenheiros e inventores, impulsionando um novo segmento. Os ingleses se apaixonaram pelo motociclo e organizaram a primeira corrida, batizada de Motorcycle Scrambles, que aconteceu no dia 29 de novembro de 1897 em na cidade de Surrey, em Londres. Era o nascimento do motociclismo de competição, em seus anos mais românticos. No ano seguinte, os ingleses entram no novo mercado para valer, dando inicio às competições de motocicletas e nascendo logo depois o motocross. (MUNDO MOTO, 2006: 01)

Procurei um lugar onde eu tivesse uma boa visão e distância para não me sujar naquele barro vermelho. Subi até o morro onde havia algumas pedras e árvores, também estacionados os carros das famílias e competidores que lá estavam para assistir a competição. O ideal do motocross é os treinos constantes que se devem ser feitos, evitando ficar muito tempo longe das trilhas para não “enferrujar”. Como em qualquer outro esporte, a prática e os treinos têm muito a ver com os resultados finais, por isso a importância de treinar antes da competição. O tempo parecia nunca passar. Não que a competição fosse chata, mas o que não me agradou mesmo foi o clima que estava muito quente e algumas pessoas que lá estavam, cujo ficaram me olhando de cima a baixo e fazendo algumas caretas menosprezando minha presença. Acho que eu era o único sem posses ali no meio de tanta gente rica e importante. Algumas irmãs, namoradas dos rapazes que foram competir, me olhavam torto, não que eu estivesse mal vestido, pelo contrário, sempre me vesti muito bem, mas eles sabiam que eu não era um deles e isso já era motivo suficiente para me excluírem do grupo. Após aquele sobe, desce, cai e levanta no terreno barrento com suas motos, a competição finalmente chegou ao fim. Caminhando todo sujo e carregando sua moto, 44


avistei o Guilherme vindo na minha direção. Estava irreconhecível, parecendo um boneco de argila. -Desculpa, amor... -Desculpa-lo, pelo quê? -Porque eu não ganhei a competição pra você. -Imagina, ganhar em terceiro lugar está ótimo... -Mas não para mim. -A corrida já acabou, o importante é competir. -Humpft... Vai haver uma competição em Goiás e essa eu vou ter que ganhar, não vou me conformar se não conseguir o primeiro lugar... -Gui... -Nesse dia vou querer você junto comigo. -Eu? -Sim, por quê? -Tem meu trabalho... Meus pais... -Ah para com isso, nós vamos em uma sexta à noite e voltamos no domingo no final da tarde, pegamos um avião e rapidinho chegamos lá. -Vou ver se arrumo uma desculpa em casa para passar uma semana fora... -E no trabalho também... -Humpft... Bom... Você está precisando de um banho, Guilherme. -Estou precisando é de um abraço, vem aqui... Quando ele veio pra cima de mim coberto de lama para me abraçar eu sai correndo pelo meio das árvores. -Não chega perto de mim sujo desse jeito... -Buuuuu... Eu vou te agarrar... -Hahaha... Não... Sai daqui... Não chegue perto de mim... -Eu vou te pegar... Eu corria pelo meio das pedras e árvores que lá havia, tentando escapar daquele “monstro do pântano”, escorreguei em um barranco e desci rolando por uma corredeira de mato e pedras. Bati a cabeça várias vezes no chão até ficar tonto. Ao parar de rolar meu cérebro parecia estar dentro de uma batedeira. Ainda de olhos fechados eu conseguia ouvir o barulho dos pássaros a minha volta e de água corrente nas proximidades. Abri os olhos e avistei uma linda cachoeira à minha frente. Fui me apoiando aos poucos nos braços que estavam ainda meio dormentes e me levantando com cuidado. A cada movimento que eu fazia era acompanhado pelo barulho das folhas secas espalhadas pelo chão. Quando consegui me sentar, o Guilherme apareceu do nada e me jogou novamente no chão. Deitou seu corpo por cima do meu, segurou minhas mãos de forma a me imobilizar e olhando face a face ele disse: -Pensou que ia conseguir fugir de mim? -Ai... Você está me sujando... Fazendo sinal com a cabeça e um sorriso safado ele apontava para a cachoeira. -Nem pensar, Guilherme. -Sim, sim. Sem me dar muito tempo para reagir, ele me pegou no colo e entrou dentro do rio junto comigo. No início eu relutei ao máximo para ele me largar e não tocar naquela água fria, mas nada do que eu fizesse adiantou. Altos beijos rolavam entre nós enquanto nos despíamos. As mãos se perdiam junto com os movimentos no vai e vem de nossos corpos. 45


-Pára... Não... Por favor, está gelada... -Deixa de frescura, amor... Deitados à margem do rio nos beijávamos sem parar. Aquelas alturas nossos corpos estavam unidos e completamente nus. Já nos faltava respiração em meio aos amassos que estávamos dando naquele chão coberto de folhas secas e argila. Em nossa volta a natureza nos assistia em silêncio fazer amor, quebrado apenas pelos nossos sussurros e gemidos nos momentos de orgasmo. -Nossa... -O quê? -Você é demais, Nando. -Deixa de bobagem. -Eu estou falando sério, Fernando. Você já pensou se quer namorar comigo? -Namorar? -Sim... Namorar... -Mas você sabe que eu nunca namorei... -Humpft... Eu posso ser seu primeiro? Puxei sua cabeça e lhe dei um outro beijo longo e molhado. -Será que isso responde sua pergunta? -Hahaha... Você é demais, cara. Um mês se passou e tudo em minha vida estava dando certo. No trabalho estava indo tudo bem. No começo foi difícil aprender a manusear todos aqueles sistemas ao mesmo tempo, mas aos poucos fui me adaptando e pegando a prática. Já no amor não tinha nem palavras pra descrever, o Guilherme era o namorado perfeito, parecia um sonho dividir parte da minha vida com ele. Em uma manhã um pouco chuvosa, acordei quase 11h. Com aquele tempinho gostoso, não dava vontade de sair da cama. Enrolei por mais uns quinze minutos, até criar coragem e levantar. Fui direto checar meus e-mails antes de sair do quarto. Minha caixa estava vazia, então deixei baixando umas músicas enquanto fui tomar meu banho. Embaixo daquela água quente, eu tinha vontade de ficar o dia todo. Antes de sair de casa, mal consegui fechar a porta por causa da enorme mochila que eu estava carregando, pois era dia de ajuste de carga na academia. Tudo que eu queria em minha vida estava conseguindo. Entrei na academia, iria continuar com o curso de idiomas, renovei meu guarda-roupa e tinha dinheiro pra sair quando quisesse, não era muito, mas dava pra me divertir. Após o treino, deixei a academia exausto. Com o corpo todo dolorido, embora não fosse longe da empresa, preferi pegar um ônibus pra chegar mais rápido e também pra não tomar aquela chuva. No meio do caminho meu celular começou a tocar. Tive que me retorcer todo para atender, pois em uma mão eu segurava a mochila pesada e abarrotada, na outra eu segurava o guarda-chuva. -Alô? -Nando? -Eu... -Tudo bem com você, meu gatinho? -Oi Gui, tudo e com você? -Melhor agora falando com você. Onde você está? -Acabei de sair da academia, estou entrando no ônibus pra ir trabalhar... 46


-Quando é que a gente vai se ver? -Não sei... Opa... -O que foi? -Quase caí do ônibus. -Ônibus? Por que você não me ligou que eu ia te buscar... -Não vou ficar te ligando por qualquer bobagem... -Não tem problema meu gatinho, por você vale qualquer sacrifício. -Humpft... -Eu fico preocupado com você... Imagine as pessoas te machucando dentro do ônibus... -Não precisa exagerar, não sou feito de vidro. -Adoro você, por isso me preocupo. -Também gosto de você. -Posso te buscar amanhã no serviço? -Pra quê? -Pra te ver, matar a saudade do seu cheiro, seu beijo... -Você sabe que eu não posso demorar se não acabo dormindo na rua, o metrô funciona até 00h30. -Até parece que eu vou deixar meu bebê dormir na rua, você dorme comigo na minha cama... -Hum... Preciso dar uma desculpa em casa. -Vou adorar passar a noite abraçadinho com você... -Gui, preciso desligar agora, pois vou descer do ônibus. -Tudo bem meu anjinho. Beijão pra você e bom trabalho. -Obrigado e outro pra você. Desliguei o celular e apertei o botão para sinalizar que eu ia descer. Coloquei a mochila nas costas e fiquei parado na porta aguardando o ônibus parar no ponto em frente ao mercado.

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Assim que desci do ônibus tive que abrir o guarda-chuva rapidamente, pois estava caindo o mundo naquela tarde. Fiquei ali no ponto parado aguardando o semáforo fechar para eu poder atravessar. É incrível que quando a gente tem pressa o mundo parece conspirar contra nós. Olhei no relógio já era 17h15 e eu tinha que me logar às 17h30. Com a falta de P.A eu acabaria me atrasando. Atravessei a rua correndo, em menos de cinco minutos cheguei no prédio. Logo na portaria já tinha uns sacos plásticos para colocar o guarda-chuva molhado. Ao passar pela porta de vidro levei um susto com o relâmpago seguido de um forte trovão, ainda ouvi um comentário das meninas da recepção que iria chover assim por três dias, segundo a previsão de tempo. Eu gostava de tempo meio chuvoso, mas aquele dia estava demais. Passei a “alma” na catraca segui até o hall do elevador onde apertei o botão para ele descer. Dali mesmo era possível ouvir os fortes travões que sacudiam a cidade lá fora. Confesso que estava com um pouco de medo, estando ali sozinho, apenas com uma placa do meu lado avisando que o piso estava molhado. O elevador parou no térreo, esperei que as três pessoas saíssem e entrei. Apertei o botão 11º e quando ele ia fechando a porta alguém grita pra eu segurá-la. -Peraê, peraê... -Opa! Fiquei segurando o botão para que a porta não fechasse e aquele atrasado não ter que ficar esperando outro elevador. Claro que fiz isso por pura solidariedade, até ver que o atrasado era aquele mesmo garoto que uma vez me tirou toda atenção no meu primeiro dia de escuta. Eu já nem me lembrava mais dele, quer dizer, achava que ele nem trabalhava mais na empresa. Mas ao vê-lo novamente meu coração disparou. Não sei o que aquele moleque tinha que me deixava sacudido daquela maneira, talvez o seu jeito de ser, olhar, alguma coisa ele tinha, não sei explicar o que era. -Valeu, hein... Minha voz travou. Quando a porta do elevador se fechou meu coração foi à mil. Ele encostou-se ao espelho perto do painel e eu fiquei tentando ver seu nome no crachá pendurado em seu pescoço, mas o nome e a foto estavam virados para o lado de dentro, sendo assim, só dava pra ver a parte de trás do crachá. Quase chegando no décimo primeiro andar o elevador simplesmente pára e fica tudo escuro. Com as mãos apoiadas nas paredes eu procurava pela câmera. Após um bip as luzes se apagaram e um foco ascendeu. Comecei a entrar em pânico. Sempre tive pavor de lugares apertados. Sentei no canto do elevador e comecei a sentir falta de ar, chorar de medo, minhas mãos tremiam sem parar. 48


-Meu Deus!... O que aconteceu? -Ué... O quê será que aconteceu? -Caramba... O que está acontecendo aqui? -Será que acabou a energia? -Estou sentindo falta de ar... -Nossa... Fique calmo... Preocupado comigo o garoto interfonou para pedir ajuda. -“Recepção...” -Eu... Preciso sair daqui... -Por favor, tem alguém aí? -“Estou lhe ouvindo, o que acontece?” -Estamos presos dentro do elevador. -"Eu peço que vocês tenham um pouco de paciência que já vamos tira-los daí. Quantas pessoas têm?" -Duas. -"Tudo bem, o prédio todo está sem energia, mas já estamos trabalhando para tira-los daí". -Valeu... Viu? Eles já estão vindo... -Eu não estou passando bem... Tirando a jaqueta ele se abaixou na minha frente e cara a cara me perguntou: -O que você está sentindo? -Falta de ar... -Levante a cabeça... Respire devagar... Comecei a ficar pálido, gelado, perdendo a voz aos poucos, deixando o garoto cada vez mais preocupado. -Estou começando a ficar preocupado com você... -Eu preciso sair daqui. -Já vão vir nos tirar... -Eu to com medo... -Não precisa ter medo, estou aqui contigo. Sentado no canto do elevador eu abaixei a cabeça e dobrei as pernas, trazendo os joelhos para próximo do peito. Para tentar amenizar, ele ligou o ventilador para o ar circular e amenizar a sensação de sufoco que ali estava. Depois ele abriu sua mochila e tirou um squeezer com água e me deu. -Vou ligar o ventilador pro ar circular... -Obrigado. -Pega... Bebe um pouco d'água... -Eu quero sair daqui... -Tenha mais um pouco de paciência, cara. Agora beba um pouco de água... -Humpft. Notei em seu olhar um sentimento de solidariedade. Um carinho com o próximo sem igual. Tentando me deixar mais à vontade, ele se sentou ao meu lado, colocou seu braço por trás do meu ombro e me trouxe pra junto de si. Meu coração acelerou como o motor de uma Ferrari. Um ato de solidariedade na tentativa de me confortar. Encostei minha cabeça em seu ombro quentinho e uma paz nasceu ao receber seu calor humano. Sua atitude não tirou meu medo, mas me ajudou muito naquele tempo em que ficamos presos dentro do elevador. 49


-Mano... Fica tranqüilo, eu estou aqui com você, iremos sair juntos dessa... -Eu não deveria ter saído de casa hoje. -Não fala assim... Deixa eu me apresentar, meu nome é Levy e o seu? -Fernando. -Prazer Fernando... Faz quanto tempo que você trabalha aqui? -Hoje faz três meses. -Opa... Depois temos que comemorar... -E você trabalha aqui há quanto tempo? -Fez quatro meses. Mas hoje você é o premiado, pois passou no período de experiência. -Hahaha. -Isso merece uma comemoração. -Comemoração merece a hora que eu sair daqui. -Então vamos comemorar duas vezes. Topa? -Por mim, tudo bem. -É “nóis” então. -Será que vão demorar muito pra nos tirar daqui? -Relaxa... Enquanto isso vamos ouvir um pouco de música. Tirando seu braço do meu ombro ele pegou sua mochila e tirou um MP3. Selecionou uma música e começamos a ouvir. -Escute essa música... Gosta de Legião Urbana? -Sim... Muito bonita. -Preste atenção na letra dela...

A cruz e a espada Havia um tempo em que eu vivia Um sentimento quase infantil Havia o medo e a timidez Todo um lado que você nunca viu Agora eu vejo, Aquele beijo era mesmo o fim Era o começo E o meu desejo se perdeu de mim E agora eu ando correndo tanto Procurando aquele novo lugar Aquela festa o que me resta Encontrar alguém legal pra ficar Agora eu vejo, Aquele beijo era mesmo o fim Era o começo E o meu desejo se perdeu de mim E agora é tarde, acordo tarde Do meu lado alguém que eu não conhecia Outra criança adulterada

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Pelos anos que a pintura escondia Agora eu vejo, Aquele beijo era o fim, ah era o fim Era o começo E o meu desejo se perdeu de mim E nunca mais, nunca mais, ou..

Intérprete: Renato Russo e Paulo Ricardo Composição: Renato Russo e Paulo Ricardo -Um pouco triste, né? -É... Me faz lembrar da minha mãe... -Em que sentido? -Ela... Ela fala de solidão... Amor... -Ah... Ela morreu? -Não, ela foi embora de casa quando eu era criança. -Desculpa. -Meu pai bebia muito, judiava de nós até que um dia ela saiu de casa e nunca mais voltou. -Vamos falar de coisas boas? -Demorô. -Qual a sua idade? -Tenho 19 anos e você? -Também. Quando tudo parecia estar indo bem o elevador começou a tremer. Pra mim que já havia me acalmado, foi o motivo que faltava para eu perder todo o controle e entrar em pânico. Um monte de besteiras começaram a se passar pela minha cabeça. Achei que o elevador estava caindo, imediatamente uma vontade de chorar enorme bateu em mim. Coloquei as mãos no rosto e comecei a rezar sem parar, mas logo minha agonia passou quando vi um bombeiro abrindo a porta. O elevador estava parado entre o nono e décimo andar, dificultando um pouco o trabalho dos bombeiros do prédio para nos tirar dali. -Ah meu Deus... Socorro... -Fica calmo, estamos juntos nessa... -Eu não quero morrer... -Você não vai morrer, confie em mim... Olha... Estão abrindo a porta... Com a metade da porta aberta o bombeiro perguntou: -Está tudo bem com vocês? -Sim. -Vou tirar um de cada vez daí de dentro... O Levy olhou pra mim, deu um sorriso e pediu para eu ir primeiro. -Vai você, Fernando. -Mas você... -Eu vou logo depois... Vá você primeiro. -Obrigado, Levy. Como o elevador estava parado entre dois andares, tivemos um pouco de dificuldade para sair de lá, pois era mais seguro sair pelo nono andar. Tive que deitar minha

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barriga no chão e ir saindo de costas, me arrastando, porque havia um espaço muito pequeno para passar, menos de cinqüenta cm pelos meus cálculos. Embora eu já estivesse sendo levado para a saleta do SESMT em segurança, a preocupação ainda me atormentava. Só consegui ficar bem depois de ver o Levy fora do elevador. Fui levado para o ambulatório no sétimo andar, subi carregado pelos bombeiros. Eu tremia o tempo todo. Sentia meu corpo mole, era uma sensação muito ruim. -Qual o ramal do seu supervisor? -59537... -Qual o nome dele? -Vivian. O Levy queria me acompanhar, mas os bombeiros e a enfermeira não permitiram que ele permanecesse na sala. -Você não pode ficar aqui... -Mas por quê? -São regras do condomínio. -Fernando... Vou ficar aqui fora esperando... -Por favor, volte pra operação. -Eu não vou voltar enquanto meu amigo não ficar bem. Tirando o fato de ter ficado preso dentro daquele local limitado, eu adorei ter conhecido aquele garoto que me enfeitiçou desde a primeira vez que o vi. Com seu jeito meio maloqueiro de moleque-homem. Sentado em uma cadeira de plástico, gelada, acompanhado pela enfermeira eu aguardava a Habiba chegar. Aquele ambiente era frio, meio triste. Um cheiro forte de álcool impregnava cada canto daquela sala. O vidro da janela entre aberto deixava que uma leve corrente de ar entrasse, balando a persiana de um lado pro outro. Enquanto esperava, peguei o celular e liguei para o Guilherme contando o ocorrido. -Alô? -Gui? -Oi Fe... -Adivinha onde estou agora? -Hum... Caminhando pelas areias de Miami Beach? -Hahaha... Não. -Comprando um presente bem bonito pra mim? -Errou. -Trabalhando? -Não... -Então desisto. -Estou no ambulatório da empresa... -Fazendo o quê? -Aguardando a supervisão chegar. Faltou energia no prédio e fiquei preso no elevador... -Coitado do meu bebê... Quer que eu vá até você? -Você não pode entrar aqui. -Eu não quero entrar ai, só quero seqüestrar você e te proteger. -Agora eu já estou bem, não se preocupe. -Não vou conseguir ficar em paz com essa notícia... -O que você está fazendo agora? 52


-Estou no trânsito voltando do fórum, acabei de sair de uma audiência. -Meu lindo, vou precisar desligar agora. -Humpft... Te adoro, sabia? -Eu também adoro você. Beijos! -Outro. Desliguei o telefone assim que vi a Habiba entrando na sala do SESMT, com uma cara de preocupação enorme, parecia que a notícia que havia chegado pra ela era das piores. -Habibo... O que aconteceu com você? -Fiquei preso no elevador, quase morri Habiba... -Tadinho do meu bebê... Quase morri de preocupação quando me contaram... -A senhora que é a supervisora dele? -Isso. -Eu sou a enfermeira... -Meu nome é Vivian. Como ele está? -Como a senhora pode ver, clinicamente não sofreu nada... -Foi só um susto, Habiba. -Mesmo assim habibinho, eu quase morri do coração. -Deixa de ser exagerada. -Ele já pode ser liberado? -Sim... Só preciso que a senhora assine a ficha dele... -Você quer ir pra casa, Nando? -Eu prefiro. -Ele está em condições de ir sozinho? -Olha... Ele não apresenta nenhum sintoma que o impeça de andar sozinho, foi apenas um susto que o deixou perturbado... -Então eu vou te liberar e desconto no seu banco de horas, ta bom? -Tudo bem. Obrigado Vivian... -Cuidado filho, a Habiba ama você! -Eu também te amo, Habiba! Deixei a sala do SESMT e cruzei com o Levy que me aguardava ansioso no hall do elevador. -Fernando... -Oi Levy. -Ta tudo bem com você, cara? -Tudo bem, não se preocupe. -Humpft... Menos mal. -Obrigado, Levy. -Obrigado pelo quê? -Por me dar força... -Eu só fiz o que meu coração pediu. -Valeu mesmo. -Relaxa, me dá aqui um abraço. -Opa... Demos um abraço apertado, caloroso, humano. Aquele jeito meio bruto, adquirido na criação de rua, me deixava mais louco ainda. Em seu rosto, uma leve barba por fazer dava um sombreado, que realçava o formato masculino e angelical. Permaneceria abraçado com ele por mais uma vida, se não fosse a Habiba chegar e atrapalhar. 53


-Nando, você não pode mais ficar aqui... -Eu estava me despedindo do Levy, Habiba. -Já se despediu? -A gente... -Então vamos, o Levy precisa logar... -Mas Habiba... -Levy, vai... Vai... -Humpft. -Falou, Nando. -Até mais, Levy. -Tchau habibinho... Melhoras pra você. -Obrigado. Saí da empresa e já havia anoitecido. A noite estava agradável, o céu estava limpo, apenas uma fina garoa ainda insistia em lavar os ares da cidade. Caminhando pela calçada molhada eu fui até o metrô, driblando as possas de água que haviam ficado por causa do temporal daquela tarde. Ninguém merece pegar metrô em horário de pico. As pessoas não respeitam as outras, empurram com brutalidade na pressa de embarcar. Tudo bem que existem pessoas que necessitam chegar cedo em casa, mas às vezes elas esquecem que habitam uma civilização, onde é necessário um respeitar o espaço do outro para se viver em harmonia. Quando desci do metrô foi um alívio, complicado era passar pela porta, já que as pessoas ali se aglomeram, impedindo nossa passagem, o que me deixava mais irritado ainda. Cheguei em casa e não havia ninguém. Fui até a cozinha beber um copo d'água quando escutei meu celular tocar. Voltei correndo para atender, eu sabia que estava na sala mas não lembrava onde havia jogado. Comecei a procurar pelos cantos do sofá até achá-lo embaixo da mochila. Olhei no olho mágico e no visor aparecia o telefone do Guilherme. -Alô? -Oi bebê... Você está bem? -Oi Gui, estou melhor e você? -Melhor agora falando com o garoto mais lindo do mundo. -Obrigado. -Onde você está agora? -Acabei de chegar em casa... -Queria tanto estar aí do seu lado te fazendo um carinho... -Hoje eu estou precisando... -Quer vir jantar comigo? -Quando? -Agora. -Já é tarde... -Não são nem 20h ainda. -Estou com preguiça de sair... -Nossa... Pensei que minha companhia te agradasse. -To brincando, eu topo sim jantar com você. -Então eu te encontro no mesmo local daquele dia, ok? -Ta certo, que horas? -Daqui à quinze minutos. -Não vai dar tempo... 54


-Corre gatinho, dá tempo sim. -Tudo bem, estou indo. Desliguei o telefone. Fui beber outro copo d’água e logo saí de casa. Esperei pelo Guilherme no mesmo local de antes. Como sempre, ele já estava lá aguardando minha chegada, todo cheirosinho. Avistei seu carro preto de vidro filmado no piscar do farol, sinal que ele fez para indicar onde estava. -Caramba, chegou rápido, hein? -Vim voando pra ver meu baby. -Hum... -Vamos pra minha casa que vou fazer um jantarzinho pra você. -Igual aquele primeiro? -Muito melhor. -Hum... O que vai preparar? -Surpresa. -Ah não vale... -Vale sim. Chegando em sua casa notei um clima pré-programado. A sala à meia luz exalava um leve aroma de maçã. Depois de trancar a porta, ele pegou pelo meu braço e me prendeu na parede, tomando-me em seus braços. Começamos a nos beijar. Seu jeito atrevido me deixava louco. Aquele beijo safado era muito bom, provocante, uma mescla de molhado e seco na medida certa. Sua língua atrevida, explorava minha boca como se fosse uma mina de diamantes. Às vezes ele mordia meu lábio, seguido de um leve sopro que me fazia arrepiar até a alma. -Gato... -Hum?... -Espere um pouquinho quê... Já volto. -Ta bom. Andei de um lado para o outro, curioso para saber o que o Guilherme iria aprontar. Enquanto ele ficava lá na cozinha fazendo barulho de pratos e talheres, fiquei observando a vista de fora pela sacada da sala. Dava pra ver as torres e antenas da Avenida Paulista ao fundo, que brilhavam como estrelas no céu. -Amor, você quer um pouco de vinho? -Eu não bebo, já te falei. -Humpft... Desculpa. Sorrateiramente ele foi se aproximando de mim, pegando levemente na minha cintura e me puxando pra junto de seu corpo. Demos um abraço gostoso e começamos a nos beijar. O Guilherme era uma pessoa apaixonante. Tudo que alguém sempre sonhou em ter na vida, bonito, carinhoso, romântico, o namorado perfeito. Seus beijos eram muito bons. Ele tinha uma forma de chupar minha língua, que até então ninguém nunca havia feito, talvez por já ter muito mais experiência do que eu.

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Ficamos ali na varanda da sala nos beijando por um bom tempo. De fundo ouvíamos o som da cidade de São Paulo que funciona 24 horas. O cenário, eram os prédios iluminados naquela noite quente e os protagonistas apenas nós dois. Não demorou muito e ele pegou pela minha mão e foi me levando até seu quarto. Ainda aos beijos ele fechou a porta e ascendeu a luz. Naquela sede de momento, ele me jogou em cima de sua cama e deitou seu corpo sobre meu, laçando suas pernas entre as minhas. Aquelas alturas eu já não tinha mais cabelo nem pudor. Parecia mais uma crina de cavalo de tanto que o Guilherme puxava no auge do orgasmo. Em pouco tempo nossos corpos já estavam nus e colados um ao outro. Sua pele branquinha já estava suada, um pouco vermelha por conta dos apertões que nos dávamos no bater do corpo a corpo. Às vezes os movimentos de ir e vir eram tão bruscos que dava pra ouvir seus dentes rangendo, intercalado com uma tremidinha tímida ao sentir as “fisgadas” de tesão. -Ah... -Hum... Hum... -Você está suando... -Já vai passar, não se preocupe... Você é muito gostoso, sabia? -Já me falaram isso... -E reforço, você é demais... Ouvir aquilo dele encheu minha bola. Imagine um cara tudo de bom na cama como ele era, elogiar minha performance, é de subir a auto-estima de qualquer um. Depois de terminarmos, seguimos até o banheiro pra tomar um banho e lavar os suores. -Amor, vamos tomar um banho antes de jantar? -Vamos! Segurando minha mão ele foi me levando até o banheiro. Entramos no box e continuamos a nos beijar deliciosamente. Por mim não pararia mais de beija-lo. Encostado na parede com seu corpo ele me prendia, me fazendo seu prisioneiro. Beijos e chupadas no pescoço eram intercalados com arranhões e apertões. A água quente que caia sobre nós, esquentava ainda mais o clima que ali rolava. -Não consigo mais parar de te beijar... -Nossa... Você é gostoso demais, cara. Quero ficar com você pra vida toda... -Também te acho demais. Após o banho, vestimos um roupão e fomos jantar. O tempo todo eu era o centro das atenções do Gui. Fui tratado como um rei, paparicado o tempo todo. Pra mim, conhecer o Guilherme foi a melhor coisa que já havia me acontecido. Não sei se eu merecia tanto, às vezes eu achava que estava sonhando, mas quando acordava via que era realidade, a mais pura realidade. -Está gostando? -Uhum... 56


-É simples, mas fiz com todo carinho. -Está ótima, amor! -Posso te buscar amanhã no serviço? -Pode! -Obaaaaa... Então me dá mais um beijo... Depois de jantarmos, fomos nos vestir. Não sabia o que estava acontecendo comigo, mas eu estava começando a gostar do Gui, de seu jeito, seu carinho, sua atenção comigo, ninguém até então havia me tratado como ele me tratava. Ao chegar em casa todos já estavam dormindo. Fechei a porta e deitei um pouco no sofá, fechei meus olhos e fiquei relembrando nossos momentos vividos há poucos instantes atrás. Seu cheiro ainda estava em minha pele. Meus pensamentos só vinham sua imagem. Eu acho que estava começando a me apaixonar pela melhor pessoa do mundo, o cara perfeito. Pensando nele eu adormeci. No outro dia acordei com o barulho de copos na cozinha, era meu pai fazendo café antes de ir trabalhar. Minha mãe ainda dormia e meu irmão já havia ido pra escola. -Bom dia, pai. -Bom dia, dormiu na sala por quê? -Deitei um pouco no sofá e acabei pegando no sono... -Vai deitar na sua cama. -Mais tarde eu vou... Humpft... Levantei do sofá e fui até o banheiro escovar os dentes. Vendo aquela água escorrer pela pia eu senti um frio na barriga. Por um instante meu olhar ficou paralisado. Comecei a achar que era bobagem minha, pois às vezes eu tinha uns pensamentos idiotas, umas idéias sem pé nem cabeça. À noite com o Guilherme havia sido ótima, porém, o Levy não me saia da cabeça. -O Fernando já acordou? -Está lá no banheiro... -Estão falando de mim? -O quê aconteceu que você dormiu na sala hoje, filho? -É que eu deitei no sofá e acabei pegando no sono... -Vai sair? -Agora não, vou checar meus e-mails e depois vou pra academia. -Não vai sair de casa sem almoçar... -Tudo bem. -Tem bife na geladeira, salada, comida pronta, é só esquentar no microondas. -Pode deixar. Fui para meu quarto e liguei o computador. Enquanto ele abria o sistema operacional eu fui colocar meu celular para carregar, pois a bateria já estava no fim. Já conectado na internet comecei a baixar meus e-mails, não havia muitos e um deles era do Guilherme. Um lindo cartão virtual que ele mandou desejando um ótimo dia. -Fernando, estamos indo... -Tchau mãe. -Beijo. Acabei esquecendo do tempo e ficando no pc até dar a hora de ir trabalhar. Saí de casa correndo. Cheguei na empresa 17h15, um pouco atrasado. Subi para o décimo primeiro andar e logo cruzei com a Doce no hall do elevador. -Aonde você vai? 57


-Vou procurar uma P.A. -Não tem... Lá dentro do breack está um forno de tão quente... -O ar condicionado daquele lugar parece que fica desligado. -Como sempre nunca tem P.A... Nosso banco de horas vai ficar negativo... Eu nem ligo mais, depois eu falo com a Habiba... -A empresa não pode descontar da gente algo que não é de nossa responsabilidade, se não tem P.A para eu me logar o problema é da empresa, eu cheguei no meu horário... -Vou descer lá no TS um pouco, vamos? -Não, vou esperar no breack. -Depois a gente se fala então. -Beijocas. Se meu saldo de banco de horas diminuísse por falta de P.A, eu iria armar um circo. Era um cúmulo que em uma multinacional como essas acontece esse tipo de situação. Se falta espaço na empresa, o ideal seria mudar para um espaço maior. Ao entrar na Ala C, segui direto para o breack que estava lotado. A supervisora Michele estava passando alguns avisos para seus operadores, assim que cheguei fui chamado pela Vivian. -Fe... Preciso falar com você, Habibo... -Diga, Habiba? -Junta aqui todos vocês... -Esperaí... -Rápido, Shirley. No corredor entre o breack e o banheiro masculino, nos reunimos para escutar a orientação da supervisão. -Está faltando a Paty e a Doce... -O quê tem eu? -Agora só falta a Doce... -Junta aqui, habibinha... Vou passar um aviso pra vocês. -Fala logo habiba. -Todos vocês estão vendo a dificuldade que estamos enfrentando por falta de P.A... -Ah... E ainda descontam do meu banco como se a culpa fosse minha. -Fernando... A empresa alugou um prédio no Centro e toda nossa operação vai se mudar pra lá... -Já tava mais que na hora. -Nossa operação cresceu muito, já não comporta mais nesses andares e não temos mais para onde crescer, pois o prédio já não tem mais andares disponíveis. -E quando a gente se muda? -A mudança está programada para o mês que vem... -Lá vai ter esse problema de P.A também? -Não. O andar em que vamos ficar é bem amplo, na operação vão ficar todos juntos... -Vou ter que ficar perto do pessoal do suporte? -Não começa, Shirley. -Habiba, eu não quero ficar perto do pessoal do suporte... -Nem eu Habiba. -Juliane e Shirley, o quê acontece? -Aqueles garotos são muito chatos, mal criados... -E têm uns que parece não tomar banho, outro dia até passei mal... 58


-Ai habibinha, depois a gente conversa sobre isso... Pessoal, eu quero que depois vocês façam uma lista com o nome de vocês, login, e o número do cartão lanche... -Mas pra quê? -Porque vai ser tudo alterado, vocês não terão mais cartão lanche, vai ser tudo em um cartão refeição que vocês poderão gastar em restaurante... As máquinas de lá estão adaptadas para esse novo cartão... -Habiba, pra quando está programada essa mudança? -No feriado de páscoa, habibo. Vocês se logam que horas? -17h30. -Todo mundo aqui é 17h30? -Sim. -Vou arrumar P.A pra vocês, mas fiquem aqui e quietos. Enquanto ela saiu, ficamos conversando sobre a mudança de site e tomando refrigerante em volta da mesa no breack. -Espero que la não tenha esse problema de P.A... -Você acredita em duende, Fernando? -Hahaha... -A gente... É possível que agora eles tenham acordado. -Humpft... Eu acho difícil. -Se eles já se propuseram a mudar de prédio, é porque vem uma melhora ai... -Bom... Desde que me provem o contrario, essa empresa só tem piorado. -Quem aqui loga às 17h30? -Outra vez? Já falamos que todo mundo aqui loga 17h30. -Vem dois comigo. -Vamos Ju. -Quero sentar perto de você, Nando. Fomos eu e a Juliane para a P.A que haviam nos arrumado. Preferia logar na Ala A, pois odiava a Ala C. Com aquele ar condicionado frio, tinha vezes que eu me sentia dentro de um freezer, mas foi o único lugar onde nos arrumaram posição. Acabei me logando atrasado como sempre, mas não por culpa minha, e sim pela falta de estrutura da empresa que parecia cruzar os braços quanto a isso. Assim que dei "Op Auto" começou a cair ligação, parecia que estava com fila no atendimento, pois era uma ligação atrás da outra. Em trinta minutos, atendi cerca de quinze ligações. Já não agüentava mais, até que senti alguém encostando a mão no meu ombro. -Habibo, pede um momento pro cliente. -"Aguarde um instante por gentileza"... O que foi, habiba? -Tem alguém procurando por você... -Quem? -Eu! Mal pude acreditar quando vi quem era. Pra mim foi uma surpresa enorme receber a visita do Levy. Por dentro eu estava gritando de felicidade. Comecei a tremer de nervoso que nem conseguia digitar as informações no sistema. -Tudo bem, Levy? -Beleza cara, e você? -Indo. -Fiquei preocupado contigo mano. -Você precisava ver como ele ficou depois daquele episódio, habibo... 59


-Não consegui ficar em paz, até pensei em te ligar, mas não tinha seu telefone. -Ah, valeu... Nessa hora, uma menina pegou uma bolsa que estava na P.A ao lado e saiu. -Será que a garota foi embora? -Parece que sim... Vê se ela não está em pausa?... -Não, deslogou mesmo. Vou vim pra cá... Guarda essa P.A pra mim?... -Bele. Enquanto ele foi buscar suas coisas no décimo terceiro andar, fiquei guardando a P.A ao lado para ninguém sentar ali. No início fiquei com um pouco de receio, ansioso, nervoso por ficar ao lado do garoto que conseguia me tirar atenção. Mas aos poucos fui ficando mais à vontade. -Voltei. -Já abri todos os programas pra você. -Opa, valeu cara.

Naquele dia trabalhamos um do lado do outro. Meu coração palpitou o tempo todo, minhas mãos estavam geladas. Conversando com o Levy, pude perceber que ele além de gatinho era meigo, simpático e muito divertido com suas palhaçadas. Tudo bem que eu me apaixonei por ele desde a primeira vez que o vi. Embora eu estivesse namorando e gostasse do meu namorado, às vezes eu suspirava involuntariamente pelo Levy, era algo confuso, gostar de duas pessoas ao mesmo tempo não é fácil, isso nunca havia acontecido comigo antes. Era estranho, porém eu tinha a certeza de que com o Levy eu não teria chances, pois ele curtia mulher e deveria ter namorada. -Você mora onde, Fernando? -Ipiranga, e você? -Eu moro em Pirituba. Você pega metrô? -Pego sim... -Antes de ir embora, me espera pra irmos juntos até o metrô? -Hoje eu vou de carro com um amigo, mas se você quiser eu posso te dar uma carona até a estação. -Então beleza cara. -Essa semana uma menina foi assaltada no ponto de ônibus aqui atrás. -Sério? -Pois é. -E como você costuma ir até o metrô? -Eu pego van... -Ah é, tem van aqui que leva até o metrô. 60


-Tem sim, a partir dás 22h. -Já tirou pausa? -Ainda não. -Quando for tirar, me avise. -Pode deixar. Comecei a achar que entre nós poderia rolar uma bonita amizade. Se eu não poderia ter o seu amor, tendo sua amizade já me bastava. Durante o expediente daquele dia conversamos bastante, rimos de algumas experiências com atendimento, foi muito legal. Assim que o relógio do monitor marcou 23h30 eu me desloguei. O Levy ainda estava atendendo um cliente, fiz sinal de que iria espera-lo no breack e saí. Sentei na mesa e fiquei tomando um suco de maracujá enquanto ele não deslogava. Quando dei a segunda golada meu celular tocou. -Alô? -Amor da minha vida, tudo bem com você? -Tudo ótimo, e com você? -Só irei ficar bem quando olhar pra você e te der uma beijoca... -Hum... -Sabe onde eu estou agora? -Não... -Na porta da empresa te esperando, você vai demorar? -Daqui a pouco estou descendo, vou esperar um colega que vai pro metrô sozinho, você se importa de dar carona pra ele? -Até o metrô? -Sim. -Claro que não, se é seu amigo então é gente boa. -Foi ele que me ajudou e estava comigo dentro do elevador... Amor, daqui a pouco eu desço. -Não demora, hein gatinho. -Tudo bem, beijos. -Outro. Desliguei o telefone e o Levy entrou no breack. Com aquele jeito de moleque maloqueiro ele levou a mão no bolso de trás de sua calça caída, mostrando parte de sua cueca branca. Tirou sua carteira e dela seu cartão lanche. Fiquei praticamente hipnotizado admirando aquela visão rara, mas logo fui despertado com o barulho da lata de refrigerante descendo pela máquina. -Vamos embora? -Vamos. -Desculpa a demora, é que caiu um cliente que não sabia nem o que era um “ícone”. -Nossa... Como uma pessoa dessa pode querer usar internet sem saber o básico? -Sei lá. Eu não trabalho para dar curso de informática pra ninguém... -Isso é muito ruim mesmo. -Hahaha... Eu perguntei pra ele qual era a marca do modem e ele me respondeu a marca da geladeira. -Não acredito... Hahaha... -Me deu uma vontade de rir... -Sorte que você não riu. -Quem disse que não? 61


-Você riu na cara dele? -Aí não, né. Coloquei no mudo antes. -Ah bom. Saímos pela porta da Ala C. Apertamos o botão do elevador que logo chegou. Antes de entrar, olhei para a cara dele que deu risada. Não consegui segurar o sorriso e caí na gargalhada também, pois relembramos o episódio da falta de energia no qual nos conhecemos. -Espero que não acabe a luz agora. -Hahaha... Seria muito azar. -Não fale assim. -Por quê? -Não foi um azar ter acabado a luz naquele dia... Pense pelo lado bom, a gente ficou amigos. -É verdade! Só respirei aliviado quando o elevador parou no térreo e a porta se abriu. Seria muito ruim ficar prezo no elevador pela segunda vez, mas por um lado seria bom, pois ficaria pertinho do Levy. Saímos do elevador e seguimos em direção à portaria. Passamos pela catraca e já pude ver o carro do Guilherme parado na porta me esperando. -Meu amigo já está nos esperando... -Será que ele não vai se importar de me dar uma carona? -Claro que não, eu já falei com ele, fique tranqüilo. -Beleza. Abri a porta do carro: -Gui... Esse é o Levy... -Beleza, Levy? -Firmeza e você? -Sussa. Vamos? -Como abre a porta? -Calma que está travada... Pronto. Entramos no carro e seguimos em direção ao metrô que não ficava muito longe dali. -Foi o Levy que me ajudou a superar o pânico dentro do elevador, Gui... -Ah, então foi você que ficou preso com o Nando? -É... -Bacana... Obrigado por cuidar dele por mim... -Como assim? -Nada, Levy. O Guilherme é muito brincalhão. -Ah... Não esquenta. -Levy, desculpa hoje não te acompanhar, é quê... -Relaxa Fernando. Bom, vou indo nessa... Falou galera... -Falou! Depois que o Levy saiu do carro o Guilherme arrancou em direção ao Centro. Pela sua cara ele não gostou muito da minha amizade com o Levy, ciúme bobo de namorado. -Pelo que to percebendo, você e esse seu novo amigo não se desgrudam mais... -Não exagera, Gui. -Ele também é? -É o quê? 62


-Perguntei se ele é gay? -Ah... Não, ele não é. -Sei... -O quê foi? -Eu falava a mesma coisa... -Hahaha... -Vou te deixar perto de casa, tudo bem? -Ta bom. Dizer com propriedade que o Levy não era gay eu não poderia, já que eu nunca havia lhe perguntado, pelo menos ele não tinha dado nenhum sinal de que era até então, mas se fosse com certeza me deixaria muito feliz. No outro dia acordei bem disposto. Cheguei na empresa um pouco mais cedo. Ao entrar no breack avistei o Levy cabisbaixo, sentado próximo à janela. Preocupado, me aproximei dele e tentei saber o que acontecia: -Levy?... -Oi Fernando... -Tudo bem? -Humpft... -Aconteceu alguma coisa, cara? -Humpft... Problemas e mais problemas... -Se eu puder ajudar... -Ah... Não quero te aborrecer com isso... -Imagina cara, se precisar, pode contar comigo. Que horas você se loga? -17h30. -Ainda são 16h00, quer ir até o shopping tomar um suco? -Humpft... Estou sem grana, mano. -Pare com isso, eu estou te convidando, deixa que eu pago. -Fico sem jeito... -Pare com isso... Somos amigos ou não? -Humpft... Tudo bem então, vamos. Deixamos o prédio da empresa e fomos até o shopping que ficava do outro lado da rua. Fiquei com o coração partido ao velo com aquela carinha triste, cabisbaixo. O Levy sempre se mostrou uma pessoa alegre, me ajudou quando precisei, me senti na obrigação de ajudá-lo no que eu pudesse. Passamos em uma lanchonete e pegamos dois sucos bem grandes. Escolhemos uma mesa em frente o elevador panorâmico e sentamos para conversar. -Olha, se você não quiser contar tudo bem, não se sinta forçado a nada... -Humpft... Na verdade eu to mesmo precisando desabafar, Fernando. -Se eu puder ajudar, pode contar comigo, Levy. -Obrigado, você está sendo muito legal. Meu coração quase saiu pela boca quando ele falou aquilo, fazendo sentir-me nas nuvens. Ouvir do cara que mexia com minha imaginação que eu era muito importante pra ele, me fez um bem enorme, uma limpeza na alma sem explicação. -Sabe Fernando... Eu e meu pai não nos damos muito bem... -Por quê? -Desde que minha mãe foi embora de casa o clima nunca mais foi o mesmo. -Você havia contato algo por cima... 63


-Ela nos deixou quando eu tinha oito anos, eu e minha irmã pequena, por causa do meu pai que quando bebia batia nela e na gente... -Que horror... -Hoje, antes de sair para trabalhar, acabamos brigando. Ele começou a querer quebrar tudo dentro de casa, minha irmãzinha correu pra baixo da cama assustada e chorando de medo... -Chega, chega... Ficar relembrando é pior... Pare de chorar, bebe o suco... -Desculpa estar te trazendo esses problemas, Fernando... -O quê você pretende fazer agora? -Não sei, não pretendo voltar pra casa hoje... -Onde pretende ficar? -Sinceramente?... Não sei. Só sei que pra casa hoje eu não volto. Nem que eu durma na rua. -Jamais vou permitir que isso aconteça... Se você quiser ficar na minha casa, eu ligo pra minha mãe e aviso que você vai dormir lá. -Já te trouxe muito aborrecimento, Fernando... Tocando em sua mão eu disse: -Pare com isso... Você me ajudou na hora que eu mais precisei, agora, é minha vez de retribuir pelo que você fez por mim. -Bom... Se é assim tudo bem, eu topo dormir na sua casa hoje. -Combinado. Agora vamos voltar se não vamos nos atrasar... -É mesmo. -Enxugue essas lágrimas e coloque um sorriso no rosto. -Beleza... -Agora ficou melhor. -Hahaha... -Você é demais, cara. -Pare com isso. Toda vez que eu entrava naquele elevador na presença do Levy eu tremia. Não sei se de medo ou de desejo em estar ao seu lado, mas de uma coisa eu tinha certeza, de que ele estava a cada dia que passava dominando meus pensamentos de uma tal forma que eu não conseguia controlar.

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Quando chegamos no décimo primeiro andar, o breack já estava vazio e a operação em silêncio, todo mundo já estava atendendo e se nós ficássemos dando sopa por ali sem ter encontrado uma P.A iriam nos chamar atenção, principalmente a Habiba, que vivia pegando no pé. -Levy, a gente têm que encontrar uma P.A antes que nos vejam... -Calma... Vamos para o décimo terceiro andar que tem P.A sobrando... -Mas eu não sou do suporte, tenho que me logar aqui... -Relaxa, se não tem P.A você precisa procurar em outro andar... -Humpft... Então vamos. Discretamente deixamos o décimo primeiro andar e subimos correndo e rindo pela escada de emergência até o décimo terceiro andar, onde haviam várias P.As na Ala C disponíveis. A cada degrau daquela escada me fazia fantasiar situações. Meus pensamentos já fugiam do meu controle, imaginar beijando o Levy naqueles degraus da saída de emergência me fizeram arrepiar até o ultimo fio de cabelo. -Levy, aqui está tudo quebrado... -Naquela fileira do fundo as máquinas funcionam... -Não gosto muito desse lugar, Levy... -Por quê? -Sei lá... Parece um cemitério... -Hahaha... Loga logo que já vai dar 17h30, Fernando. -É mesmo. -Depois a Habiba vê que você não está logado e vai te encher o saco. -Ah... Isso é verdade, do jeito que ela tem pegado no meu pé... Melancolia. Esse era o clima que pairava pelo ar naquele ambiente. Sentado ao meu lado, eu percebia no Levy uma preocupação com o mundo lá fora, cujo estava me incomodando. Embora eu quisesse ajuda-lo, não tinha o direito de invadir sua vida, preferi poupa-lo de más lembranças, se ele quisesse me contar algo, que fosse por vontade própria. -Você não está muito bem, Levy... -Humpft... To preocupado... -Por causa da briga com seu pai? -Também... Mas não por causa dele, e sim pela minha irmã... -Mais tarde vou ligar para minha mãe e avisar que você vai dormir lá em casa... -Mas Fernando... -Sem mais. Um amigo de verdade é capaz de dar a vida pelo outro, principalmente por um amigo como o Levy, cujo mexia comigo como nenhum outro garoto havia mexido até então. Eu não sei explicar o quê sentia por ele, seria possível gostar de duas pessoas ao mesmo tempo? 65


Por mais que eu gostasse de estar com o Guilherme, não conseguia sentir por ele o quê eu sentia pelo Levy. Nosso relacionamento ia super bem, o Guilherme era o homem perfeito, mas isso não era o suficiente para me fazer despertar um sentimento por ele que fosse além de carinho. -Que horas você vai tirar sua pausa, Nando? -Daqui a pouco, aproveito para ligar em casa e avisar que você vai dormir lá essa noite. -Tem certeza que não vai incomodar? -Você nunca incomoda, Levy. -Nossa, cara... Você é um amigão... "Eu não quero ser apenas um amigo". Era isso que eu queria dizer a ele, mas não tinha coragem. Assim que eu pensava toda vez que olhava para aquela boca bem desenhada, sonhando acordado em um dia poder tocar em seus lábios com os meus e ter a certeza de que ele seria meu por um dia, uma noite, uma hora ou um minuto que fosse. -Nando... Nando...? -Oi... -Presta atenção ae que caiu ligação... -Nossa... Estou viajando aqui... Obrigado Levy. -Por nada. Se eu continuasse a me entreter como vinha acontecendo ao ver a figura do Levy perto de mim, iria acabar dando na cara, eu precisava aprender a me controlar mais. -Até que enfim te encontrei... -Oi Ellen... -Cadê meu beijo? -Opa... -O quê vocês estão fazendo aqui sozinhos? -Não tinha P.A no décimo primeiro... -Mas o quê você foi fazer no décimo primeiro se seu andar de logar é aqui? -É porque vou fazer companhia ao meu amigo Fernando... -Prazer Fernando, Ellen... -Olá Ellen. -Vocês não querem ir pra Ala A? Tem P.A vazia por lá. -Depois nós vamos... -Vou esperar lá então. -Ta bom. Não sei o que deu em mim, mas comecei a sentir ciúme do Levy ao vê-lo olhar para a Ellen com olhos de cobiça. Seu decote ressaltava seu busto. Seu jeito de andar todo empinado chamava a atenção de vários homens da operação. Não sei o quê ele estava fazendo na operação do Help Desk, já que ela era Contas, igual a mim. -Essa Ellen... -O quê tem ela? -É boa demais... Pena que não me dá bola... Ainda bem, pensei. Dei um sorriso amarelo querendo matar aquela lambisgóia que desviou a atenção do Levy pra ela, tudo bem que eu não teria chances com ele, mas me entristecia pensar na idéia de rolar algo entre o Levy e outra pessoa, preferia nem pensar nisso. Egoísmo da minha parte, mas todo mundo que gosta se torna um pouco egoísta.

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Na hora do breack liguei pra minha mãe e avisei que levaria um amigo para dormir em casa. Pedi para ela arrumar o colchonete no meu quarto, assim quando chegássemos não precisaríamos fazer muito barulho nem bagunça. -Avisou a sua mãe que vou dormir na sua casa hoje? -Sim senhor... -E ela...? -Falou que tudo bem... Você vai ligar na sua casa pra avisar? -Não... -Por quê? -Porque não. -Ok. Desculpa. Notei que ele não queria mesmo dar notícias à sua família em casa. Pelo visto a coisa era muito séria, mas preferi não aprofundar para não chateá-lo, se ele quisesse falar algo, que fosse por espontânea vontade. Antes de ir embora, passei na copa pra pegar um refrigerante. Logo em seguida ele chegou meio cabisbaixo, com uma sombra cobrindo seus lindos olhos castanhos. -Chegou ao fim mais um dia de trabalho... Põe um sorriso nesse rosto, Levy. -Humpft... Com um olhar perdido ele deu um leve sorriso e veio até mim. Soltei um leve suspiro e olhei nos seus tristes olhos, sem que eu esperasse, ele me deu um abraço e começou a chorar, com sua cabeça deitada em meu ombro. A segurei tocando em sua nuca, sem saber o quê fazer ou dizer, apenas deixei que ele desabafasse seus conflitos internos. Meu coração palpitava de emoção e tristeza ao mesmo tempo. Por um lado eu estava abraçado com o Levy, que era a minha paixão. Mas em um clima de tristeza total que me partia a alma. Eu queria poder apertar um botão e resolver todos os seus problemas, me sentia inútil ao vê-lo naquela situação e não poder fazer nada para ajuda-lo. Ficamos assim abraçados até a Ellen entrar no breack para atrapalhar, com aquele jeito de puta que ela tinha, veio logo querendo saber o que estava acontecendo. -Levy... Por que você está chorando? -Nada não... -Como, nada? -Problemas pessoais... -Ah... Maldita. Só de vê-la, o Levy já mudava. Não que eu tivesse algo contra ela, de início eu até me simpatizava com sua pessoa, mas depois que ela começou a despertar algo no Levy eu passei a odiá-la. -Vamos, Fernando? -Aonde vocês vão? -Pra casa. -Ah que pena, eu ia chamar vocês pra uma balada hoje... -Bom... -Não vai dar, hoje não estamos em clima para balada, também não temos grana... -Se o problema for dinheiro deixa comigo, eu tenho uns VIPs aqui... -Valeu pelo convite, fica para a próxima. -Vocês que sabem.

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Quando eu percebi que o Levy ia aceitando sair com ela, interferi na mesma hora. Até parece que eu ia dar uma brecha para esses dois se aproximarem. Tudo bem que eu não tinha esse direito de interferir na vida do Levy ou da Ellen, mas se tratando da pessoa que ela era, eu me sentia na obrigação de livrar o meu amigo dessa armadilha, afinal, ela não era uma pessoa muito confiável e tinha uma vida torta, além de ser mal falada pelos garotos da operação. Descemos até o térreo e seguimos para o estacionamento, onde pegamos a van que nos levara até o metrô. Nesse período de tempo o Levy não abriu a boca, até entrarmos no metrô. -Sabe quando seu corpo está em um lugar e sua cabeça está em outro bem longe? -Sei... -Pois é... Hoje estou assim... -Entendo... Levy, conte comigo para o quê precisar, quero te ajudar no que for possível, somos amigos, certo? -Certo... Mudando de assunto, o quê você acha da Ellen? -Uma garota sem conteúdo, um pouco vulgar. Por quê? -Porque eu to afim dela... Na mesma hora tive vontade de descer na próxima estação do metrô e sair sem rumo, chorando até esgotar a última lágrima. Não é fácil você ouvir de alguém que você gosta que ela deseja outra pessoa. É como levar uma flechada no coração e logo em seguida puxa-la sem dó. Meu humor mudou no mesmo instante. Na tentativa de não prolongar o assunto, comecei a falar de outra coisa. -Chegando em casa já terá comida fresquinha esperando a gente... -Hum... Faz tempo que eu não como uma comidinha caseira... -Nossa, você não janta na sua casa? -Não. Minha madrasta é muito ruim, não liga pra mim nem para a minha irmã e o meu pai vive mais bêbado que sóbrio... -Chegando em casa você vai tomar um banho e jantar na mesa junto comigo. -E sua família? -Já vão estar dormindo. -Ah... Beleza. -Não fique assim, cara. -Humpft... Mano... Se eu te pedir uma coisa, promete quê... -Pedir? -É... -O quê você quer pedir? -Promete que não sairá da minha vida? -Como assim? -Nunca tive um amigo assim como você. Os amigos que tenho só servem pra sair na balada, catar as minas... O mais importante em uma amizade eu não tenho... -O quê é mais importante em uma amizade pra você? -Esse companheirismo... A atenção que você me dá, tentando me ajudar com os problemas... Nunca ninguém se interessou em saber um pouco mais sobre mim... -Eu me interesso porquê... Porquê... Bom... É porque você é um cara bacana, sempre ajudei meus amigos e quando você me ajudou naquele elevador... -Ah... Sei lá... Você é muito legal... Obrigado, Nando. 68


Ao chegar em casa avistei pelo portão que a luz da sala estava acesa. Ao entrar, tranquei a porta e segui em direção à cozinha. Todos na casa já dormiam. Sobre o fogão haviam panelas com comida fresquinha que minha mãe havia feito. Abri a gaveta do armário e peguei os talheres, forrei uma toalha na mesa e ajeitei tudo para jantarmos. -Pode deixar sua mochila lá no sofá... -Não tem problema? -Claro que não... -O cheirinho da comida está ótimo... -Pode sentar aí, Levy. -Valeu... -Você vai querer jantar primeiro ou tomar banho? -Se for possível eu queria tomar um banho antes... -Bom... Você deve estar exausto... Esperai que eu vou buscar uma toalha e uma roupa minha pra você vestir... Já pode ir pro banheiro se quiser, te levo lá depois... -Tudo bem. -É só subir a escada, fica no final do corredor. -Valeu, Nando. Peguei minha mochila junto com a do Levy e fui até meu quarto. Deixei-as sobre a cadeira da escrivaninha. Com cuidado, abri o guarda-roupa e peguei uma toalha de banho, depois peguei três peças de roupa e saí de fininho para não acordar meu irmão que já estava dormindo. Segui até o banheiro e bati na porta. Assim que ele abriu, eu lhe entreguei as roupas, tremendo de nervoso, pois não imaginaria que ele iria abrir toda a porta do banheiro, se mostrando nu na minha frente. -Levy... Aqui está a toalha... E as roupas pra você dormir... -Obrigado... Nando. -A... Ali no canto tem xampu, sabonete... -Não esquenta mano, eu me viro. -Enquanto... Você toma banho eu... Vou arrumando a mesa para jantarmos. -Beleza. Voltei para a cozinha suando com a “paisagem” que havia acabado de ver. Ainda tremendo, arrumei os copos sobre a mesa, talheres e pratos. Ao tirar a jarra de suco da geladeira, avistei o Levy parado na porta da cozinha encostado no batente da porta. Foi engraçado vê-lo vestindo minhas roupas. É estranho você ver uma pessoa usando algo que é seu, e vê-lo vestido de "Fernando" me fez cair na gargalhada. -Hahaha... -Do que você está rindo? -Você está vestido de Fernando... -Hahaha... Pois é... -Se sente melhor agora? -Bem melhor! -Você gosta de comida morna ou quente? -Quente... -Então vai ter que por no microondas, porque a comida já está quase fria... -Sem problemas, eu como assim mesmo... -Nada disso, sirva-se aí que eu esquento pra você. 69


-Ta bom. Enquanto ele se servia, sentei à mesa e fiquei o observando. Parecia estar hipnotizado por aquele moreno de cabelo liso que parecia um índio. -Por que você está me olhando desse jeito? -Nada não... -Tem certeza? -Sim... É um pouco estranho ver minhas roupas em outra pessoa... -Hahaha... Você não vai jantar? -Daqui a pouco, deixa seu prato esquentar que eu me sirvo... Você quer suco ou refrigerante? -Suco de quê? -De goiaba, fui eu que fiz hoje... -Pode ser... -Pode pegar aqui. Sentamos à mesa e começamos a jantar. Não que eu ficasse reparando esses tipos de coisas, mas o Levy parecia que não comia há dias. Só de pensar, meu coração se partia. Ele deveria sofrer muito com seu pai alcoólatra e sua madrasta sem coração. -Está boa a comida? -Está ótima, sua mãe cozinha muito bem... -Quer mais salada? -Quero sim. -Pode pegar... -Valeu. -Se você quiser mais suco, mais comida, é só pegar, não precisa pedir. -Pode deixar... -Humpft... Eu estava pensando... -Em quê? -Foi o destino que nos colocou um no caminho do outro. -Você acredita nessas coisas? -Sim. -Eu acho que cada um faz seu destino. -Também acho, mas sempre vem o ponta-pé inicial... -Bom... Isso é muito relativo. -Então você acredita que foi um acaso aquele incidente no elevador? -Não... Pra mim, nada na vida acontece por acaso. -Então você acredita que nosso primeiro encontro não foi um acaso? -Sim... Algum motivo deve ter... Algum propósito... -E como saberemos? -Não sei... Só o tempo pra dizer... A companhia do Levy me fazia muito bem. Eu poderia passar horas olhando pra ele sem me cansar. Sua beleza não tinha nada de extraordinária, pois era um garoto simples, mas que tinha algo encantador que me prendia atenção, isso eu não poderia negar. Depois de jantarmos retiramos toda a louça da mesa. Demos uma leve arrumada na bagunça e subimos para o quarto. Peguei um cobertor e entreguei ao Levy que deitou no colchão que minha mãe havia arrumado entre a minha cama e a do meu irmão. Depois disso, peguei uma roupa e segui

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para o banheiro. Eu estava exausto e precisava tomar outro banho, só assim conseguiria dormir bem gostoso.

O nervoso tomou conta de mim. A espuma do xampu escorria pelo meu olho que fechado relembrava os momentos que passei com o Levy. Cada toque em minha pele era como se uma corrente elétrica percorresse minhas veias, causando um tremendo tumulto dentro de mim. Ao sair do banho fui para o quarto, caminhando na ponta dos pés para não fazer barulho e acordar todos que já dormiam. Pulei o colchão onde o Levy dormia e deitei na minha cama. No lado direito da cabeceira, havia um abat-jour ligado que proporcionava uma meia luz no quarto, projetando nossas sombras na parede próximo à porta. Puxei o cobertor para cima de mim e encostei a cabeça no travesseiro. Não conseguia fechar os olhos, admirando o Levy dormir. Sem camisa e com a metade do corpo coberto ele respirava tranqüilamente em um sono profundo. Quando a gente gosta de alguém, parece que voltamos a ser criança. Não existe dia ruim, as cores se realçam aos nossos olhos, rimos de qualquer coisa. Amar alguém é muito bom e essa era a primeira vez que eu sentia isso por alguém. Pode ser que não fosse amor, mas pelo Levy meu coração batia em um ritmo composto por uma melodia ao pronunciar seu nome. Eu gostaria de poder mandar nos sentimentos, mas para minha tristeza o garoto que eu estava amando era heterossexual. Passei a noite inteira olhando o Levy dormir. Observando cada movimento seu. De tanto observar já conseguia cronometrar o ritmo da sua respiração. Uma vontade louca de deitar minha cabeça naquele peitoral moreno me perturbava. Pensei em me levantar e ir até ele, tocar em sua pele, encostar meus lábios nos seus, mas realizar essa vontade não seria possível, porém sonhar não me custava nada e era a única coisa que me restava. No dia seguinte acordei cheio de olheiras, pois pouco havia dormido à noite observando o meu amor. Em casa só estávamos eu e o Levy. Meu irmão havia ido para a escola e meus pais estavam trabalhando. Levantei da cama e fui até o banheiro escovar os dentes. Olhei no relógio do corredor dos quartos e já eram quase 10h. Ao sair do banheiro, desci até a cozinha e coloquei uns pães de queijo congelados para irem assando. Enquanto isso, liguei a cafeteira e deixei preparando o café. Voltei ao quarto e me sentei na beirada da cama, esperando o Levy acordar. Não demorou muito ele abriu os olhos. -Bom dia! -Bom dia, dormiu bem? -Nossa... Muito bem... -Te acordei? 71


-Não... O que você estava fazendo? -Observando você dormir... -Por quê? -Deu vontade, não posso? -Ah... Pode... Sem problema... Quando ele começou a se espreguiçar e se retorcer no colchão quase fiquei louco. Vendo um pedaço da sua cueca e a entradinha da sua virilha abaixo do umbigo, pegando um pedacinho do pubs. Comecei a suar frio, na mesma hora desviei o olhar para não fazer uma besteira. Levantei da cama e fui até a porta do quarto. -Que cheiro de café gostoso... -Está quase pronto, se você quiser tomar um banho fique à vontade. -Valeu cara. Daqui a pouco eu preciso ir... -Mas já? -Tenho que passar em casa pra ver como estão as coisas por lá... -Você fez uma cara de tristeza... -Humpft... Deixa pra lá... Você quer ir comigo? -Se você quiser eu vou... Mas antes vamos descer e tomar café... -Beleza, deixa só eu escovar os dentes... -Vou pegar uma escova pra você. -Não se preocupe, eu escovo com o dedo. -Claro que não, tem uma escova de dente aqui novinha, pode usa-la. -Brigadão mano. -Eu vou descer pra ver se os pães de queijo já assaram e se o café já ficou pronto... -Beleza, já desço lá também. -Ta bom. Enquanto ele fazia sua higiene pessoal, desci até a cozinha e o café já havia ficado pronto, os pães de queijo também já tinham assado e estavam douradinhos. Desliguei o forno e comecei a arrumar a mesa para tomarmos café da manhã. Ainda sem camisa e com minha bermuda, o Levy entrou na cozinha. Quase derrubei o bule de vidro com café no chão, tamanho foi o impacto que recebi ao vê-lo naqueles trajes. Aquele garoto me despertava um tesão sem igual. -Cuidado ai... O quê aconteceu com você? -Nada não... Uma leve tontura apenas... -Cuidado cara. Você está bem? -Sinceramente? Não. -O quê você tem? -Melhor não entramos nesses detalhes... -Não entendi... -Não precisa entender. Você vai querer leite? -Só um pouco. Tem pão francês, pão de queijo, manteiga, requeijão... -Hum... -Tem salame na geladeira também, você quer? -Opa... -Vou pegar então... Olha só, tem mussarela aqui... -Traz também. -Hahaha... Quer geléia? -Não, prefiro comer salgado pela manhã. 72


Apesar da tristeza que pairava no olhar do Levy, tomar café da manhã em sua companhia foi ótimo. Ele era muito divertido, atencioso, tudo que eu queria e sonhava para mim, pena não poder concretizar esse sonho da maneira que eu queria. Depois de tomarmos café fomos até a casa dele para ver como estava sua irmã. Praticamente ele ficou calado o caminho inteiro, com o olhar perdido, triste. Ao chegar, percebi o receio do Levy ao abrir o portão de sua casa. No quintal havia alguns brinquedos caídos pelo chão, provável que seria de sua irmã. Caminhamos em direção a uma porta de madeira que dava acesso à cozinha por onde entramos. Senti um arrepio ao ouvir o barulho dela arrastar pelo chão e ranger. Simples e humilde, assim era sua casa. No canto do teto da cozinha, havia uma mancha de goteira que escorria pela parede, dava pra notar pelos móveis gastos que sua vida não era fácil. Sobre o fogão um pano cobria as panelas. -Levy... -Oh Vanessa... Essa é minha irmã, Nando. -Quem é ele? -É um amigo meu. -Tudo bem, Vanessa? -Tudo. A felicidade da sua irmã ao ver o Levy era de impressionar. O carinho que um demonstrava ter pelo outro, mostrava que ambos eram muito apegados, porém, a alegria durou só até seu pai chegar bêbado. -O quê você está fazendo aqui, vagabundo? -Como assim? Aqui é minha casa... -Sua casa? Você não tem mais casa. Os olhos de pânico que a Vanessa fez ao ver seu pai chegando em casa me chamaram atenção. Por que será que ao vê-lo seu comportamento mudou tão de repente? O quê dava a entender que o clima de brigas era constante no ambiente familiar. O Brasil detém o 1° lugar do mundo no consumo de destilados cachaça. O alcoolismo é uma doença crônica, incurável e progressiva, que mina o organismo, atacando todos os órgãos. -Levy, eu to com fome... -Você ainda não almoçou? -Não. -Eu vou fazer alguma coisa pra você comer, ta? -Oba! -Hahaha... Muito bonita sua irmã! -Puxou o irmão. -Convencido... -Ah... Confessa vai, eu não sou gostoso? Que o Levy era gostoso eu não tinha dúvidas. Mas responder à sua pergunta me deixou um pouco sem graça, pois quase soltei uma besteira. Pra ele tudo não passava de brincadeira, mas o quê eu via nele ia além disso. Seu pai estava transtornado. Parecia possuído e dominado pelo álcool que deveria ter consumido. Seus olhos só faltavam cuspir fogo de tanto ódio, porém, um ódio sem motivo algum, tendo um filho maravilhoso como o Levy e uma criança encantadora que era a Vanessa. 73


O alcoólatra de "primeira viagem" sempre tem a impressão de que pode parar quando quiser e afirma: "quando eu quiser, eu paro". Essa frase geralmente encobre o alcoolismo incipiente e resistente, pois o paciente nega qualquer problema relacionado ao álcool, mesmo que os outros não acreditem, ele próprio acredita na ilusão que criou. -Vamos ver o quê eu vou fazer pra minha princesinha... -Você não vai fazer porra nenhuma... -Não começa... Eu não vou deixar minha irmã com fome. -Senhor, por favor, releve isso, se não for pelo Levy que seja pela sua filha que é uma criança e não tem culpa de nada... -Mas quem é você? -Sou amigo do seu filho. -Amigo... Você é mais um desses vagabundos com quem ele anda... -Não fale assim dele, pai... -Não levanta a voz pra mim, seu filho da puta. -Lava sua boca imunda pra falar da minha mãe... Nessa hora ele pegou um prato vazio que estava sobre a mesa e mirou bem na cabeça do Levy que estava de costas para ele. Prevendo que uma tragédia poderia acontecer, corri em sua direção para tira-lo do alvo de seu pai, se aquele prato atingisse o amor da minha vida acabaria o matando. -Cuidado, Levy! Entrei em sua frente e recebi a pancada do prato que se quebrou ao bater no meu ombro. Na hora eu nem senti. O impacto me fez cair no chão e bater a cabeça na parede. Inconformado com aquilo, o Levy me pegou pelos braços e preocupado tentava me reanimar. Assustada com a reação de seu pai, a Vanessa se escondeu embaixo da mesa e começou a chorar, seus gritos chamaram atenção dos vizinhos que chamaram a polícia. Nas síndromes alcoólicas, pode-se encontrar quase todas as patologias psiquiátricas: estados de euforia patológica, depressões, estados de ansiedade na abstinência, delírios e alucinações, perda de memória e comportamento desajustado. -Nando... Olha o quê você fez... Seu animal... Nando, você está bem? -Calma... Machucou um pouco, mas estou bem... -Você precisa ir ao pronto socorro agora... Ao ver o sangue sendo absorvido pela minha camiseta, me dei conta que a situação era mais grave do que eu pensava. Preocupado com meu estado, o Levy me pegou no colo e foi até a casa do visinho ao lado pedir ajuda para nos levar até o hospital. A pessoa que abusa de álcool não é necessariamente alcoólatra, ou seja, dependente e faz uso continuado. O critério de abuso existe para caracterizar as pessoas que eventualmente, mas recorrentemente têm problemas por causa dos exagerados consumos de álcool em curtos períodos de tempo. À medida que o alcoolismo avança, as repercussões sobre o corpo se agravam. Os órgãos mais atingidos são: o cérebro, trato digestivo, coração, músculos, sangue, glândulas hormonais.

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Chegamos na enfermaria e fui atendido prontamente pela equipe de plantão. Sentado em uma cadeira de rodas fui levado até uma sala onde uma enfermeira me recebeu. O Levy permaneceu ao meu lado o tempo todo me dando força. Enquanto a higienização era feita na ferida, um auxiliar ia fazendo algumas perguntas com uma prancheta na mão. -Como foi que você se feriu assim? -Ele estava em casa e meu pai... -Foi quando o pai dele abriu a porta do armário e um prato que estava apoiado caiu sobre o meu ombro... -Certo. -Eu vou buscar esparadrapo e já volto. -Ta bom. Enquanto a enfermeira foi buscar mais esparadrapo e o auxiliar levar o relatório, sem entender minha justificativa o Levy se aproximou de mim e começou a questionar o por quê eu havia mentido sobre o ocorrido em sua casa. -Eu não entendo... -O quê? -O motivo pelo qual você mentiu... -Eu não menti. -Mentiu sim, você disse que foi um acidente quando não foi. -Foi um acidente, eu já disse que não menti, te poupei de um problema... -Que problema? -Imagina eu revelar a verdade, você já pensou o quê aconteceria? -Meu pai no mínimo seria preso. -Não só isso, mas sua família seria desestruturada... Imagine a sua irmã vendo o pai dela saindo de casa algemado pela polícia... -Eu... -Agora pense você como ficaria a cabecinha dela... -Humpft... -Já chegam as cenas de bebedeira que ela presencia, que vão refletir em sua personalidade no futuro... Existem coisas em nossas vidas que precisamos pensar muito bem antes de fazer e nas conseqüências em que elas podem trazer, agir por impulso é a pior burrice que o ser humano pode fazer...

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Emocionado o Levy me deu um forte abraço. Soltei um leve suspiro ao sentir o calor de seu corpo junto ao meu. Milhões de crianças e adolescentes convivem com algum parente alcoólatra no Brasil. As estatísticas mostram que eles estarão mais sujeitos a problemas emocionais e psiquiátricos do que a população desta faixa etária não exposta ao problema, o que de forma alguma significa que todos eles serão afetados. Na verdade, 59% não desenvolvem nenhum problema. O primeiro problema que pode ser citado é a baixa autoestima e auto-imagem com conseqüentes repercussões negativas sobre o rendimento escolar e demais áreas do funcionamento mental, inclusive em testes de QI. Esses adolescentes e crianças tendem quando examinados a subestimarem suas próprias capacidades e qualidades. Outros problemas comuns em filhos e parentes de alcoólatras são persistência em mentiras, roubo, conflitos e brigas com colegas, vadiagem e problemas com o colégio. (FOB, 2006: 01)

No qual a irmã do Levy já começava a demonstrar. Abraçados um ao outro trocávamos calor humano. Sem querer ele esbarrou no meu ombro ferido, levando um susto com o gemido que eu soltei. -Au! -Caraca!... Desculpa? -Não foi nada. -Pronto... Vamos terminar o curativo nesse ombro? -Eu pensei que já tivesse terminado. -Só vou finalizar com um pedacinho de gaze. -Ah... -Quanto tempo vai levar para ele se recuperar? -Vai depender do metabolismo dele... Em menos de uma semana acho que já estará curado. Olhando para a cara do Levy e querendo dar risada eu me virei para a enfermeira terminar o curativo. Por mais que eu tentasse amenizar aquele clima que ficou após o ocorrido, não foi fácil estampar um sorriso naquele rostinho lindo. Ele parecia se sentir culpado por tudo que aconteceu, quando na verdade ele também era uma vítima, assim como eu. Sempre tive uma mania meio de psicólogo. Adorava ficar observando o comportamento das pessoas e tentar analisar sua personalidade. Reparando no Levy, pude perceber que toda aquela sua alegria era um disfarce para esconder a tristeza e carência acumulada em seu interior. -Nando, eu não sei como te agradecer... -Mas eu sei. -Como? -Não se afastando de mim, nunca.

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-Nando, você apareceu na minha vida no momento perfeito, quando eu mais precisava. Obrigado! -Eu é que tenho de agradecer... Demos um forte abraço na esquina da Avenida Paulista com a Consolação. O tempo parecia ter parado, era como se na rua só existissem nós dois. Sentir sua pele junto a minha me fazia muito bem, seu cheiro alimentava meu espírito e fortalecia minha alma, assim nos despedimos. Quando estava quase chegando em casa meu celular começou a tocar. Eu havia acabado de sair do metrô. Tirei o aparelho do bolso e com um pouco de dificuldade atendi. -Alô? -Amor da minha vida, posso te buscar na saída do seu serviço hoje? -Não fui trabalhar, peguei 3 dias de atestado por causa de um acidente... -Que história é essa de acidente? Você está bem? -Calma, eu estou ótimo, depois te explico... -Eu quero te ver. -Me liga amanhã e nós marcamos. -Você não entendeu, eu quero te ver agora... -Mas... -Te encontro em meia hora em frente o Parque da Independência. -Humpft... Ta bom. Passei em casa, deixei a mochila, troquei de roupa e saí novamente para encontrar o Guilherme. Ao chegar em frente o Parque da Independência avistei seu carro encostado ao lado de um trailer. -Faz tempo que você chegou? -Não, cheguei agora. Você está bem? -Já disse que sim, não precisa ficar tão preocupado... -É natural que eu me preocupe com você, eu te amo e quero o seu bem... -Eu sei, Gui. -Como isso aconteceu? Segurando minha mão e olhando no meu olho ele falava preocupado, atitude natural de alguém que ama: -Eu estava na casa do Levy quando... -Ah o Levy... Sempre o Levy... Por que esse garoto sempre tem que estar junto quando algo de ruim acontece com você? -Não fale assim dele. -O quê foi agora? Vai defender aquele idiota? -Ele não é nenhum idiota... O ciúme tomou conta do Guilherme, fazendo com que ele tivesse uma atitude agressiva e inesperada. Segurando em meu braço com força e apertando cada vez mais ele dizia: -Escute bem o quê eu vou te falar, Fernando... -Guilherme... Você está me machucando... -Desculpa... Humpft... -O que aconteceu com você? Nunca te vi nesse estado... Olha a marca que você deixou no meu braço?... -Amor, me perdoe... É que eu sinto ciúme de você com aquele moleque. -Você tem motivos pra isso? 77


-Humpft... Não. -Estou decepcionado com você, Guilherme. Abri a porta do carro e desci correndo, chorando de medo e decepção ao mesmo tempo. Fiquei assustado com aquela crise de ciúme do Guilherme comigo, jamais esperava tal reação. Quando cheguei em casa corri para o meu quarto e me tranquei para chorar um pouco. Com a cabeça coberta pelo travesseiro eu adormeci. No dia seguinte tive que ir até a empresa levar o atestado médico. Ao entrar na operação avistei a Shirley que estava tomando um café no breack. -Nando... -Oi Shirley! -O quê aconteceu com você? -Por quê? -Essa mancha roxa no seu braço... Eu nem tinha reparado nas marcas que o Guilherme havia deixado no meu braço, só fui me dar conta depois do comentário da Shirley. -Ah... Isso aqui foi... Eu bati no ônibus ontem. -Nossa... Mas você está melhor? -Estou sim! -É um absurdo esses ônibus, né?... -Pois é... Agora deixa eu procurar a Habiba que preciso falar com ela. -Acho que ela está na Ala B. -Brigadu! Segui até a Ala B e lá estava a Habiba, sentada em frente o computador e comendo, como ela sempre fazia. -Oi habibinha! -Oi filho, ta atrasado... -Hoje não vou logar, Vivian. Vim te trazer o atestado... -Mas o quê aconteceu, habibo? -Sofri um acidente ontem. -Que acidente? -No ônibus, acabei machucando o ombro... -Ônibus... Humpft... Fale a verdade pra mim, Fernando. -Como assim? -Não precisa mentir pra mim, você sabe disso. -Mas Habiba... -Hoje o Levy veio até mim e me contou o quê aconteceu com vocês. -Humpft... -Eu achei muito nobre da sua parte querer poupar seu amigo de algum problema, por seu pai sofrer com problemas de dependência química... -Desculpa Habiba. -Imagina, eu tenho mais é que sentir orgulho de você... -Ah... Aqui está o atestado. -Ta bom, Habibo. -Você viu o Levy por ai? -Ele estava logado na Ala A. -Vou até lá cumprimenta-lo. -Ok. 78


Fui até a Ala A onde o Levy estava. Ao me aproximar de sua P.A, percebi que ele estava atendendo. Peguei a cadeira de uma P.A vazia e me sentei ao seu lado, percebendo minha presença ele colocou a ligação no mute e me estendeu a mão. -Beleza, Fernando? -Na medida do possível... -Sabe que eu queria te pedir uma coisa, mas fico sem jeito... -O quê é isso, Levy? Nós somos amigos, pode contar comigo. -É... -Fala logo. -Estou muito afim da Ellen... -Humpft... Já sei, você quer que eu arrume um esquema... -Isso. -Tudo bem, eu falo com ela. -Valeu cara. "Senhora Sandra? Obrigado por ter aguardado..." Maldita foi a hora que perguntei. Era só o que faltava eu intermediar "casos" para o cara que eu estava afim. Contra minha vontade fui procurar a Ellen e sondar as intenções dela a respeito do meu amor-amigo, Levy. -Está atendendo, Ellen? -Oi Nando... Estou esperando acabar minha pausa... -Eu estava te procurando. -Procurando por mim? Nossa... Estou curiosa... -Sim. Parecia que ela estava adivinhando o motivo, pois só de saber que eu estava à sua procura, abriu logo um sorriso em sua face que parecia ter ganho na loteria. -Agora que me encontrou pode falar, gato? Puxei uma cadeira e me sentei ao seu lado para não chamar atenção. -É quê... Tem um amigo meu afim de você... -Um amigo... Afim de mim? -Sim... Não se faça de sonsa... -Você me pegou de surpresa... Mas que amigo? -Humpft... O Levy. -Ah... -E então, você topa conversar com ele? -Ah... Ele não faz meu tipo, Fe... Ouvir sua resposta negativa soou como música aos meus ouvidos. Senti um alívio tão grande que parecia ter tirado um caminhão das minhas costas. -Bom... Então... -Eu estou afim de outro... -Ok, desculpa qualquer coisa. Deixei a Ala C onde a Ellen estava feliz da vida. Fui “flutuando” até a Ala A levar a notícia para o Levy. Bati em seu ombro e disse: -Pede um momento pro cliente? -"Só um momento, senhor Jonas..." E aí? -Desencana amigo, ela disse que está afim de outro carinha. -Ah... -Não fica assim, cara. 79


-Fiquei mal com essa notícia... -Entendo, mas acontece. Bom, agora preciso ir, depois eu te ligo. -E a nossa balada? -É só marcar. -Falou. Deixei a operação e chamei o elevador. Enquanto ele não vinha fiquei olhando o movimento da rua pela janela do hall. Ao parar no décimo primeiro andar, ouvi o apito e corri até a porta do elevador, quando ia entrando a Ellen parou minha frente. -Nando, preciso falar com você. -Vai demorar muito? -É rapidinho. Vamos descer até o TS? -Vamos. Entramos no elevador e descemos até o TS para conversar. Fiquei um pouco curioso para saber o que a Ellen queria tanto comigo, torcendo para que ela não tivesse mudado de idéia, pois não saberia o quê fazer se isso acontecesse. -Quer um cigarro? -Não obrigado, odeio cigarro. -Desculpa... -Sobre o que você queria falar? -Eu fui perguntar para o Levy se ele estava sabendo sobre a mudança de prédio que nunca acontece e ele foi muito seco comigo. O que foi que você falou pra ele? -Nada demais, apenas disse que você não estava afim porque gostava de outro carinha... -Ah... -Ele ficou muito triste, mas acho que entendeu, afinal, ele gosta muito de você. Prefiro não me intrometer nesse assunto de vocês, só fiz um favor de amigo... -Fernando, acorda.. Será que você não percebeu que o carinha que eu gosto é você? A saliva passou rasgando pela minha garganta. Um arrepio me subiu da cabeça aos pés e minhas mãos pareciam varas de bambu de tanto tremer. -Você não vai falar nada? -O que você quer que eu diga? -Sei lá, qualquer coisa... Tenho chances com você? -Você é louca? -Por quê? -Porque o Levy é meu amigo e gosta de você, isso não é coisa que se faça com alguém que se gosta. -Eu não tenho culpa que o Levy gosta de mim. -Nem ele. Ninguém pede pra gostar de alguém, simplesmente acontece. -Mas ele não precisa saber que estamos ficando. -Basta minha consciência saber, já é motivo suficiente pra não ter nada com você. -Deixa de bobagem, tem alguma coisa mais forte nisso tudo. -É... Tem sim, eu sou comprometido. -Mentira. -Fala baixo. -Eu sei que você não namora coisa nenhuma... -Sabe? Desde quando eu tenho que lhe dar satisfação da minha vida? -Fernando, desde quando te vi entrar na operação eu fiquei afim de você... -Ellen... 80


-Você não sai da minha cabeça... Sempre tive vontade de chegar em você, mas me faltava coragem. -Eu não tenho culpa que você se deixou apaixonar por mim. -Você tem culpa sim, quem manda ser tão bonito? -Eu não posso ficar com você. -Não fala assim, conte então a verdade pra mim? -Eu já disse, sou comprometido. -Qual o nome dela, então? -Guilherme. -O... O quê? -Pois é, Ellen. -Não brinca comigo, Fernando. -Eu não estou brincando, Ellen... Eu sou gay. Os olhos dela só faltaram saltar pra fora, tamanho era o espanto. -Mas como, gay? -Já falei pra você falar baixo. -Eu não me conformo com isso. Se você ficar comigo eu te faço virar homem rapidinho. -Mas quem disse que não sou homem? -Você disse que... -Eu disse que era gay, não disse que não era homem... -Então... -Não deixei de ser homem, também não gostei da maneira que você falou comigo. Eu tenho um pinto no meio das pernas, faço uso dele, não sou impotente e nem pretendo ser mulher... Não adianta me olhar com essa cara, você estava precisando de uma resposta à altura, tão vulgar quanto você foi ao duvidar da minha masculinidade. -Você entendeu errado, eu não quis dizer isso... -Mas disse. -Desculpa... -Humpft. -Você ama esse... Guilherme? -Não te interessa. -Tudo que desrespeito a você me interessa. -Minha vida afetiva só cabe a mim. -O Levy sabe? -Do quê? -Que você... Que você é... -Que eu sou gay? Não. -Humpft... Eu poderia te fazer muito feliz... -Não delira garota, você mal me conhece, trocamos duas palavras na operação e você já se apaixonou por mim? -Você nunca se apaixonou por alguém de primeira vista? -Eu...?Bom... -Não precisa responder, seu silêncio diz tudo. -Desculpa, mas comigo você não terá chance. Deixei a Ellen chorando no TS e saí do prédio angustiado, me sentindo culpado. Sei que não é fácil sofrer por amor, gostar de alguém e não ser correspondido é muito difícil.

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Fui o caminho inteiro lembrando e pensando no que ela havia me dito. Na verdade eu e ela estávamos praticamente no mesmo barco, sonhando com um amor impossível. Quando cheguei em casa, percebi que haviam cinco ligações não atendidas no meu celular, sendo quatro do Levy e uma do Guilherme. Na mesma hora retornei para ele preocupado. -Levy? -Eu... -O quê houve que você me ligou quatro vezes? -Ah... Nada demais... Queria combinar a balada... -Já decidiu o dia? -Claro... -Quando? -Sábado. -Por mim, beleza. -Combinei com os caras aqui... Vai ser demais. -Com “os caras”? -É... -Mas... -Tem algum problema? -Humpft... Pensei que só iria eu e você. -O pessoal é gente boa... -Humpft... Então beleza. -Falou, mano... -Falou. A generosidade do Levy, ás vezes chegava a me incomodar. Não precisava ter chamado o Help Desk inteiro para ir conosco à balada, já que a comemoração era só nossa, como havíamos premeditado. A semana demorou a passar. No sábado à tarde liguei para o Levy confirmando nossa balada. Empolgado, ele não via a hora de cair na noitada, e eu, não via a hora de encontra-lo, nem que fosse só pra ficar conversando. Saindo do banho, ouvi meu celular tocando. Corri até o quarto, caído sobre minha cama olhei no visor para saber quem estava ligando. Pra mim o número aparecia privado, coisa que eu odiava quando acontecia. Embora eu não tivesse a mínima vontade, a curiosidade me fez atender. -Alô? -Nando? -Humpft... -Me perdoa? -Olha Guilherme... -Eu sei que errei, estou muito arrependido, amor. -Me liga mais tarde, ta bom? -Mas Nando... -Me liga mais tarde. Desliguei o telefone e fui me vestir. Separei a melhor roupa. Passei quase meia hora em frente ao espelho pra deixar meu cabelo impecável e quase uma hora pra me vestir, pois eu não queria aparecer de qualquer jeito na frente do meu amor. Antes de sair, deixei um

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recado para meus pais na secretária eletrônica, pois a pressa não me permitiu escrever bilhete. Cheguei na estação do metrô e ele já me esperava do lado de fora da catraca, próximo a escada rolante. -Desculpa pela demora. -Beleza, Nando?... Relaxa cara, está cedo ainda. -Faz tempo que você chegou? -Nada... Cheguei agora também. Vamos? -Ué... Mas cadê seus amigos? -Não vieram, furaram... -Ah... Que pena... -Deixa isso pra lá. -Isso ae. -Vamos indo, então. Eu adorei a idéia de irmos só nós dois para a balada, assim, não teria que dividir sua atenção com ninguém. Perfumado e todo arrumadinho, diferente daquele Levy que eu estava acostumado a ver no dia a dia. Ao chegar, logo na porta reparamos que a balada estava cheia. Quase não deu para entrar, mas por sorte o Levy conhecia uma garota que trabalhava lá e nos colocou para dentro. -Caraca... Olha como isso está cheio... -É mesmo... Todo mundo teve a mesma idéia que a gente. -Se não fosse a sua amiga, a gente ainda estaria lá fora. -Pois é. O quê você costuma beber? -Nada muito pesado. -Vou tomar uma caipirinha, me acompanha? -Bom... Tudo bem, vai... Vamos lá. Caminhamos até o bar que estava próximo de nós. Pedimos duas caipirinhas de abacaxi e ficamos bebendo no balcão. Passamos um bom tempo conversando. Eu morria de rir com as palhaçadas do Levy, cada história bizarra que ele contava... Daria um livro de piadas se fosse escrever. A noite estava muito agradável, perfeita, até aparecer uma garota para atrapalhar. -Licença... Vocês estão sozinhos? -Estamos sim, gata. -Meu nome é Fabiana, prazer. -Opa... O meu é Levy e esse é meu amigo Fernando. -Oi Fernando! -Humpft... Oi. -Eu e minha amiga estamos sozinhas, não gostaria de fazer companhia pra gente? -Opa... Mas é claro. Cadê ela? -Está sentada ali na mesa. -Vamos até lá então. -Mas Levy... -O quê foi, Nando? -E nossa... Ah... Deixa pra lá... Era só o quê faltava, duas garotas “avulsas” ficarem na nossa cola a noite inteira. -Olá... Qual é o seu nome? 83


-Mariana. -Prazer Mariana, eu sou o Levy. -Prazer... E você, quem é? -Elis Regina. -O quê? -F-E-R-N-A-N-D-O. -Você está bem, cara? -Acho que ainda estou, por quê? -To achando que você mudou de repente... -Impressão sua. Aquelas alturas, minha paciência havia se esgotado. Faltava pouco para eu ir embora daquela balada que já tinha se tornado estafante. -Você namora, Fernando? -Não. -Ah... Eu também não. -Que coisa... -Estou vendo que seu amigo e a Fabiana estão se entendendo... -O Levy é assim mesmo, quando está bêbado só faz merda. -Do que você está falando? -Nada... Bom, vou para a pista dançar um pouco. -Ah que legal... Eu vou com você. -Humpft... Dei a desculpa de ir para pista na tentativa de me livrar daquela, mas acabou não dando certo. Começamos a dançar um de frente para o outro, mantendo uma certa distância por segurança, na qual também não demorou por muito tempo, pois ela começou a colar seu corpo no meu e falar: -Você é muito bonito, sabia? -Minha mãe não se cansa de falar. -Hahaha... Bobo... -Cof... Cof... -Quer ir um pouco mais pro canto e sair de perto da fumaça de cigarro? -Ah... Não vai adiantar, minha tosse não é por causa de cigarro... -Esse tempo maluco deixa todo mundo gripado... Eu sei como é... -É verdade... Mas o meu caso é tuberculose mesmo. -O quê? -Pois é... Altamente contagiosa... -Cansei de dançar, vou voltar para a mesa. Esperei ela sair e caí na gargalhada. Confesso que fiquei com um pouco de pena no começo, mas foi a única idéia que me veio em mente naquele momento. Não demorou muito tempo e eu voltei para a mesa. Cruzando aquele labirinto de pessoas eu vi o Levy beijando a Fabiana. A sensação que senti naquele momento era como se eu tivesse caído dentro de uma piscina profunda e imergisse até o fundo, preso por grilhões amarrados aos pés. Foi horrível. Sentei à mesa ao lado da chata da Mariana, que foi logo se afastando com medo de contrair a "minha doença". Assim que perceberam nossa presença, os dois pararam de se beijar. -Eae Nando... Curtiu a pista? 84


-Uhum... Maravilhosa. -Fabi, preciso ir embora... -Mas já? -Sim. -Por quê? Fazendo sinal com os olhos, ela tentava fazer a Fabiana entender que deveriam sair dali o quanto antes. -Ah... Precisamos ir, gato. -Mas já, princesa? -Pois é... Anota o meu telefone? -Opa... Sem sombra de dúvida... -É o 3592... -Calmae que to sem bateria no celular... -Anote nesse guardanapo mesmo. -Pode crer. Fala ai, princesa? No guardanapo jogado sobre a mesa, umedecido de cerveja, o Levy anotou o telefone da Fabiana. Que ódio. Tive vontade de enforcar aquele pescoço pelado. -Antes de ir eu quero mais um beijinho... -Demorô. -Vamos logo, Fabi. -Calma, Mari... Livre das duas, eu pude ficar mais tranqüilo, porém, ainda morrendo de ciúme do Levy. Na verdade eu estava era morrendo de inveja da Fabiana, eu é que queria estar beijando aquela boca desenhada com um dos mais perfeitos pincéis da natureza. -Nando... Guarda ai no seu bolso o telefone dela que no seu tem ziper, pra eu não perder... -Dá aqui. Peguei o guardanapo e guardei no bolso junto com a carteira. -Bebe um gole ae, Nando. -Valeu, perdi a vontade. -Ihhhhhhh... O quê foi, hein? -Nada. -Já sei... A lorinha não te quis e por isso você ficou desse jeito. -Nada haver. -É sim. -Humpft... Deixa isso pra lá. -Beleza. O quê você acha de... Puts, eu adoro essa música... -Então vamos correr lá pra pista e dançar bastante. -Boraaaaaaaaaaaaaa... Deixamos os copos sobre a mesa após a última golada do Levy na caipirinha. A pista estava lotada, o quê me serviu de pretexto para usar e abusar dele. De frente um para o outro, dançávamos em ritmos desordenados. Com a minha perna entrelaçada à sua, eu conseguia acompanhar o movimento circular de sua coreografia. Que tesão. Já estava com a cueca molhada, mas não só de suor. Aquela perna inocente roçando na minha, mexia com a minha imaginação. O som da pista estava ótimo, o motivo pelo qual permanecemos por lá. A fumaça de cigarro misturada á dos efeitos e a aglomeração das pessoas naquele ambiente contribuíram

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para que a temperatura aumentasse. Suando como uma torneira, o Levy tirou sua camiseta, prendendo parte dela na calça. Eu não conseguia parar de olhar para aquele peitoral depilado, brilhando de suor. Não resisti e tirei a camisa também. Cada vez que passava alguém por nós nossos corpos se encostavam. Isso não era motivo para parar de dançar, o quê fazia com que misturassem o suor um do outro. Dançamos a noite toda sem cansar e se pudesse passaria o dia também, dançando coladinho com o Levy.

Saímos da balada com o dia quase amanhecendo, fomos quase os últimos a deixar o lugar. Caminhando pela rua o sol já se mostrava em tímidos raios no alto dos prédios. Entramos na estação do metrô e fomos até a bilheteria comprar o bilhete. -Nando, preciso comprar bilhete... -Eu também. -Hahaha... Deixa eu contar as moedas. -Pode deixar que eu compro. -Assim não vale. -Depois a gente acerta. -Vou ficar te devendo, então... Na plataforma não havia ninguém. Sentamos nos bancos esperando o metrô passar. Sonolento, o Levy acabou cochilando, sua cabeça aos poucos foi deitando no meu ombro. Meu coração só faltou sair pela boca, minhas mãos ficaram suadas, minha boca ficou seca. Uma vontade louca de acariciar seu cabelo negro escorrido, ali encostado sobre meu ombro. O Levy tinha um poder de mexer comigo sem igual. Deitado no meu ombro ele permaneceu até ser acordado pelo auto-falante. "Funcionário do OPS, compareça a SSO" Esfregando o olho e se espreguiçando ele disse: -Nossa... Capotei de sono... -Por alguns minutos só. -Humpft... -Quando a gente chegar em casa você dorme mais. Chegamos em casa com o sol radiando, meus pais haviam ido viajar e meu irmão passara o final de semana na casa do meu primo. -Vou deitar aqui no tapete... -Hahaha... Vamos lá pro quarto, tem a cama do meu irmão pra você dormir. 86


Subimos até o quarto, bêbados de sono. Cansado de tanto dançar, o Levy caiu na minha cama de roupa e tudo. Para não atrapalhar seu sono, decidi dormir na cama do meu irmão e deixa-lo na minha. Peguei uma toalha limpa e fui para o banheiro tomar um banho, tirar aquele cheiro horroroso de cigarro que impregnou em minha pele. Ao tirar as coisas do bolso, lembrei do telefone da Fabiana que o Levy havia anotado no guardanapo e pediu para que o guardasse em meu bolso. Imediatamente rasguei o papel e joguei fora. O meu cabelo estava com um cheiro horrível, passei xampu por várias vezes, mas não saiu totalmente. Voltei para o quarto e o Levy já dormia, todo esparramado pela cama, de roupa e tênis. Com cuidado para não acorda-lo, tirei sua calça, fui tirando peça por peça cuidadosamente. Estendi por cima o cobertor que estava dobrado sobre a cama. A cada peça de roupa tirada era um suspiro que escapava. Meus dedos tocaram sua pele morena, me fazendo arrepiar. Seu peitoral alto se destacava na camiseta colada ao corpo. Foi difícil resistir à tentação de não beijar aquela boca que estava me provocando, me atentando da maneira mais inocente. Depois de ajeita-lo na cama, vesti uma bermuda e fui dormir pensando nele. Não considero isso como uma traição. Eu não amava o Guilherme, apenas sentia um carinho por ele. Se eu continuava namorando, é porque tinha esperanças de me apaixonar e esquecer definitivamente o Levy, embora naquela ocasião estivéssemos brigados e eu já nem tinha mais certeza se era aquilo mesmo que eu queria. Naquela manhã, acordei com a campainha tocando. Vesti uma camiseta e desci para atender à porta. Guiado pelo corrimão eu fui descendo as escadas, com os olhos meio fechados por conta da claridade que entrava pela janela da sala. Arrastando o chinelo e coçando o olho espiei pelo olho mágico da porta, claro que há uma hora daquelas só poderia ser o Rafael, que aparecia nos momentos mais inconvenientes que se pudesse imaginar. -Bom dia, Nando! -Humpft... Isso são horas de encher o saco? Jogando-se no sofá ele disse: -Mas já são 9h45... -Eu estava dormindo, se é que você não percebeu. -Caramba... Até essa hora? -Sim. -Eu liguei para o seu celular, mas só deu caixa postal... -Está desligado. -Desde ontem? -É... Ainda com sono, subi até o banheiro para passar uma água no rosto e o Rafael foi me acompanhando e enchendo o saco, como ele sempre fazia. -Mas nem eu que adoro dormir, hoje acordei cedo... -Bom pra você... É saudável acordar cedo. -Você trabalha hoje? -Sim. -Puts... Vim te chamar pra ir ao cinema. -Você veio me perturbar, isso sim. -Também... Posso dar uma olhada nos meus e-mails? -Não. 87


-Por quê, não? -Porquê... Porque não. -Fernando Viana, eu te conheço... Você está me escondendo alguma coisa... -Rafael... Volte aqui... Rafael... Tentei segura-lo, mas não consegui. Ele abriu a porta do meu quarto e viu o Levy deitado na minha cama, só de cueca. -Nando... Estou passado... Fechando à porta do quarto, respondi: -Pode parando de drama, não aconteceu nada demais. Descendo a escada em direção à cozinha ele falava: -Não seria nada demais se você não fosse comprometido... -Você é muito malicioso, Rafael. -Eu? -Sim. -Ah ta... Eu entro no seu quarto e dou de cara com um garoto dormindo na SUA cama só de cueca... O quê você quer que eu pense? -Humpft... Pense o quê você quiser. Eu e o Levy fomos à balada e... -Nem precisa terminar, eu posso imaginar o quê vem depois... Por isso desligou o telefone... -Se pelo menos ele gostasse... -Do quê? -O Levy é hétero. -Hahaha... Que desperdício... Pelo jeito você sente alguma coisa por esse garoto. Sentamos à mesa para tomar café. -Humpft... Não sei explicar... Ele mexe comigo de uma maneira... Nunca senti isso antes. -Eu acho que se você der uma investida, pode ser que ele caia na tentação e você mata seu tesão. -Não estou falando de tesão. -O quê é, então? -Sei lá... Nunca senti isso antes. -Hum... Passa o pão... -Toma... -Valeu. -Humpft... O Levy ficou com uma garota na balada... -E você ficou com quem? -Com ninguém. -Por quê? -Fiquei mal quando vi o Levy beijando a mina... -Sério? -É... Morri de ciúme. -Caramba... Isso não pode acontecer, Nando. -Por quê? -Se for uma curtição, tudo bem, mas se envolver sentimentalmente não... -E quem é que pode mandar no coração? -Essa coisa de coração é papo de poeta... O Guilherme te quer, já esse Levy... -Eu estou apaixonado pelo Levy.

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-Olha Nando, o Levy parece ser um rapaz bonito, boa gente, mas você não deve trocar o Guilherme por esse pé de chinelo. Começaram a soar passos na escada. -Vem vindo alguém... -Bom dia! -Bom dia, Levy... Esse é meu amigo Rafael. -Prazer. -Beleza? Sem camisa e vestindo apenas uma calça jeans meia caída, mostrando parte de seu pubs, ele caminhou até a mesa bocejando. -Sentae Levy e tome café com a gente. -Valeu, mas preciso ir... -Fique mais um pouco com a gente. -Valeu Rafael, mas preciso mesmo ir. -Humpft... Tudo bem então. -Vou calçar o tênis e vestir a camisa. -Tudo bem. Olhando pra mim, o Rafael fez uma cada de admiração ao ver o Levy com parte de seu corpo à mostra. -Nossa... Da hora ele... -Uhum... Uma graça. -Pensando bem, acho que vou dar uma investida... -Passe longe dele. -Hahaha... Por quê? -Eu vi primeiro. -Mas você já tem dono. -Por enquanto. -Como assim? -Humpft... Eu gosto do Guilherme, mas... Fomos interrompidos pelo Levy: -Mano... Vou nessa... -Eu te acompanho até a porta. -Beleza... Falou ae Rafael! -Falou, Levy. Voltei para a mesa depois de ter acompanhado o Levy até o portão. -Cara... Que moleque era aquele... -Hahaha... Ele é demais. -Põe demais nisso. Só o quê estraga é aquele jeito meio desleixado. -O quê é jeito desleixado pra você? -Meio largado... Calça caída, mostrando a cueca... Boné... Hum... Nossa... Que tesão de moleque. -Bom, vou tomar banho e arrumar minhas coisas, pois daqui a pouco vou para a academia. -Enquanto isso, posso checar meus e-mails? -Pode. Por mais que eu estivesse namorando e o Guilherme fosse o homem quase perfeito, eu não conseguia evoluir o sentimento por ele. Já o Levy não saia da minha cabeça, sua voz 89


soava em meus ouvidos nos momentos de silêncio da minha alma, seu perfume parecia perseguir o meu olfato, era incrível como ele me fazia sentir diferente. Cheguei na empresa e subi direto para o décimo primeiro andar. Ao descer do elevador meu celular começou a tocar, era o Levy pelo que mostrava o identificador. -Nando... -Oi... -Preciso falar com você, mas agora estou com cliente na linha, posso te ligar mais tarde? -Pode, é claro. -Ok. Desliguei o telefone e logo em seguida ele tocou outra vez: -Alô? -Nando... -Oi Guilherme. -Te liguei ontem à noite, mas seu celular deu caixa postal... -É... Fui dormir mais cedo... -Dormir... -Sim... -Você pensa que sou idiota? -Fale mais baixo, se não eu desligo o telefone. -Humpft... Por que você não me conta a verdade? -Qual verdade? -Você saiu com aquele garoto ontem? -Que garoto? -Não se faça de retardado, você sabe que estou falando do Levy. -Quem te falou isso? -Não importa, viram vocês dois na balada e me contaram. -Olha Guilherme... -Você ainda é meu namorado... -Humpft... Será? -Você ainda está magoado comigo? -Muito. -O quê eu tenho que fazer para você me perdoar? -Não sei. -Podemos nos ver hoje? -Que horas? -Agora! -Agora não dá, pode ser umas 20h? -Pode sim, a hora que você quiser. -Tudo bem, vou sair mais cedo do serviço hoje... -Te encontro aí na porta. -Ok. Assim que desloguei, fui procurar pelo Levy no 13º andar, mas não o encontrei. Peguei o elevador e desci, pois o Guilherme já havia me enviado um torpedo no celular dizendo que já me esperava na portaria. Entrei no carro e seguimos para sua casa. -Boa noite meu amorzinho. -Boa noite! -Vamos até em casa para conversarmos um pouco? 90


-Vamos. Chegando em sua casa, um pouco sem jeito, encostei no canto próximo à janela, se aproximando de mim ele veio falando: -Eu gosto demais de você, Nando. Amo de verdade... -Mas não pensou... -Psiu... Não fale mais nada, só me beija. Eu não resistia àquela pegada forte que ele tinha, me deixava louco, me fazendo derreter em seus braços malhados e tatuados. -Você é demais, Nando. -Você também, Gui. Começamos a tirar a roupa ali na sala mesmo. A brasa que ele continha dentro de si parecia nunca apagar. Colado ao meu corpo só fazia aumentar seu fogo. Estávamos apenas de cueca nos beijando na sala quando ele me pegou no colo e seguimos para seu quarto. Nos beijando sem parar, sua língua vasculhava todos os cantos da minha boca. Ao cair na cama demos um abraço bem forte e logo em seguida a luz se apagou. Comecei a sentir sua boca descendo cada vez mais até arrancar minha cueca com os dentes. O vidro da janela já se encontrava embaçado com o calor do clima que rolava naquele cômodo. -Você é uma delícia... -Você acha? -Acho... Um tesão de moleque... -Hum... -Vamos dar uma acelerada? -Uhum. -Ham... Ham... Fizemos amor gostoso. Gozamos como se nunca tivéssemos feito antes. Foi maravilhoso, até molhamos o lençol de tanto suor. -Nossa... To acabado... -Sinal de que não gostou. -Pelo contrário, eu adorei. Meu telefone começou a tocar, ainda sem roupa corri até a sala pra atender: -Alô? -Nando? -Eu. -Está tudo bem? -Sim, por quê? -Você parece que estava correndo... -Correndo? -Ou fazendo outra coisa pra te deixar com a respiração ofegante... -Deixe de ser curioso, Levy. -Hahaha... Bom, pelo visto você está ocupado, nos falamos depois... -Tudo bem... Esse Levy é fogo... -O quê você disse? -Nada. -Você disse Levy? -Vai começar com crise de ciúme? -Ciúme? Sempre que estamos numa boa aparece esse moleque pra atrapalhar. 91


-Acho melhor mudarmos de assunto. -Humpft... Desculpa, amor. -Tudo bem. Vamos dormir? -Vamos. Por mais que ele tentasse disfarçar o ciúme, era notória suas crises sem motivos. Eu já estava me cansando daquela situação toda. Ao amanhecer levantei primeiro que o Guilherme. Fui até o banheiro escovar os dentes e lavar o rosto. Apenas de cueca preta eu me olhava no espelho distraído. Ao receber um abraço do Guilherme levei um susto: -Que foi? -Você chega assim de mansinho... -Assustei você, amor? -Claro, né? -Desculpa meu gato... Vou tomar um banho pra dar uma acordada legal, me acompanha? -Não, vou preparar o nosso café... -Ta bom. Vesti um roupão e fui até a cozinha preparar algo para comer. Comecei a abrir a porta dos armários e procurar algumas coisas, quando eu terminava de arrumar a mesa na copa o Guilherme começou a me chamar: -Nando... Nando... -Fala? -Esqueci de pegar a toalha, pega pra mim? -Claro, onde você costuma guardar? -Quem guarda é a empregada... Procura ai no guarda roupa... -Ta bom. Fui até seu quarto e comecei a abrir as portas do guarda roupa procurando por uma toalha de banho. Depois de procurar por todas as portas enfim encontrei algumas toalhas dobradas em uma prateleira, me levantei na ponta dos pés e puxei uma delas que ao cair derrubou uma caixa enorme, espalhando vários papéis e fotos pelo chão do quarto. -Nando? -Oi? -Está tudo bem ai? -Sim, já levo sua toalha. -Ok. Comecei a recolher aquele monte de papel e juntar tudo dentro da caixa novamente até que uma foto me chamou atenção. Uma menina linda, não deveria ter mais de cinco anos de idade. Próximo ao pé da cama estava um álbum de fatos que caiu junto com a caixa. Por curiosidade fui folhear o álbum e fiquei surpreso com as fotos. Eram recordações de um casamento. Com medo que ele desconfiasse, foliei bem rapidinho acompanhando as fotos do casamento, meu coração foi a mil quando vi que o Guilherme era o noivo. Havia muitas fotos de gente elegante, porém, a que mais me chamou atenção foi uma em que estavam o Guilherme, uma mulher muito bonita e aquela menina da foto, todos rindo como uma família feliz em férias. O cenário não era brasileiro, pois havia um castelo ao fundo e as árvores desfolhadas com tonalidades douradas. -Nando, cadê a toalha? -Já estou indo, calma.

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Juntei tudo dentro da caixa novamente e guardei dentro do guarda roupa, embaixo das toalhas onde estava antes de cair. Fechei a porta da prateleira e fui levar a toalha até o banheiro. -Está aqui a sua toalha... -Por que demorou? -Eu?... -É... -Eu... Estava dobrando algumas roupas que caíram quando puxei essa. -Ah... Encostei no batente da porta e tentando entender, comecei a fazer algumas perguntas: -Guilherme... -Fala, amor... -Antes de mim, você já namorou sério alguma vez? -Já, mas namorei mulher. -Ah... E por quanto tempo? -Pouco tempo, você é o primeiro duradouro assim... -Hum... -Por quê? -Nada não, curiosidade. Por que será que ele estaria mentindo pra mim? A troco de quê? Eu não me importaria de ficar com alguém que já foi casado um dia, se é que esse era seu medo. Depois do banho, o Guilherme foi se vestir e eu também. Sentamos à mesa para tomar café. Enquanto comia, refletia sobre a situação. -Por que você ficou tão calado, amor? -Estou pensando... -Pensando em quê? -Na vida. -Estou preocupado com você. -Comigo, por quê? -Sei lá, você está meio frio comigo. -Impressão sua. Bom, já terminei de tomar o café... -Mas amor, você não comeu quase nada... -Vou me arrumar. Fui até o quarto vestir minha roupa, não estava mais suportando passar um minuto se quer naquele apartamento. -Fique mais um pouquinho, Nando? -Não posso. -Humpft... Não vai me dar nem um beijinho? Aproximei-me dele e dei um selinho seco, destranquei a porta da sala e ao abrir o Guilherme se levantou da mesa. -Espera, eu vou com você até... -Não precisa, pode terminar de tomar seu café, eu conheço o caminho. Encostei a porta e fiquei aguardando o elevador chegar. Confuso com tudo que estava acontecendo, eu não conseguia pensar em outra coisa. Ao deixar o condomínio liguei para o Rafael: -Alô, Rafa? 93


-Oi Nando! -Queria conversar com você... -Aconteceu alguma coisa? -Sim, descobri que o Guilherme é casado. -O quê? Como assim, casado? -Achei umas fotos dele casando, em família na Europa... -Caraca... E o quê ele disse? -Ele não sabe que eu descobri. -E você não vai contar? -Por enquanto estou pensando em que fazer... -Minha mãe quer que eu vá no mercado com ela agora, vou precisar desligar, mas depois a gente se fala. -Humpft... Ta bom... -"Anda Rafael"... "Já estou indo"... Falou cara. -Falou. Desliguei o telefone e logo em seguida liguei para a Shirley. -Alô? -Alô, Shirley? -Fala Nando! -To precisando de uma amiga... -Aconteceu alguma coisa? -Sim, mas não quero falar por telefone. -Eu vou levar minha filha na escola e depois posso te encontrar antes de ir trabalhar. -Tudo bem. Podemos nos encontrar no shopping? -Claro. -16h? -Perfeito. -Nos encontramos mais tarde então. -Beijos! Cheguei um pouco mais cedo no shopping para ver algumas roupas e pagar a fatura da loja, depois subi até a praça de alimentação e sentei em uma mesa para esperar pela Shirley. Com cinco minutos de atraso, a Shirley chegou com a respiração ofegante, provavelmente havia corrido do metrô ao shopping. -Cheguei, Nando... -Demorou, hein. -Ai não foi tanto tempo assim... -Estou brindando. -O quê aconteceu agora, Nando? -Estou me sentindo muito mal, Shirley. -Por quê? -Hoje pela manhã encontrei um álbum de fotos de família no armário do Guilherme... -Até aí, normal... -Mas o álbum não era de seus parentes, e sim de sua própria família. -Como assim? -Havia fotos dele com uma mulher muito bonita e uma criança... É obvio que ele foi casado. 94


-Isso eu entendi, só não entendi em que isso pode atrapalhar no relacionamento de vocês. -Não atrapalharia em nada se ele não tivesse escondido de mim desde o começo. -Mas Nando... -Agora eu entendo o por quê ele tem aquele patrimônio, sempre desconfiei que 24 anos era pouca idade para ter tudo o quê ele têm... -Afinal, quantos anos ele realmente têm? -Verificando as datas e fazendo as contas cheguei nos 32. -Não é tão velho. -Claro que não, mas se ele mente dessa maneira pra mim, imagine sua vida como não deve ser... -Olha, eu acho que você deveria conversar com ele, quem sabe isso tudo não seja um mal entendido... -Humpft. -Agora eu preciso ir, se eu chegar atrasada a Habiba me mata. -Ta bom. -Obrigado por me ouvir. -Imagina, amigos são pra essas coisas. Cheguei em casa e me tranquei no quarto. Liguei o rádio para ouvir um pouco de música enquanto pensava na vida. Fiquei dois dias sem falar com o Guilherme. Não atendi aos telefonemas e não respondi os e-mails. Aproveitei esse tempo para pensar e colocar minha cabeça em ordem. Durante esse período pude refrescar a mente. Cheguei na empresa para voltar à rotina de trabalho. Ao sair do elevador cruzei com a Juliane no hall. -Oi Nando... -Oi Ju. -Está melhor? -Digamos que sim... -Você ficou sabendo da nova campanha? -Que nova campanha? -Os melhores operadores vão ganhar uma viagem para Bonito. -Bom, como eu nunca ganho nada, não vou me iludir. -Não pense assim... -Mas... Por via das dúvidas, vou dar uma olhada na intranet depois. -Olha sim. Meu celular começou a tocar. Antes de atender olhei no identificador para ver quem era, como se não fosse novidade apareceu o número do Guilherme. -Alô? -Nando... Preciso te ver, falar com você... -Agora não posso, depois a gente se fala. Desliguei o telefone. Eu não queria encontra-lo tão cedo, por mim terminaria o namoro o quanto antes. Logo quando entrei na Ala B encontrei uma P.A para logar. Abri todos os programas, gravei a saudação e dei Op Auto. Pouco tempo depois fui abordado pelo Levy: -Nando... Ta atendendo?... Desculpa. Pedi um momento para o Levy fazendo sinal com a mão e finalizei o atendimento. -Pode falar... 95


-Estou combinando com a galera de jogar uma pelada no mês que vem, ta afim? -Eu... -Vamos vai cara, depois vai ter um churrasco, vai ter umas menininhas da hora... -É que... -Coloca seu nome ai na lista. Por livre e espontânea pressão, coloquei meu nome naquela lista. Tudo pelo Levy, pois eu não resistia quando ele fazia aquela carinha de órfão abandonado. -Que dia vai ser? -No primeiro final de semana do mês. -Oi Levy... -Oi gata. Já falo com você. -Nossa, que chamego... O quê aconteceu entre vocês? -Nem te conto, eu e a Ellen estamos ficando... -O quê? -Pois é, ela me contou que você foi falar com ela e... -Não. -O quê foi? -Nada. -Você parece não ter gostado da idéia. -Pelo contrário, fiquei muito feliz por você, amigo. -Obrigado cara. Subiu um ódio tão grande dentro de mim que eu tive vontade de levantar da minha P.A e ir até a Ellen, mas se eu fizesse isso iria dar muita bandeira. Por volta de 22h00 eu tirei a pausa de quinze minutos e fui até a copa refletir um pouco, aproveitei que as máquinas de lanches estavam abastecidas e peguei um suco de maracujá. Ao dar a primeira golada a Ellen entrou no breack. Quase engasguei quando ela me cumprimentou com a maior cara de pau. -Olá... -É com você mesmo que eu quero falar... Levantei da cadeira onde estava sentado e a peguei pelo braço. Minha vontade era joga-la da janela do décimo primeiro andar. -Ai... Você está machucando meu braço... -Vem comigo. Fomos até o hall do elevador para ninguém escutar ou nos surpreender conversando. -Que história é essa de você e o Levy estarem ficando? -Humpft... O quê você tem haver com isso? -Tudo. -Não vou ficar aqui discutindo o quê eu faço da minha vida. -Você não vai embora, vai me ouvir sim... -Eu não tenho nada pra ouvir de você, Fernando. -Guarde bem o quê vou te dizer, Ellen: não vou permitir que você brinque com o sentimento do meu amigo. -Cuide da sua vida que da minha cuido eu. -Pouco me importa o quê você faz da sua vida, mas não inclua o Levy nas suas armações. -Nossa... Que preocupação... -Vindo de você, Ellen, tudo me preocupa. -Se você me desse uma chance... 96


-Chance o cacete, cada dia que passa eu tenho mais repugnância a sua pessoa. -Pra mim isso tem outro nome... -Vai começar com suas ironias? -Ironia dizer que você está com inveja? -Inveja? -É... Ciúme quem sabe... -Ciúme, de você? Hahaha... Como você é cômica... -De mim não, mas do Levy. -Do que você está falando? -Eu não sou burra, Fernando. Já notei que você sente algo muito maior pelo Levy que uma simples amizade... -Mas como você é atrevida... -Você está com inveja, queria estar no meu lugar... Nessa hora acabei perdendo o controle e dei um tapa em sua cara, me arrependendo logo em seguida. -Ai... Maldito... -Desculpa. -Desculpar? Hahaha... Eu vou te fazer sofrer... -Você não presta. -Humpft... Meu único defeito é gostar de você. -Sem comentários. A partir daquele dia eu tomei um ódio tão grande da Ellen que sua convivência no mesmo ambiente de trabalho estava se tornando cada dia mais difícil.

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Um mês se passou. A Ellen e o Levy já podiam se titular namorados e meu relacionamento com o Guilherme se tornava insuportável a cada dia, suas crises de ciúme constante estavam destruindo o sentimento que restava por ele. -Alô? -Oi amor! -Bom dia, Gui. -Quase boa tarde, né? -Por quê, que horas são? -12h00. -Nossa... -Quer almoçar comigo? -Quando? -Agora. -Mas eu acabei de acordar... -Vamos, vai? -Não estou com fome, Guilherme. -Podemos nos ver, pelo menos? -Acho que hoje não vai dar, podemos marcar durante a semana. -Fernando, você está me evitando? -Não é isso, Guilherme. -Tudo bem, não precisa falar mais nada, vou almoçar sozinho. O Guilherme já havia percebido que eu já não era mais o mesmo e que nosso relacionamento já estava balançado. Ao chegar na empresa fui ao banheiro lavar o rosto, pois estava muito calor e eu suava de uma tal maneira que parecia que ia derreter. Quando sai do banheiro cruzei com a Shirley que havia acabado de chegar. -Oi Nando. -Olá querida, tudo bem? -Tudo, e você? -Não muito... -O quê aconteceu? -Eu preciso muito desabafar com alguém... -Vamos até o breack? -Não, alguém pode nos ouvir... Vamos descer até o TS? -Será que dá tempo? -Claro que dá... Rapidinho... -Então vamos.

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No TS havia um hall com uma sala de fumantes e um terraço enorme que dava acesso à uma vista bem ampla da região, dando a visão do bairro todo. Pegamos um refrigerante na máquina e fomos beber no terraço. Encostados no parapeito, víamos o metrô passar logo abaixo. O vento fresco batia em nosso rosto e o cheirinho de chuva tomava conta. -Shirley... O quê eu vou te contar agora fica só entre nós... -Você está muito afoito, o quê te aflige? -Aquele rapaz... -Rapaz? -O Guilherme. -O quê tem seu amigo? -Essa é a questão... Ele não é meu amigo, é meu namorado, bom... Pelo menos até ontem era. -Então era isso? -Humpft... Sim. Não agüentava mais guardar isso só pra mim, precisava dividir com alguém. -Conte comigo para o quê precisar, Nando. -Obrigado. Demos um forte abraço e naquele momento eu senti um alívio enorme dentro de mim. Poder contar para alguém sobre os meus problemas sem precisar e fingir ser o quê não era. -Sinto que algo ainda te aflige... -Humpft... É... -Se você não quiser comentar, não tem problema. -Meu relacionamento não está indo muito bem... -Por quê? -Porque eu amo outro. -Nossa... Mas que tortura... -Eu gosto do Guilherme, tentei ama-lo, mas não consegui... -Você não pensa em terminar? -Sim, do jeito que está não dá pra continuar, vou colocar um fim nisso tudo. -E essa pessoa que você ama, sabe disso? -Nem desconfia, ele não pode saber jamais que eu o amo. -Mas por quê? -Porque ele é hétero. -Ah meu Deus... Bom, vamos subir que já está quase na hora... -Vamos. Seguimos até o hall do elevador e ficamos aguardando um subir. Quando a porta se abriu, demos de cara com o Levy e a Ellen. Naquela hora minhas pernas amoleceram, comecei a suar e pensei em não entrar no elevador, mas para que ninguém ficasse constrangido ou percebesse algo resolvi engolir a seco e subir com eles. -Beleza, Nando? -De boa. -Oi Nando... -Humpft... Oi... Ellen... Naquele dia não consegui trabalhar direito, fiquei pensando o tempo inteiro em uma maneira de terminar o namoro com o Guilherme. 99


Na sexta-feira logo pela manhã liguei para o Guilherme e marcamos um encontro para conversar sobre nossa situação. Por volta de 14h fui ao seu encontro. Eu queria ter ido a um lugar público, pois assim não teríamos contato corporal, mas por insistência dele acabamos indo para seu apartamento. -Entre, amor... -Com licença... -A casa é sua também. Senta ai que eu já venho. -Ta bom. Ao tirar a almofada do sofá reparei que havia uma boneca perdida. Segurei o brinquedo na mão e fiquei esperando o Guilherme voltar. -Voltei amor! -Toma... Acho que sua filha esqueceu no sofá... Seus olhos pareciam que iam saltar da face, tamanho foi o susto que ele levou. -Filha?... -Chega de mentiras, abre logo o jogo, por que você escondeu de mim por todo esse tempo que foi casado e tem uma filha? -Quem te contou essa... -Pára. Eu vi um álbum de fotos de casamento e de família... Até quando você pretendia esconder isso de mim? -Amor, eu ia te contar... -Ia? Quando? -Sim... Logo quando te conheci, mas fiquei com medo que você pudesse não gostar mais de mim... -Você mentiu pra mim... -Amor, me entenda, por favor? -Mentiu sobre seu passado, sua idade... -Humpft... -Quantos anos você têm? -Tenho... 32... -Achou que eu acreditei que você tivesse 20 e poucos? -Eu... -Um relacionamento que começa com mentiras não pode dar certo. -O quê você quer dizer com isso? -Estou colocando um fim no nosso namoro. -Não, por favor, não me abandona... Eu não consigo mais viver sem você. -Sinto muito, espero que um dia você encontre alguém... -Eu não quero ninguém, só quero você... Não me deixe, peça tudo que você quiser, um carro, uma moto... -Guilherme, eu não estou à venda. -Se você me abandonar eu me mato... Chorando como uma criança ele correu para a janela. O desespero tomou conta de mim ao vê-lo subindo no parapeito e gritando que iria se jogar. -Se você me largar eu pulo... Eu me mato... Fiquei entre e cruz e a espada. Se ele se matasse por minha causa, eu ficaria com remorso pra sempre. Jamais me perdoaria se fosse o responsável pela morte de alguém. -Guilherme, não faça isso. -Sem você eu não tenho mais razão pra viver. 100


Seus olhos pareciam uma cachoeira. Eu nunca tinha visto o Guilherme naquele estado, seus gritos estavam começando a chamar atenção do prédio e o movimento da rua estava começando a aglomerar. -Por favor, não faça isso... -Volte pra mim... Não me deixe, por favor... -Entenda... Vai ser melhor pra nós dois... Cada um seguir sua vida... -Eu não tenho vida sem você... Se você me deixar, eu vou pular... -Humpft... Tudo bem... Desce daí... Eu continuo com você. -Está falando sério? -Claro... Desce daí. Peguei em sua mão e o segurei até descer da grade. Não queria ser o causador da desgraça de ninguém e muito menos carregar a consciência pesada pro resto da vida. Fiquei surpreendido com Guilherme ao ver sua reação infantil. -Amor eu te amo tanto, não quero te perder... -Tudo bem, já passou... No sábado acordei antes dás 07h00, morrendo de sono e com uma preguiça enorme fui arrastando a toalha até o banheiro. Eu mal conseguia abrir o olho e só de pensar que a tarde eu teria que ir trabalhar me dava vontade de chorar. Ao sair do banho, olhei as horas no visor do celular e notei que havia duas chamadas não atendidas. O telefone era da casa do Levy, na mesma hora retornei a ligação. -ALô, Levy? -Oi Nando, beleza? -Humpft... Você me ligou? -Sim, mas não era nada de importante... -Bom... -Você vai, né? -E você acha que eu iria estar acordado há uma hora dessas pra ver desenho animado na TV? -Hahaha... -A gente se encontra mais tarde. -Beleza. Abração. -Outro. Deixei o celular sobre a cama e fui preparar algumas coisas. Depois de tudo pronto, comecei a guardar dentro da mochila de forma que coubesse tudo e não esquecesse nada. Saí de casa com o sol ainda se pondo. O vento fresco batia em meu rosto e o orvalho da madrugada escorria pelos vidros dos carros estacionados nas ruas. As folhas secas caídas com a chegada do outono, formavam um tapete dourado sobre a grama da praça próxima de casa. Cheguei no metrô e o Levy já estava lá esperando pelo pessoal. Com sua mochila nas costas e segurando um porta chuteiras, de bermuda tipo surfista meio caída mostrando parte de sua cueca azul, me deixava louco só de olhar. -Eae Nando... -Pelo visto você quem abriu a estação hoje... -Não exagere, eu ajudei o cara apenas... -Hahaha... Cadê o "pessu"? -A Ellen já ligou dizendo que encontra a gente lá, o Jurandir... 101


-O quê... A Ellen também vai? -Vai sim. -Humpft... -Olha o Roberto vindo ali... -Eae mano... -Fala Betão... -Fala ai Nando, bele? -De boa. Só de saber que a Ellen ia também estragou o meu dia. Não sei o quê uma garota ia fazer em um lugar aonde só iriam homens. Oferecida do jeito que ela era, não me surpreenderia se ela quisesse entrar no vestiário junto com os caras. -Mano... Ta faltando a Daba... -A Daba também vem? -Sim, ela que vai comprar as carnes para o churrasco. -Ah... -Já está todo mundo aqui? -Falta o juiz. -O Marco falou que vai direto, a gente encontra lá. -Bom... Então vamos. Mal coloquei o pé na quadra e ouvi a voz daquela arrogante da Ellen: -Nossa... Pensei que vocês não iam chegar mais... -Humpft... -Tudo bom, Nando? -Até agora estava. -Que bom... Amor, você vai fazer um gol pra mim? -Claro... Vou ganhar esse troféu e dar pra você, gata. -Sério? -Uhum. Que cena ridícula daqueles dois. A Ellen parecia não ter senso de dignidade se prestando aquele papel estúpido e usando o bobo apaixonado do Levy, que caiu no golpe barato daquela cretina. -Os times já foram divididos em Help Desk e Contas, como o quê sobrou foi eu e o Contas tem um a menos, vou ficar com eles. -Beleza. -Esse troféu já é nosso, né Nando? -É... Até parece que eu ia me esforçar jogando embaixo daquele sol para ganhar o troféu e entregar pra Ellen. Se dependesse de mim, nosso time perderia de lavada. -Quem vai tirar o par ou impar? -Vai você, Levy. -Bele. O time de Contas iniciou com a bola. Eu nem sabia o quê fazer com ela, já que sempre detestei futebol e nunca havia jogado antes na vida. No primeiro tempo o Help Desk estava ganhando, o placar era 2 x 1 e quando o Roberto ia marcar o gol o tempo acabou, para a minha alegria. Fomos até o vestiário lavar o rosto e beber uma água, ao voltar para a quadra o Levy reuniu o time e pediu a colaboração de todos: -Mano... É o seguinte... A gente vai precisar virar esse jogo, esse troféu é nosso. 102


-É isso ae. Seria cômico se não fosse trágico. Além de chato, aquele jogo estava cansativo. Meu braço e antebraço estavam cada um de uma cor, por ter tomado aquele sol escaldante, parecendo um frango de padaria. -Vamos lá galera, muita garra... No segundo tempo o Contas entrou com tudo, marcando um gol logo nos primeiros 5 minutos. A Ellen quase ficou nua na arquibancada pulando de alegria e o jogo empatou em 2 x 2, permanecendo assim até os minutos finais. Pra mim estava ótimo do jeito que estava, pelo menos a gente nem ganhava nem perdia. Bom, foi assim que permaneceu até o Jurandir marcar um pênalti no Levy. Que ódio que fiquei naquela hora. Se nosso time fizesse um gol, o Help Desk teria poucas chances de empate. Seria a morte ver a Ellen ganhando do Levy o nosso troféu. -Levy... Deixa que eu bato... -Relaxa, Nando. Pode deixar que eu bato... -Humpft. Droga! Se ele batesse e acertasse, o jogo terminaria e o Contas seria o campeão. Fiquei arrasado, com uma vontade enorme de abandonar a quadra. Contendo o nervosismo, respirei fundo e fechei meus olhos, aguardando o Levy marcar o gol e torcendo para que ele errasse. Aquele silêncio era uma tortura, me fazendo tremer ao ser quebrado pelo apito do juiz. Preparado para ouvir gritos, o quê escutei foram vaias, pois o Levy havia perdido o pênalti chutando pra fora. -Pé torto... -Puta mano... Não acredito... -Calma Levy, acontece... Tive que me segurar para não demonstrar minha alegria, que durou pouco ao ouvir que o jogo seria prolongado por mais dez minutos. O primeiro que desempatasse, sairia como campeão e o Contas tinha tudo para marcar o primeiro gol e levar o prêmio. A disputa pelo primeiro ponto começou acirrada, o Help Desk estava lutando com toda garra para fazer o gol e eu fazendo de tudo para ajuda-los. Faltando dois minutos para terminar o jogo o Levy me passou a bola. Era a chance que eu tinha de acabar com aquela palhaçada. Respirei fundo, olhei ao meu redor e vi a quadra aberta. Jamais que eu perderia aquela oportunidade única. Olhei para o gol, respirei fundo, dei três passos para trás e marquei um gol contra, entregando o prêmio para o Help Desk. A cara que a Ellen fez ao ver que o time havia perdido o premio não tinha preço. Eu poderia ser odiado pelos meus colegas, mas a Ellen também não seria titulada de 1ª dama. -Mano... Não acredito... -Desculpa galera. -Desculpa? A gente perdeu o jogo por sua culpa... -Mas isso aqui era uma brincadeira... -Ele tem razão, Roberto. -O quê aconteceu com você, Levy? -Ninguém aqui tem que ficar pondo a culpa no outro por ter perdido, isso foi um jogo, pra nos divertir e não causar desavenças entre nós. -Humpft... Foi mal, Nando. -Não tem problemas, vamos esquecer isso, ok? 103


-É isso ae, agora vamos tomar um banho e depois aproveitar o churrasco... Vamu lá galera... Depois de tudo resolvido fomos para o vestiário tomar banho. No início fiquei com um pouco de receio em tirar a roupa na frente dos moleques. -Caralho... Ta gelada... -Ui... -Pára de viadagem... -Eu não vou tomar banho gelado... -Viadinho... Viadinho... Viadinho... Naquele momento me senti muito mal. Aquele ato de deboche chamando o Jurandir de "viadinho" soou como algo hiper homofóbico, e o pior de tudo é que o Levy estava no meio agitando. Peguei meu xampu e sabonete. Deixei minha mochila dentro do armário e segui para o box. De frente para o meu estava o Levy. Ao vê-lo nu em minha frente quase tive um surto. Aquela pele morena, molhada e coberta de espuma, sua franja cobrindo sua testa e uma parte do olho, tive que me controlar para não fazer uma besteira. -Ae Nando... Empresta um pouco desse xampu? -Pode pegar. -Perae. Perdi o fôlego ao vê-lo vindo em minha direção sem roupa. Que vontade de prendelo junto comigo dentro daquele box e lamber aquele corpo todo, me acabando na sede de consumi-lo desde a primeira vez que o vi. -Valeu cara. -Falou. Depois do banho fomos para o deck participar do churrasco. Ao ligar o rádio, começou a tocar forró. Cara de pau, a Ellen olhou pra mim e me chamou pra dançar: -Ai eu adoro essa música, dança comigo, Nando? -Bom galera, preciso ir... -Mas já? -Pois é, vou passar em casa ainda pra deixar essas coisas antes de ir trabalhar. -Ah... Nos vemos mais tarde então... -Falou galera. Saí do clube praticamente flutuando de alegria por não ter ganho o jogo e a Ellen ter ficado com a cara de tacho, mas também indignado com sua ousadia em me chamar para dançar junto com ela. Acabou falando sozinha, pois ignorei sua presença.

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Peguei o metrô e fui dar uma volta pelo centro da cidade antes de ir trabalhar. Acabei indo parar em uma feira de artesanato na Liberdade, onde comprei vários coisas legais pra colocar no meu quarto. Chegando na empresa encontrei o Levy, que já estava no breack tomando café. Ao entrar o cumprimentei. Pra mim estava tudo bem, até ele se levantar da cadeira, fechar a porta e me perguntar o quê estava acontecendo entre eu e a Ellen. -Boa tarde... -Nando... O quê está acontecendo? -Humpft... Como? -Hoje eu percebi o jeito que você tratou a Ellen. O quê acontece entre vocês dois? -Não está acontecendo mais nada, Levy. -A Ellen me contou que você vem a maltratando desde que começamos a namorar... -Isso não é verdade. -Seja sincero, Nando. Eu gosto muito de você cara... Pode falar a verdade, eu vou entender... -De que verdade você está falando? -Eu já estou sabendo que você era afim da Ellen... -O quê? De onde você tirou essa sandice? -Fica tranqüilo cara, não vou ficar com raiva de você por isso. -Humpft... Foi ela que te disse essa bobagem? -É... Mas eu te entendo... -Olha Levy, se eu me calei até hoje foi porque eu gosto muito de você e queria preservar nossa amizade... -Do que você está falando? -Da Ellen. Eu nunca tive interesse nenhum nela, pelo contrario, foi ela que me procurou e disse ser afim de mim. -Por que você está fazendo isso? -Eu evitei te contar, mas agora chegou em um ponto que não da mais... -Por que você está inventando isso, Nando? -Inventando? Você não acredita em mim? -Humpft... Ele abaixou a cabeça. -Você acha que eu iria trocar nossa amizade pela Ellen? -Mano... Você tem que concordar comigo que ela é muito gostosa... -Realmente ela é muito bonita... -Então cara... -Mesmo assim, Levy... Eu jamais tive interesse nessa garota. -Chega de mentir, Fernando... Qualquer homem se sentiria atraído pela beleza dela. 105


-Eu já falei que não tive, nem tenho nenhum interesse nela, mas sim ela que ficou interessada em mim. -Ah é?... Então me dê um bom motivo pra eu acreditar nisso... -Eu sou gay. Um silêncio pairou naquele ambiente. Seus olhos ficaram a ponto de saltarem de sua face. -O... O quê... O quê você disse? -Eu acho que não precisava chegar a esse ponto, mas você me obrigou. -Eu não estou acreditando, cara. -Aquele dia que eu fui falar com a Ellen que você estava afim dela, lembra que a resposta foi que só rolaria amizade? -Lembro... -Pois é, foi naquele dia que ela assumiu ser afim de mim e querer ficar comigo. -E você? -No início eu contornei a situação, mas sua insistência foi tanta que eu tive que contar a verdade. -Mano... -Olha Levy, se você não quiser mais ser meu amigo por isso tudo bem, mas... -Eu preciso pensar... -Humpft... Tudo bem, mas queria deixar claro que o fato de eu ser gay não interfere na pessoa que eu sou... Bom, vou me logar se não me atraso. Deixei o breack arrasado. Meu coração parecia ser uma taça de vidro se estilhaçando ao escorregar da mão. Naquele momento eu senti que havia perdido o Levy pra Ellen, o primeiro e único amor da minha vida deslizou pelos meus dedos sem que eu pudesse evitar. Dois meses se passaram. Minha amizade com o Levy se tornou restritamente a um cumprimento de saudação e a formalidade ao transferir um cliente para o Help Desk quando ele atendia. -Oi Nando... -Tudo bom, Shirley? -Sim e você? -Indo... -Será que está com fila no atendimento hoje? -Parece estar tranqüilo. -Faz tempo que você chegou? -Humpft... Uns quinze minutos... -O quê você tem? -Nada não. -Eu te conheço, Fernando. Você está querendo conversar e não sabe como. -Talvez... -Eu acho que posso te ajudar. -Como? -Tocando no assunto... Desde que o Levy voltou a se logar no décimo terceiro andar você está assim... -Humpft... -Por que vocês se afastaram? -Não nos afastamos, afastaram a gente. 106


-Como assim? -Intrigas da Ellen. -Posso te fazer uma pergunta indiscreta? -Pode. -É o Levy aquele garoto que você curtia e não poderia falar o nome? -Como você sabe? -Eu não sei, apenas desconfiei aquele dia que cruzamos com ele e a Ellen no elevador... -Mas eu dei tanto na cara assim? -Reparei em seus olhos que te denunciaram. -Por favor, não fale pra ninguém. -Imagina, se não contei até hoje... -Obrigado. -Segredinho nosso... Já encontrou P.A? -Ainda não. -Vamos procurar juntos? -Sim. Fomos até a Ala C onde encontramos duas P.As, uma ao lado da outra. Sentamos nas cadeiras e começamos a abrir os programas antes de logar. -Nossa, ainda faltam quinze minutos pra logar... -Pois é... Enquanto ficava aguardando o tempo pra logar fui verificar meus e-mails, tomando cuidado para nenhum supervisor me ver acessando a internet. Limpei minha caixa daquelas propagandas que não prestavam pra nada, e os que restavam marquei como não lidos, me despertando atenção ao e-mail do Levy que acabara de chegar: "Blz Nando? Preciso falar com você, podemos marcar de se encontrar ainda hoje? Se você concordar, me responda esse e-mail o mais breve possível. Abraços Ass: Levy”

-Shirley! -Diga? -Recebi um e-mail do Levy... -Sério?... E o quê ele fala? -Lê aí... -Deixa eu ver... Acho que ele quer conversar com você... -Será que a Ellen contou alguma coisa? -Como assim, contou?... Ela sabe que você é... -Gay? Sabe, eu tive que contar pra ela sair do meu pé... -Eu me referia a outra coisa... -Esse é o meu medo... Ela contar ao Levy que eu o amo... Não quero que ele fique com raiva de mim... -Fique calmo... Responde ao e-mail dele aceitando conversar... -Não sei... Tenho medo... -Não fuja dos seus problemas, enfrente-os.

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-Humpft... Você tem razão, vou mandar um e-mail pra ele. -Isso aí. Mandei a resposta para o Levy e fiquei aguardando seu contato que até o final do expediente não tinha dado sinal. -Até que enfim... Mais um dia de trabalho chega ao fim... -Já deslogou? -Sim. Você não deslogou ainda? -Já... É que estou esperando o e-mail do Levy... -Ele ainda não respondeu? -Não... -Tem algum celular tocando... -É o meu... Alô? -Oi meu amor... -Tudo bem, Gui? -Melhor agora, estou aqui na porta te esperando... -Humpft... Daqui a pouco estou descendo. -Beijão meu gato. -Outro. Desliguei o telefone puto da vida. -O quê foi? -O Guilherme ligou dizendo que está me esperando lá embaixo... -E...? -Não estava afim de encontra-lo hoje. -Mas vocês não tinham se entendido? -Eu desisti de terminar o namoro, mas não consegui voltar a gostar dele. -Nossa, que barra... -Não sinto mais nada pelo Guilherme... -Por que não termina? -Tenho medo que ele cometa alguma besteira. -Será que ele está pensando em você? -Por quê? -Até agora ele só quis saber dele, em momento nenhum se importou se você estava curtindo ou não. -Você acha que eu deveria terminar com ele? -Não quero te influenciar a nada. Faça o quê seu coração mandar. -Humpft... Eu vou descendo antes que ele ligue outra vez. -Ta bom, eu vou esperar mais um pouco pra dar o horário da van. -Beijos. -Outros. Desci até o térreo. No silêncio da noite cruzei a porta de vidro fui surpreendido pelo Levy, que me esperava para conversar. -Nando... -Oh... Que susto. -Desculpa. -Tudo bem. -Eu precisava falar com você... -Mas precisa ser agora? 108


-Você está com pressa? -É que o Guilherme está me esperando... -Ah... Faz assim, eu te ligo amanhã então. -Beleza. Demos um aperto de mão e ele me puxou pra junto de si, me dando um forte abraço. Encostado em seu ombro eu sentia seu cheiro, perfume amadeirado seco, que reforçava sua masculinidade. Meu coração palpitava parecendo que ia saltar pela boca. -Nossa... Seu coração está batendo tão rápido... -É que estou com frio... -Mas o tempo está quente. -Devo estar com febre. Ainda abraçados ele falou ao meu ouvido: -Você é muito importante pra mim, cara. Não saia da minha vida, por favor. -Jamais sairei se você não quiser, pode ter certeza. Estava a ponto de fazer uma besteira, tamanha era a tentação ali provocada, mas fui interrompido pelo Guilherme que buzinou para chamar atenção e avisar que estava ali. -Preciso ir, Levy. -Te cuida, amigo. -Você também. Quando entrei no carro percebi que o Guilherme não havia gostado da cena que presenciou do outro lado da rua. -Você outra vez com esse garoto? -Já vai começar? -Começar? Você acha que eu sou idiota? -Eu não quero brigar com você. -Parece que você faz de propósito. -Não grite comigo. -Eu não vou deixar você me zoar... -Chega. Esqueça que eu existo, suma da minha vida. -Do que você está falando? -Eu não quero mais namorar você. -Quer dizer quê... -Quero dizer que nosso namoro chegou ao fim. -Você não pode fazer isso comigo... Eu te amo... -Mas eu não gosto mais de você. -Mentira... -Você foi matando aos poucos o sentimento que eu tinha por você. -Se você me largar eu me mato. -Problema é seu. Não caio mais nas suas chantagens... Se você quiser se matar que seja longe de mim... Agora, pare o carro que eu quero descer... Pare o carro... A quase 100 Km/h ele corria pela Marginal Tietê como um louco, totalmente descontrolado e cortando os carros de maneira altamente arriscada. -Guilherme... Você vai bater... -Foda-se... Tirei o celular da mochila e ameacei chamar ajuda. -Se você não parar esse carro eu vou chamar a polícia...

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Num ato estúpido, ele me deu um tapa na mão que fez o celular voar longe, caindo no banco de trás do carro. Nunca tinha visto o Guilherme daquele jeito, ele estava irreconhecível, totalmente irado. Com os vidros e portas travados, eu não tinha como me defender nem pedir ajuda. Olhei pelo retrovisor e vi meu celular aberto. Com a pancada do tapa, o flip acabou se abrindo, mas nem tudo estava perdido, já que o flip estava aberto era só eu chamar pelo nome de alguém para ele fazer uma discagem por voz, depois era só torcer para alguém me ajudar. -O quê você tem contra a minha amizade com o LEVY? -Amizade? Ele só faltou te comer ali na porta... -Mais respeito, Guilherme. -Respeito com quem, com o Levy? Olhando pelo retrovisor vi que o led estava piscando, sinal de que estava com uma chamada em curso. Meu objetivo havia se concretizado, era só começar a dar pistas da localização onde estávamos, se o Levy conseguisse entender, poderia me ajudar. -Guilherme, por favor, pare esse carro. -Parar? Eu vou pará-lo na pilastra do viaduto... -Se você não parar esse carro, eu vou começar a gritar por socorro. -E alguém vai te ouvir? -Não sei... Socorro... Alguém me ajuda... -Cala essa boca... Um soco no olho me fez ver estrelas. O impacto foi tão forte que me deixou um pouco tonto, ao mesmo tempo uma lágrima escorreu no canto do meu olho. A dor foi tanta que nem consegui gritar, só ouvia o Guilherme dizer barbaridades a meu respeito. Fiquei inconsciente por um tempo, mas quando consegui falar voltei a dar pistas de onde estávamos. -Seu maldito... Se você não for meu não será de mais ninguém. -Guilherme... Pra onde estamos indo? -Não interessa... -Me deixe ir, por favor... -Nem pensar, sem você na minha vida eu morro, mas não vou sozinho. -Já estamos na Marginal Pinheiros... Passando pela USP, Guilherme... -Foda-se. -Vá mais devagar, um carro importado, preto e todo filmado correndo a essa velocidade pode chamar atenção... -Cala essa boca. Levei um tapa na cara que chegou a cortar meu lábio, sangrando imediatamente. Já sem ter o quê falar eu me calei. Encostei a cabeça no vidro e comecei a chorar de medo, vergonha, dor. Aquelas alturas eu já havia perdido as esperanças. Nunca havia sido tão humilhado em toda minha vida. Com os olhos fechados eu rezava para que o Levy estivesse ouvindo tudo e entendesse que eu precisava de sua ajuda, caso contrário eu estaria perdido. O mundo lá fora parecia o paraíso perto do inferno que eu estava vivendo dentro daquele carro. Pessoas caminhando pelas calçadas na madrugada tranqüila, enquanto eu temia pela minha vida.

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Uma esperança nasceu ao ver o carro da polícia atrás do nosso, solicitando que o Guilherme parasse. Respirei aliviado achando que estaria salvo, mas mal sabia que o pior ainda estava pra acontecer. -Inferno... -Estão pedindo pra parar... -Hahaha... Vai sonhando... Nessa hora ele acelerou ainda mais o carro. O velocímetro marcava 160 Km/h. Eu vi minha vida passar diante dos meus olhos. Saindo da Marginal o carro quase capotou em uma curva fechada que o Guilherme fez. Atrás de nós vinha o carro da polícia correndo na mesma intensidade com a sirene ligada. -Guilherme... Pelo amor de Deus, pare esse carro. -Nem fodendo... -Se você não tem amor à sua vida, eu tenho à minha. Subindo pela Faria Lima à toda velocidade, passando por cima de canteiros e semáforos vermelhos. Desesperado era pouco, pelo estado em que eu me encontrava. Quando passávamos pelo cruzamento da Rebouças com a Avenida Brasil, um morador de rua com um enorme saco nas costas atravessava na faixa, na velocidade em que vínhamos não houve tempo hábil de parar o carro e o Guilherme ao invés de desviar, acelerou ainda mais. -Buzina pra ela sair da frente... Calado, ele atropelou a mulher. Seu corpo rolou por cima do capo do carro até cair no asfalto. A pancada foi tão forte que rachou uma parte do pára-brisa e afundou o teto. -Guilherme... Cuidado... Meu Deus... Por que você não desviou? -Ninguém mandou cruzar o meu caminho. -Que horror... Você tirou uma vida... -E você acha que alguém vai sentir falta daquela indigente? Eu fiz um favor pra essa cidade... Um mendigo a menos pra ocupar as nossas calçadas. -Eu não sabia que você era capaz desse tipo de coisa. -Sou capaz de coisas piores. Cuidado comigo. Foi uma cena horrível. O barulho que fez era semelhante à explosão de uma bomba de pequeno porte. Ver aquela imagem de um corpo rolar por cima do carro e cair pelo asfalto como um boneco, não saia da minha cabeça. -Não acredito... -"Não acredito"... Essa sua vocação de bom samaritano me irrita. -Você não tem sentimento. -Eu tinha até você mata-lo. -Não me culpe pelos seus delitos. -Essa porra de carro não vai parar de seguir a gente? Olhando à frente, avistei no cruzamento com a Avenida Paulista que quatro viaturas da policia já nos esperavam e mais duas viaturas vinham atrás, ilhando o carro onde estávamos e obrigando o Guilherme a parar. -“Desligue o veículo e saia com as mãos para o alto”. -Maldição... Quando ouvi o barulho das portas sendo destravadas eu amoleci. Comecei a chorar sem parar de alívio e alegria, Assim que o Guilherme saiu do carro eu destravei o cinto de

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segurança e peguei meu celular no banco de trás. Em seguida, desci do carro e respirei fundo. Caí de joelhos no chão e comecei a agradecer a Deus por ter me salvado, ali fiquei até uma policial se aproximar de mim. -Você está bem? Eu tremia demais. Quase não conseguia parar em pé. Tocando em sua mão, eu me sentei na guia da calçada e coloquei as mãos no rosto, emocionalmente abalado eu ainda chorava. -Você quer ir até o hospital? -Não precisa, eu estou bem, foi apenas um susto... -Entendo. Você precisa nos acompanhar até a delegacia. -Delegacia? -Isso. -Humpft... Antes eu posso ligar para um amigo? -Claro. Na hora em que eu fechei o flip do celular para desligar, ele começou a tocar. Ao atender, reconheci a voz do Levy na mesma hora. -Alô? -Nando?... -Oi Levy. -Mano... Onde você está? -Não sei... -Como não sabe? -Não sei onde estou, a policia está aqui comigo, já está tudo bem. -Eu preciso te ver e ter a certeza de que está bem, estou te procurando pela Marginal Pinheiros... -Só um instante... Onde é que eu estou? -Aqui é a Rua da Consolação. -Levy, aqui é a Rua da Consolação. -Güenta aí que estou chegando. -Tudo bem. Desliguei o telefone e dei um leve suspiro de alívio. Fiquei muito feliz ao saber que o Levy estava preocupado comigo e me procurando naquela madrugada pela cidade. Algemado, o Guilherme me olhava de dentro do carro da polícia. Eu tremia de nervoso, ver seus olhos metralharem todos que ali estavam, principalmente eu. Pouco tempo depois avistei o Levy saindo de um carro e correndo em minha direção. Na mesma hora eu levantei e abri os braços para receber aquele abraço caloroso que só ele sabia dar. -Cara... Quase morri de preocupação... -Tive medo, Levy... -Eu sei... -Tive medo de morrer, de nunca mais te ver... -Quando eu vi que você havia me ligado eu achei muito estranho você não responder... Fiquei ouvindo um som ambiente e quando percebi que algo de errado estava acontecendo chamei a polícia, coloquei a conversa em conferência e assim eles foram monitorando o percurso com as dicas que você dava...

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-Você era o único número que estava configurado para fazer discagem por voz... Muito obrigado... -Não precisa agradecer, você salvou minha vida um dia, fiquei te devendo essa. Demos um forte abraço. Deitei minha cabeça em seu ombro e assim permaneci até a policial nos interromper. -Fernando, precisamos que você nos acompanhe até a delegacia. -Humpft... Tudo bem. -Eu vou com você, Nando. -Sério? -Claro. -Obrigado! -Podem entrar naquela viatura... Abraçado comigo, o Levy foi o caminho inteiro me confortando e apoiando em tudo, como um bom amigo que sempre foi. Jamais pensei que fosse passar por um episódio como aquele na vida, me vi a um passo da morte, na beira de um abismo sem fim, prestes a ser empurrado e despencar a qualquer momento. -Fernando Viana... -Eu. -Aqui estão seus documentos. -Obrigado. -Você vai querer registrar queixa? -Eu... -Ele vai querer sim. Registrei queixa contra o Guilherme no distrito policial com o apoio do Levy, e testemunhei contra ele referente ao atropelamento da moradora de rua. Deixei à delegacia angustiado. Já era quase 04h00 da manhã e eu nem tinha feito o corpo de delito ainda. -Caramba... Está ventando... Você está sem blusa. -Não tem problema... -Vista a minha jaqueta. -Mas e você? -Eu não estou com frio, pode vesti-la. -Valeu. -Você quer ir pra casa ou ir ao IML fazer corpo de delito? -Se eu chegar assim em casa meus pais vão desconfiar... -Então venha dormir na minha. -Mas o seu pai... -O meu pai e minha madrasta graças a Deus estão viajando, estou sozinho... -Tudo bem então. -Vamos pegar o carro... -Qual carro? -O do meu pai. Ele viajou e não levou, por isso saí te procurando pela madrugada à fora. No caminho mandei um torpedo no celular da minha mãe para avisar que dormiria fora, com certeza ela já deveria ter ligado várias vezes no meu celular preocupada comigo e eu não atendi. -Chegamos!

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Desci do carro e abri o portão para o Levy guardá-lo na garagem. Depois fechei o portão, enquanto ele desligava o carro. -Pronto. Você está bem? -Tranqüilo. -Está com fome? -Um pouco. -Não sei se tem algo pra comer aqui... Entramos pela porta da cozinha. Segui até a sala, onde me sentei no sofá. Enquanto isso o Levy foi até seu quarto arrumar a cama para dormirmos. -Nando, você quer tomar um banho antes de dormir? -Estou bem assim. -Aproveitando que estamos aqui, eu queria falar com você... -É verdade... Pode falar... -Deixa pra lá... Você está cansado e precisa descansar, amanhã a gente conversa. -Você quem sabe. -Vamos dormir? -Vamos. -Ei... Você havia falado que estava com fome, vou preparar algo pra você comer. -Não precisa, eu não estou com fome, só preciso de uma roupa emprestada pra dormir. -Vou pegar pra você... -Tudo bem. Enquanto ele pegava uma roupa para me emprestar, sentei na cama de sua irmã e fiquei observando ele vasculhar sua gaveta. -Achei... Pegae... -Onde fica o banheiro? -Hahaha... Quer que eu feche o olho? -Não precisa... Troquei de roupa em sua frente mesmo. Que tentação, vê-lo ali de cueca na minha frente e eu nu. Fiquei imaginando nossos corpos colados, pele com pele, boca com boca, meu sonho de consumo. -Nando, vamos ter que dividir a cama que eu durmo... -Ah... Por mim... Tudo bem... Adorei a idéia. -Eu durmo nessa ponta e você nessa outra... -Ok. Na verdade o Levy dormia em um colchão que ficava estendido no chão entre a parede e a cama da sua irmã. Deitamos em sua "cama". Puxei o cobertor e me cobri até o pescoço. Pouco tempo depois eu adormeci. A preocupação que o Levy tinha comigo ia além de amizade. Um companheirismo de irmão, um carinho muito especial. Traumatizado com o episódio daquele dia, acabei acordando no meio da noite assustado, também assustando o Levy com um grito. -Me solta... -Nando... Acorda... -Levy... Não deixe ele me pegar... -Ninguém vai te pegar, eu estou aqui pra te proteger... 114


-Estou com medo. -Não precisa ter medo, confie em mim. -Humpft... -Calma... Recebi um abraço bem forte, sua mão tocou a minha fazendo um suave carinho. Com minha cabeça apoiada em seu peito e segurando sua mão eu adormeci. Dormi no céu e acordei no paraíso. Preocupado comigo, o Levy mal dormiu direito. Seus olhos estavam pequenos e cheios de oleira. -Bom dia... -Bom dia, te acordei? -Não... Nem vou perguntar se eu te acordei, pois é visível que você nem dormiu. -Hahaha... Fiquei aqui cuidando de você... -Obrigado, amigo. Parecia que eu estava vivendo um sonho, no qual eu queria nunca acordar. Eu jamais havia sentido essa sensação antes. Se eu soubesse antes que amar fosse tão bom, já teria me permitido amar alguém há muito tempo. -Vou preparar algo pra comer. -Ok. Enquanto isso eu arrumo aqui o quarto. -Nada disso, deixa que depois eu arrumo isso. -Ta bom. Deixa eu tirar essa roupa então. -Qualquer coisa, estou lá na cozinha. -Eu já estou indo lá. Assim que troquei de roupa, fui até a cozinha, onde o Levy preparava o café. -Nossa... -O quê foi? -Pelo cheiro bom do café, você sabe cozinhar perfeitamente... -Pare com isso... Você prefere café puro ou com leite? -Com leite. -Eu também, hahaha... Pode sentar ai... -Quer ajuda? -Não precisa, ali tem biscoito e pão... -Valeu. -Sabe Nando... -Hum... -Aquilo que você me disse sobre a Ellen... -Outra vez essa garota? -Calma cara. -Calma? Você não percebeu ainda que quando está tudo bem entre nós e a Ellen aparece, acabamos brigando? -Mas Nando, eu não quero brigar com você. -Então pare de falar na Ellen. -Eu preciso esclarecer... -Tudo bem. Você ouviu ela dizer novamente que eu não presto, quero fazer intriga, dei em cima dela... -Calma cara... -Humpft. 115


-Depois daquilo que você me falou eu comecei a prestar mais atenção nela... Toquei algumas vezes no assunto e cada dia ela falava uma coisa... -Entrou em contradição, aquela mentirosa. -Mano... Estou muito confuso, cara. -Você acha que eu mentiria? -Claro que não, por acreditar em você que eu cheguei a esse ponto. -Não estou entendendo... -Eu descobri que ela não vale nada... Está me enganando... -Até que descobriu tarde demais... -Peço desculpa pra você, cara. -Não tenho do que desculpar... Ele se levantou da cadeira e me deu um forte abraço. A tentação era muita ao sentir sua pele encostada à minha. Apenas de short e sem camisa, eu me aproveitava da situação discretamente, até que uma hora eu não resisti. Pouco a pouco nossas bocas foram encostando uma na outra até que começamos a nos beijar. Meu coração quase saiu pela orelha ao beijar o grande amor da minha vida. Imóvel, ele não esboçou nenhuma reação, mas correspondeu o beijo que eu lhe dei. Explorei canto a canto de sua boca com a minha língua. Com os braços soltos e olhos fechados, ele não se movia. Toquei levemente em suas mãos, subindo-as pouco a pouco até rolar um abraço. Minha felicidade era tanta que não conseguia sentir minhas pernas. As mãos percorriam suas costas nuas, deslizando pela sua pele morena e lisa. Sussurrando em seu ouvido, intercalando com leves mordidas eu disse: -Te amo, Levy... Te amo... -Mano... O quê estamos fazendo? -O quê deveríamos ter feito há muito tempo. -Não... Pare... Isso está errado... -Errado? -Imagina... Eu beijando homem... O quê está acontecendo comigo?.. -Humpft... -Eu não posso... Ele sentou na cadeira e cobriu seu rosto com suas mãos, arrependido começou a chorar, lamentando pelo que havia acontecido. -Por que isso? -Desculpa... -Não sei o quê deu em mim... -Humpft... Desculpa... Eu fui culpado... -Esse papo que você me ama, é verdade? -Humpft... Sim. -Desde quando isso? -Desde a primeira vez que te vi, com aquele jeito de menino meio maloqueiro, mas ao mesmo tempo arrumadinho e carinhoso... -Mano... Não sei o quê dizer, estou confuso... -Humpft... Eu não deveria ter feito isso. Melhor ir embora. Saí de sua casa triste, mas ao mesmo tempo feliz por ter realizado meu sonho de tocar em seus lábios ao menos uma vez na vida, mas também triste por ter a certeza de que havia perdido a confiança e a amizade do Levy para sempre. 116


Fui direto pra minha casa. O caminho inteiro eu fui pensando se havia feito a coisa certa. Fiquei com a dúvida martelando minha cabeça, mas de uma coisa eu tinha certeza, depois daquele episódio, nossa amizade nunca mais seria a mesma, o quê me deixou triste, pois ter o Levy como amigo era melhor do que não tê-lo, porque o mais importante era sua presença ao meu lado

O tempo passou como num piscar de olhos. Depois daquele dia, eu e o Levy pouco nos falamos ao nos encontrar, como eu já suspeitava. -Boa tarde, Shirley... Oi Ju... -Oi Nando... -Já encontraram P.A? -Nem fomos procurar. -Hahaha... -Nando, depois que quero falar com você. -Aconteceu alguma coisa? -Sim. -Então fala logo, Shirley. -É que... -A Juliane também é minha amiga, não temos segredo. -Não era nada de importante, só ia perguntar se você estava sabendo que o Levy e a Ellen terminaram. -Sério? -É... Já faz um tempinho. -Como ele está? -Não tenho visto ele... Mas a Ellen parece estar ótima... Talvez eu estivesse sendo um pouco egoísta por ter ficado feliz ao receber aquela noticia, porém, ter a Ellen longe da vida de qualquer um é fazer o bem a humanidade. -Filhos, peçam um momento para o cliente... -Pode falar, Habiba. -Queridos, amanhã nossa operação vai passar para o site do Centro... -É certeza? -Sim. Gente, por favor... Vejam o pop up na intranet com os avisos referente as roupas que vocês não poderão usar no prédio. -Tem isso também? -Sim... Obrigada habibinhos... -Habiba... -Nando preciso falar com você... Põe pausa extra linha e vem até a minha mesa. -To indo... 117


Pendurei o read no canto da P.A, coloquei pausa extra linha e fui até a mesa da Vivian ver o quê ela queria. -Cheguei, Habiba. -Habibinho... Já fechei sua avaliação desse mês... Estou muito orgulhosa de você. -Pare com isso. -Eu monitorei três ligações suas. Você foi muito atencioso com o cliente, fez o procedimento corretamente, registrou no sistema... -E qual foi minha nota? -Deixa eu ver... cem. Parabéns habibo. Ganhei um beijo e um abraço da minha supervisora, além de ter ganho uma premiação por bom desempenho. Um sorriso estampava meu rosto, assim permaneceu até que avistei o Levy parado na nossa frente. -Oi Habiba... -Oi Habibo... Estava sumido... -Humpft... Problemas, Habiba... Eu posso dar uma palavra com o Fernando? -Deixa eu ver se está com fila no atendimento... -É dois palito, Habiba. -Vai logo então, antes que eu mude de idéia. -Valeu Vivian. Seguimos até o breack. Um pouco assustado, eu não estava entendendo nada, apenas segui com ele para o breack que ao entrarmos foi logo fechando a porta. -Nando, te mandei vários e-mails e você não me respondeu nenhum... -Pra mim? -É... O quê aconteceu? -Estranho... Pra qual endereço você enviou? -Para: nando_fe... -Mas faz tempo que eu desativei essa conta... -Nossa... Que susto cara, pensei que você não queria mais falar comigo. -Imagina... Eu não teria motivos pra isso. Fomos interrompidos por um trovão, logo em seguida a Habiba entrou no breack. -Nossa!... -Olha que chuva? -Habibo, volta pra operação que deu fila... -To indo. Depois a gente se fala, Levy. -Me encontre as 23h30 no TS. -Mas Levy... -Nando, é muito importante. -Ok. Voltei pra operação e comecei a atender. Foi uma fila passageira, durou cerca de uma hora e depois passou. Em compensação, a chuva lá fora não dava uma trégua, só fazia aumentar. -Shirley... -Fala, querido? -O Levy veio me procurar. -Sério? -É... Quer me encontrar depois do trabalho. -Nossa... O quê será que ele quer? 118


-Não sei, disse que me mandou vários e-mails. -To ficando preocupada e curiosa... -Humpft... Eu também estou. -Bom... Não deve ser nada grave, não precisa ficar assim. Olha que chuva está lá fora... -Pois é, se continuar chovendo assim eu vou de van até o metrô. -Minha sorte é que vou de van até em casa. -Humpft... O metrô com essa chuva não anda, rasteja pelo trilho. -É verdade... E vai lotado... -Nem me lembre... Ficamos conversando até dar o horário de ir embora. As horas pareciam não passar. O mundo desabava em águas lá fora e meus pensamentos se concentravam no assunto que o Levy queria comigo. -Nossa, até que enfim... -Mais um dia de trabalho superado... Ta indo pro metrô? -Agora não, vou encontrar o Levy no TS. -Ah... É verdade. -Vou descendo, Shirley. -Beijinhos, querido. -Pra você também. Desci até o TS onde não havia ninguém. Pelo menos era o que eu achava, até a Ellen aparecer: -Nando... Não vire a cara pra mim. -Humpft... Não entendo o por quê você ainda insiste em falar comigo. -Porque eu te amo, Nando. -Ama? Fazendo eu sofrer como você fez? -Eu? -É... Ou você achou que fosse fácil pra mim, ver o Levy te abraçando... Te beijando... -E você acha que pra mim foi fácil? Agüentar aquele chato o tempo inteiro... -Você não presta, Ellen. -Eu só fiz isso pra te provocar... Foi por amor... Nessa hora o Levy apareceu no TS, causando espanto em mim e principalmente na Ellen. -Então quer dizer que eu sou chato. -Levy?... Não amor... -Olha Ellen... Eu já sabia que você não valia nada... Mesmo assim dói ouvir isso de você. -Por favor, Levy... Eu amo você. -Deixe de ser cretina, já que não deixa de ser falsa. -Amor... -"Amor" a puta que pariu, ouvi muito bem a hora que você falou que sempre amou o Fernando. -Então você também ouviu que ele sempre gostou de você... Quer saber, Levy? Te usei mesmo, você é um chato, idiota, não sei como agüentei ficar com você todo esse tempo. -Cala essa boca... No que ele levantou a mão para ela, entrei na frente deles, impedindo que cometesse uma besteira. -Levy, não faça isso. -Maldita... 119


-O quê você vai fazer, me bater? -Calma Levy, não vale a pena. -Vocês dois nunca me enganaram... -Do que você está falando? -Pensa que sou idiota? Você e o Levy são amantes... A Ellen estava passando dos limites. O Levy se debatia querendo enfiar a mão na cara dela. Segura-lo estava quase impossível, pra minha sorte a Shirley apareceu. -Mas o quê está acontecendo aqui? Eu ouvi os gritos do elevador... -Shirley, ainda bem que você chegou. -Levy, se acalme... Ellen, você já causou encrenca demais aqui. -O quê você quer dizer com isso, minha querida? -Que já está na hora de você cair fora antes que acabe se dando mal. -Hahaha... -Ria enquanto pode, sua vagabunda. -Não fale assim comigo. -Sai daqui, Ellen. -Eu vou embora porque eu quero, e não porque vocês estão pedindo. Presenciar toda aquela baixaria me fez mal. O ambiente se tornou desagradável, além de corrermos o risco até de sermos demitidos se algum dos seguranças nos pegassem armando aquele circo. -Humpft... -Até que enfim ela foi embora. -Que sorte vocês tiveram, se alguém pegasse vocês naquele clima aqui... -Eu não deveria ter feito isso. -Você não teve culpa de nada, Levy. -Tive sim... Eu marquei com você e com a Ellen aqui... -O quê? -Desculpa... Eu achei que vocês dois estando sozinhos... -Eu não acredito. -Nando... -Conseguiu o que você queria? -Calma Fernando... -Eu não esperava isso de você, Levy. Saí correndo do TS e desci até o térreo pela escada de serviço. Decepcionado com a atitude do Levy em forjar um encontro meu com a safada da Ellen, só para confirmar o quê ele já sabia. Enquanto eu caminhava na chuva, o Levy chorava deitado no ombro da Shirley. -E agora... O Nando vai ficar com ódio de mim... -Não vai não... Logo vai passar. -Eu preciso da amizade dele, Shirley. -Será que é só da amizade? -Como assim? -Você sente falta dele quando está sozinho? -Muita. -Sente vontade de falar com ele todo dia? -Uhum. -Já sentiu seu coação acelerado pelo menos 1 vez ao vê-lo? 120


-Já. -Não é da amizade dele que você precisa. -Do que você está falando? -Você pode não ter percebido, mas isso que está sentindo se chama paixão... Levy, você está apaixonado pelo Fernando. -Você está louca? -Querido, não tenha medo de ser feliz... O amor não distingue sexo, cor. Não reprima seu amor com medo de opiniões da sociedade, faça o quê seu coração pedir. -Humpft... -Quantas pessoas por ai sentem a mesma coisa que você está sentindo agora, mas reprime esse sentimento se culpando, achando errado? -E não é? -Você acha que amar alguém é errado? -Mas dizem que é pecado... -Nenhuma forma de amar é pecado... Praticar a maldade é pecado. -Humpft... -Corra atrás dele, ainda dá tempo. -Sabe... Eu acho que você tem razão, Shirley. -Então vá e sejam felizes! -Obrigado! -Boa sorte! Molhado até a alma, eu caminhava chorando pela rua sem destino. Meu coração estava esmagado, esfacelado por um amor impossível que acabara de me decepcionar. -Nando... Virei ao ouvir alguém chamar pelo meu nome. Era o Levy que corria em minha direção todo molhado. Fiquei estatuo naquele momento. Sua franja molhada cobria seus olhos e escondiam as lágrimas que escorriam pelo seu rosto, misturadas à água da chuva. Aos poucos ele ia se aproximando de mim, a passos lentos ele falava: -Nando... Quero te pedir desculpas... Fiz aquilo por amor. -Chega, não quero mais ouvir suas histórias de que você ama a Ellen... -Esqueça a Ellen... Estou falando de nós. -O quê? -Humpft... Não consigo mais viver sem você, Nando. -Mas... -Não diga nada... Você também me ama... -Desde a primeira vez que te vi. -Então... Você quer namorar comigo? -É tudo que eu sempre quis na vida. -Então cala a boca e me beija logo. Demos um forte abraço e começamos a nos beijar ali mesmo na rua. Os carros passavam por nós espirrando a água empoçada da rua, mas nada era capaz de atrapalhar aquele momento tão sonhado da minha vida. -Nossa... Como eu sonhei com esse momento... -Psiu... Não fale mais nada, continue me beijando... Sem medo de ser feliz permanecemos ali, recuperando o tempo perdido, matando a sede e a vontade de ficarmos juntos. Tocar sua pele morena e sentir sua mão tocar a minha, naquele momento eu fui feliz. 121


-Cof, cof. -Você está tossindo... -Não é nada. -Como não é nada? Vai acabar pegando um resfriado. -Só de estar junto de você eu não me importo mais com nada. -Caramba... -O quê foi? -Já é quase 01h00... Não tem mais metrô nem ônibus. -Cof, cof. -Olha como você está molhado... Precisamos sair dessa chuva. -Pra onde vamos? -Não sei... Precisamos procurar um lugar pra ficar... Vem comigo... Caminhando embaixo da garoa, ele me abraçou para aquecer meu corpo com o calor do seu, sem medo do que as pessoas poderiam achar ou pensar a respeito. -Ali tem um hotel... -Cof, cof. -Vem... Entramos no hotel encharcados. Na recepção não havia ninguém para atender, apenas um rádio de pilha tocando Zezé de Camargo e Luciano. -Será que não tem ninguém?... Eeeeeeeeei... -Pois não? Do nada apareceu uma senhora de óculos com uma fatia de melão em uma mão e uma faca na outra. Olhei para o Levy assustado, que apertou minha mão com força. -Por favor, eu queria um quarto. Ela olhou pra nossa cara com os óculos meio caídos, com ar preconceituoso questionou. -Um quarto? Percebendo seu espanto, o Levy quis provocar ainda mais. -Sim, com cama de casal. -Período de três horas? -Não, pernoite de doze horas. -Aqui está a chave, quarto número 08. Pegamos a chave do quarto 08. Subimos por uma escada de mármore claro, andamos por um corredor cheio de portas procurando pelo quarto número 08. O lugar não era muito agradável, as paredes tinham marcas de umidade. O prédio não era muito bem conservado e "Hotel" era na verdade uma camuflagem de nome, pois o certo seria "Motel". -Nossa... Estranho demais esse hotel. -Isso não é um hotel, Nando. -Mas no letreiro... -Ah claro... Essa espelunca não passa de um motel disfarçado. -Humpft... Então você me traz para um motel... -Você sabe que isso não é verdade, você me conhece. -Estou brindando, amor. -Aqui... O quarto oito.

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Abrindo a porta do quarto ele piscou pra mim. Ao entrar ascendemos a luz e tiramos as toalhas de cima da cama. Rasguei o pacote, peguei o sabonete, xampu e fui direto para o banheiro tomar um banho quente. -Levy, vou tomar banho. -Tudo bem. -Quer vir comigo? -Posso? -Claro. -Oba... Demos as mãos e entramos embaixo da água quente do chuveiro enorme que havia ali. Acho que a ducha era a melhor coisa que havia naquele "hotel", pois como o Levy havia dito, o lugar era uma espelunca. -Você está tremendo, Nando. -Não se preocupe, eu vou ficar bem. -Quer um pouco de xampu? -Uhum... De beijo também... -Ah... Isso é fácil... Tapei sua boca com um beijo e imediatamente pude sentir sua "barraca" se armar no meio das minhas pernas. Abraçado ao meu corpo, ele me beijava e roçava suas coxas entre as minhas, descarregando todo seu libido. As leves mordidas e baforadas que eu dava em sua orelha o fazia tremer. O movimento sincronizado de ir e vir se tornava intenso na medida em que o tesão ia aumentando, "Bombadas" bruscas eram intercaladas com pequenos gemidos, seguidos de leves puxões de cabelo e arranhões nas costas. -O quê foi? -Nada... Não posso te olhar? -Deve. -Humpft... Te amo, cara. -Eu também te amo muito. -Humpft... Então só me beija... Seu braço passou por baixo da minha axila, cruzando em minhas costas e unindo ainda mais nossos corpos molhados e arrepiados. -Amor... Você está tremendo muito... Vamos pra cama que eu te cubro com o cobertor e te esquento com meu corpo. -Oba! Fechei o chuveiro. Com todo carinho, ele enrolou a toalha em meu corpo, me secando cuidadosamente. Minha tosse só fazia aumentar e junto a preocupação do Levy comigo. -Pronto... Agora que você já está sequinho e enrolado no cobertor, posso me deitar ao seu lado? -DEVE. -Humpft... Como eu demorei pra descobrir que gostava de você... -E descobriu como? -Na verdade eu acho que já gostava de você há algum tempo, só não entendia ou não queria entender que sentimento era esse. -Posso te pedir uma coisa? -Tudo que você quiser. 123


-Me beija? -Nem precisava pedir. Ele se virou e deitou por cima de mim, com seu peitoral por cima do meu. Seu lábio carnudo me tocou levemente. Acariciando seu rosto e de olhos fechados nos beijávamos. O clima foi esquentando cada vez mais, o cobertor já não tinha mais serventia pra nada. Sua pele roçando sobre a minha, deslizava no suor liberado pelos poros de nossa pele. Num movimento brusco ele me levantou da cama e começou a chupar meu mamilo. Quase arranquei seus cabelos de tanto tesão. Com meu corpo inclinado para trás, ele passava sua língua sobre o meu peitoral, o único receio era que ficassem marcas de algumas das chupadas que ele dava nos picos do seu tesão. -O quê foi... Machuquei você? -Não, senti um pouco de falta de ar apenas. -Se você quiser a gente pára... -Nem pensar, gostoso... Vem aqui, vem... -Não fale assim que você me mata de tesão... Puxei-o pela sua nuca pra junto de mim e entramos embaixo do cobertor às gargalhadas. O Levy era muito mais do que eu pensava. Seu carinho comigo nem se comparava ao do Guilherme. Naquela noite não fizemos simplesmente sexo. Fizemos amor, trocamos prazeres, energias, suores, satisfazemos de ambos as vontades que estavam acumuladas em nossas fantasias. Foi lindo, foi mágico, foi uma noite inesquecível. Em seus braços eu deitei e fiquei até perder os sentidos e pegar no sono após sentir o melhor orgasmo de toda minha vida.

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Dormi no céu e acordei no paraíso. Nos braços do meu amado eu me sentia nas nuvens. Enquanto o Levy dormia, eu acariciava seu lindo rosto que parecia ser esculpido à mão. Sua boca perfeita permanecia intacta desde que a vi antes de dormirmos, aliás, eu pouco dormi admirando sua rara beleza de moleque safado. -Bom dia, amor! -Bom dia, Levy! -Dormiu bem? -Melhor impossível. -Hum... Acariciando minha mão ele disse: -Nando... -Hum... -Você quer mesmo namorar comigo? -Você já me fez essa pergunta... -Eu quero ter certeza... -Te amo, Levy... Disso eu não tenho dúvidas. Não preciso nem pensar duas vezes em aceitar um pedido de namoro seu. -Mano... Se eu disser que você é a melhor coisa que já me aconteceu nessa vida, você acredita? -Não sei... Fazendo cócegas em minha barriga ele disse: -Ah é... -Hahaha... Pára... Hahaha... Por favor... Hahaha... Tudo bem... Eu acredito... -Então diga: Você é a melhor coisa que me aconteceu na vida. -Você é a melhor coisa que me aconteceu na vida. -Quero ficar com você pro resto da vida. -Quero viver com você, te amando, respeitando pro resto da minha vida. -Te amo, cara. -Eu também! Selamos nosso compromisso com um molhado beijo na boca. Abraços e afagos iam se tornando cada vez mais intensos, na medida em que nosso tesão ia aumentando. O orgasmo avisava que estava á chegar, com os gemidos que o Levy soltava baixinho em meu ouvido. Gozamos ao mesmo tempo em que o relâmpago iluminou o quarto pela fresta da janela, enquanto o barulho do trovão camuflava nossos gritos. O coração batia acelerado em um ritmo homogêneo, lubrificando nossos corpos com suor. -Humpft... -O quê foi? 125


-Nunca pensei que fosse gostar mais de transar com homem do que com mulher... Aliás, não me passava pela cabeça de algum dia transar com homem... -É que um homem sabe como satisfazer o outro sexualmente, porque ele também é homem e sabe os pontos exatos onde o corpo masculino é sensível ao prazer. -Essa sua teoria faz sentido... -Está arrependido? -Jamais... -Cof, cof... -Nando, você parece não ter melhorado. -Eu estou bem, amor. -Estou preocupado com você. -O tempo de preocupação acabou. Agora é nosso momento... Vamos ser felizes aproveitando esse tempo. -Se todos os meus dias fossem assim, eu seria o cara mais feliz do mundo. -Então já pode se considerar o cara mais feliz do mundo, pois farei o impossível pra te proporcionar os melhores dias de sua vida sempre que estiver ao meu lado. -Então me beija. -Nem precisa pedir... Deixamos o hotel já passava dás 11h00. Levamos quase quinze minutos nos despedindo antes de deixar o quarto, pois como tudo aquilo era novo para o Levy, andar como namorados na rua ainda o deixava constrangido, mas com o tempo isso acabaria mudando. Peguei o metrô lotado, mas eu não estava nem me importando com isso, pois minha felicidade era muito maior, fazendo meu dia se tornar um sonho. Quando estamos apaixonados, passamos a enxergar o mundo de uma maneira diferente. Os defeitos quase não são notados e qualquer atitude do seu amado para te agradar se multiplica no olhar dos apaixonados. Finalmente o meu sonho havia se tornado realidade. Amar e ser correspondido é a melhor coisa do mundo. Já nem lembro quantas noites dormi chorando, achando que seria um amor impossível, mas finalmente a felicidade bateu na minha porta. Enquanto almoçava, fiquei pensando no que o Levy estaria fazendo naquele momento, ansioso para ouvi sua voz novamente, poder tocar em seus lábios e sentir o cheiro de sua pele. Pouco tempo depois o telefone tocou. Corri até o quarto para atender e quando identifiquei o telefone dele no visor, meu coração só faltou explodir. -Alô? -Nando? -Oi Levy! Estava pensando em você agora... -Sério? -Sim... Sabia que eu estou com saudade? -É...? Eu também... -Você está melhor da tosse? -Estou sim... Cof, cof. -Mano... Estou começando a ficar preocupado contigo. -Não se preocupe, eu já tomei remédio, logo essa tosse vai passar. -Nando... -Hum... -Hoje eu quero me logar ao seu lado. 126


-Obaaaaaaa... Eu vou ganhar um beijinho? -Muitos. -Hummmmm... Que delícia! -Delícia é saber que eu tenho você só pra mim. -Te amo! -Eu também. A gente se vê mais tarde? -Mal posso esperar. -Que horas a gente se encontra? -Hum... 16h30? -Não pode ser um pouco mais cedo?... É que já estou morrendo de saudade... -Por mim poderia, mas preciso fazer algumas coisas aqui... -Humpft... Então ta bom. Te encontro em frente à entrada do shopping? -Pode ser. -Nos vemos mais tarde então. -Ok. Vou ficar contando os minutos. -Eu também. Beijão! -Outro. A voz do Levy parecia despertar o bem estar da minha alma. Suas palavras de amor, era como um combustível, que alimentava a minha felicidade. A partir daquele dia, nossa operação passaria a funcionar no Centro. Saí de casa mais cedo para encontra-lo no shopping. Meu sorriso ia de orelha a orelha. O mundo pra mim parecia perfeito naquele tumulto de cidade grande, mas durou apenas até atravessar a Avenida do Estado, onde quase fui atropelado, sendo fechado por um A3 que ao parar baixou o vidro do lado do passageiro, me fazendo deparar com um pesadelo no qual eu pensava já ter acordado. -Oi Nando. -Guilherme... Você não estava preso? -Preso? Você esqueceu que meu pai é um dos melhores advogados desse país? -Mas os policiais foram testemunha dos crimes... Você deveria estar na cadeia... -O dinheiro resolve tudo. -Do que você está falando? -Entre no carro, eu quero falar com você. -Agora não dá, estou indo trabalhar. -Tem tempo de sobra, ainda está cedo... Prometo não tomar muito seu tempo. Eu não tinha intenção alguma de entrar naquele carro, pelo trauma que havia me deixado desde a ultima vez. -Desculpa, mas eu tenho um encontro agora... -Foda-se esse seu encontro. Se você não entrar nesse carro agora, eu ligo para sua mãe e conto que o filhinho dela é viado. -Você não seria capaz de fazer isso... -Tem certeza? Rindo, ele tirou o celular do porta luva e ligou o viva voz. De início eu duvidei, mas ao ouvir a voz da minha mãe, meu coração falou mais alto, meus olhos se encheram de lágrimas e na mesma hora pedi para ele interromper a ligação. -Alô... Alô... Alô... -Posso tirar do mute e bater um papo com ela? -Não... Eu vou com você. -Bom menino. 127


Olhei no relógio e já era 16h05. Entrei no carro e ele desligou o telefone. Ouvir o barulho das portas travando era como sentir uma faca atravessando meu peito. O vidro escuro subia lentamente, me aprisionando dentro daquele inferno. -Como você me encontrou? -Procurando. -Humpft... Eu não posso demorar... -Não vou tomar muito seu tempo. -O quê aconteceu com aquela mulher que você atropelou? -Ah... Lá vem você falar daquela indigente... -Ser humano. -Amor, não vamos brigar por causa disso, ta bom? -Guilherme, por favor... -Já te perdoei. -Me perdoou? -Sim. -Você fala como se eu tivesse culpa de algo... -Mas você teve culpa... Humpft... Vamos esquecer tudo e recomeçar? -Desculpa, mas não quero mais. -Nando eu te amo, nossa história não pode terminar assim... -Nossa história já terminou, Guilherme. -Não terminou porque eu te amo. -Mas eu não te amo, será que você entende? -Você está com alguém? -Humpft... -Fala, Fernando? -Sim, eu e o Levy estamos namorando. -O quê? -A gente se ama. -Eu não acredito... Ele não vai tirar você de mim, Nando... -Ninguém tira de outra pessoa o quê nunca teve. -O quê você quer dizer com isso? Você nunca me amou? -Eu cheguei a gostar de você, mas depois eu vi que meu sentimento por você se tornou carinho de amigo... -Mas eu posso te dar tudo que quiser. -Seu dinheiro não tem valor pra mim. -Eu tenho mais condições de te fazer feliz. -Dinheiro não trás felicidade. -Com certeza quem te falou isso era pobre. -Humpft... Por favor, me deixe em paz. -Você me enganou. -Eu não enganei ninguém... Você sabia muito bem que eu já não gostava mais de você, me obrigou a continuar por pena. -Aquele maldito... -Não fale assim dele. -Você é meu. -Nunca fui. -Mas vai ser. 128


-Tire a mão de mim. -Eu estou falando sério... Se você não voltar pra mim... -Eu não te quero mais, saia da minha vida... -Você quer sim... Porque se você gosta do Levy de verdade, não vai querer vê-lo sofrer... -Sofrer? -Uhum... Imagine ele sofrendo um acidente... -Você não seria capaz de fazer mal... -Por amor eu sou capaz de fazer qualquer coisa. -Não toque no Levy, por favor. -Então volte pra mim. -Mas eu não te amo... -Não tem problema, o amor que eu sinto é suficiente para nós dois. Eu não acreditei quando ouvi aquilo. Por um instante eu vi minha felicidade passar pela janela, sendo levada com o vento. O relógio já marcava 16h35. A proposta que ele fez deixou-me sem opção. A última coisa que eu queria na vida era que o Levy sofresse alguma repressão feita pelo Guilherme, pois sabia muito bem do que ele era capaz. -Guilherme... -Imagina como o Levy ficaria depois de sofrer um acidente e perder a vida... Humpft... Tão jovem... -Pára... -Você não gostaria de ter que consolar sua família no velório... -Chega... Pára... Pelo amor de Deus... Guilherme... Eu... Eu volto pra você, mas não faça nada com ele, por favor. -Eu sabia que você ia concordar, sensato como você é... -Humpft... Você promete que não vai tocar no Levy? -Te dou a minha palavra. Agora me dê um beijo. Sua mão tocando meu queixo me causaram uma repugnância tão grande, ao ponto de me fazer chorar. Receber um beijo seu, era o mesmo que tocar em uma pedra de gelo, sem sentimento algum, apenas uma ânsia de vômito que subia até a garganta, quase impossível de controlar. -Eu te amo tanto, Nando... -Já está na hora, preciso ir. -Vou te deixar na porta... -Não. Pode me deixar na estação Imigrantes. -Mas eu quero te... -Por favor, Guilherme. Será que você pode respeitar minha vontade? -Tudo bem, amor. O quê eu não faço por você... Desci do carro com uma vontade louca de chorar. Passei pela catraca da estação e observei o relógio que marcava 16h50. Entrei no vagão que já estava parado na plataforma e segui sentido Centro. Ao chegar, passei no Mercado Municipal e comprei um suco de soja. Sentei em uma mesa e comecei a chorar desesperado. Eu via minha vida se desfazer como uma pirâmide de cartas ao vento. Meus sonhos acabavam de ser destruídos por uma mente malvada, perversa. Olhei no relógio e já eram 16h58, o Levy já deveria estar me esperando há muito tempo, mas depois daquele encontro inesperado eu não teria coragem de olhar em seus olhos. A minha vida inteira eu passei acreditando que o amor entre duas pessoas não

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existia, e quando o destino me prova o contrário, alguém surge para atrapalhar, ao mesmo tempo que alguém deu a oportunidade de sonhar, outro me tirou. Fui caminhando pelas ruas, driblando a multidão de pessoas que por ali passavam. A partir de então, minha vida não seria mais a mesma, se tornando um inferno. Chegando no prédio da empresa, parei na recepção e peguei o novo crachá. Segui em direção às escadas e peguei o elevador para o 1º andar, na qual começou a funcionar a nossa central. Chegando na operação, fiquei impressionado com o tamanho do espaço. Várias fileiras de P.As que iam de uma ponta à outra. As janelas vedadas para não vazar barulho externo, cobertas com persianas para filtrar a claridade. Por ser tão grande, não teriam mais Alas dividindo as operações, ficariam todos juntos em um único andar. -Habibinho... -Olá Vivian! -Tudo bem com você? -Humpft... Não tanto quanto eu queria. -O quê aconteceu? -Nada não... -Espera alí no canto que daqui a pouco eu encontro uma P.A pra você. -Obrigado, Habiba. Não demorou muito e a Juliane chegou. Toda sorridente ela vinha em minha direção. -Oi Nando... -Oi Ju! -Estou passada com o tamanho disso aqui. -Pois é, enorme mesmo. -O quê você tem? -Nada, por quê? -Você não está bem, com essa carinha abatida... Quer desabafar? Antes que eu pudesse responder, a Shirley chegou e se juntou a nós. -Boa tarde! -Oi Shirley! -Oi Nando... Oi Ju...É pra esperar aqui? -A Habiba pediu pra esperar aqui. -Ah... Mas que lugar grande, né? -É verdade, eu estava comentando isso agora com o Fernando. -Humpft... -O quê você tem, Nando? -Nada, estou bem. -Como foi ontem? -Ah... Depois eu conto pra vocês. Saí da operação e segui até a escada de emergência para subir até o breack, mas não cheguei nem na metade do caminho e cruzei com o Levy. E agora, o quê fazer, o quê dizer? Seus olhos cheios de lágrimas demonstravam sua preocupação e tristeza, fazendo meu peito doer. -O quê aconteceu, Nando? -Desculpa Levy, tive um problema e não consegui chegar a tempo. -Poderia ter me ligado... -Eu sei, desculpa cara. 130


-Não tem problema. A gente vai poder se encontrar depois do trampo? -Não sei. -O quê há com você? -Comigo? -É... Você está abatido, com cara de quem chorou... -Humpft... Levy, a gente precisa conversar. -Nando, você está me assustando. O quê está acontecendo? -Aqui não dá pra falar. Te mando um e-mail depois. -Mas Nando... -Por favor, Levy. -Humpft... Beleza. Eu não deveria ter subido até o breack. Encontrar o Levy só me fez ferir a alma, mas fugir também não seria uma atitude legal. Nunca gostei de fugir dos problemas, mas sim encara-los de frente. As horas passaram rapidamente naquele dia. O prédio, em comparação com o outro, em tamanho era bem melhor, mas em compensação, as regras desse novo prédio eram muito estúpidas, nos privando da pouca liberdade que já tínhamos. Desci pela escada de emergência até o térreo. Olhei no relógio e o ponteiro indicava 23h41. Cruzei a porta de vidro e fui caminhando a passos lentos até o metrô. Ao deixar as dependências do condomínio, avistei o Levy parado próximo à entrada do metrô. -Nando... -Boa noite, Levy! Fui descendo as escadas na tentativa de fugir dele, mas não adiantou. Confuso, ele me seguiu até a plataforma do metrô. A estação estava vazia. Com o coração palpitando e as mãos suando encostei no canto da parede. Com a respiração ofegante, o Levy se aproximou bem junto de mim, apoiando sua mão esquerda na parede ao lado da minha cabeça. Olhando em meus olhos ele falava: -O quê está acontecendo entre a gente? -Nada, Levy. -Por que você está me tratando assim? -Assim como? -Tão frio... Evitando me encontrar, me olhar... Ontem você foi... -Esqueça ontem, Levy. -O quê? -Vai ser melhor para nós dois. -Calmai, você está me descartando? -Não é isso... -Como não? Eu pensava que estávamos namorando. -Humpft... As coisas mudaram. -Como mudaram? Ontem mesmo você disse que me amava... Tocando com sua mão direita em meu queixo e olhando em meus olhos, ele perguntou: -Você não me ama mais, é isso? Com um aperto no coração desviei o olhar. -Humpft... Sim. -Mas como? Eu não acredito nisso... Olhe fundo nos meus olhos e diga que você não me ama mais... 131


Não foi fácil ter que dizer aquilo. Era como se ele pedisse para eu pular de uma ponte de olhos vendados. Comecei a chorar. Minha vontade era dar um abraço e beijar aquela boca delicada, gritando a todos que quisessem ouvir que o Levy era o amor da minha vida. Sentir o cheiro de sua respiração me fez amolecer. Minha boca dizia que não, mas meu corpo pedia o seu, contradizendo minhas palavras. -Pare com isso, Levy... -Eu sei que você está gostando... -Não podemos... -Então diz que vocês não quer mais meus beijos. Com sua boca perto da minha ele me fazia arrepiar. -Eu... Não... -Diga que você não me ama mais... -Eu não te amo mais. -Pare de mentir. -Levy, o destino não quis que ficássemos juntos. -Não culpe o destino, foi você que não quis. -Desculpa. Fugi dele e entrei no metrô que acabara de chegar na estação. As lágrimas que escorriam pelos seus olhos eram pura, vinham do coração, declarando seu amor verdadeiro por mim. O metrô andava e nossos olhares acompanhavam um ao outro, até entrar no túnel, e assim nos perdermos, para sempre. Um vazio tomou conta do meu interior. Os sentimentos se misturavam, confundindo meus sentidos. Não sabia ao certo o quê acontecia comigo, só sei que eu não era mais o mesmo.

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Dias se passaram. O Levy não saia da minha cabeça, às vezes nos cruzávamos no breack e nos cumprimentávamos com um simples "oi". Só assim para matar a saudade daquele rostinho de anjo. Seus olhos ainda mostravam que mágoas ficaram entre nós, motivo pelo qual me fazia sentir pior ainda. Meu namoro com o Guilherme não andava muito bem, aliás, ia muito mal. Nossos encontros eram forçados por ele, minha vida havia se tornado um inferno. -Alô. -Amor da minha vida... -Oi Guilherme. -Tenho uma boa notícia pra você. -Que notícia? -Hoje vamos à balada. -Hoje? -Sim! -Estou muito cansado... -Não tem problema, depois a gente descansa dentro de uma banheira cheia de espuma. Já liguei para o Rafael e ele topou. -Mas Guilherme... -Sabia que eu te amo? -Você não me deixa esquecer. -Então está combinado. Onde a gente se encontra? -Humpft... Pode ser lá na porta... -Que porta? -Na porta da balada... -Você nem sabe em qual iremos... -Mas sei qual é a única que você gosta. Preciso dizer qual é? -Hahaha... Está vendo como você me conhece? -Humpft... Até mais tarde, Guilherme. -Beijo, amor! Desliguei o telefone puto da vida. O quê o Rafael tinha na cabeça para aceitar ir pra balada com o Guilherme, sabendo que eu fugia de qualquer programa que envolvesse sua presença? Cada segundo ao seu lado era como passar horas preso à uma guilhotina, esperando um carrasco soltar a corda. Subi para o banheiro desanimado. Tirei a roupa e entrei embaixo do chuveiro. Enquanto a água escorria, meus pensamentos se perdiam pelo ar, relembrando um dia, apenas um dia que eu me senti feliz, realizado por completo. Perdido fiquei, até ser interrompido. Do banheiro eu ouvi a campainha soar. Deveria ser o Rafael chegando para irmos juntos à balada. 133


Saí do banho e fui para o meu quarto, onde o Rafael já me esperava sentado em minha cama. -Nando... -Fala? -Você marcou de se encontrar com o Guilherme, onde? -Lá na porta. -Na porta? -É. -Por que você não marcou aqui perto para irmos de carro? -Humpft... Porque não. Nosso relacionamento não anda muito bem. -Sério? -Sim... Já não sinto mais por ele o quê eu sentia antes. -Nando, pense bem cara... -Eu já pensei e acho que não dá mais. -Onde é que você vai encontrar um cara como ele? -Ele não é o único no mundo. -A maioria dos caras só querem sugar a gente, o contrário dele que sempre te dá tudo que você quer, te leva para jantar em ótimos restaurantes... -Mas eu não estou interessado no dinheiro dele. -Porque você é muito burro. Onde já se viu, deixar um cara bonito, carinhoso, rico... -Fique você com ele, então. -Se ele me quisesse, eu ficaria, mas ele quer você. -Bom, vamos parar com essa discussão que não vai nos levar a lugar nenhum. -Humpft... Desculpa. -Pega pra mim aquela camisa? Aquela discussão não teria futuro nem fim se eu não interrompesse. Minha felicidade não era ao lado do Guilherme e disso eu tinha certeza. -Já está pronto? -Sim. -Então vamos. -Calmae que vou passar um perfume. -Puts... Como você enrola. -Não entendo o por quê dessa pressa toda... -O metrô vai fechar, você já viu que horas são? -23h. Dá tempo de sobra, se o metrô fechar nós pegamos ônibus... -Humpft... O quê me incomodava no Rafael era aquele seu jeito interesseiro de ser, aproximando-se das pessoas pelo que elas tinham, atitudes que eu sempre repudiei. Chegando na porta da balada, avistei o Guilherme que já nos esperava aflito. -Caramba, por que a demora? -O Nando ficou enrolando pra sair de casa... -E eu aqui parado igual uma estátua. -Estátua? Sorte que nenhuma pomba passou... -Engraçadinho. -Vamos entrar ou ficar discutindo quem teve culpa de quê? -Humpft... Vamos.

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A vontade que eu tinha, era de dar meia volta e ir embora. A paciência já havia se esgotado, me tirar do sério àquela noite não seria muito difícil. Entrei primeiro e deixei os dois para trás. Segui até o bar onde pedi uma água. Não demorou muito e o Guilherme apareceu. -Por que você não nos esperou, amor? Caminhando até a mesma mais próxima eu respondi: -Você estava ocupado demais discutindo desnecessariamente por uma besteira. -Eu estava falando com o Rafa quê... -Podemos mudar de assunto? -Humpft... Desculpa, amor. Eu vou buscar uma caipirinha, já volto. -Ta bom. Enquanto ele foi no bar buscar a caipirinha, fiquei sentado na mesa tomando minha água, até ser interrompido por um rapaz muito bonito que se aproximou de mim dizendo: -Licença, posso sentar aqui? -Claro. -Nossa... Está enchendo de gente esse lugar... -Pois é. -Meu nome é Leonardo, e o seu? -Fernando. -Prazer Fernando. Nunca te vi por aqui... -Venho muito pouco nesse lugar. -Ah... Você costuma ir aonde? -Ultimamente não tenho saído muito. -Que pena, um cara bonito como você não deve ficar preso em casa... Tem que sair mais... -Obrigado pelo "bonito". -Não falei nenhuma mentira. -Humpft. -Você tem uma boca muito gostosa. Ele tocou em minha mão e foi se aproximando na tentativa de me beijar, afastei na mesma hora para não causar atritos, mas o garoto foi insistente. -Por favor, não. Eu namoro... -Não tem problema, não sou ciumento. -Não insista. O cara era insistente demais e me abraçou, justo na hora que o Guilherme voltava à mesa. -Ele não falou que já tem namorado? -Calma Guilherme... -Calma o caralho. Eu vou quebrar a sua cara. Nervoso, ele virou a mesa e jogou a bebida na cara do rapaz, chamando atenção de todos à volta. Por mais que eu pedisse para ele parar, não adiantou. Descontrolado, sua fúria fez com que ele voasse em cima do cara, socando sua face sem dó. Tentei separar a briga, mas o Rafael me segurou. -Não bate nele... Pare com isso, Guilherme... -Nando... Deixa... Não acreditei naquilo que estava acontecendo. Pessoas aglomeradas ao redor, enquanto o Guilherme espancava o rapaz. Ninguém teve coragem de separar. A briga durou até os seguranças chegarem. 135


Foi horrível. Minha noite mal havia começado e já havia acabado de uma maneira estúpida, agressiva, que poderia ter sido resolvido com uma simples conversa. Segui até o caixa discretamente. Paguei a comanda e saí daquele lugar carregando toda a culpa pelo que havia acontecido. Peguei um táxi e fui direto pra casa, deixando o Guilherme e o Rafael para trás. A leve brisa da madrugada que entrava pela fresta da janela, batia suavemente em meu rosto. As ruas desertas, tranqüilas para uma cidade tão grande quanto São Paulo. Fui o caminho todo chorando, refletindo tudo que vinha acontecendo em minha vida. “-Que horas você vai tirar sua pausa, Nando? -Daqui a pouco, aproveito para ligar em casa e avisar que você vai dormir lá essa noite. -Tem certeza que não vai incomodar? -Você nunca incomoda, Levy” “-Obaaaaaaa... Eu vou ganhar um beijinho? -Muitos. -Hummmmm... Que delícia! -Delícia é saber que eu tenho você só pra mim.” Semanas se passaram. Durante esse tempo, não fiz outra coisa a não ser trabalhar. A cada dia que passava, o Guilherme se mostrava mais agressivo, se mostrando totalmente oposto aquele que um dia eu havia conhecido. -Alô? -Oi meu amor... Tudo bem? -Humpft... Indo... Fala. -É assim que você trata o amor da sua vida? -Você me ligou pra ficar discutindo? -Não amor, vamos nos ver hoje. -Eu não sei se hoje eu posso. -Não perguntei se você pode, eu disse que nós vamos nos ver. -Guilherme... -Encontro você em frente a Biblioteca Municipal da Consolação. -Humpft... Ta bom. -Às 23h estarei te esperando. -Tudo bem. Minha vida já não era mais a mesma. A tristeza havia tomado conta de mim. Eu já não tinha mais vontade de viver e isso começou a me prejudicar no ambiente de trabalho. -Oi Fe! -Oi Shirley. -Tudo bem com você? -Não muito. -Por quê? -Humpft... Preciso me abrir com alguém, você promete guardar segredo? -Claro, somos amigos, certo? -Eu... Eu não agüento mais o Guilherme... Está insuportável a convivência com ele... -Nossa... Mas ele aparenta ser tão legal... -Eu amei uma pessoa apenas... O Levy. 136


-Você... -Esse amor vem crescendo a cada dia... Todas as noites eu choro quando penso nele... Sinto seu perfume em minha pele... -Mas Nando... Por que você terminou o namoro, se o ama tanto assim? -Promete que não vai contar pra ninguém? -Humpft... Prometo. -O Guilherme me obrigou. -Obrigou? -Sim. -Desculpa Nando, mas eu acho que... -Ele ameaçou matar o Levy. -Matar? -Sim... Eu amo o Levy, não quero que o Guilherme o faça mal... -Então por que você está com ele? -Porque o Guilherme impôs essa condição... Disse que se eu não largasse o Levy e voltasse pra ele... -Tudo bem, já entendi... Humpft... Que situação, amigo. -Não sei mais o quê fazer, eu não agüento mais. Recebi um abraço forte, de amigo. Aquele relacionamento estava acabando comigo, eu já não suportava, meu espírito pedia socorro. Seu abraço me confortou, por um momento eu esqueci dos problemas, até sermos interrompidos pela Habiba: -Habibinhos... Vocês estão atendendo? -Não... -Não está caindo ligação, Habiba. -Vocês já deram uma olhada na intranet? -Ainda não. -Então olhem lá... Vocês viram a Ellen? -Felizmente não. -Tratem de ler as orientações. -Ta bom. -Não sei o quê pode ter de tão interessante nessa intranet... -Deve ser alguma política comercial nova... Caramba... -O quê foi? -Eu não acredito... -Fala logo. -Eu ganhei uma viagem pra Bonito da campanha VAMULAH. -Nossa... Que maravilha... Será que eu também ganhei? -Vamos ver se seu nome está na lista... -Não estou achando.... -É... Da nossa equipe quem ganhou foi eu, a Elaine... -Até a Daba? -Pois é... Acho que da nossa equipe só tem a Ellen, a Daba e eu. -Humpft... Que decepção... Até a Ellen ganhou... -Olha só... O Levy também ganhou. -Sério?... Foi merecido, ele é um ótimo operador. -Olha o quê o amor faz... -Não entendi. 137


-Seus olhos brilham quando você fala nele... -Humpft... Eu queria tanto poder abraça-lo... Sentir o toque de suas mãos em mim novamente... -E o quê te impede de fazer isso? -Tenho medo de que o Guilherme o faça algum mal. -Você tem medo de ser feliz. -O quê você quer dizer com isso? -Que você deve lutar pelo seu amor, jamais desistir, a vida nos dá as oportunidades de conseguir o quê almejamos, ainda dá tempo de você voltar atrás e fazer um novo fim. -Preciso pensar... -Querido, eu adoro você. -Eu também adoro você. -Não deixe que nada interfira nesse amor... Fuja com ele, para bem longe... E vivam esse romance sem medo... Pense no que te falei. -Humpft... Suas palavras me fazem tão bem... O quê a Shirley havia me falado fazia sentido. Ela sempre dizia o quê eu queria e precisava ouvir na hora certa. No final da noite, o Guilherme já me esperava em frente a biblioteca. Toda vez que eu entrava naquele carro, uma angústia apertava meu peito. Era como ser preso no corredor da morte, aguardando a hora do juízo final. -Oi amor... -Oi, Guilherme. -Aconteceu alguma coisa? -Não... -Então coloca um sorriso nesse rosto. -Não to afim. -Eu mandei você colocar um sorriso nessa cara. Com a mão direita ele pressionou meu rosto, apertando minha boca, obrigando a forçar um sorriso. -Assim que eu gosto... -Pra onde você está me levando? -Estamos indo para a minha casa. -Humpft. -Tem um amigo meu lá nos esperando... -Nos esperando? -Sim... -Pra quê? -Surpresaaaaaaaaa... -Não gosto de surpresas. -Mas dessa você vai gostar. -Vindo de você, eu tenho até medo de imaginar. -Hahaha... Por isso que eu te amo. Qualquer coisa que viesse do Guilherme me deixava com um pé atrás, pois eu já não confiava mais nele. Chegando no apartamento meu coração disparou. Ao entrar na sala, nossas sombras se projetavam na parede com a meia luz que saia do lavabo. Uma música tocava bem baixinho, vindo do quarto. -Já volto meu amor. 138


Enquanto ele foi até o quarto, me aproximei da janela e fiquei observando os carros passando bem longe, me perdendo nos pensamentos até o telefone tocar. -Guilherme... O telefone está tocando... Guilherme... Para não deixar o telefone ficar tocando sem parar eu resolvi atender, mas ao mesmo tempo o Guilherme também atendeu na extensão que ficava em seu quarto: -Alô? -Guilherme... This is Lucy... -Hello darling... (Olá querida) Tapei uma parte do telefone e fiquei ouvindo a conversa. Não consegui acompanhar muito o quê eles falavam, pois era em inglês, mas o quê eu compreendi, era que a tal Lucy voltaria ao Brasil. Pela reação do Guilherme, reparei que ele havia detestado a idéia, reforçando assim a minha suspeita de que ele me escondia muito mais do que eu pensava. Em meio à discussão dos dois, eis que ecoa a voz de uma criança: -Hi daddy... (Oi papai) -Hello baby... How are you? (Olá querida, como você está?) -I´m fine. (Estou bem) -Guilherme, we are coming back to Brazil. (Guilherme, nós voltaremos ao Brasil) -When? (Quando?) -In the next days. (Nos próximos dias) Desliguei o telefone perplexo. Cheguei a conclusão de que eu não conhecia o Guilherme, pensava que sabia tudo quando na verdade não sabia nada. Sentado no sofá da sala, esperei ele aparecer, o quê não demorou muito. -Fernando... -Diga. -Vem comigo. Fui acompanhando seus passos até seu quarto. Ao abrir a porta, levei um susto quando vi um rapaz deitado sobre sua cama, sem roupa, nu em pêlos. -Mas o quê é isso? -Tire a roupa. -Eu não vou tirar nada. -Eu estou mandando você tirar... Já despido, ele me agarrou e começou a tirar minha camiseta. Comecei a ficar desesperado, me debatendo na tentativa de escapar daquela violência psicológica que estava sendo cometida. -Me solte... Eu não quero tirar minha roupa... -Você vai gostar, vamos fazer amor bem gostoso... -Pare com isso... Por mais que eu tentasse escapar foi inútil. Já sem forças, fui obrigado a fazer sexo a três com um garoto de programa contratado pelo Guilherme. Nunca me senti tão humilhado, senti nojo de mim mesmo, servi de objeto do prazer para o Guilherme satisfazer suas fantasias. Deitado na cama, ainda sem roupa eu olhava para a janela, contando os minutos para criar coragem e pular, assim acabaria com todo esse sofrimento. Eu não falava, não me movia. Era como se eu estivesse morto por dentro, e de certa forma eu estava. Lágrimas corriam pelo meu rosto, enquanto o Guilherme assinava o cheque. Em alguns momentos, eu percebi que o rapaz sentia pena de mim, pela forma que me olhava, mas nada podia fazer para me ajudar. 139


O dia já havia amanhecido. Enquanto eu era consumido pelo arrependimento, o Guilherme e o mixê já haviam tomado banho juntos e se arrumado. Permaneci jogado como um objeto sobre aquela cama, sem coragem de levantar e encarar o mundo. -Amor, estou indo trabalhar agora. Eu volto pra almoçar com você. -Eu já vou embora também. -Não vai não... -O quê? Sem dó nem piedade, ele arrancou o telefone da tomada, deu um sorriso sarcástico e fechou a porta do quarto. O desespero tomou conta de mim ao ouvir a trava da fechadura. Não sei de onde tirei forças, mas consegui levantar e correr até a porta, porém, já estava trancada. Fui até a janela e observei o movimento na rua. Pela altura do prédio, não adiantaria gritar, pois ninguém iria me ouvir. Abri seu guarda-roupa e comecei a vasculhar tudo, na tentativa de encontrar alguma coisa que me ajudasse a sair dali. Muitas roupas e sapatos ocupavam aquelas gavetas. Procurei em todas as portas até conseguir encontrar uma caixa só continham documentos. A curiosidade falou mais alto, então, espalhei todos aqueles papéis pelo carpete e comecei a ver se algo de interessante havia ali. Quase enfartei ao encontrei a certidão de casamento do Guilherme. Verificando a data do casamento, pude perceber que era recente, sendo que não haveria tempo de se casar e se divorciar antes de me conhecer. Diversos cartões postais acumulavam dentro de outra caixa, no qual estavam todos escritos em inglês. “Love, we are dying of homesickness its... Our son asks for you the entire time. When she will come in visiting them?” I love you, Lucy (Amor, estamos morrendo de saudade suas... Nossa filha pergunta por você o tempo inteiro. Quando virá nos visitar? Amo você, Lucy) Foi aí que eu comecei a entender tudo. O Guilherme não era divorciado como ele dizia, mas sim casado com uma inglesa. Sua esposa e filha moravam na Inglaterra, enquanto ele morava e trabalhava no Brasil. Comecei a colocar os papéis de volta na caixa, um a um fui arrumando até achar um bilhete escrito em português. Acreditando que nada mais me surpreendia, acabei me enganando quando vi que o bilhete era do Rafael. 140


"Gui... O que rolou entre nós ontem não pode chegar aos ouvidos do Nando, pois sei como ele é e traição de amigo ele não perdoa. Por favor, não comente nada com ninguém, fica só entre nós. Caso você queira sair mais vezes, me liga e marcamos, mas tudo em segredo. Beijos e obrigado pela noite maravilhosa. Rafa."

Abismado foi pouco. Na verdade eu fiquei anestesiado. Pela data do bilhete eu compreendi tudo. Naquela noite em que o Guilherme brigou com o rapaz por minha causa, eu fui embora, deixando o caminho livre para o Rafael. Se aproveitando da situação, ele não perdeu tempo e se atirou pra cima do Guilherme. Safado como ele só, acabaram indo passar a noite em um motel. Decepcionado com tudo e todos, resolvi não mexer em mais nada, para não encontrar nenhuma outra surpresa e ficar pior do que já estava. Juntei tudo dentro das caixas e guardei no lugar onde estavam. O tempo parecia não passar. A rotina seguia lá fora, enquanto eu era mantido em cárcere dentro daquele quarto, aprisionado por uma pessoa desequilibrada. Os objetos do quarto pareciam girar de um lado para o outro, em seguida perdi os sentidos. Fiquei caído no carpete do quarto, não sei por quanto tempo, só me lembro que quando acordei tive a impressão de ter ouvido um barulho na sala. Assustado, corri até o criado-mudo e peguei o abat-jour para me defender, com medo que o Guilherme fizesse alguma outra maldade comigo. Já não suportando mais tanta humilhação, decidi que a hora que ele entrasse naquele quarto, um de nós não sairia vivo de lá. Eu ouvia passos que vinham da sala de encontro à porta principal, no qual eu estava próximo. Parado ao lado do espelho eu esperava ele abrir a porta para acertar sua cabeça com o abat-jour. O barulho dos meus dentes rangendo se misturava ao da fechadura sendo destravada. Meu coração disparou de uma tal maneira que achei que ele fosse sair pela boca. Quando a porta do quarto se abriu eu mirei em sua cabeça e quando fui acertar, ele desviou. Eu estava com tanta raiva que nem reparei que não era o Guilherme que entrava no quarto, mas sim o mixê que havia passado a noite conosco. -Calma... O que você ia fazer? -Pensei que você fosse o Guilherme. -Se eu não fosse ágil você me matava. -Essa era a intenção. -O quê? -Mas o alvo não era você, desculpa. -Tudo bem. Olha... Acho melhor você sair daqui rápido, antes que ele volte... -Por que você está me ajudando? -Agora não é hora para perguntas, pegue suas roupas, rápido. Enquanto eu vestia minha roupa ele andava de um lado para o outro preocupado. -Pronto. -Pegou tudo?

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-Sim. -Então vamos. -Espere... Obrigado por me ajudar... Com os olhos cheios de lágrimas, ele se aproximou de mim e me deu um forte abraço dizendo: -Eu já passei por isso uma vez... Essa vida não é fácil... -Acho que estou começando a entender... -O quê ele é seu? -Namorado. -Mas por que você se permite a isso? -Humpft... Ele me ameaça... -Você gosta de outra pessoa? -Sim... Eu amo outro, mas tenho medo de algo que o Guilherme possa fazer com ele... -Não tenha medo de ser feliz, lute pelo seu sonho. -Você fala como... -Eu falo como uma pessoa que não teve a mesma sorte na vida que você. -Mas você é bonito, jovem, pode mudar de vida quando quiser... -Não é tão fácil como você pensa. -Sei que não é fácil, mas você pode tentar mudar isso. -Como? -Agora não sei, mas acho que posso te ajudar. -Obrigado cara. -Eu é que devo te agradecer por ter me ajudado. -Vamos sair daqui antes que ele chegue. -Sim. Peguei minhas coisas e deixamos o apartamento. Só respirei aliviado ao cruzar o portão do condomínio. -Você vai pra onde, agora? -Para o metrô. -Eu te dou carona. -Você está de carro? -Sim, está estacionado ali na rua de trás. -Tudo bem, vamos então... Faz quanto tempo que você está nessa vida? -Há 5 anos. -E deu pra você comprar esse carrão? -Sim. -Caramba... -Mas o dinheiro voa. -Voa? -É... Vai embora muito rápido, não vale a pena. -Entendo... Como foi que você me tirou do quarto? -Não achei certo o quê ele fez com você... Fiquei esperando ele sair, entrei com uma das chaves que tinham ao lado da porta principal. -Você foi corajoso. -Fui legal com você. -É verdade.

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-Mas fiz isso por mim mesmo, como te disse, já passei por isso uma vez e contrário de você, não tive ninguém para me ajudar. -Nossa... Era seu namorado? -Não, era um cliente... Posso te deixar nessa estação? -Pode sim. -Nossa... Tudo aconteceu tão rápido que nem perguntei seu nome... -Fernando. -Prazer, Fernando. Posso te dar um conselho? -Sim. -Larga esse cara... Você é um cara muito bonito, gostoso, inteligente, merece alguém que te dê valor, que te ame de verdade. -Obrigado. -Vou deixar com você o meu cartão, precisando é só ligar, tem também o meu e-mail. -Vou guardar com carinho, Felipe. -Você pode me chamar de Gustavo, Felipe é só para os clientes. -Tudo bem então, Gustavo. Muito obrigado por me ajudar. -Falou cara. Se cuida... -Você também. Boa sorte! Demos um forte abraço como despedida. Fechei a porta do seu carro importado e acenei para ele que respondeu com duas buzinadas. Cruzei a catraca do metrô com um objetivo único: lutar pela minha felicidade. “-Levy... Por que você está chorando? -Nada não... -Como, nada?” “-Nando, eu não sei como te agradecer... -Mas eu sei. -Como? -Não se afastando de mim, nunca.” Cheguei em casa e fui direto para o meu quarto. Tranquei a porta. Peguei o telefone e disquei para o Levy. A cada toque que o telefone dava era uma expectativa, e foi nessa ansiedade que eu esperei o telefone chamar até a linha cair. Desliguei o telefone e fui tomar banho antes de ir trabalhar. A cada gota d'água que escorria pelo meu rosto era uma esperança que brotava no meu peito. Saí de casa ansioso. Não via a hora de chegar na empresa e dizer olhando em seus olhos que eu o amava, que nunca deixei de amá-lo e queria viver com ele para sempre. A cada passo que eu dava era uma lembrança que me vinha à mente. Eu tinha a felicidade nas mãos, mas por covardia deixei escapar. Quando cheguei na operação avistei a Ellen e a Daba conversando, não fiquei olhando muito, pois meu alvo era o Levy. Andei um pouco pela operação até cruzar com a Shirley. -Nando... -Oi Shirley! -Guardei essa P.A aqui pra você. -Ah... Obrigado! Você viu o Levy por ai? -Não vi. Querido, tenho algo pra te contar... -O quê? 143


-Você pensou naquilo que te falei? -Sobre? -O Levy. -Sim... Vou falar com ele e contar toda a verdade. -Não demore... A Ellen está espalhando aos quatro ventos que pretende reconquistar o Levy nessa viagem pra Bonito. -Não pode ser... -Pois é, Nando. Se eu fosse você não perderia tempo... -Mas o quê eu posso fazer? -Lute pelo amor da sua vida, se vocês se amam de verdade, lutem pela felicidade de vocês. -Preciso falar com ele... -A Habiba está vindo, pergunte pra ela onde ele está. -Habiba... -Oi habibinho... -Você viu o Levy por ai? -Hoje ele não veio... -Ah... Minhas pernas amoleceram. Sentei na cadeira e cobri meu rosto. -Meu Deus... -Calma Nando... -Como calma? Amanhã vocês viajam, hoje era a chance que eu tinha de falar com ele... -Nem tudo está perdido... -Do que você está falando? -Jamais perca as esperanças. -Humpft... -Já colocou "Op Auto"? -Ainda não... Depois de saber disso perdi a vontade de atender. -Vou colocar pausa, preciso falar com a Habiba. -Ta bom. -Já volto. Coloquei o read na cabeça e debrucei sobre a P.A Uma tristeza bateu no meu peito. As lágrimas desciam sem que eu pudesse controlar, cabisbaixo continuei, até minha P.A tocar. -Nando? -Fala, Habiba. -Põe pausa feedback e vem aqui. -Mas o quê aconteceu? -Não questione... Faça só o que eu mandei. -Ta bom. Pendurei o read na aba do lado direito e fui até a mesa dela. No trajeto, cruzei com a Ellen que ao me ver jogou o cabelo, dando uma risada irônica. Naquele momento tive vontade de enforcá-la. Conviver no mesmo ambiente que ela estava se tornando insuportável. Fui me aproximando da mesa da supervisão com o pensamento longe. Puxei uma cadeira e sentei ao lado da Habiba, que conversava com a Shirley. -Habibo... O quê está acontecendo? -Como assim? 144


-Eu venho percebendo que você não anda bem, está acontecendo alguma coisa? -Não está acontecendo nada... -Nando... Eu quero o seu bem... -Eu sei. -E então? -Ah Habiba... Está tudo tão difícil... -Mas por que está difícil? -Está tudo dando errado... -Será que não é você que está errando? -Como assim? -Você não faz idéia de como o Levy ficou depois que você terminou com ele? -Humpft... -O quê você pretende fazer agora? -Nada. -Como nada? -Hoje o Levy não veio e amanhã ele viaja... -E você vai se conformar com isso? -Não posso fazer nada, Habiba. Tenho que me conformar em ter perdido... Quem sabe o Guilherme mude e eu consiga me apaixonar por ele e esquecer o Levy... -Eu não acredito que ouvi isso de você... Esse não é o Fernando que eu conheço... -Humpft... -Habibo, as pessoas não mudam, elas podem melhorar, mas não mudar. Olha pra mim... -Humpft... -Você acha justo o Levy ficar sofrendo por você? -Mas... -Você acha? -Humpft... Não. -Assine aqui essa folha. -O quê é isso? -Eu estou mandando você assinar. A cara que ela fez me assustou. Logo pensei em algo ruim que eu pudesse ter cometido, mas ao ler o papel vi que estava completamente enganado. -Não acredito... -Pois é, sua amiga Shirley me explicou o caso e pediu para que eu desse a oportunidade de você ir no lugar dela... -Você fez isso mesmo? -Sim... Acho que você teria mais motivos para ir do que eu, e também a milha filha está doentinha... -Nossa, estou sem palavras. -Agora você não tem mais desculpa. -É isso ai Habiba, se ele não voltar namorando novamente... -Eu quebro você na pancada, entendeu? -E eu te ajudo. -Nossa... Como vocês estão violentas... -Acho melhor você tratar de se ajeitar... -Hahaha... Pode deixar que dessa vez ele não me escapa. -Lute pela sua felicidade, Habibo. 145


-Pode deixar. -Agora voltem para o atendimento que está dando fila. -Vamos. -Olha... Eu amo você! -Também te amo, Habibinha. Voltei para a P.A pisando nas nuvens. Mal podia me conter de tanta alegria. Junto com o contrato de aceitação, recebi uma folha cheia de informações, roteiros, etc. No outro dia eu tinha que estar no Terminal Tietê às seis horas. De lá sairia um ônibus que nos levaria até o aeroporto. Cheguei no Terminal e avistei a Ellen, para alegrar meu dia. Com um decote enorme ela conversava com um rapaz. Havia muitas pessoas circulando com enormes malas e entre elas meus olhos buscavam o Levy. Caminhei até o ônibus coberto com os adesivos da campanha. Antes que eu perguntasse qualquer coisa ao motorista, a Ellen com a maior cara de pau foi me provocar. -Oi Nando... O quê você faz aqui? -Você poderia me dar licença? -Claro... -Obrigado. -Você está procurando o Levy? -Não é da sua conta. -Ele já foi. -Foi o quê? -O Levy já foi para o aeroporto. -Mas o ônibus... -Teve um pessoal que tinha o vôo marcado mais cedo, o Levy foi um deles. -Humpft... -Não se preocupe, a Daba está cuidando dele pra mim. -Hahaha... Deixa eu passar... -Olha aqui Nando... Se você está pensando que eu vou desistir do Levy você está enganado. Não vou deixar que vocês fiquem juntos. -Isso é o que vamos ver. Agora, sai da minha frente. Entrei dentro do ônibus e fiquei aguardando todos entrarem para podermos seguir para o aeroporto. Uma ansiedade enorme me consumia. Ver o Levy estava se tornando tão necessário quanto respirar. Procurei sentar bem longe da Ellen no avião, já que não tínhamos lugares demarcados como um vôo comercial comum. -Com licença... Aceita uma bebida? -Pode ser uma água. -Com ou sem gás? -Com gás. -Aqui está. -Obrigado! O tempo ia passando e a distância entre nós ia diminuindo cada vez mais. Sentado à janela do avião, meus pensamentos se misturavam à paisagem lá embaixo. Em cada nuvem eu depositei um pouco de esperança, na qual foi fundamental para que eu resistisse a viagem toda. “-Ah meu Deus... Socorro... 146


-Fica calmo, estamos juntos nessa... -Eu não quero morrer... -Você não vai morrer, confie em mim... Olha... Estão abrindo a porta...” “-Você está tossindo... -Não é nada. -Como não é nada? Vai acabar pegando um resfriado. -Só de estar junto de você eu não me importo mais com nada.” Chegando no aeroporto, duas vans já nos esperavam com os guias do local. Logo quando desembarcamos fomos recebidos com festa. Ganhamos mochila, camiseta, boné e um cartão de crédito para gastar na cidade. A van tinha ar condicionado e música ambiente, proporcionando maior conforto no trajeto até a pousada. Os funcionários ficaram divididos para orientar melhor o pessoal que ia chegando. Fomos muito bem recebidos na recepção da pousada. Seguimos para o dormitório, onde todos não viam a hora de desfazer as malas e pular na piscina para s refrescar daquele imenso calor. Os dormitórios eram unificados, cheio de redes enfileiradas em um grande galpão, feito de madeira e coberto com palha seca. A recepção e o restaurante eram construções rústicas de troncos de árvores e cobertura de sapé. Uma mistura de modernidade com hábito local. Como nem tudo é perfeito, acabei dando azar de ficar no mesmo acampamento que a arrogante da Ellen, que insistia em me provocar o tempo inteiro. -Galera, vocês vão passar essa noite aqui, depois de amanhã nós passaremos em outra pousada. -Ai Nando... Você vê como o destino conspira a nosso favor? -Isso é o quê você pensa. -Quando é que você vai parar de me tratar assim? -Enquanto eu tiver o desprazer de te encontrar. Sem paciência para ficar escutando asneiras da Ellen, me afastei e fui falar com o guia. -Licença... -Opa... -Você sabe se vamos ficar separados dos outros por muito tempo? -Fica frio, a gente só dividiu vocês nas pousadas porque não tem lugar pra todo mundo em uma só. -Ah... -Mas os passeios e atividades vocês farão juntos. -Entendi. Onde fica o outro acampamento? -Você quer conhecer? -Uhum. -Dá um tempo ae que eu já te levo lá. -Beleza. Sentei em uma mesa e esperei por uns 15 minutos. -Vamos lá? -Vamos.

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O outro acampamento não ficava muito longe dali, levamos menos de dez minutos de jeep até lá. -Chegamos. -Valeu. Desci do carro e entrei no acampamento procurando pelo Levy. Haviam muitas pessoas desfazendo suas malas, tirando foto da galera. Atravessei o acampamento de uma ponta a outra até encontrar o Levy trocando de camiseta sentado na última rede da fileira. De costas para mim, fui me aproximando sorrateiramente. Meu coração palpitava à todo vapor, com a voz engasgada eu chamei pelo seu nome: -Levy... Surpreso, ele se levantou e olhou pra mim. -Nando... O quê você faz aqui? -Vim procurar você. -Procurar por mim? -É. -Pra quê? Para me enganar outra vez? Me iludir? -Não... Eu nunca te enganei. -Enganou sim, você me fez acreditar que me amava, me iludiu. Caminhando até a mesa da varanda fomos conversando. -Eu menti. -Você sempre mentiu. -Isso não é verdade, eu fiz isso por amor. -Chama isso de amor? -Eu tive motivos para isso. -Motivo? Qual motivo nesse mundo justificaria suas mentiras? -A sua vida. Um breve silêncio pairou entre nós. -Mas... Do que você está falando? Olhando em seus olhos não pude controlar a emoção, as lágrimas escorriam a cada piscada de olho. -Eu não podia te contar a verdade. -Mas de qual verdade você está falando? -Humpft... O Guilherme ameaçou matar você se continuássemos namorando... -O quê? -Ele é uma pessoa cruel, capas de coisas que até Deus duvida... -Mas... Isso é muito grave... -Eu sei... Ele é uma pessoa muito violenta... -Você deveria ter me contato a verdade. -Entenda meu lado, se eu te contasse a verdade você não aceitaria e algo de ruim poderia acontecer... -Você tem idéia do quanto eu sofri, achando que você só havia me usado? -Humpft... -Foram noites em claro que passei por sua causa... -Eu não tive culpa. -Você não tinha o direito de destruir um sonho que havíamos construído juntos. -Levy, por favor, não fale assim comigo. 148


-Humpft... -Você me perdoa? -Humpft... Eu preciso ficar sozinho. -Eu... Eu vou te deixar sozinho... Levantei da mesa e voltei para o carro. Não sei se havia feito a coisa certa, mas depois daquela conversa, me senti aliviado, acabando com as mentiras e tirando um peso enorme das minhas costas. -Já voltou? -Sim... -O quê aconteceu? -Nada... Por quê? -Você está chorando... -Aqui venta muito e uma chuva de poeira entrou nos meus olhos. -Ah... Cuidado para não ficar cego. Meu peito estava apertado. Àquelas alturas eu já não tinha mais certeza de nada. A cada folha daquelas árvores, era um momento de minha vida que passava diante dos meus olhos. “-Ae Nando... Empresta um pouco desse xampu? -Pode pegar. -Perae.” “-Estou preocupado com você. -O tempo de preocupação acabou. Agora é nosso momento... Vamos ser felizes aproveitando esse tempo. -Se todos os meus dias fossem assim, eu seria o cara mais feliz do mundo.” De volta ao acampamento. Já estavam servindo o almoço e eu estava morrendo de fome. Desci do carro e fui até a bica para lavar as mãos. Depois voltei para a varanda onde o pessoal devorava o banquete oferecido pela empresa. A mesa era farta, com muita comida gostosa. Uma grande variedade de saladas, até carne de jacaré eu comi. Só não tinha refrigerante, mas em compensação, havia bastante suco de frutas da época. Provei quase todos, até me engasgar com o grito da Ellen: -Ahhhh... -Quem está gritando? -A Ellen. -Ai meu Deus... -O quê aconteceu? -Uma cobra... -Picou você? -Não. -E você acha que ela é louca de picar a Ellen? Quem correu perigo foi a cobra... -Hahaha... -O quê você quer dizer com isso, Fernando? -Nada que você não saiba. -Olha aqui, Fernando... -Olha aqui você... 149


-Por favor, vamos para com essa briga? Na verdade, o quê a Ellen quis foi chamar atenção, pois a cobra estava a uns três metros de distância dela. -Pessoal... Amanhã nós vamos fazer um mergulho no aquário natural. Passei o dia depressivo. Ficar um ou mais quatro dias naquele lugar não iria fazer diferença alguma, eu já havia perdido as esperanças mesmo. A vida no mato é tranqüila. Começa com o nascer do sol e descansa quando ele se põe.

Ficamos em volta da fogueira contando histórias do atendimento. A noite já havia subido. Deveria ser em torno de 23h00. Todos já estavam dormindo, pois no outro dia iríamos acordar cedo para o passeio. Deitei na rede e fiquei esperando o sono chegar, balançando de um lado para o outro. Embora eu quisesse dormir, os mosquitos não deixavam, zumbindo no meu ouvido aquele barulho chato. Impaciente eu levantei da rede e saí lá fora. Sentei em volta da fogueira que permanecia acesa, pelo menos ali os mosquitos não iriam me incomodar. A noite estava quente. O céu estava repleto de estrelas, no qual eu nunca tinha visto igual em São Paulo. Deitei naquela grama geladinha e fiquei olhando o infinito, sonhando com algo que para mim estava longe de acontecer. Pelo menos era o quê eu achava, até ouvir alguém chamar meu nome: -Nando... Virei para o lado e tive a visão do paraíso. Era o Levy, com o cabelo caído sobre a testa, escondendo o brilho de seus olhos. -Levy?... Eu... -Psiu... Não fale nada... Só me beija. Caminhando em minha direção ele foi abrindo um sorriso. Fiquei imóvel, deixando que as coisas fossem conduzidas naturalmente. Sua mão esquerda tocou levemente o meu rosto, trazendo para junto do seu. Aos poucos nossas bocas foram se tocando. Não demorou muito e nossos corpos já estavam abraçados. As batidas aceleradas do seu coração se confundia com o ritmo do meu. A saudade era tanta que queríamos matar em um minuto. -Mano... Nunca pensei que fosse gostar tanto de alguém assim como gosto de você. -Nem eu. -Cara, eu te amo tanto... -Eu também amo você. O cheiro de sua pele misturado ao oxigênio que eu respirava, servia de combustível para os meus pulmões. O toque suave de sua pele, arrepiavam até o último fio de cabelo. Com o Levy, eu me sentia completo, o encaixe era perfeito, na medida exata.

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Nossas mãos percorriam por cada canto do corpo, como um caminhão na estrada. Nossos corpos já nus, eram iluminados pela chama da fogueira e agraciados com o brilho das estrelas. -Nando... -Hum... -Você promete que nunca mais vai me deixar? -Mas por que isso agora? -Promete pra mim? -Tudo bem, eu prometo. A natureza era a única testemunha. Misturado ao ruído das cigarras, uma voz masculina cantava no soar de um violão, em algum lugar não tão longe dali.

Um violeiro toca Quando uma estrela cai, no escurão da noite, e um violeiro toca suas mágoas. Então os olhos dos bichos, vão ficando iluminados Rebrilham neles estrelas de um sertão enluarado Quando o amor termina, perdido numa esquina, e um violeiro toca sua sina. Então os olhos dos bichos, vão ficando entristecidos Rebrilham neles lembranças dos amores esquecidos. Quando um amor começa, nossa alegria chama, e um violeiro toca em nossa cama. Então os olhos dos bichos, são os olhos de quem ama Pois a natureza é isso, sem medo nem dó nem drama Tudo é sertão, tudo é paixão, se o violeiro toca A viola, o violeiro e o amor se tocam...

Intérprete: Almir Sater Composição: Almir Sater / Renato Teixeira Aquela foi a melhor noite que já havíamos passado juntos. Fizemos amor. Criamos um laço eterno, unidos pelas energias do universo, que deveria durar para sempre. -Nando... -Hum... -O quê fez você largar tudo e vir atrás de mim? -O amor que sinto por você. -Mas e o Guilherme? -Foda-se o Guilherme, eu amo é você. Humpft... Vamos sofrer as conseqüências quando voltar, mas ao seu lado crio forças para lutar. -Eu não vou permitir que nada de mal te aconteça. -Te amo! -Acho que vai chover. -Melhor a gente entrar... -Vamos.

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Vestimos as roupas e entramos de mãos dadas. Jamais pensei que alguém fosse se tornar tão necessário em minha vida como o Levy se tornou. Sua presença causava uma sensação sem igual, mexendo profundamente com meu corpo e pensamento. Dividimos a mesma rede, pois não havia mais nenhuma sobrando. Ficamos cada um em uma ponta, mas as mãos permaneciam unidas, assim como nossas almas, unidas pelo nosso amor. Lá fora chovia bastante. Enquanto a água o temporal limpava o ar, apagara também a fogueira que havíamos feito, mas ascendeu a chama do nosso amor, que permaneceria acesa para sempre. Adormecer ao lado do Levy foi a melhor coisa, ruim só foi acordar com os gritos da Ellen. -Ahhhh... -Mas o quê aconteceu? -Vejam... O Levy e o Fernando dormiram juntos... -Eu não acredito que você acordou todo mundo por causa de uma besteira dessas. -O quê é que tem demais eles dormirem juntos? -Vocês acham normal dois HOMENS dormirem juntos? -Hei... Essa Ellen já ta tirando... -Calma Levy. -Calma o caralho, já estou cansado dessa garota. -Ellen, por favor, nos deixe em paz... Vai dormir... -Estou passada. -Cuide da sua vida. Ninguém achou legal aquela atitude da Ellen. O fato de ter acordado a todos com um gritou, deixou uma revolta enorme no pessoal, a ponto de a ignorarem depois daquilo. Ficamos acordados até a hora do café. Ninguém mais conseguiu dormir. Eu e o Levy sentamos na varanda e ali ficamos por um bom tempo. -Humpft... Se não fosse você... Eu juro que daria uns tapas nessa vagabunda... -Não faça isso, Levy. -Você viu como ela provoca? -Eu sei... Eu sei... Mas se a gente cair no jogo dela, ai sim estaremos derrotados. -Humpft... Já estão servindo o café. -Então vamos! Após o café, os treinadores foram nos buscar para o mergulho nas águas cristalinas. Chegando lá, recebemos todos os equipamentos para o mergulho. O Levy alugou uma máquina fotográfica para tirar fotos dentro das águas. -Nando... -Fala. -Quero tirar fotos de nós dois embaixo d'água. -E por que não tira da paisagem? -Porque a paisagem servirá de cenário para ilustrar o nosso amor. -Como você é romântico... -Nem tanto, vai... Vamos guardar essas fotos como lembranças do nosso amor, de uma relação pura, inocente, verdadeira... Para quando ficarmos velhinhos, podermos pegar essas fotos e relembrar dos momentos que passamos juntos... -Velhinhos... Então você pretende ficar comigo... -Pela vida inteira, se você quiser, é claro. -É tudo que eu mais quero. 152


-Então quando a gente voltar para São Paulo, vamos assumir nosso amor para o mundo inteiro. -Te amo... Tanto que às vezes até tenho medo. -Não tenha medo de me amar, vamos ser felizes juntos... -Ta bom, esquece o que eu falei. -Ok... Só vou lembrar do "Te amo". -Isso. Aquele lugar era o verdadeiro paraíso. O Aquário Natural era de impressionar qualquer um pela sua limpidez da água. Flutuávamos num mundo de belezas sem igual, com várias espécies de peixes e uma variedade imensa de vegetação aquática, no qual podíamos sentir ao esbarrar. Os cardumes nos acompanhavam pelo meio das plantas aquáticas ondulantes, que pareciam danças com a sinfonia dos pássaros e no ritmo das águas. A emoção de poder toca-los é inexplicável, um mundo mágico de cores e beleza se escondia embaixo daquelas límpidas águas, que refletiam a luz do sol em tonalidades que variavam do azul ao prata. Durante a flutuação, descemos o rio Baía Bonita com o equipamento necessário para não tocar no fundo e nas plantas, evitando que a água turvasse. -Gostou do mergulho, amor? -Adorei. -Que bom. -E você? -Gostei também... As fotos ficaram da hora... -Com um modelo da hora como você... -Hahaha... Voltamos para o acampamento, depois de termos passado o dia inteiro flutuando pelas águas do rio. Sentamos à mesa para comer após o passeio. Puxei a cadeira ao lado do Levy. Não demorou muito e a Ellen chegou, fazendo questão de sentar de frente para nós, só para nos provocar. -Vocês gostaram do passeio? -Humpft... Sim. -Hum... Eu amei... Levy, onde estão suas coisas? -No outro acampamento. -E você não vai buscar? -Você está incomodada? -Calma Levy... Depois eu busco pra você. -É uma pena que não tem mais uma rede aqui no nosso pra você ficar. -Não esquenta, eu divido uma com o Nando. Eu queria ter uma câmera fotográfica em mãos naquele momento, para registrar a cara que ela fez com a resposta do Levy. Não consegui segurar a risada e quando ela ia rebater o guia interviu. -Hahaha... -Olha aqui... -Pessoal... Eu vou começar a distribuir as equipes para dividirem o bote no passeio que faremos amanhã...

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Cada um ia recebendo uma bandeirinha de cor verde ou amarela. Cada cor representava uma equipe diferente. Eu havia ficado com a cor verde, já o Levy e a Ellen ficaram na amarela. Percebi que o Levy não havia se sentido muito à vontade em ficar na mesma equipe que ela, já a Ellen, esboçava um contentamento sem igual.

Após o almoço, o Levy foi até o outro acampamento buscar suas coisas, assim ficaríamos mais próximos um do outro. -Amor, eu vou lá buscar minhas coisas e já, já to de volta. -Não demore que é pra não sentir saudade... -Vou e volto o mais rápido possível. -Eu já disse que te amo? -Hoje não. -Então eu digo agora: Te amo! -Eu também amo você. Enquanto o Levy foi buscar suas coisas, fiquei conversando e terminando o almoço com o pessoal. Peguei um copo de suco e levantei da mesa, mesmo a ignorando, a Ellen fazia questão de me provocar, na maior parte dás vezes ela conseguia. -Ai Nando... É uma pena que você e o Levy não irão no mesmo bote... -Com licença... Dei a volta e fui até a varanda tomar meu suco em paz. Na verdade eu tentei, pois paz era algo praticamente impossível de se ter quando a Ellen estava envolvida. O tempo foi passando e o Levy não chegava. Eu já estava começando a sentir saudade daquela voz aguda. Fechei os olhos e fiquei relembrando os momentos vividos na noite anterior. É engraçado como o nosso organismo se comporta diferente quando estamos apaixonados. A pele parece que fica mais limpa, os olhos dão outro ar em nossa face, o olfato fica mais aguçado. Nossa visão sobre as coisas também mudam. O sol parece brilhar mais que antes, as cores ao seu redor ficam mais ressaltadas, só o quê não mudou foi a visão que eu tinha sobre a Ellen, que como de costume, apareceu para tirar minha paz. -Humpft... Ai, ai... Eu prometo que vou cuidar muito bem dele pra você. -Vem cá... Qual é a sua? -Como? -O quê você quer com o Levy? -Por quê? -Se você me ama, como insistia em dizer, por que permanece grudando no pé do Levy? -Porque eu sei que se mexer com ele, tocará mais em você. 154


-Será que você poderia nos deixar em paz? -Não. Enquanto eu puder, não vou deixar vocês ficarem juntos. -Você pode até tentar, mas nosso amor é mais forte que a sua vontade. -Humpft... É uma pena que amanhã vocês terão que ir em botes separados... -Quem disse isso? Nessa hora o Levy chegou, surpreendendo a nós dois. -Que susto, amor. -Olha o quê eu tenho? -Um... Um cartão... -Hahaha... Você trocou sua equipe? -Sim, agora vamos ficar juntos... Eu e você. -Que bom! -Mas como?... Quem trocou com você? -A sua amiga, Daba. -Maldita. Pela reação da Ellen, a situação pro lado da Elaine não ia ficar nada boa, pois ela saiu bufando, soltando fogo pelas orelhas. -Onde será que ela foi? -Vai saber... Quer arriscar um palpite? -Nem precisa... Estou com medo, Levy. -Medo? Da Ellen? -Não da Ellen, mas de algo que ela possa fazer... Estou com al pressentimento... -Não se preocupe, ela não fará nada demais, quem deve ficar com medo agora é a amiga dela. -Hahaha... Coitada... Cadê suas coisas? -Já levei lá pra dentro. -Hum... Sabe o quê eu to pensando agora? -Posso desconfiar... -Se adivinhar, ganha um beijo. -Só um beijo? -Sim, porque o resto você já tem. -Ah é? -Uhum... -Quero beijar essa boca. -Então vem me pegar. Corri em volta da pousada. Tentando me pegar, o Levy correu à minha caça. Nunca me exercitei tanto na vida. Cada árvore daquela servia como álibi para driblar o Levy, que não cansava de correr. -Peguei você. Consegui correr por um bom tempo, até cansar e ser pego por ele. Caímos no chão. Ofegantes, rindo de toda aquela situação infantil, na qual nos despertou um tesão inesperado. -Ah... -Pensou que ia conseguir fugir de mim? -Você se aproveitou do meu cansaço... -Hahaha... Até parece. -Aproveitador. 155


-Humpft... Lembrei dos meus tempos de infância agora. -Você brincava de “pega-pega” quando era criança? -Uhum... Mas não esse pega-pega que você está pensando. -Ah não? -Não. -Então qual é? -Esse aqui. Foi quando ele tapou minha boca com um beijo molhado e selvagem. Roçando sua perna direita entre as minhas, ele fazia o movimento de ir e vir. Sussurrando no meu ouvido, intercalando com umas leves mordidas ele dizia: -Você acaba comigo... -Ah é?... Acabo como? -Despertando tesão. -Que culpa eu tenho se sou gostoso? -E que culpa eu tenho se você me desperta... Olha como você me deixou? Se afastando levemente ele mostrou o estado de sua calça, no qual aparentavam nitidamente sua situação. -Uau... Você não pode voltar para a pousada nesse estado... -Pois é. -Vem aqui que eu te ajudo... Enquanto nossas bocas se beijavam e nossos braços se enroscavam, as pernas substituíam nossas mãos. A calça de moletom que o Levy vestia, deslizou facilmente no roçar da minha perna. Estando sem cueca, o processo foi mais rápido. -Posso continuar? -Deve. -Geme mais baixo, alguém pode nos ouvir... -Nando... -Hum... -Você... Você me mata desse jeito... -Quer parar? -Jamais... Pode me matar desse jeito, eu não ligo... Misturados às árvores fizemos amor. Trocamos suores da maneira mais gostosa e prazerosa. Usamos de todos os recursos que tínhamos, mão, língua, dedos, e a imaginação. -Nossaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa... To acabadaço. -Está todo melado. -Melado? -É... -Caralho... Onde?... -Calma, é de suor que estou falando. -Ah... Que susto. Voltamos para a pousada depois de termos passado boa parte do dia correndo entre as árvores e fazendo amor. Aparentemente a paz reinava naquele lugar. Entramos no dormitório e boa parte do pessoal já dormia. Lá fora o sol já havia se posto e a lua começava a tomar seu lugar. O silêncio prevalecia naquele ambiente. Coincidência ou não, a Ellen não estava por perto. -Nossa... Mas como esse lugar está calmo... -Pois é. 156


-O quê será que aconteceu? -Ah... Já sei, a Ellen não está aqui... -Como você sabe? -A rede dela está vazia... -Vocês estão procurando a Ellen? -Não, só comentamos... -Ah ta. Ela ficou fora a tarde toda. -Ok. Obrigado. -Por nada. -Vamos aproveitar? -Hum... Será que eu agüento? -Então a gente não aproveita. -Aproveitamos sim, pra tudo damos um jeito. Deitamos na rede e nos cobrimos com um lençol que eu havia colocado na noite anterior. Começamos a nos beijar com todo ardor. Sua mão direita acariciava meu peito e com a esquerda eu recebia afagos em meu cabelo. O clima foi esquentando cada vez mais. Quando estávamos chegando no auge do prazer, nossa paz foi interrompida pela chegada da Ellen. -Quanto mosquito... Não há repelente que dê jeito nessas pragas... -Humpft... Pronto, acabou nossa tranqüilidade... -Finja que ela não está aqui. -Não me peça o impossível. -Hahaha... Tudo bem. Bom, vamos dormir então? -Não tem outro jeito. -Boa noite, amor. -Boa noite. Com a cabeça apoiada sobre o peito nu do Levy, eu adormeci. Eu estava vivendo um sonho, no qual eu não queria acordar jamais, pois amar e ser amado pelo Levy era a melhor coisa que já me acontecera na vida. No outro dia acordamos cedo. Tomamos café na mesa repleta de doces. Depois seguimos para a recepção, onde entramos na van que nos levaria ao local cujo faríamos a descida de bote pelo Rio Formoso. Antes que a porta se fechasse o Pedro pediu ao Levy: -Levy... Sua bermuda tem bolso? -Tem... Por quê? -Tem como você guardar meu isqueiro aí com você? -Por que você não coloca no seu bolso? -É que está furado... -Vem cá, pra que você trouxe esse isqueiro? -Eu preciso ascender um cigarro pra relaxar... -Humpft... Ok, dá ele aqui. -Valeu cara. Chegamos. A curiosidade e ansiedade tomava conta de todos nós. Os botes já estavam apostos, mas antes de partir, recebemos um treinamento em terra de como utilizar os equipamentos e os procedimentos em caso de acidentes e segurança.

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-Galera, prestem atenção em mim. Nosso passeio vai durar a metade do dia... Para quem gosta de adrenalina, esse é o passeio perfeito, principalmente hoje que o nível do rio está mais alto, por conta da chuva de ontem a noite. O passeio era feito em botes de borracha com capacidade para quatorze pessoas, em um percurso de 8 km até a Ilha do Padre. Passaríamos por três cachoeiras e duas corredeiras antes de chegar ao nosso destino final. -Eu estou com medo, Ellen. -Cala essa boca e entra no bote, Daba. -Uau... Esse passeio vai ser demais... -Estou com medo, Levy. -Por quê, amor? -Não sei... Estou com uma sensação ruim. -Se você preferir, a gente pode ficar. -Claro que não, você está super empolgado para andar no bote... -Vamos lá, pessoal. -Tem certeza que quer ir? -Humpft... Uhum. O bote da equipe verde saiu primeiro, pois o da equipe amarela atrasou por causa do tumulto iniciado pela Ellen, claro. A sensação de estar dentro daquele bote não era muito boa, pelo menos pra mim, porque o resto do pessoal estava adorando. O nível do rio estava alto. A água corria violentamente seu percurso, fazendo com que o bote balançasse bastante. -Que da hora... O quê foi, cara? -Nada. -Então ajude a remar. -Ta bom... -Vamos lá galera... Uhuuuuuuu... Quando avistei a primeira cachoeira, meu coração disparou. Segurei em uma corda presa ao bote e comecei a ranger os dentes. Enquanto todos se divertiam, eu queria sair correndo dali. Após passar da cachoeira, o ritmo da água ficou mais lento, porém, ainda um pouco turbulento. A natureza mostrava seu poder e sua força. Nas margens do rio avistávamos macacos, pássaros e até sucuris, que principalmente no inverno, saem das águas e se enrolam em troncos de árvores para se aquecerem com os raios do sol. -Pessoal... Vocês estão ouvindo? -De onde vêm esses gritos? -Parecem vir dali... Olhei para trás e avistei o bote da equipe amarela. Todos estavam em pânico, pois o bote em que eles estavam estava furado. Encalhados em uma pedra, um a um foram descendo do bote e caminhando pela fileira de pedras até a margem do rio. Leve como uma pena, o bote vazio foi carregado pela correnteza. Com a força da água, o bote foi jogado longe ao descer pela cachoeira. Um de seus remos foi esquecido por alguém no bote, ao virar, ele voou em direção ao em que estávamos. -Pessoal... Segurem... -Meu Deus... -Nando... Segure firme... 158


-Cuidado! Todos se seguraram nas cordas presas ao bote. O remo foi lançado com tamanha força, que atingiu o Levy que sentava bem no fundo do bote, o lançando na correnteza. -Levy... Por favor, alguém ajude ele... -Calma... Não entre em pânico, Levy... Cruze os braços no peito, mantenha a cabeça levantada e tente boiar. Ao ver o colete salva-vidas se desprender de seu corpo entrei em pânico. A forte correnteza estava o afastando para longe de nós. Não pensei duas vezes e pulei na água. Prezo ao colete, deixei que a correnteza me levasse. Ao alcança-lo, o puxei pela camiseta e lhe dei um abraço. -Peguei você... Segure em mim... -Nando... Eu estou me afogando... -Calma... Nade comigo até a margem... -Ta. -Já estamos chegando... Abraçados um ao outro, fomos nadando até a margem do rio. Exaustos de tanto nadar, deitamos um ao lado do outro. Com a respiração ofegante, tentávamos falar. -Obrigado... Nando... Você... Salvou a minha... Vida. -Eu... Salvei a nossa... Vida. Porquê... Sem você... Eu não sei viver mais. -Te... Amo. -Eu... Também te amo. Começou a ventar forte e o nível do rio começou a subir. Molhados, eu e o Levy tremíamos de frio, ele mais que eu, pois minha blusa tinha manga cumprida, já ele usava uma regata. -Você está tremendo... Muito... -Não... Se preocupe... Logo vai passar. -Você... Consegue caminhar? -Acho que... Sim. -Então... Vamos sair daqui... A água do rio está... Subindo e o céu mostra... Que vai chover. Caminhando pela floresta, fomos procurando um lugar para ficar protegidos da chuva, que começava a cair. -Já começou a chover... -Precisamos encontrar um lugar pra ficar... -Vamos ficar embaixo daquela árvore. -Ta louco? -Por quê? -Ficar embaixo de uma árvore, corremos o risco de ser atingidos por um raio. Vamos procurar um lugar seguro... Embaixo da garoa fina caminhamos por quase uma hora floresta adentro, cada vez mais a mata ia se fechando. -Nando... -Fala. -Onde a gente está? -Boa pergunta. -Não acha melhor voltarmos? -Você lembra o caminho de volta? 159


-Não... -Isso significa que... Estamos perdidos. -Ah meu Deus. -Calma, logo vão nos encontrar aqui. -Humpft... Estou com fome... -Vamos procurar algo para comer... Fomos caminhando e olhando para o topo das árvores à procura de algum fruto, quando escutamos um ruído: -Uau... Não é só eu que estou com fome... -Por quê? -Sua barriga deu a dica. -Mas esse barulho não foi da minha barriga. -Foi do quê, então? O ruído soou mais uma vez. Ao olhar para trás, vimos algo ir em nossa direção. -Levy corre... -Ah meu Deus... O quê é aquilo? -Eu não sei... Acho que é uma onça... Nunca corri tanto em minha vida como naquele dia. Quase já se fôlego, pisei em um tronco de árvore caído pelo chão. Frágil pela deterioração causada por cupim, ele se quebrou com o peso do meu corpo, fazendo com que eu torcesse o tornozelo esquerdo imediatamente. -Ah... Caí no chão gritando de dor. -Nando... -Corre Levy... -Jamais vou deixar você sozinho. Com cuidado, ele colocou meu braço por cima do seu ombro e foi me carregando. -Levy... Não precisamos andar muito, a onça não corre mais atrás de nós. -Mesmo assim, acho melhor não ficar muito perto daqui. -Meu pé está doendo... -Agüenta mais um pouco, amor. Seja forte... -Estou tentando. Fomos caminhando por dentro da mata até encontrar uma caverna. -Eu não estou mais agüentando... -Tudo bem, vamos parar naquela gruta... Carinhoso como ele era, foi me colocando com cuidado no chão coberto por folhas secas, que eram levadas para dentro da gruta pelo vento. -Cof... Cof... -Você está tossindo, Levy. -Não se preocupe, é uma bobeirinha que logo vai passar. -Sua camisa está úmida, tire... -A sua também está... -O ruim é que nem temos como fazer uma fogueira... -Espere... Eu acho que temos sim. -Como? Mexendo no bolso da bermuda ele disse:

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-Antes de entrar no bote o Pedro pediu pra eu guardar seu isqueiro no bolso da bermuda... Achei. -Ótimo, precisamos agora de combustível... -A madeira lá fora está molhada. A chuva só fazia aumentar. Em pouco tempo o céu já havia escurecido. Iluminado apenas pelos relâmpagos seguidos. -Nando... Ali tem um tronco de árvore... -Está molhado. -A gente seca com o fogo. -Por favor, Levy. Não vá lá fora. -Não está tão longe assim, amor. Espere aqui que eu já volto. -Humpft. Embaixo de chuva forte o Levy foi buscar o tronco de árvore caído na floresta. Sem camisa e vestindo apenas uma bermuda ele levantou o tronco caído, ressaltando seus músculos. A minha visão estava um pouco ofuscada por causa da chuva, sendo assim, não conseguia vê-lo muito bem, só consegui ouvir um grito. -Ai... -Levy... Está tudo bem? Preocupado, tentei levantar para ver o quê havia acontecido, mas meu pé doía demais. Quando consegui avista-lo, ele já estava dentro da gruta. -Pronto, amor... -Que grito foi aquele? -Nada não. Tentei levantar, mas ele não deixou, me fazendo deitar em uma cama feita de folhas secas. -Não... -Mas Levy... -Nada disso, você está com seu pé machucado, fique deitado que é melhor. -Você está todo molhado... -Eu vou ascender o fogo e já, já a gente estará sequinho. -A madeira não está molhada? -Sim, mas isso não é problema... Eu vou por fogo nas folhas secas e conforme o tronco for secando, o fogo vai alastrando. Esperto como ele só, juntou um pouco de folhas secas e ascendeu o fogo. -Pronto... Não vai demorar muito e teremos uma fogueira. No que ele virou seu braço, reparei um vermelhidão. -Levy, o quê é isso no seu braço? -Não é nada. Agora deita aqui comigo e me esquenta com seu corpo. -Uhum... Levy... -Oi. -Eu amo você. -Oh... Com aquela carinha de menor abandonado, ele se aproximou de mim. Seu corpo molhado abraçou o meu, seguido de um suspiro ao meu ouvido ele disse: -Amor... -Hum?

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-Quando voltarmos pra São Paulo, vamos oficializar nossa relação e enfrentar tudo e todos que cruzarem nosso caminho. -Você sabe que não vai ser fácil... -Eu e você iremos lutar pela nossa felicidade. -Lutaremos juntos! -Nosso amor é maior que qualquer maldade que possam fazer para nos separar. Acariciando meu rosto, ele olhava pra mim com o fundo da alma, não necessitando dizer com palavras, apenas seu olhar explicava tudo. -Como eu posso gostar tanto de alguém assim? -"Assim" como? -À ponto de você se tornar uma parte do meu corpo... -O quê você quer dizer com isso? -Eu quero dizer que sem você eu não sou completo, não ter você é como perder um braço, uma perna... Você está no ar que respiro, na água que bebo, no perfume que uso... -Levy... Aconteça o quê acontecer, eu sempre vou te amar. -"Estamos juntos nessa", lembra? -Estamos juntos. Em meio às reclamações e promessas, fizemos amor. Foi lindo. Rodeados pela natureza intocada pela mão do homem. Adormecemos abraçados em volta da fogueira. Nossos corpos nus colados, aqueciam um ao outro, enquanto nossas roupas secavam no calor do fogo.

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Dormimos tanto que nem vimos o dia amanhecer. O sol já estava forte, com certeza deveria ser mais de 12h00. Fiz um esforço para levantar e fui pegar nossas roupas. Com o pé ainda doendo, fui mancando pouco a pouco. As roupas já estavam secas. Vesti minha bermuda e chamei o Levy para vestir suas roupas: -Levy... Nossas roupas já estão secas... Amor... Vendo que ele não respondia, fui me aproximando. Ao chegar perto, notei que ele estava muito quente e tremendo. Tentei acorda-lo, mas não consegui. Ardendo em febre, ele delirava. Sem saber o quê fazer, vesti sua bermuda e minha blusa que era de manga cumprida. Ascendi a fogueira e o levei para próximo do fogo. Peguei uma de nossas meias e saí procurando alguma poça d'água para fazer compressas e baixar sua febre. Tentei não me afastar muito da gruta para não me perder. Perto dali havia um lago de água cristalina, com muitos peixes. A água brotada do fundo do lago sacudindo as areias em forma de erupção. Abaixei na beira da margem para molhar a meia. Nessa hora ouvi o barulho de um helicóptero passando pela floresta. No mesmo instante comecei a correr para uma clareira, pois no lugar onde eu estava haviam muitas árvores que atrapalhavam a visão. Pela intensidade dos ventos, o helicóptero voava baixo. Com certeza ele estava à nossa procura. Quando cheguei em um lugar aberto, ele já estava fazendo o retorno e indo embora. Comecei a chorar de raiva. Se não fosse minha perna debilitada, eu teria conseguido correr mais rápido, à tempo de ser visto e salvos pela equipe de resgate. Pra mim, foi como uma sentença de um crime que não havíamos cometido, sendo condenados à exílio eterno, em uma floresta desconhecida, contando com a própria sorte. Voltei para a gruta triste. Ao chegar, avistei o Levy sentado em volta da fogueira cobrindo seu pé com a mão. -Levy... Por que levantou? -Você ouviu um barulho de helicóptero? -Humpft... Sim. -Por que você fez essa cara? -Amor... Me perdoa... -O quê houve, Nando? -Eu tentei acenar pra ele... -Calma... Ai. -O quê você tem? -Nada não. -Que machucado é esse? -Não sei... Não é nada. -Levy, está inchado... O quê você está me escondendo? 163


-Nada, amor. -Por favor, não minta pra mim. -Nando, não quero que você fique se preocupando com essas bobagens... -Nada que envolva você eu considero como bobagem. -Ta bom, ta bom... Alguma coisa picou meu braço ontem... -Que coisa? -Não sei... Não deu pra ver. -Humpft... Deixa eu ver se sua febre baixou... Meu Deus, você está muito quente, Levy. -Pare de exagerar, Nando. -Seu braço está muito inchado... Deite... -Mas Nando... -Por favor? -Tudo bem, não tem como não atender um pedido seu. -Você é um cabecinha dura mesmo. Quando o vi se contorcendo, me preocupei. -O quê foi? -Estou com vontade de vomitar. -Humpft... -Fique com a cabeça entre as pernas... Sua situação era mais grave do que pensávamos. O Levy havia sido picado por um escorpião e seu estado piorava rapidamente. -Nando... Nando... -Eu estou aqui, amor. -Não me deixe... -Jamais... Estamos juntos nessa, lembra? -Uhum... Eu to com sede. -Vou buscar água pra você... No bolso da minha bermuda, eu havia guardado a caixa do meu óculos escuro, o quê possibilitou de levar água para o Levy. -Amor... Trouxe a sua água... Caramba, você não está bem. Precisamos sair daqui e procurar ajuda. De olhos fechados, ele suava demais. A febre permanecia alta, não havia meio que a fizesse baixar. O desespero tomou conta de mim. O Levy precisava de um médico urgente. Sem ter como sermos vistos nem pedir socorro, precisávamos sair dali imediatamente. -Amor... Escute o quê eu vou falar... Precisamos sair daqui... Você consegue andar? -Eu... Acho... Que sim. -Então vem... O abracei como ele havia feito comigo ao torcer meu pé. Deixamos a gruta à procura de um lugar aberto, onde fosse possível sermos vistos por algum helicóptero ou avião que passasse por ali. Andamos cerca de quatro horas até encontrarmos uma cabana de madeira abandonada no meio do mato. -Veja Levy... Uma cabana... -Será... Que tem alguém? -Não sei. Vamos lá ver. Nos aproximamos da cabana e batemos na porta. Ninguém apareceu. Virei a maçaneta e a porta se abriu. Entramos na cabana e notamos que ela parecia estar 164


abandonada há muito tempo. No canto havia uma cama feita de palha, onde pedi para que o Levy se deitasse. -Levy, fique deitado. -Cof, cof... -O tempo lá fora denuncia que vai chover... -Nando... Minha vista está escura... -Fique calmo, deite um pouco e fique de olhos fechados. -Eu estou com medo... -Hei... Não precisa ter medo, eu estou aqui com você, não deixarei que nada de mal te aconteça. -Segura minha mão! -Pronto... Agora respire calmo, estou aqui com você... Sentado ao lado do Levy eu segurava sua mão, atento com seu estado. Minha preocupação começou a aumentar ao ouvir o barulho de algo pisando em folhas secas que vinha lá de fora. -Que barulho foi esse? -Não foi nada... Fique deitado... -Nando... Eu quero ir embora pra casa... -Calma, tente descansar... Nós vamos pra casa... -Eu quero a minha cama. -Não se preocupe, nós vamos voltar pra casa e rir de tudo isso um dia. -Você promete? -Prometo. Enchi o Levy de esperanças. Embora eu passasse segurança e confiança, por dentro eu sentia o oposto. Meu único motivo para continuar lutando era o Levy. Assim que ele adormeceu eu comecei a juntar as folhas e gravetos para ascender uma fogueira. Uma leve corrente de ar entrava por um vidro quebrado da janela. Sobre uma mesa apoiada próxima à janela havia um lampião, no qual ascendi para iluminar o interior da cabana. O teto estava coberto de teia de aranha em alguns pontos e marcas de cupim se mostravam nas extremidades. -Nando... -To indo... -Nando... Nando... -To aqui... Calma... -Nando... Por favor... -Psiu... Já cheguei... Fica calmo... Comecei a ficar preocupado. O Levy estava transpirando e ardendo em febre. Como se já não bastasse, pouco tempo depois ele ficou inconsciente. O medo de perder o Levy era tão grande que comecei a gritar sem saber o quê fazer, como se alguém fosse nos ouvir e nos atender. -Meu Deus... Levy, por favor, fale comigo... Amor... Levy, eu te amo, fale comigo... Não me deixe sozinho, Levy... Às vezes acontecem coisas em nossas vidas que não sabemos explicar. Quando eu dei tudo como perdido, avistei alguém nos observando. Fixei meu olhar entre as folhagens através da janela e tentei identificar quem ou o quê era. Discretamente me aproximei da janela, tomando cuidado para não assustar aquilo que nos observara. 165


Ao mesmo tempo em que fiquei assustado, também emocionado de ver uma índia na minha frente. Com seu rosto todo desenhado, ela deveria ter em média uns 12 anos. Seu olhar era de curiosidade e timidez. Quando tentei me aproximar mais, outro índio apareceu, dessa vez era um menino, na mesma faixa de idade. A presença deles ali, indicava que havia alguma aldeia pelas proximidades. Se minhas suspeitas estivessem certas, nossas chances de encontrar o caminho de volta ao acampamento seria mais fácil. -Oi... Não precisa ter medo, não vou te machucar... Os dois índios permaneciam parados, sem esboçar nenhuma reação até ouvir um grito do Levy. Instantaneamente olhei para trás e avistei um outro índio tocando em seu braço. Imediatamente corri até a cama e o índio conseguiu pular pela outra janela, fugindo junto com os dois que estavam do lado de fora. -Ah... -Levy... -Nando... -Não toque nele... Você está sentindo o quê? -Não sei descrever... -Procure não se mexer muito. Naquela região habitavam os índios kadiwéu. Existem algumas lendas a respeito dessa tribo e uma delas conta que quando Deus fez a criação dele na terra, de certo tinha muito poder. Por isso, os índios têm tantas histórias do que ocorreu naquele tempo. Contase que, naquele tempo, havia um animal dentro de uma lagoa, chamado Alagadiélali. Fez o Criador uma coberta de palha de acuri, para sondar aquele animal que devorava outros animais existentes na região e que eram suas criações. Ficou sondando a lagoa e viu um veado se aproximar para beber água e ele sumiu, devorado que fora pelo monstro. Pensou o Criador em matá-lo e se pôs a dialogar com o martim-pescador: -Martim, empreste-me seu capote! -Senhor, se eu o emprestar, morro de frio. Mesmo assim aceitou o empréstimo e desvestiu-se. Então, o Criador se fantasiou de pássaro e foi matar o Alagadiélali dentro d'água. O monstro foi puxado para terra e cortado em pedaços, pois estava gordo. O Criador distribuía o sebo desse monstro aos outros animais, razão do porco ter a natureza de gordo, porque dele comeu bastante. Depois, o Criador tocou uma buzina e os outros animais começaram a chegar, para receber as fatias de gordura do Alagadiélali. O primeiro a aparecer, como se percebe, foi o porco. Depois apareceu o boi que também engoliu o sebo, do mesmo que o cavalo e a capivara. O veado e a ema comeram pouco sebo e, por isso, se tornaram magros, pois chegaram atrasados ao chamado, longe que estavam. Além do mais, a ema resolveu descansar em cima de um formigueiro, antes de chegar ao Criador. Dormiu e teve suas asas roídas pelos insetos, o que conserva até hoje. O cágado, quando está gordo, tem apenas o fígado gorduroso, pois, vagaroso que é, chegou por último. Achou ele apenas uma brasa engordurada e engoliu. Assim, se explica não ter ele carne alguma. -Nando... 166


-Oi?... -Já anoiteceu? -Sim. -Estou com frio... -Vem um pouco mais perto do fogo... Opa... Melhorou? -Sim... Me abraça? -Claro... Nem precisa pedir. -Humpft... Sabe, Nando... Se eu morresse agora, eu morreria feliz, assim deitado em seus braços... -Nunca mais repita uma coisa dessas, entendeu? -Mas Nando... -Levy... Promete que nunca mais vai dizer isso? -Humpft... Tudo bem, eu prometo. Adormeci sentado. Com o Levy apoiando sua cabeça sobre meu colo, fiquei velando seu sono e vigiando para que nada de ruim acontecesse com ele.

O dia amanheceu. Adormeci sentado e acordei com uma dor horrível no pescoço. Com a cabeça apoiada sobre minha perna, o Levy parecia ter piorado. Eu já não sabia mais o quê fazer. Levantei cuidadosamente e o deixei descansando. Apoiei as mãos na cabeça e me entreguei ao destino, na mesma hora os três índios apareceram novamente, se aproximando de nós com algo nas mãos. Segurando uma pasta verde nas mais e tentando me dizer algo a índia foi se aproximando. Ao me entregar um líquido viscoso verde, através de gestos ela tentava explicar que o Levy deveria beber aquela espécie de xarope. Na cabana, um dos índios cobria o braço do Levy com aquela pasta verde feita de ervas. Ao mesmo tempo, levantei sua cabeça e fui aos poucos fazendo com que ele bebesse. -Amor... Bebe tudo... Embora eu não estivesse entendendo o quê eles diziam entre si, a intenção de nos ajudar era compreendida através dos olhares e gestos que eles expressavam. Algumas horas se passaram e a melhora do Levy era visível. Seu braço desinchou e voltou ao normal, apenas a ferida e uma vermelhidão em volta da picada permaneciam. Sua febre foi diminuindo gradativamente até desaparecer por completo. -Nando... -Estou aqui, meu amor... -Cadê os índios? -Foram embora. Você se sente melhor? -Nossa... Minha cabeça está doendo ainda. 167


-Logo vai passar. -Amor... Estou com sede. -Você agüenta andar? -Sim. -Tem um lago aqui perto. -Então vamos até lá. -Vamos. -Mas devagar, ainda me sinto um pouco tonto. -Então vamos abraçadinhos, caso você caia eu te seguro. -Hum... Assim ela pára mesmo. Perto dali havia um lago de águas cristalinas, com várias espécies de peixes e outros seres aquáticos. Uma cachoeira de fundo completava a beleza do lugar. -Nossa... Que lugar lindo. -Esse lugar, é o cenário de uma história de amor de um casal de garotos, que vivem uma linda história de amor e provam que dois homens podem se amar sim, e que não existe pecado quando se ama. -Mano... Você não existe. -Existo sim, e sabe por quê? -Hum? -Porque eu vim ao mundo pra te fazer feliz. Eu nasci pra te amar, só pra te amar. -Cara... Te amo. -Eu também amo você. Demos um beijo na boca. Um beijo com gosto de amor e aroma de paixão. -Nando... -Oi. -Você está sentindo esse cheiro? -Cheiro de quê? -Parece... De queimado... -É mesmo... Olhei para o céu e vi uma fumaça preta subindo, na mesma hora me veio a cabana na cabeça. -Ah meu Deus... -O quê foi? -A fumaça está vindo da cabana... -O quê? Corri feito um louco até lá, mancando igual um Saci, mas quando cheguei já era tarde, o fogo já havia destruído quase tudo. -Caramba... Ta queimando tudo... -E agora? -Não fique assim meu amor, podemos construir outra. -Como? Vamos levar meses... -Humpft... Ao seu lado eu espero a vida toda. Ver aquelas labaredas expelindo as cinzas da madeira queimada me deixou triste. Comecei a chorar de raiva por ter deixado a fogueira acesa. -É estranho... -O quê é estranho? -Não tinha como a fogueira consumir a cabana em tão pouco tempo... 168


Nessa hora, ouvimos um barulho de folhas se movendo e risadas. Quando olhei para trás, eram os três índios que nos observavam. -Eu sabia... Malditos... -Nando, calma... -Mas é claro que foram eles... Como fui burro em acreditar que queriam nos ajudar... -Eles devem ter um motivo para ter feito isso. -Pura maldade, esse é o motivo. Tentei correr atrás deles, mas não consegui. Ágeis, eles sumiram por dentro da floresta numa rapidez incrível. Sentei ao redor da madeira queimada e comecei a chorar de raiva, comovido, o Levy me abraçou na tentativa de me confortar. -Amor, não fique assim... -Você não pode pegar sereno, cara... -Esqueça isso... Você está ouvindo? -É um helicóptero. -Precisamos fazer com que nos vejam... -Não precisa... Eles já sabem onde estamos. -Como assim? -Quando os índios colocaram fogo na cabana, não foi para nos prejudicar, e sim utilizando um velho artifício, fazendo sinal de fumaça. -Mas... Levantei rapidamente e comecei a acenar para a aeronave, que pairou sobre nós. A visão era um pouco prejudicada pela poeira que levantava com o vento. Finalmente havíamos sido encontrados. Respiramos aliviados, pois naquele momento tínhamos a certeza de que voltaríamos para casa. Pendurado por uma corda, um rapaz desceu entre as árvores. A comunicação entre nós era praticamente à base de gestos, pois o barulho das hélices era muito alto, interferindo na comunicação. -Estamos salvos! -Viu?... Eu te falei... -Vocês estão bem? -Estamos! -Bom... Vai subir um de cada vez preso à corda. Quem vai primeiro? -Acho melhor ir você, Levy. -Mas Nando... -Amor, eu vou logo depois de você... -Humpft... Ta bom. -A gente se encontra lá. -Te amo! Demos um forte abraço e um breve beijo molhado. Amarrado por uma espécie de cinto preso à um cabo de aço, acompanhei o Levy ser içado até o helicóptero, amparado por dois soldados que o ajudava a guia-lo até a aeronave. Chegou a minha vez. No que pensei que seria igual ao procedimento para erguer o Levy, no meu caso foi diferente. O rapaz se prendeu no mesmo sinto que eu e começamos a ser erguidos juntos. Tudo parecia correr bem até a metade do caminho, no qual o cabo de aço travou e acabamos ficando presos. Meu coração só faltou sair pela boca. -Feche os olhos... 169


-Mas o quê está acontecendo? -O cabo travou, teremos que ir pendurados... -Pendurados? -Não se preocupe, estamos seguros... Quando ele disse pra eu fechar os olhos me desesperei. O helicóptero fez o retorno e seguiu para o heliporto da pousada. A sensação de estar pendurado à uma corda com ele em movimento era muito ruim. Os pés pareciam que iam bater no topo das grandes árvores. O vento forte cortava nosso rosto e fazia a corda balançar de um lado para o outro, como um pêndulo de relógio, me fazendo sentir enjôo. -Agüenta mais um pouco que já estamos chegando... -Estou tentando. Ver a floresta de cima era encantador. Aquela sensação de liberdade que se sente ao voar é inexplicável, mas ao mesmo tempo assustador. Chegando na pousada, fui logo solto da corda. Rapidamente nos afastamos da aeronave para que ela pousasse. Era difícil permanecer com os olhos totalmente abertos, pois a poeira misturada às folhas ardiam nossos olhos ao subir e descer no bater do vento. Após nos deixar na pousada, o helicóptero fez um giro de 90º e seguiu, o quê me deixou desesperado, pois o Levy ainda estava lá dentro. -Mas... O quê está acontecendo... Por que levaram o Levy? -Ele teve que ser levado para São Paulo urgente. -O quê?... Como assim? -A situação em que ele se encontra é grave... Só no Instituto Butantã tem o antídoto contra o veneno do escorpião. -Ah Meu Deus... Diga que ele está bem... Que nada de mal vai acontecer... -Humpft... Se acalme, Nando. Vá até a varanda da pousada que um médico está te esperando. Pela expressão que o administrador da pousada fez, a situação não era nada boa. O remédio que os índios haviam dado para ele foi o quê não deixou que sua situação se agravasse mais ainda. -Você é o Fernando Viana? -Sim. -Fernando, está tudo bem com você? -Sim, por quê? -Foi picado por algum inseto? -Já entendi... Não fui picado por nada, estou ótimo, a única coisa que me aconteceu foi torcer o tornozelo. -Tudo bem, mesmo assim vou prescrever alguns exames que você deve fazer ao voltar pra São Paulo... Agora vou precisar ver como está sua pressão... -É mesmo necessário? -Claro... Vejamos... -Humpft... -Parece estar tudo em ordem... Respire fundo... Agora solte devagar... Respire novamente... Meu coração estava apertado. Alguma coisa de grave estava acontecendo. Ao me aproximar do pessoal, o assunto era imediatamente interrompido, o quê reforçava a minha suspeita de que algo de ruim estavam me escondendo.

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Arrumando as malas, antes de voltar escutei alguém sussurrando ali próximo. Caminhei até a janela e escutei a Ellen e a Daba pronunciarem o nome do Levy. -O quê vocês estão falando do Levy? -Nada. -Como nada? -Pela sua cara, algo de errado está acontecendo... -Por sua culpa o Levy está morrendo. -O quê? -Cala a boca Ellen. -Do que você está falando? -Ela não está bem, Nando... -Não tente esconder a verdade, ela disse que o Levy está morrendo... -E a culpa é toda suaaaaaaaaaaaaaaaaaaa. -Pára com isso, Ellen. Chorando ela gritava abraçada à Daba. -Então é isso que vocês estão escondendo de mim... -Desculpa, Fernando. -Desculpar? Você acha justo esconderem a verdade de mim, Daba? -É que... -Preciso voltar pra São Paulo agora. Corri até o organizador da viagem e pedi para que me liberassem para voltar antes da data prevista. -Evandro, por favor, eu preciso voltar para São Paulo. -Fernando, a volta está programada para amanhã. -Eu não posso esperar até amanhã, o Levy está precisando de mim. -Mas Fernando... -Se eu não for por liberação sua, vou de carona com alguém... Por bem ou por mal, eu volto pra São Paulo... -Humpft... Tudo bem. Arrume suas coisas que vou mandar te levarem para o aeroporto. -Obrigado, Evandro. Corri até o quarto da pousada e peguei minhas malas que já estavam prontas. Ao voltar, já havia um carro me esperando para me levar até o aeroporto. Fui o caminho inteiro pensando em como estaria o Levy, com o olhar perdido naquela paisagem fascinante. “-Humpft... Mano... Se eu te pedir uma coisa, promete quê... -Pedir? -É... -O quê você quer pedir? -Promete que não sairá da minha vida?” “-Imagina eu revelar a verdade, você já pensou o quê aconteceria? -Meu pai no mínimo seria preso. -Não só isso, mas sua família seria desestruturada... Imagine a sua irmã vendo o pai dela saindo de casa algemado pela polícia...” “-Nando... Quero te pedir desculpas... Fiz aquilo por amor. 171


-Chega, não quero mais ouvir suas histórias de que você ama a Ellen... -Esqueça a Ellen... Estou falando de nós. -O quê? -Humpft... Não consigo mais viver sem você, Nando.” Cheguei no aeroporto ansioso para embarcar. Fiquei aguardando ser remanejado em algum vôo para São Paulo, pois de última hora não havia mais vagas, ao menos que houvesse alguma desistência. Sentei na sala de espera e fiquei aguardando ser chamado. O tempo parecia não passar com aquele vai e vem de pessoas circulando pelo local. “Atenção passageiros do vôo com destino ao Rio de Janeiro. Embarque no portão 2.” Apoiei minha cabeça no encosto do banco e fiquei assistindo uma senhora brigando com uma atendente no balcão da companhia. Deveria ser algo grave, pois a mulher gesticulava com suas mãos exageradamente, tamanho era o seu nervosismo. -Eu preciso de uma solução urgente... -Senhora, tente se acalmar. -Eu não quero me acalmar, eu quero que vocês façam o que eu pedi, somente isso. -Infelizmente não há como... Bufando, ela deixou a atendente falando sozinha e sentou-se ao meu lado, resmungando por causa do atendimento da recepção. -Inferno... Um absurdo que eles fazem com nós clientes... Olha menino, nunca viaje com essa Companhia, pois eles não dão valor aos clientes. -Por quê, o quê aconteceu? -Imagine que eu quero trocar minha passagem para embarcar amanhã e eles não querem trocar. -Nossa... E seu embarque está marcado pra quando? -Para o próximo vôo... Daqui à pouco. -Nossa... Que complicado... -Pois é, minha família em São Paulo está pensando que vou chegar lá amanhã... -A senhora tem passagem pra daqui à pouco com destino à São Paulo? -Sim. -A minha está marcada para amanhã e eu preciso embarcar o mais rápido possível... A senhora não quer trocar? -Você faria esse favor? -Mas é claro. Não pensei duas vezes em trocar as passagens. A sorte estava ao meu lado e deixa-la escapar eu não poderia. Em menos de uma hora depois eu já estava voando com destino à Congonhas. Foram os minutos mais longos da minha vida. Olhando a cidade de cima eu ficava tentando adivinhar em qual ponto estaria o meu Levy. Ao cruzar o portão de desembarque, liguei o celular e imediatamente tratei de ligar para sua casa. O telefone tocou por 6 vezes até cair. Tentei por mais de duas vezes seguidas e não obtive sucesso. Saí do aeroporto e peguei um táxi até o metrô. Segui direto pra casa para deixar as malas, só depois poderia sair procurando por ele. Cheguei em casa ofegante, por causa do peso das malas. Toquei a campainha para ver se tinha alguém em casa. Não demorou muito e meu irmão atendeu. -Ué... Você não ia voltar só amanhã? 172


-Ia, mas antecipei por alguns problemas. -Ah... Entendi, mas chegou tarde porque o enterro já foi. -Que enterro? -Daquele seu amigo... Naquele instante minhas vistas escureceram. O ar me faltava e as lágrimas começaram a descer. A imagem do Levy não me saía da cabeça. -De qual amigo você está falando? -Ah... Não lembro o nome dele. -Sai da minha frente... -Por que você está mancando? -É um ritual indígena que eu aprendi. -Ah... Larguei as malas na sala e subi as escadas até meu quarto. Peguei o telefone e tentei novamente ligar na casa do Levy, mas ninguém atendeu. Minha preocupação aumentava cada vez mais. Sem saber a quem recorrer, liguei para a Habiba. -Alô? -Habiba... Sou eu, Fernando. -Oi habibinho! -Vivian, você tem notícias do Levy? -Humpft... Já estou sabendo... Querido, vá descansar um pouco, tome um banho que depois eu te ligo pra conversarmos. -Habiba, você está me assustando... -Nando, a gente precisa conversar, mas não agora. Vá descansar um pouco que depois eu te ligo. -Mas Vivian... -Tchau habibo. Desliguei o telefone quase que com a certeza de que havia perdido o Levy, o meu amor. Queria que alguém me ligasse naquele momento e me dissesse que eu estava errado, que o Levy estava me esperando em casa, de banho tomado e sua bermuda vermelha meio caída mostrando parte de sua cueca que eu tanto gostava. Eu já estava a ponto de enlouquecer. Peguei o telefone novamente e liguei para o Rafael, às vezes ele me dava uns conselhos que me faziam muito bem. Aproveitaria também para esclarecer sobre a carta que havia encontrado antes de viajar. -Pronto? -Dona Sandra? Aqui é o Fernando... -Oi Fernando. -Tudo bem com a senhora? De repente ela começou a chorar. -Dona Sandra?... Aconteceu alguma coisa? -A sua mãe não te avisou? -Eu ainda não falei com a minha mãe, acabei de chegar de viagem. O quê aconteceu? -O Rafael... Sofreu um acidente de carro... -Caramba! Quando foi isso? -Na madrugada de ontem. -E como ele está? -Humpft... Eu acho que você precisa saber da verdade... -De que verdade a senhora está falando? 173


-Cof, cof... O Rafael... Estava namorando um rapaz chamado Guilherme... -O quê? -Pois é... Ele havia me contado na noite anterior ao acidente... O Rafael sempre teve um diálogo aberto com sua mãe, assumindo sua homossexualidade desde cedo. -Eu... Não sei o quê dizer... -Humpft... Esse Guilherme era casado e sua esposa havia acabado de chegar do estrangeiro com sua filha... Desconfiada do comportamento dele, ela resolveu segui-lo e acabou flagrando os dois se beijando... -Meu Deus. -Humpft... Eu no lugar dela também não suportaria... A verdadeira causa do acidente ninguém sabe, mas a polícia desconfia quê... Os dois começaram a discutir... Sentado no banco de trás o Rafael assistia os dois brigarem... Ela entrou no carro e os dois continuaram a discutir... Foi em um momento de distração que o Guilherme perdeu o controle do carro e entrou embaixo de um caminhão... -Que horror... E como ele está? -Cof, cof... Foi... Foi morte instantânea... A esposa do Guilherme... Cof, cof... Fficou dois dias em coma, mas não resistiu e faleceu... Humpft... O Guilherme foi o único sobrevivente, mas o acidente deixou seqüelas graves... -Qual o estado dele? -Cof, cof... Ele ficou tetraplégico... Não fala... Não se mexe... Passa 24 horas sobre uma cadeira de rodas... Totalmente dependente das pessoas... -Nossa... Dona Sandra... Eu... Não sei o quê dizer... Meus sentimentos... -Humpft... Obrigado, Fernando. O Rafael gostava muito de você. -Eu também gosto muito dele. Desculpa qualquer coisa. -Tudo bem... Obrigado... -Tchau, dona Sandra. Fique com Deus. -Tchau. Desliguei o telefone anestesiado, triste por ter perdido um amigo. Ao lado da mesa do computador havia uma foto nossa, abraçados e fazendo careta, felizes por estarmos indo para a praia no último feriado prolongado. “-Alô... -Nando? -Eu. -Já arrumou suas malas? -Mas é claro... -Não vejo a hora de chegar amanhã...” “-Hahaha... Eu duvido que você consegue tomar duas taças de sorvete em dez minutos...” -Olha... Melhor você não duvidar muito... -Quer apostar quanto? -Aposto uma balada. -Fechado.” “Nando... Socorro... -O quê aconteceu? 174


-Tem um moleque que não larga do meu pé... -Hahaha... É quem estou pensando? -Humpft... Sim.” Olhando para ele naquela foto tão feliz, era impossível acreditar que nunca mais ouviria sua voz, suas asneiras depois da bebedeira, não dava para acreditar que havia perdido meu amigo para sempre. “-O quê é que não vai ser trabalho nenhum? -Estou oferecendo uma carona para o seu amigo... -Obaaaaaa... Você pode me dar uma carona também? -Humpft... Rafael, não começa, pelo amor de Deus.” “-Nando... -O quê? -Desculpa por ontem? -Humpft... -Eu... Gosto muito de você, cara... -Tudo bem, eu desculpo! -Eu sabia... Fiquei com tanto medo... -é?... -Sim.. Gosto muito de você.” “-Fala moleque... -Humpft... Isso são horas de me ligar? -Deixa de ser chato. Como foi lá no jantar com o "bacana"? -Foi legal. -Nossa, que desânimo... -Olha a hora que você me liga...” Tirei o tênis e deitei um pouco na cama. Logo adormeci, pois o cansaço que eu estava era demais. Dormi a tarde inteira. Acordei com o corpo todo dolorido. Parecia que um caminhão havia passado por cima de mim. Olhei no relógio e já era quase 17h. Levantei pouco a pouco e no caminho até o banheiro fui tirando a roupa. Tomei um banho gostoso, quentinho, tirando toda aquela energia negativa acumulada. Saindo do banheiro, cruzei com meu irmão na porta. -Nando... Ligaram pra você enquanto você dormia... -Quem? -Não lembro o nome. -Mas será que você não presta pra nada? Por que não anotou? -Ah... Acho que o nome era árabe... -Foi a Habiba. -Isso. Corri até o quarto e liguei pra ela. -Alô... -Oi Habiba! 175


-Habibinho... Preciso falar com você... -Pode falar, Habiba. -Mas por telefone não. Vem pra cá agora. -Mas... -Não demore. -Tudo bem. -Beijo. Em menos de dez minutos eu me arrumei e segui até o metrô. A cada estação minha ansiedade aumentava. Um frio na barriga me consumia cada vez mais. Minhas pernas iam amolecendo pouco a pouco, já nem sentia mais a dor da torção no tornozelo.

Cheguei na empresa e a Vivian já me esperava na porta. Ao me aproximar a cumprimentei com um beijo no rosto e ela logo já foi me arrastando. -Pensei que não vinha mais, habibo. -Desculpa, corri o máximo que eu pude. -Vamos... -Pra onde? -Para o hospital. -Fazer o quê? -Ver o Levy. -Como ele está, Habiba? -Humpft... Olha Nando, a partir de agora você terá que ser maduro... -Pare de falar através de metáforas. Fala logo o quê está acontecendo. -Esse tempo que fiquei te esperando eu pensei... -Quer falar logo? -Não... Prefiro não me antecipar, melhor você... -Você está me assustando. -Humpft... Já que o motivo real ela não iria falar, permaneci calado o caminho todo, com o coração apertado. -Chegamos. Olhei para o alto do prédio e fiquei imaginando em qual daqueles leitos o Levy estaria. Meu olhar se perdeu na brisa fresca do final da tarde, interrompido pela sirene da ambulância que chegava no pronto socorro. Ao cruzar a porta da recepção, aquele cheiro de álcool me embrulhou o estomago. Olhei para a Vivian e sua expressão não era nada boa. 176


-Aqui habibo... Vamos pegar o elevador até o 3º andar. -Humpft... Estou com medo... -Calma, habibo... O elevador já estava parado no térreo. Ao entrar, fiquei todo arrepiado, pois era uma coisa estranha, parecia um corredor, não tinha espelho, era horrível. -Vem aqui habibo... Espera naquela sala um pouco que eu já volto. -Ta bom. Sentei em uma sala de espera que havia naquele enorme corredor cheio de portas. Olhando para um quadro na parede eu aguardei por quase meia hora. Aqueles bancos gelados, foram meu único consolo enquanto esperava. Um choro de bebê oscilava de tempo em tempo, pois acima do andar onde estava era a maternidade. Eu já não tinha mais o quê roer, pois as unhas das mãos eu já havia comido tudo. -Nando... -Eu? -Pode ir lá... -Mas... -Pode ir... Com um frio na espinha e as mãos tremendo, fui caminhando devagar. Bati na porta que estava entre aberta antes de entrar. Fui a empurrando pouco a pouco. Ao entrar no quarto, avistei o Levy deitado na cama olhando para a janela, com um lençol que cobria até seu umbigo e seus braços esticados, com um curativo no local da picada do escorpião. -Licença... -Opa... Pode entrar... -Ah Levy... Como fiquei preocupado com você... Não contendo a emoção, corri até ele e dei-lhe um abraço. Ele parecia estar ótimo, se recuperando do efeito do veneno, mas isso era o quê eu pensava. -Valeu pela preocupação. Você me conhece de onde? -Como assim?... Que brincadeira é essa, Levy? -Desculpa, mas eu não lembro de você... -Como não lembra? Sou eu, Nando... -Nando... Nando... Nando... O quê você é meu? -Humpft... Somos... Amigos, muito amigos. -Puxa... Que legal!... Mano, pega um copo d’água pra mim, por favor? -Claro... Gelada? -Sem gelo. -Está aqui. -Valeu. Minha felicidade durou pouco tempo. Quando achei que nossa vida iria finalmente dar certo, o Levy me aparece desmemoriado. Agora eu começava a entender o por quê a Habiba fazia tanto mistério para me contar sobre seu estado. Viver ao lado do Levy era um sonho, no qual eu já estava acreditando ser impossível de se realizar. -Bom... Vou indo. -Mas já? -Sim, você precisa descansar. -Ah não, fique mais um pouco? -Eu volto outra hora... 177


-Cara... Fique um pouco mais, dentro desse hospital estou muito sozinho... Sinto falta de alguém pra conversar... -Humpft... E sua família? -Não sei... -Mas... Acho que os médicos não vão querer que eu fique... -Mas eu quero que fique agora, afinal, “estamos juntos nessa”. Eu já havia praticamente cruzado a porta, quando ouvi aquela frase. -O quê você disse? -Que “estamos juntos nessa”, lembra? -Caralho... Que brincadeira é essa? -Não é nenhuma brincadeira, Nando. Fica comigo, eu amo você! -Levy... Você quase me matou de susto, porra. -Hahaha... Desculpa. -Mano... Eu já ia me jogar na frente do primeiro carro que cruzasse a rua. -Exagerado... Não diga isso nem de brincadeira, sem você eu não conseguiria mais viver. -E você acha que eu consigo sem você? Demos um abraço bem apertado e começamos a nos beijar, como se não nos víssemos há anos. -Obrigado, Nando. -Pelo quê? -Você salvou minha vida duas vezes. -Eu fiz apenas o quê o meu coração mandou... E ele bate por você. -Te amo cara. -Eu também. Naquele momento, abraçados um ao outro eu prometi a mim mesmo que nada nem ninguém iria nos separar, nunca mais. Naquela mesma semana, a Ellen e a Daba foram demitidas por justa causa, pois descobriram que foram as duas que furaram o bote no passeio em Bonito, ocasionando aquela tragédia. Achando que as cores dos botes influenciariam nas equipes, acabaram furando o bote da cor oposta, mas não contavam que era o bote que elas estavam furando que sua equipe desceria o rio.

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Hoje faz um ano que o Rafael faleceu. Mesmo depois de descobrir que era ele o causador das brigas do Guilherme comigo, não consigo sentir mágoa, mas fiquei com raiva quando descobri que era ele quem informava ao Guilherme sobre cada passo que eu dava, principalmente quando envolvia o Levy. Semana passada fui visitar o Guilherme. Duas enfermeiras cuidam dele 24 horas por dia. Ao me ver, uma lágrima escorreu pelo canto de seu olho esquerdo, não sei se foi por arrependimento ou por ódio. Conheci sua filha, que brincava na sala com a babá bilíngüe, pois a menina só falava em inglês. A menina está sendo criada pelos avós. Passa as férias no Brasil e o período escolar na Inglaterra, com seus avós maternos. -Oi Guilherme! Sei que você pode me ouvir... Humpft... Jamais pensei que um dia fosse te ver nesse estado, Guilherme... Agora você entende o quê eu quis dizer com “dinheiro não traz felicidade”?... Todo seu orgulho, sua arrogância, lhe transformaram nisso que você é agora. Todo o mal que você fez às pessoas, você está sofrendo as conseqüências agora... Seu dinheiro não foi e nunca será a razão de sua felicidade. Hoje eu posso me considerar uma pessoa feliz, pois amo e sou amado, de uma maneira que jamais pensei que existisse. Na vida, somos nós que definimos nosso destino. Quando uma história de amor é verdadeira e sincera, não tem jeito, por mais que tentem, ninguém consegue destruir, pois o amor é mais forte que tudo. No final, tudo da certo. Se ainda não deu, é porque não chegou ao fim.

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