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NEL- Núcleo de Epistemologia e Lógica Universidade Federal de Santa Catarina
Anais do IV Encontro de Filosofia AnalĂtica
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC Rodolfo Joaquim Pinto da Luz, reitor
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Renato Carlson, pró-reitor
NEL - Núcleo de Epistemologia e Lógica Alberto Oscar Cupani, coordenador
Cezar A. Mortari Luiz Henrique de A. Dutra (orgs.)
Anais do IV Encontro de Filosofia Anal铆tica
NEL - N煤cleo de Epistemologia e L贸gica Universidade Federal de Santa Catarina Florian贸polis, 1998
© 1998, NEL- Núcleo de Epistemologia e Lógica ISBN: 85- 87253-01-8 UFSC/ CFH/ FIL Cx. Postal476, 88010-970 Florianópolis, SC Fone/fax: (048) 33 I .9248 Home page: http://www.cfh.ufsc.br/-nel Editoração Eletrônica: NEL - Núcleo de Epistemologia e Lógica Impressão e Acabamento: Imprensa Universitária, UFSC Ficha Catalográfica
(Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina) E56a
Encontro de Filosofia Analítica (4. : 1997 :Florianópolis, SC) Anais do IV Encontro de Filosofia Analitica I Cezar A. Mortari, Luiz Henrique de A. Dutra, organizadores. -Florianópolis : Núcleo de Epistemologia e Lógica, UFSC. 1998. 276p. : tabs. Inclui bibliografia. ISBN: 85-87253--ül-8
I. Filosofia- Congressos. 2. Lógica - Congressos. I. Mortari. Cezar A. LI. Dutra, Luiz Henrique de A. ILI. T ítulo. CDU: I
Reservados todos os direitos de reprodução total ou parcial por NEL -Núcleo de Epistemologia e Lógica, UFSC Impresso no Brasil
IV Encontro de Filosofia Analítica, em homenagem a Tlzomas S. Kuhn realizado em Florianópolis, SC de 6 a 9 de outubro de I 997 promovido por Sociedade Brasileira de Análise Filosófica e NEL -Núcleo de Epistemologia e Lógica, UFSC apoio: CNPq, CAPES, F APESP Departamento de Apoio a Eventos, UFSC Departamento de Filosofia, UFSC
comissão científica: Luiz Henrique de A. Dutra (UFSC), presidente Danilo Marcondes de Souza Filho (PUC-RJ) Luiz Paulo de Alcântara (UNICAMP) Pablo Rubén Mariconda (USP) Paulo Roberto Margutti Pinto (UFMG)
comissão organizadora: Sara Albieri (UFSC), presidente Alberto O. Cupani (UFSC) Cezar A. Mortari (UFSC) Maria Cecília M. de Carvalho (PUCCAMP)
Notícia sobre os Encontros de Filosofia Analítica
Realizado em homenagem a Thomas S. Kuhn, o IV Encontro de filosofia Analítica se inclui em urna série iniciada em 1991. Os dois primeiros encontros foram realizados em Valinhos, SP, com organização da prof'. Maria Cecília M. de Carvalho, da PUCCAMP. O primeiro encontro homenageou Rudolf Carnap. O terceiro encontro, também realizado em Florianópolis, em 1995, teve como homenageado Karl R. Popper. Previsto para setembro de 1999, o quinto encontro desta série deverá ser organizado por professores dos departamentos de filosofia da UNlCAMP, UNESP (Maríl ia) e PUCCAMP, em local ainda a ser determinado, na região sudeste do país, tendo como homenageado Willard van Orman Quine. Ao longo destes anos, os encontros de filosofi a analítica se tornaram o segundo maior evento de filosofia do Brasil. Desde os primeiros, eles abrigaram uma grande variedade de abordagens e temas, não se restringindo à tradição analítica, em sentido mais estrito, nem a seus temas privilegiados, mas permitiram o diálogo com outras tradições em filosofia.
Notícia sobre o NEL- Núcleo de Epistemologia e Lógica, da UFSC, e sobre Principia - Revista Internacional de Epistemologia Criado pela portaria 480/PRPG/96, de 2 de outubro de 1996, o NEL tem por objetivo integrar grupos de pesquisa nos campos da lógica, teoria do conhecimento, filosofia e história da ciência, sejam da UFSC, sejam de outras universidades. Um primeiro resultado expressivo de sua atuação é a revista Principia, que se iniciou em julho de 1997 e já possui três números publicados e mais um em preparação. Possui corpo editorial internacional e aceita artigos inéditos, além de resenhas e notas, sobre temas de epistemologia e filosofia da ciência, em português, espanhol, francês e inglês.
Sumário Apresentação Marcos Barbosa de Oliveira - Lógica Formal/Lógica Informal Arno Aurélio Viero- Os Paradoxos e a Teoria de Conjuntos Jorge A. Molina - Gentzen y el Problema de los Fundamentos de ta Matemática: de la Filosofia a Ia Metamatemática Javier Legris- Sobre la Idea de una Semántica Procedimental para la lnferencia Lógica Arthur Buchsbaum & Tarcisio Pequeno - A Introdução da Implicação em Cálculos Axiomáticos Abertos Cezar A. Mortari- Modalidades em Lógicas de Conhecimento e Crença Mário A. Guerreiro- A Natureza da Crença Alexandre M. Luz- Crença Verdadeira Justificada é Conhecimento? Uma Introdução ao Problema de Gettier Arley Moreno- Conseqüências Epistemológicas da Terapia Wittgensteiniana: Pragmática Filosófica Nelson G. Gomes- Racionalidade e lndecidibilidade: Nota sobre as Raízes do Decisionismo de Otto Neurath Maria Cecília M. de Carvalho- John Stuart Mill e os Ingredientes da Felicidade Rita de Cássia Lana- "De Rerum Natura": Observações sobre a Moral Epicurista e Alguns Desdobramentos Alcino Eduardo Bonella -Hegel e a Crítica ao Historicismo Jurídico Renato Scbaeffer- O Problema Ontológico da lntersubjetividade: Contra o Solipsismo Social Luiz Hebecbe- Sobre o Pensamento Sara Albieri - O Modelo Detenniniata do Universo na Filosofia Moderna-
8 9 21 33 48 61 79 106 138 !57 177
J91 213 224 234 251 262
Apresentação Os textos reunidos neste volume foram apresentados no IV Encontro de Filosofia Analítica, realizado em Florianópolis, de 6 a 9 de outubro de 1997, em homenagem a Thomas S. Kuhn. Alguns dos trabalhos apresentados no encontro, que estavam mais diretamente ligados à linha editorial da revista Principia, foram para ela encaminhados. Eles estão sendo publicados nos dois números que compõem o volume 2, de 1998, junho e dezembro, respectivamente. O presente volume contém outros trabalhos apresentados no encontro, mas que não se adequavam inteiramente ao perfil de Principia. Dada a variedade de temas e abordagens que os encontros de filosofia analítica admitem, o leitor notará que este volume é bastante heterogêneo, tanto nos assuntos de que seus textos tratam, quanto na forma de fazê-lo. Infelizmente, nem todos os participantes puderam enviar seus textos. Muitos deles já estavam destinados a outros veículos. De qua lquer maneira, o presente volume resgata urna parte de toda a riqueza contida na programação do IV Encontro de Filosofia Analítica, e esperamos que o leitor possa encontrar aqui contribuições de valor para seus interesses acadêmicos. Devemos agradecer, em primeiro lugar, aos organizadores do encontro, assim como aos participantes, em especial, àqueles que enviaram seus textos e que estiveram sempre dispostos a colaborar com os organizadores deste volume, por exemplo, fazendo as modificações e revisões que se mostraram necessárias. Expressamos também especial agradecimento a colegas do Departamento de Filosofia da UFSC, do NEL, e aos amigos e colegas de outras universidades, em particular, aqueles q ue integraram as comissões organ izadora e científica. Por fim , gostaríamos de agradecer o apoio finan ceiro do CNPq, da CAPES, e da FAPESP, que viabi lizaram a realização do evento. Agradecemos também ao Departamento de Apoio a Eventos, da UFSC, ligado à PróReitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. e à administração do Centro de Filosofia e Ciência Humanas e do Departamento de Filosofia, em cujas instalações o encontro realizou seus trabalhos. Cezar A. Mortari Luiz Henrique de A. Dutra organizadores
LóGICA FORMAL I LóGICA INFORMAL* MARCOS BARBOSA DE OLIVEIRA Universidade de São Paulo
Este trabalho tem um duplo objetivo: primeiro, fazer uma rápida apresentação do movimento denominado Lógica Informal. ainda pouco conhecido em nosso país; segundo, extrair das constatações que deram origem ao movimento algumas conseqüências referentes ao estatuto da lógica formal , especialmente no que diz respeito ao conceito de razão. Nossa tese será a de que, embora tais constatações não constituam por si só uma crítica, elas abrem caminho para um questionamento da concepção ortodoxa formal da racionalidade. Nosso interesse pelos temas em pauta deriva em parte de estudos no campo da ciência cognitiva e, embora isto não seja essencial para a argumentação a ser formulada, vamos tomar como ponto de partida o conceito de razão pressuposto nesta nova área de pesquisa. A ciência cognitiva, pode-se dizer, identifica lógica e razão: de seu ponto de vista, ser racional é pensar de acordo com os princípios da lógica - devendo-se entender por ' lógica' nestes enunciados os domínios que tratam tanto das inferências dedutivas quanto das indutivas, ou probabilísticas. Tal concepção de racionalidade evidentemente não se restringe à ciência cognitiva; na verdade, e la deriva de sua matriz teórica, a saber, a tradição filosófica anglo-saxônica, onde constitui a concepção predominante. Recapitular sua história, e determinar os limites precisos de sua aceitação no momento não se encontram contudo entre objetivos deste trabalho. Uma das mais conhecidas introduções à ciência cognitiva é o livro de Gardner A nova ciência da mente. Um de seus capítulos leva o título 'Quão racional é o ser humano?', e resume uma série de pesquisas empíricas da ciência cognitiva cuja implicação, segundo Gardner, é a de que não somos tão racionais quanto os filósofos e psicólogos supunham e desejavam. A natureza das investigações é evidência para a alegação feita acima, a respeito da concepção cognitivista de racionalidade: o que procuram estabele• Agradeço aos amigos Paulo C. Abrantes e João de Fernandes Teixeira lllle, entre outras coisas. me ajudaram a conseguir o material bibliográfico necessário para a pesquisa em que se baseia esta comunicação.
Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 9-20.
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Marcos Barbosa de Oliveira
cer, em todos os casos, são incapacidades dos sujeitos de realizar certos tipos de inferência, algumas dedutivas, outras indutivas. Tais pesquisas deram origem a uma viva polêmica, e os títulos de algumas das intervenções também confirmam nossa interpretação, por exemplo, 'Pode a irracionalidade humana ser experimentalmente demonstrada?', de L. J. Cohen. e ' Poderia o homem ser um animal irracional?', de S. Stich: em ambos os casos, irracional = incapaz de pensar de acordo com os princípios da lógica. Para dar uma idéia do tipo dos experimentos relatados por Gardner, vejamos dois exemplos. um envolvendo inferências dedutivas, outro inferências indutivas. O primeiro é o experimento das quatro cartas, idealizado por Peter Wason, e realizado por ele em colaboração com P. Johnson-Laird 1; foi uma das pesquisas que despertaram maior interesse. O problema apresentado a cada sujeito consiste no seguinte. Dispõem-se diante dele quatro cartas, como as de baralho, cada uma com um dos símbolos E, K, 4 e 7 estampados em sua face superior, visível. O sujeito é informado que cada carta tem uma letra numa das faces e um número na outra, e a seguir enuncia-se a regra: Se uma carta tem uma vogal em uma face, então terá um número par na outra. A tarefa do sujeito é testar a regra, com a condição de poder virar apenas duas cartas. Praticamente todos os sujeitos percebem que, das cartas com letras na face visível, a que tem o E deve ser virada e a que tem o K não. A armadilha encontra-se nas cartas com números. A relevante, tendo em vista a regra sendo testada, é a que tem o 7, pois se houver uma vogal na outra face, ficará claro que a regra não é válida. A grande maioria dos sujeitos, entretanto, seleciona. na segunda opção, a carta marcada com o 4. Se esta escolha representa de fato um equívoco é algo que tem sido contestado por alguns críticos. 2 Para nossos objetivos, entretanto, não é necessário entrar nesta polêmica. Para descrever o segundo exemplo, que envolve uma inferência probabilística, passemos a palavra ao próprio Gardner: finalmente, conheça Linda. Tem trinta e um anos. é solteira. desembaraçada c muito inteligente. Formou-se em filosofia. Quando era estudante. preocupava-se muito com questões de discriminação c justiça social e também participava de manifestações antinuclcarcs. Agora você deve classificar, do mais provável para o menos, uma série de oito enunciados. Constam da lista os seguintes enunciados: ··Linda é uma assistente social psiquiátrica", " Linda é I. Cf Wason e Johnson-Laird. Psychology o[ reasoning: slructure and contem. 2. Referências a tais críticas são feitas por Johnson-Laird (que as rejeita) em Mental models, p. 31.
Lógica Formal/ Lógica Informal
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bancária.. c ·'Linda é bancária e militante do movimento feminista." Em qualquer julgamento racional. é mais provável que Linda seja bancária do que ao mesmo tempo bancária c militante do movimento feminista. A probabilidade de x. afinal de contas. é sempre maior do que a probabilidade do evento independente x e do evento independente y. No entanto, mais de 80 por cento dos sujeitos. inclusive aqueles com conhecimento sofisticado de estatística. concordam mais prontamente com o enunciado de que Linda é bancária e feminista do que com o enunciado de que Linda é bancária. Por que este claro desprezo da racionalidade-f
As inferências indutivas, entretanto, não são relevantes para o que vem a seguir. No centro da discussão estará a tese de que a capacidade de realizar corretamente inferências dedutivas é um atributo necessário da racionalidade. Em função disso, até segundo aviso o termo ' lógica' será usado com o sentido de ' lógica dedutiva·. Nosso objetivo imediato é o de estabelecer que, sendo aceita esta concepção parcial de racionalidade, existe uma via mais interessante e mais profunda de mostrar que os seres humanos não são tão racionais quanto se supunha. Este percurso tem seu ponto de partida nas constatações que deram origem ao movimento da Lógica Informal, e continuam formando o núcleo de seu ideário. A Lógica Informal nasceu há vinte e poucos anos como um movimento pedagógico, e nos últimos tempos vem lutando para conquistar espaço no mundo acadêmico na qualidade de uma nova área de especialização. É particularmente forte nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido. O aspecto pedagógico da Lógica Informal reflete-se no fato de que boa parte da literatura produzida em seu nome é constituída de livros-texto (uma descrição recente avalia o número de obras nesta categoria em dúzias, ou mesmo centenas). 4 O parágrafo inicial do prefácio de um deles, The logic ofrea/ arguments, de Alec Fisher é bem ilustrativo do espírito que animou o movimento em seus primórdios. Diz o autor: Este li vro originou-se em minha experiência de ensinar lógica. Como muitos outros. eu tinha esperança de que o ensino da lógica fosse ~judar meus alunos a argumentarem melhor e mais logicamente. Como muitos outros, fiquei frustrado. Alunos que dominavam sem dificuldade as técnicas da lógica pa3. Cf Gardner. A nova ciência da mente, p. 39 1. O experimento descrito é de autoria de Tversky e Kahneman. Cf 'Extensional vs. intuitive reasoning: the conjunction fallacy in probability judgemcnt'. 4. Groarke. 'Logie, informal'.
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Marcos Barbosa de Oliveira reciam julgá-las de muito pouca valia no tratamento dos argumentos reais. As ferramentas da lógica clássica - a formalização. as tabelas de vo:rdade. os tab/eaux semânticos. etc. - não pareciam de maneira alguma diretamente aplicáveis aos raciocínios com os quais eles tinham de lidar em cursos que não os de lógíca. Ao mesmo tempo tinha o sentimento de que deveria ser possível fornecer aos alunos alguma orientação- algum procedimento- que os ajudasse a extrair c avaliar argumentos de textos escritos e a produzir seus próprios bons argumentos. Desejava que o procedimento fosse não-formal mas que incorporasse os insights da lógica tradicional. Este livro é uma tentati va de atingir tais objetivos. (p. vii).
O conceito de argumento real usado por Fisher nesta passagem e no próprio título do livro é bastante significativo: de certa forma encapsula as motivações que impulsionaram o movimento. Por 'argumento real ' entendese aqueles que ocorrem - ou poderiam plausivelmente ocorrer - na vida real, mais precisamente, nas esferas da atividade humana em que o debate desempenha um papel central, ou seja, na política, na filosofia, nas ciências, no direito, etc. A definição exclui apenas os argumentos artificiais, inventados para servirem de exemplos no contexto da própria lógica. A relevância da distinção reside no fato de que, como diz Fisher, as técnicas da lógica tradicional aplicam-se aos argumentos artificiais- o que não é de surpreender, dados os propósitos com que são criados - mas não aos argumentos reais. E de onde provêm esta diferença? Ela decorre de ser a lógica tradicional em pauta uma lógica forma/, uma lógica que toma como pressuposto o princípio de que a validade de um argumento depende apenas de sua forma, e não de seu conteúdo. Em decorrência de tal princípio, para determinar se um dado argumento é válido ou inválido, a primeira tarefa então consiste em extrair sua forma. É aí que se concentram as dificuldades. Um modo conveniente de caracterizá-las é descrever uma experiência que acreditamos ser bastante comum entre professores de lógica, especialmente os responsáveis '·-por esta disciplina em cursos de humanidades como os de filosofia e de pedagogia. Na passagem citada, Fisher refere-se à inutilidade das técnicas da lógica para o estudo dos argumentos reais. O domínio de tais técnicas, por outro lado, exige o exercício de uma forma de pensamento rigoroso semelhante à mobilizada no estudo da matemática, e para a qual os alunos de humanidades de maneira geral têm pouca inclinação. Resultam daí os bem conhecidos problemas enfrentados pelos professores: as dificuldades que os alunos encontram para assimilar a matéria, o desinteresse, a resistência. Reagindo a
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tal situação, o professor faz um diagnóstico que atribui a origem dos problemas aos exemplos de argumentos utilizados: em virtude de sua artificialidade, eles dificultariam a percepção por parte dos alunos da suposta relevância da lógica para os debates da vida real. O remédio então consiste em mudar os exemplos, em passar a trabalhar com argumentos reais, de preferência aqueles cujos conteúdos fazem parte da vida intelectual quotidiana dos alunos, como os encontrados nas páginas de opinião dos jornais. O professor seleciona então um editorial conveniente, e dá início à sua análise. Textos deste tipo contêm argumentos, mas envolvem também idéias de outra natureza, de tal maneira que a primeira tarefa consiste em destacar de seu contexto o argumento a ser estudado. Isto implica não apenas em fazer um recorte, determinando onde o argumento começa e onde acaba, mas também em eliminar os elementos extralógicos que ocorrem no interior da passagem. Já as decisões envolvidas nesta etapa nem sempre são muito fáceis. Em seguida deve-se investigar se o argumento não contém premissas implícitas, e então os problemas começam a ficar mais sérios. Com relação aos termos e expressões em que se expressa o argumento, é necessário de um lado determinar os que são sinônimos - ou no contexto devem ser tomados como tal - , de outro identificar os que são polissêmicos, aparecendo com sentidos diferentes em cada ocorrência. Quem quer que tenha passado por uma experiência como esta sabe como são problemáticas todas estas etapas, e a quantidade de decisões mais ou menos arbitrárias que elas freqüentemente exigem. Os problemas envolvidos são essencialmente problemas de interpretação, para cuja solução a lógica formal tem pouco a contribuir. Mas vamos supor que o professor consiga superar todos os obstáculos, chegando, depois de muito debate a uma representação da forma do argumento. O que acontece com grande freqüência, nesta etapa que representaria o coroamento do processo, é que tal forma se revela trivialmente válida, ou inválida. O exercício feito com o objetivo de demonstrar a relevância da lógica para a vida real termina assim estabelecendo exatamente o oposto do que se pretendia. Foram experiências como esta que motivaram a formação da Lógica Informal como um movimento pedagógico. 5 Constatada a pouca utilidade da 5. Em que pese a enorme diferença de pontos de vista, não há como não reconhecer que Heidegger tinha pelo menos certa razão ao afirmar: ''Esta lógica ensinada peJos professores de filosofia não fala a seus alunos. Não apenas é seca como pó; no fim ela os deixa perplexos. Eles não encontram conexão alguma entre esta lógica e seu próprio estudo acadêmico, e certamente nunca se torna claro a que uso se destina, a não ser que seja algo tão banal e basicamente sem valor quanto o uso como material
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lógica formal para a avaliação dos argumentos reais, a tarefu passou a ser a e laboração de programas e métodos a lternativos para os cursos que se atribuem o objetivo de fazer com que os alunos pensem melhor. Houve no início uma grande ênfase no estudo das falácias informais, para o que contribuiu o livro Fallacies, de Charles Hamblin, publicado em 1970. Outras obras muito influentes, que podem ser consideradas precursoras do movimento são: Beardsley, Practica/ logic, de 1950, Toulmin, The uses ofargument, de 1958, e Scriven, Reasoning, de 1976. Não se pode deixar de mencionar neste contexto, pelos elementos em comum com a Lógica Informal, e pela repercussão que alcançou na filosofia como um todo, o Tratado da argumentação: a nova retórica, de Perelman e Olbrechts-Tyteca. No que se refere aos programas alternativos, de maneira geral eles não excluem totalmente a lógica formal , porém limitam seu estudo aos princípios fundamentais, deixando de lado os desenvolvimentos mais técnicos. Grande parte das energias, por outro lado, é dedicada aos problemas de interpretação, e desta forma o ensino da lógica informal adquire mais um caráter de treinamento do que de transmissão de teorias, como é o caso dos cursos tradicionais de lógica. Muito se poderia dizer ainda sobre os métodos desenvolvidos pelos adeptos da Lógica Informal para a avaliação de argumentos reais; um relato sobre eles entretanto já se situa fora do âmbito do presente trabalho. Dois dos líderes do movimento são Ralph Johnson e Anthony Blair, ambos professores de filosofia na Universidade de Windsor, Canadá. Foram eles os organizadores do Primeiro Simpósio Internacional de Lógica Informal, realizado em sua universidade em 1978. Um dos resultados do simpósio foi a criação do Informal Logic Newsletter, que em 1984 transformou-se na revista Informal Lagic, da qual Johnson e Blair são os editores. Eles têm produzido inúmeros trabalhos em colaboração, dentre os quais se destacam dois artigos que proporcionam uma visão panorâmica sobre o movimento: ' Informal logic: the past five years 1978-1983 ' , e 'Informal logic: past and present', incluído na coletânea New essays in informal logic, da qual Johnson e Blair são também os organizadores. A Lógica Informal nasceu como um movimento pedagógico mas, como se observou acima, passou aos poucos a almejar o status de uma área de especialização dentro dos domínios da filosofia. Deste ponto de vista, mais ou menos conveniente para avaliações. Tal lógica técnica e acadêmica também não fornece uma concepção de filosofia. Seu estudo deixa o aluno fora da filosofia, quando não efetivamente o afasta dela'·. (Heidegger. The metaphysica/ foundations oflogic.)
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Johnson e Blair registram a existência de programas de mestrado em lógica informal em algumas universidades, porém não de doutorado - algo que consideram explicitamente como uma limitação a ser superada. Esta mudança no caráter do movimento não é vista unanimemente com bons olhos; alguns participantes lamentam o relativo afastamento dos ideais pedagógicos que inspiraram sua fundação. Johnson e Blair reconhecem em parte a procedência das críticas levantadas, porém enfatizam os beneficios da institucionalização da Lógica Informal como uma área do saber: o estímulo ao desenvolvimento teórico rigoroso, e à interação com outras áreas, particularmente a ciência cognitiva, para a qual, eles sustentam, a lógica informal tem uma importante contribuição a dar. 6 Um dos problemas enfrentados pela Lógica Informal é a falta de uma delimitação precisa em relação a domínios vizinhos, particularmente o movimento denominado pensamento crítico (criticai thinking) e a tradição holandesa de pesquisa sobre a argumentação associada aos nomes de Frans van Eemerem e Rob Grootendorst. Quanto ao primeiro, a dificuldade é tanta que muitos autores usam as expressões 'lógica informal ' e ' pensamento critico' como sinônimas. 7 Este, contudo, é outro tópico em que não podemos nos aprofundar. Para completar este esboço, e trazer à tona a conexão com o tema da racionalidade, vejamos corno Johnson e Blair caracterizam, em termos mais amplos, os objetivos do movimento: Vivemos em tempos conturbados. Mais que nunca é necessária, na comunidade humana. a discussão cooperativa racional sobre os problemas que enfrentamos. Precisamos de mais razão c racionalidade, assim como de uma sociedade bem-educada nos métodos e hãbitos da argumentação racional. Esperamos que ao estimular o interesse tanto pelo estudo quanto pela prática da argumentação como um empreendimento racional, os lógicos informais tenham uma contribuição a dar para a lógica c a filosofia de maneira geral, para a educação das gerações futuras. c para a sociedade como um todo. 8
*** Voltemos agora à linha de pensamento a que havíamos dado início. Afirmamos que, sendo pressuposto o conceito ortodoxo, formal , de razão, as 6. Cf Johnson e Blair. ·Jnformallogic: past and present'. pp. 4-5. 7. Cf ibid., pp. 11-12. 8. lbid., p. 15.
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constatações da Lógica Informal fornecem um caminho mais interessante e mais profundo que o da ciência cognitiva para se estabelecer que os seres humanos não são tão racionais quanto se supunha. Vamos agora justificar esta afirmação. De acordo com a concepção formal de racionalidade, ser racional é pensar de acordo com os princípios da lógica formal. A constatação básica da Lógica Informal é a de que tais princípios não se aplicam aos argumentos utilizados nos debates da vida real. Este 'não se aplicar' é claramente uma questão de grau: podemos dizer que a aplicabilidade da lógica a um argumento é tanto menor quanto maior forem as dificuldades de interpretação, quanto mais decisões arbitrárias tiverem de ser tomadas para se extrair a suposta forma do argumento. Mas, por enquanto, este aspecto de gradualidade não é relevante, podemos ficar apenas com a asserção genérica de que, de maneira geral, os princípios da lógica não são aplicáveis aos argumentos reais. Uma evidência suplementar para ela é o fato de que, mesmo em textos filosóficos, e entre os autores em que a concepção formal de racionalidade é mais arraigada, embora haja abundância de argumentos, raramente se extrai e representa explicitamente sua forma com o objetivo de determinar sua validade. Bem, se os princípios da lógica formal não se aplicam aos argumentos reais, então que sentido tem dizer que pensamos de acordo com eles? Não há como não concluir que não somos tão racionais quanto se supunha. E por que seria tal demonstração mais interessante e profunda que a fornecida pelas pesquisas da ciência cognitiva? Primeiro, por se referirem a todo o conjunto de inferências que fazemos, não apenas a alguns tipos bem determinados. O problemas colocados para os sujeitos nas investigações empíricas da ciência cognitiva têm na verdade certo caráter de " pegadinha", de questão que envolve uma armadilha em que caem os desavisados. Em segundo lugar, porque a irracionalidade em pauta, no caso da Lógica Informal, é atribuída a todos os seres humanos; no caso da ciência cognitiva, apenas à categoria da qual os sujeitos dos experimentos constituem uma amostra. Embora os cognitivistas ressaltem que entre os sujeitos que falham nos testes se encontram não apenas leigos, mas também pessoas com certo estudo de lógica, eles próprios ficam excluídos do conjunto dos deficientes em racionalidade. Isto porque os experimentos, por sua própria natureza, assentam-se sobre o pressuposto de que o pesquisador sabe as respostas corretas, racionais, para os problemas apresentados. Passemos agora ao tópico da articulação entre a lógica e a racionalidade. À primeira vista, pode parecer que as constatações da Lógica Informal colocam em xeque a concepção formal de racionalidade. Na verdade, isto não
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acontece, e não acontece porque o conceito de razão é, por sua própria natureza, normativo. Afirmar que ser racional é pensar de acordo com os princípios da lógica formal não implica dizer que pensamos, mas sim que devemos pensar desta forma. Com efeito, os lógicos sempre souberam que as pessoas nem sempre raciocinam e argumentam corretamente do ponto de vista lógico; para eles, é evidente que ocorrências concretas de desrespeito a um princípio da lógica não implicam sua refutação - da mesma maneira em que o mandamento 'Não matarás' não é refutado pelo fato de que os homens se mataram, e continuam se matando uns aos outros. A Lógica Informal, por outro lado, leva a um aprofundamento das idéias a respeito da normatividade da lógica. O tradicional, quando se pensa na lógica como uma doutrina normativa, é concebê-la como determinando as inferências que podem e as que não podem ser feitas. Sob esta luz, a lógica aparece como uma norma proibitiva -já que estipula não as inferências que devemos, mas apenas as que não devemos fazer. Seu mandamento básico é: 'Não cometerás inferências inválidas'. Por trás desta formulação encontram-se as pressuposições de que podemos distinguir as inferências válidas das inválidas e, o que é mais importante, que a validade depende apenas da forma. O estudo da lógica formal fica caracterizado, nesta perspectiva, como uma prática que nos ajuda a observar o mandamento básico - que nos permite ser mais lógicos e, em conseqüência, mais racionais. Os princípios da lógica formal, porém, como ficou estabelecido, de maneira geral não se aplicam às inferências que fazemos. A conclusão é paradoxal, pois aniquila o conteúdo normativo a ela atribuído. Uma regra de boas maneiras que prescrevesse a maneira educada de bater as asas evidentemente não se aplicaria aos seres humanos, desprovidos que somos de tais apêndices. Se os princípios da lógica formal não se aplicam às nossas inferências, então seu conteúdo normativo é igualmente inócuo. A saída do paradoxo - é o que iremos sugerir agora - consiste em atribuir à lógica, além do mandamento 'Não cometerás inferências inválidas', um outro ainda mais fundamental. Para isso vamos definir com a precisão necessária o conceito de formalizar um argumento. A aplicabilidade dos princípios da lógica aos argumentos reais é, como vimos, uma questão de grau. Além do mais, é fácil perceber que um argumento pode ter várias formulações diferentes, tais que a aplicabilidade da lógica é maior em umas que em outras. Na verdade, o processo de extrair a forma de um argumento pode ser pensado como uma série de reformulações operadas em seqüência sobre o argumento original, de tal maneira que a aplicabilidade da lógica aumenta a cada reformulação, e termina com a representação puramente
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simbólica da forma. Vamos chamar de formalizaçao de um argumento o processo de reformulá-lo no sentido de incrementar a aplicabilidade da lógica a ele. ' Formalizar um argumento', de acordo com a definição proposta, refere-se a um processo gradativo, não a uma operação binária, que ou bem se realiza ou bem não. Podemos agora enunciar o outro mandamento da lógica, qual seja, 'Formalizarás tuas inferências'. Uma outra maneira de representá-lo consiste em dizer: ' Quanto mais formal melhor'. Ele constitui o primeiro mandamento da concepção formal de racionalidade, em cuja ausência o segundo mandamento - Não cometerás inferências inválidas - perde o sentido. Afirmamos que as constatações da Lógica Informal não constituem uma crítica ao conceito formal de razão. Chegou agora o momento de declararmos que, a nosso ver, tal crítica deve ser empreendida. E para tal empreendimento - é o que procuraremos mostrar - as constatações da Lógica Informal abrem caminho. Em sua disputa com outras concepções de racionalidade, a concepção formal ortodoxa adota uma estratégia de enclausuramento; tal como o tatubola, ela se fecha em si mesma envolvendo-se em uma carapaça protetora que a toma imune a todos os ataques. A operação consiste em fazer com que qualquer questionamento da lógica apareça como necessariamente irracional, incongruente, e isto se consegue não enfatizando, deixando no escuro, por assim dizer, tanto o fato de que a lógica não se aplica aos argumentos reais quanto o primeiro mandamento, que prescreve sua formalização. Sendo o cerne da lógica reduzido.ao segundo mandamento, fica parecendo que o único questionamento possível implicaria uma defesa das inferências inválidas, da prescrição de que devemos, ou no mínimo podemos fazer inferências inválidas. Sem um critério normativo para a correção de argumentos, entretanto, fica difícil conceber uma crítica que possa se apresentar como racional. É como se, ao negar o segundo mandamento, o crítico caísse no vazio, faltando-lhe um ponto de apoio para que o ataque pudesse ser desfechado. A contra-ofensiva consiste em, a partir da explicitação do primeiro mandamento como verdadeiro cerne da concepção formalista, identificar dois tipos diferentes de forma de pensamento que não estã~ submetidos a ela: o pensamento alógico - ao qual os princípios da lógica formal não se aplicam -, e o pensamento ilógico - que está em desacordo com \eles, sendo constituído de inferências formalmente inválidas. Uma manifestação de uma forma de pensamento só pode ser ilógica na medida em que não for alógica. Sendo reconhecido o fato de que a lógica formal não se aplica aos argumentos reais, a única maneira de não condenar como irracionais todos os
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debates realizados ao longo da história na ciência, na filosofia, na política, etc., ou seja, em toda a história da cultura ocidental, consiste em reconhecer a racionalidade de formas alógicas de pensamento. Tal reconhecimento fornece a plataforma necessária para o questionamento do conceito formal de razão. A estratégia de enclausuramento da lógica é praticada desde a antigUidade, como se depreende do conhecido episódio do qual Epíteto é o protagonista: Quando um dos presentes disse: ..Convença-me de que a lógica é necessária", ele respondeu: "Queres que te prove isto?" A resposta foi .. Sim." ·'Então devo usar a forma demonstrativa de linguagem." Tendo o interlocutor concordado, Epíteto lhe perguntou: ·'Como então saberás que não te estou enganando com meus argumentos?" O interlocutor ficou em silêncio. "Percebes", disse Epíteto, "que tu próprio estás admitindo que a lógica é necessária, se sem ela não podes saber nem mesmo isto, se a lógica é ou não neccssária?" 9
Já se observou que, de acordo com os termos da situação, se o interlocutor não fosse competente em lógica, não poderia apreciar a força do argumento de Epíteto, que deste modo cairia no vazio. Contudo, ainda que o argumento não fosse eficaz no sentido de persuadir o interlocutor a estudar lógica, ele ainda teria o poder de reduzi-lo ao silêncio. Isto se evita através do recurso à concepção de uma forma de pensamento que é alógica porém não irracional.
Referências bibliográficas Arrian, 1952. Discourses of Epictetus. Great Books of the Western World, vol. 12. Chicago: Encyclopredia Britannica. Beardsley, M. 1950. Practicallogic. Englewood Cliffs, Prentice-Hall. Cohen, L. J. 1981. "Can human irrationality be experimentally demonstrated?" The behavioral and brain sciences, 4: 317-70. Cole, M. e Scribner, 1974. Culture and thought: a psychological introduction. Nova York: Wiley. De Oliveira, M. 8. 1997. "O naturalismo no estudo dos conceitos." Da ciência cognitiva à dialética. Trabalho de livre-docência, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, pp. 86-111.
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Marcos Barbosa de Oliveira
- . 1996. "O que todo cientista cognitivo deve saber sobre a Lógica". In Gonzales, M. E. Q. et a/. (orgs.), Encontro com as Ciências Cognitivas: Anais do I Encontro Brasileiro-Internacional de Ciência Cognitiva, vol. I. Marília, Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, pp. 15-26. Fisher, A. 1988. The logic of real arguments. Cambridge: Cambridge University Press. Gardner, H. 1995. A nova ciência da mente: uma história da revolução cognitiva. Trad. de Cláudia Malbergier Caon. São Paulo, EDUSP. Groarke, L. Logic, informal. Verbete da Stanford Encyclopedia of Philoso-
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Os PARADOXOS E A TEORIA DE CoNJUNTOS ARNO AURÉLIO VIERO
Universidade Federal Fluminense
Uma das características mais marcantes da teoria de conjuntos, como ela é desenvolvida atualmente, reside na utilização da noção de sistema axiomático formalizado para a obtenção de seus principais resultados. Contudo, nem sempre foi assim. Os primeiros desenvolvimentos da teoriá de conjuntos, feitos por G. Cantor e R. Dedekind, deram-se de uma forma não axiomática. O conceito de método axiomático começou a desempenhar um papel central em tais investigações a partir do trabalho de E. Zermelo, intitulado "lnvestigations in the Foundations of Set Theory 1" 1, no qual, pela primeira vez, a teoria de conjuntos foi apresentada de acordo com os preceitos do método axiomático. A adoção de tal postura iniciou uma verdadeira revolução no desenvolvimento da teoria de conjuntos. Contudo, vários aspectos desta transformação permanecem, ainda hoje, bastante obscuros do ponto de vista conceitual. Qual a finalidade da adoção do método axiomático em tais investigações? Como entender a natureza e a finalidade dos vários elementos constitutivos do método axiomático? Quais as conseqüências de se adotar tal postura no desenvolvimento da teoria de conjuntos? O propósito central deste trabalho é o de tentar obter respostas satisfatórias a estas várias questões. No ano de 1908, Zermelo publicou dois artigos que tinham uma relação direta com o seu trabalho no âmbito da teoria de conjuntos. O primeiro deles, intitulado "A New Proof of the Possibility of a Well-Ordering", tinha como finalidade principal a apresentação de uma nova prova do teorema de boa ordem obtido por ele, pela primeira vez, em 1904. Além disto, o artigo possuía uma parte polêmica na qual Zermelo defendia a utilização do axioma da escolha na demonstração de seu teorema contra as críticas de Borel, Peano, Poincaré, Kõnig, Jourdain, entre outros. As lnvestigations foram publicadas no mesmo ano e tinham um objetivo distinto, se bem que o dominio de problemas era o mesmo, a saber, a teoria de conjuntos. Neste trabalho, é apresentada, pela primeira vez., de uma for-
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Doravante, o tenno lnvestigations será utilizado para designar este trabalho de Zennelo.
Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analítica. Florianópolis: NEL, pp. 21-32.
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ma axiomática, a teoria dos conjuntos infmitos, desenvolvida, anteriormente, por Dedekind e Cantor. Este trabalho de Zermelo está dividido em três partes. A primeira delas examina, de uma forma bastante sucinta, alguns aspectos gerais de sua proposta. A segunda, intitulada "Fundamental Defmitions and Axioms", é a mais conhecida. Nela são apresentados os axiomas que se tornariam o núcleo da teoria axiomática de conjuntos: o axioma da extensionalidade; o axioma dos conjuntos elementares; o axioma da separação; o axioma do conjunto potência; o axioma da união; o axioma da escolha e o axioma do infinito. Na terceira e última parte, intitulada "Theory of Equivalence", Zermelo trata da noção de equivalência, absolutamente central para a teoria cantoriana. Ali ficou estabelecida uma série de resultados da teoria de conjuntos, tendo como base as definições e os axiomas apresentados na segunda parte. A teoria apresentada nas Invesligations é distinta de ZFC, que é a forma como a teoria de conjuntos é estudada atualmente, em vários aspectos. ZFC é uma teoria formalizada; a sua lógica subjacente é a lógica de primeira ordem; e ela possui dois axiomas que não se encontravam presentes na formulação original de Zermelo: o axioma de regularidade e o axioma de substituição. Das três partes das Jnvestigations, aquela que possui maior relevância para o nosso propósito é a primeira. Ali Zermelo adota três pressupostos que são vitais para que se possa avaliar corretamente os vários aspectos de sua proposta de axiomatização da teoria de conjuntos: I) a teoria de conjuntos seria a disciplina matemática básica, responsável pelo desenvolvimento dos "fundamentos lógicos de toda a aritmética e da análise" (Zermelo, 1908a, p. 200); 2) o advento dos paradoxos, pdncipalmente do paradoxo de Russell, havia colocado em xeque aspectos muito importantes da teoria cantoriana de conjuntos. Em particular, a definição de conjunto proposta por Cantor2 deveria ser revista; e, 3) a estratégia a ser adotada, na axiomatização da teoria de conjuntos, é de caráter essencialmente pragmático, ou seja, a de restringir os princípios desta disciplina de forma a excluir as contradições e, ao mesmo tempo, preservar tudo aquilo que fosse importante. No que diz respeito, especificamente, às concepções de Zermelo a res2
A definição é aquela apresentada por Cantor no parágrafo inicial de seu trabalho intitulado Contribuitions to the Founding of the Theory of Transfinite Numbers: "Por agregado (Menge), entenderemos qualquer coleção M, considerada como totalidade, de objetos definidos c separados m, da nossa intuição ou pensamento. Estes objetos são chamados de 'elementos' do conjunto. De forma simbólica: M = {m}" (Cantor, 1955, p. 85).
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peito da natureza dos diversos elementos constitutivos do método axiomático, as Investigations não trazem nenhum pronunciamento explícito de seu autor. Ao contrário, em uma passagem logo no início do texto, Zermelo deixa claro que ele não pretende discutir, em momento algum, os aspectos conceituais relativos ao método axiomãtico tais como a origem e a validade dos axiomas utilizados em seu trabalho. Desta forma, o problema de se tentar entender a natureza e a finalidade da utilização do método axiomático nas Jnvestigations não é facilitado, em momento algum, por qualquer tipo de discussão por parte de seu autor. Assim, a tentativa de se entender tais problemas deverá ser, até certo ponto, um processo de reconstrução, através de evidências indiretas, das concepções de Zermelo. O caminho natural, e que tem sido utilizado freqüentemente na literatura especializada3 no que diz respeito a tentativa de se entender a utilização do método axiomático nas lnvestigations, é a sua comparação com o livro de D. Hilbert, publicado em 1899, The Foundations ofGeometry. Contudo, tal tipo de abordagem para esta questão, geralmente, é feita de uma form a não crítica, não se extraindo todas as conseqilências que são possíveis de serem estabelecidas através deste tipo de comparação. O resultado da adoção de tal postura é um entendimento extremamente superficial dos vários aspectos do trabalho de Zermelo, no qual o conceito de método axiomático desempenha um papel central. A única salda para este problema é adotar o trabalho de Hilbert como ponto de partida, levando em consideração, contudo, o significado e os desdobramentos que a adoção da concepção de método axiomático, presente em The Foundations ofGeometry, acarretam. No final do século XIX, graças a certos desenvolvimentos em várias disciplinas tais como a álgebra, a geometria projetiva, a análise e, principalmente, ao advento das geometrias não-euclidianas, criou-se um consenso na comunidade matemática, de que a concepção clássica do método axiomático deveria ser radicalmente alterada. Tal concepção, no entender de vários matemáticos importantes da época\ não era capaz de satisfazer os 3
Ver o livro de G. Moore, por exemplo: ''Na Alemanha, o movimento axiomático culminou com a obra de Hilbert, intitulada Grundlagen der Geometrie, ( ...) Cada um desses aspectos dos Grundlagen de Hilbert - o uso de um domínio de objetos com uma relação primitiva, a apresentação explícita de todas as suposições como axiomas, e o interesse pela sua independência e consistência - iriam influenciar a axiomatização da teoria de conjuntos realizada por Zermelo" (p. 150). 4 Neste sentido, a escola italiana integrada por matemáticos tais como Peano, Veronese, Pieri, Burali-Forti, Betazzi, Fano, entre outros, desempenhou um papel decisivo.
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requisitos de rigor que as investigações matemáticas da época exigiam. A concepção clássica da axiomática é aquela apresentada em duas obras centrais da antigUidade, a saber, Os Elementos de Euclides e os Segundos Analíticos de Aristóteles. Nestas obras, é possível encontrar uma concepção bem definida do que seria o método axiomático: a estruturação de um conjunto de proposições, relativas a um domínio específico, através das relações de demonstrabilidade e defmibilidade. Na base do sistema estariam enunciados que não poderiam ser demonstrados (os postulados e os axiomas) e termos que não poderiam ser definidos (os termos primitivos). O fato de que, dentro de um dado sistema, nem tudo pudesse ser demonstrado e definido estava longe de ser um fato desabonador, ao contrário, era visto como uma decorrência natural de certas limitações intrínsecas das relações constitutivas do sistema. Tal forma de se entender a estrutura de um sistema axiomático mudou, drasticamente, no final do século XIX. A descoberta de certos problemas em algumas demonstrações de Euclides (a íntrodução de certas pressuposições durante a execução de várias de suas provas5) e a insatisfação com algumas definições dadas por ele em Os Elementos (p. ex., ponto é aquilo que não possui partes), levaram a uma nova forma de se entender a estrutura de um sistema axiomático. A esta nova conce pção costuma-se denomínar de axiomática formal. 6 A solução que começa a se delinear para estes problemas, pouco a pouco, através dos trabalhos de vários matemáticos da época, é, aparentemente, simples: colapsar as bases das relações de demonstrabilidade e definibilidade, concebendo os axiomas como tendo um caráter fundamentalmente definitório. Com isto, os problemas detectados na axiomatização euclidiana pareciam receber soluções simples e eficientes. O controle das suposições iniciais do sistema ficava garantido (uma vez que a adoção da concepção dos axiomas como definições permitia a certeza de que toda a informação relevante para os procedimentos demons trativos estaria presente na base do sistema) sendo que, desta forma, o recurso à noção de evidência parecia ser completamente desnecessário. Este fato foi visto com muita simpatia pelos matemáticos da época que não podiam deixar de considerar o recurso a este 5
Uma delas é a prova I 2 1 de Os Elementos que somente é possível de ser rigorosamente demonstrada através do auxílio dos axiomas de ordem, que em momento algum são assumidos de forma explícita por Euclides. 6 Este termo foi tomado da obra Los Fundamentos de la Matemática de Hilbert e Bemays. Ele também é utilizado por Kleene, no capítulo ill, de seu livro /ntroducción a la Metamatemática.
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tipo de expediente como sendo de natureza extremamente duvidosa, principalmente depois do advento das geometrias não-euclidianas. Outra vantagem, na adoção deste tipo de expediente, era tomar desnecessário o tipo de "definição" utilizada por Euclides na base de seu sistema. Definições como a de ponto, apresentadas em Os Elementos, pareciam ser um despropósito completo. Isto não seria mais necessário, uma vez que ponto, por exemplo, passaria a ser qualquer coisa que satisfizesse certas exigências básicas estipuladas pelos axiomas. O que é importante perceber é que, no momento em se adotava este tipo de manobra estava se alterando, radicalmente, a forma de se entender a natureza e a função dos diversos elementos constitutivos de uma teoria axiomática. Assim , por exemplo, quando se considera os axiomas como sendo definições, a rigor, não faz o menor sentido colocar a questão acerca da verdade de tais "enunciados", uma vez que é um fato amplamente conhecido que definições não são nem verdadeiras, nem falsas. Com a adoção da nova concepção do método axiomático, em um certo sentido, a noção de verdade desaparece. Este é um fato extremamente inquietante a respeito desta nova concepção e que parece ter passado completamente desapercebido pelos seus autores. 7 É dentro de todo este contexto de transformação do método axiomático que o trabalho de Hilbert deve ser localizado e entendido. Sem este fato presente, é impossível avaliar o real significado desempenhado por seu livro nos vários desdobramentos que a adoção da postura recém descrita acabaria gerando. Um rápido exame em The Foundations of Geometry é suficiente para mostrar que Hilbert adotava a nova concepção do método axiomático. Os axiomas são concebidos como definições dos termos e das relações primitivas do sistema. É claro que, a partir do que foi anteriormente exposto, isto não chegava a se constituir em uma novidade. Vários matemáticos da época, tais como Pasch e Peano, haviam se utilizado deste mesmo expediente na axiomatização da geometria euclidiana. O que realmente era inovador, no livro de Hilbert, era a formulação e a solução satisfatória de um problema extremamente importante para a nova concepção do método axiomático, a saber, o da consistência de seus axiomas. Na medida em que as definições que estariam na base do sistema seriam estipulações arbitrárias, o que ga7
Isto é facilmente compreensível, na medida em que os matemáticos que na época introduziram tais inovações estavam preocupados, fundamentalmente, com o desenvolvimento técnico de suas disciplinas e tinham pouco apreço pelos aspectos conceituais desta questão.
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rantiria que elas seriam compatíveis entre si? Em outras palavras, o que garantiria que os conceitos gerados a partir dos axiomas não seriam contraditórios? O que Hilbert percebeu foi que as vantagens propiciadas por esta nova concepção de método axiomático exigiam, em contrapartida, uma demonstração da consistência dos axiomas. Neste momento, é importante perceber como a postura metateórica, tão cara ao moderno estudo das teorias formalizadas, surge naturalmente a partir desta nova concepção do método axiomático. Uma vez que se concebe os axiomas como sendo definições, a questão da consistência coloca-se imediatamente. Ora, a própria natureza deste tipo de questão nos remete para um nível de investigação no qual a teoria se apresenta como objeto de estudo. Com isto, um importante passo foi dado no sentido de se admitir vários níveis de linguagem, bem como no de reduzir os axiomas e teoremas a objetos ''tratáveis" a partir desta perspectiva. A postura metateórica contemporânea tem a sua origem no advento da axiomática formal e, somente dentro deste contexto, ela pode ser adequadamente entendida . Tendo presente o que acaba de ser considerado, voltemos às lnvestigations. Toda a estrutura do trabalho de Zermelo indica que a concepção de método axiomático adotada por ele não é a concepção clássica. Em particular, logo no início de sua exposição, Zermelo parte da existência de um domínio B, constituído por certos elementos, entre eles, conjuntos. Para alguns destes elementos, a relação de pertinência 'E' se verificaria. Os axiomas ou postulados seriam restrições a esta relação que é considerada como um primitivo do sistema. Em momento algum Zermelo tenta fornecer uma definição de conjunto, nem uma definição da relação de pertinência, o que indica, evidentemente, uma opção pela nova concepção de método axiomático. A partir desta perspectiva, a saber, que a estrutura axiomática subjacente às lnvestigations é a mesma adotada por Hilbert em seu livro que trata da geometria euclidiana, é possível entender, entre outras coisas, quais os reais motivos que teriam levado Zermelo a axiomatizar a teoria de conjuntos. A concepção mais difundida, até alguns anos atrás, era a de que o esforço no sentido de evitar o surgimento de paradoxos, dentro da teoria de conjuntos, teria sido o motivo principal do surgimento ...--· das Investigalions. No entanto, G. Moore, em seu livro Zennelo 's Axiom of Choice. lts Origins, Development, and lnjluence, não somente discordou de tal concepção como propôs uma alternativa, a saber, a axiomatização de Zermelo faria parte de uma estratégia que tinha por fmalidade assegurar a legitimidade de sua demonstração do teorema de boa ordem, em particular garantir a validade do axioma da escolha. Este é um assunto que merece algumas considerações envolvendo os paradoxos e a nova concepção do método axiomático.
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Afirmar que os paradoxos nunca preocuparam Zermelo parece ser, no mínimo, uma afirmação temerária por parte de Moore (p. 158). Nas Investigations, existem vários lugares em que Zermelo procura mostrar, de uma forma bastante cuidadosa, que os vários mecanismos adotados por ele na axiomatização da teoria de conjuntos não permitira o surgimento dos paradoxos mais conhecidos na época. Em um primeiro momento, ele trata de demonstrar que o domínio B, de sua teoria, não seria um conjunto (1908a, p. 203). Com isto, a possibilidade do surgimento do paradoxo de Russell estaria eliminada de uma vez por todas. Além disso, Zermelo indica como os paradoxos de todos os ordinais (atualmente conhecido pela denominação de paradoxo de Burali-Forti) e o paradoxo de Richard, entre outros, são bloqueados pela forma como os conjuntos são definidos através do axioma de separação. Assim, nas Investigations, é possível detectar uma preocupação nítida, por parte de Zermelo, no sentido de mostrar de que forma os paradoxos mais conhecidos poderiam ser evitados, assumindo alguns dos expedientes sugeridos por ele. É claro que neste momento surgem, naturalmente, duas questões: 1. de que natureza, exatamente, era o tipo de preocupação que Zermelo nutria em relação aos paradoxos; e 2. dado este tipo de preocupação, é justificado tomá-la como sendo a razão principal que teria levado Zermelo a axiomatizar a teoria de conjuntos? Do ponto de vista conceitual, é possível perceber que, no entender de Zermelo, o que a teoria de Cantor necessitava era de certos ajustes em relação à definição básica de conjunto (apresentada na nota 2) e que uma das finalidades de sua teoria seria a de estabelecer "( ...) um substituto para a noção geral de conjunto citada na introdução( ...)" (Zermelo, l908a, p. 202). É claro que este tipo de postura, por parte de Zermelo, acabará conduzindo a concepções um tanto quanto equivocadas a respeito, tanto do trabalho de Cantor, como a respeito da finalidade de se axiomatizar uma teoria matemática. No entanto, do ponto de vista conceitual, Zermelo nunca acreditou que os paradoxos representassem uma ameaç.a séria à teoria de conjuntos. Ao que tudo indica, Zermelo conhecia o paradoxo do conjunto de todos os conjuntos que não contém a si mesmo como elemento, muito antes de sua descoberta por Russell. No entanto, sua reação a este respeito sempre foi de muita tranqüilidade, considerando tal resultado, inclusive, como sendo matematicamente positivo. O que tal paradoxo mostrava era que nenhum conjunto poderia conter todos os seus subconjuntos como elementos (aliás, o que lhe permitiu demonstrar nas Investigations que o domínio B não seria um conjunto).
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Em relação ao paradoxo de Burali-Forti, a sua postura é ainda mais radical. Segundo Zermelo, o fato de W (o conjunto de todos os ordinais) não existir era algo tão evidente que ele sequer havia se dado ao trabalho de apresentar urna prova deste fato no seu trabalho de 1904. Tal prova é esboçada no artigo de 1908 que tem como idéia central o fato de que, dado qualquer conjunto bem ordenado M, sempre seria possível adicionar um elemento b a ele e, com isto, gerar um outro conjunto bem ordenado, no qual o primeiro estivesse contido. Em outras palavras, nunca poderia existir o conjunto de todos os ordinais, uma vez que, dado um ordinal qualquer, sempre se poderia gerar um maior. 8 Desta forma, existem indícios bastante claros de que a preocupação de Zermelo com os paradoxos não era de natureza conceitual. O problema era de outro tipo. No caso do paradoxo de Burali-Forti, o que preocupava Zermelo é que um grupo bastante significativo de matemáticos, que havia trabalhado ativamente no desenvolvimento da teoria de conjuntos (F. Bernstein e Jourdain, entre outros), devido a um equívoco grosseiro, criavam problemas para uma teoria que já possuía problemas suficientes com a comunidade matemática da época.9 Além disso, os paradoxos haviam adquirido uma importância bastante grande nas mãos dos ferrenhos adversários da teoria de conjuntos. Talvez o mais ilustre, nesta época, fosse o matemático francês H. Poincaré. Em 1906, ele declarava: ''Não existe infinito atual; os cantorianos esqueceram disto e acabaram gerando contradições" (p. 316). É bem possível que, devido ao grande prestígio que Poincaré tinha junto à comunidade matemática, as suas opiniões acabaram influenciando boa parte dos matemáticos da época, e, com isto, o problema dos paradoxos foi, pouco a pouco, ganhando importância na discussão envolvendo a teoria de conjuntos. 10 Desta forma, é possível perceber que as evidências, tanto de caráter histórico, como de caráter conceitual, indicam que a principal preocupação de Zermelo, nas lnvestigations, não era com os paradoxos, se bem que, naquele 8
Ao que Zennelo acrescenta: " ... Esta prova, que eu somente não incluí em meu trabalho de 1904 pelo fato de ela ser trivialmente simples, também assegura, como foi dito anteriormente, a não existência de W, e todas as conseqüências. obtidas a partir de W, se tornam inócuas" ( 1908, p. 195). 9 Estes problemas não tinham a sua origem em nenhum tipo de paradoxo. Eles diziam respeito à demonstração do teorema de boa ordem, através do recurso ao axioma da escolha, e o problema da hipótese do contínuo, que permanecia sem solução. 10 Posteriormente, com o avanço crescente do intuicionismo, os paradoxos acabariam por ocupar um lugar central na investigação dos fundamentos da matemática.
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momento, algum tipo de esclarecimento a respeito de tais problemas era vital para o estabelecimento da legitimidade da teoria junto a uma parte da comunidade matemática. Contudo, se o problema não era com os paradoxos, por que o problema da consistência era tão importante para Zermelo? 11 A resposta a esta questão deve ser buscada na concepção de método axiomático adotada por Zermelo que, como foi visto anteriormente, ao conceber os axiomas com sendo definições arbitrárias, colocava o problema da compatibilidade destas estipulações, ou seja, da sua consistência, como um problema central na axiomatização de sua teoria. No entanto, apesar de tal resposta permitir compreender por que o problema da consistência era importante para Zermelo, sem nenhum apelo ao problema dos paradoxos, ela não dá uma resposta à questão de por que ele teria axiomatizado a teoria de conjuntos. O que é importante perceber, neste momento, é que, dentro do âmbito da axiomática formal , o problema da axiomatização e da consistência estão intimamente ligados. O que Zermelo fez foi tirar proveito desta ligação para tentar obter a legitimação da teoria cantoriana de conjuntos. Ora, dentro da nova concepção da axiomática, a consistência era, antes de mais nada, um critério de verdade e de existência. 12 Obter uma prova de consistência de uma teoria axiomática de conjuntos, significaria, entre outras coisa, legitimar o conceito de infinito atual que, naquela época, era a grande questão ligada à teoria de Cantor. Uma prova de consistência do sistema das Jnvestigations equivaleria a uma demonstração da existência de conjuntos infinitos, o que, em um importante sentido, complementaria a tarefa iniciada por Zermelo com a obtenção do teorema de boa ordem, quatro anos antes, e poderia, eventualmente, fazer progredir a questão relativa ao problema da hipótese do continuo. 13 Desta forma, o conceito de axiomática formai se apresenta como sendo a categoria chave para se entender o real s ignificado das Jnvestigations. Isto significa, entre outras coisas, entender o trabalho de Zermelo de axiomatização da teoria de conjuntos a partir de uma perspectiva completamente distinta daquela que havia guiado Euclides na elaboração de seu livro Os Ele11 Assim, é possível ler no início das lnvestigations: " ... Ainda não consegui obter uma prova rigorosa da consistência dos meus axiomas, embora, isto seja de uma importância fundamental ... " (p. 200-1). 12 Esta é urna posição que Hilbert deixa bastante clara em sua correspondência com Frege a respeito de seu livro The Foundations ofGeometry. 13 O que, em um certo sentido, acabou acontecendo através dos resultados de independência de Gõdcl e de Cohcn.
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mentos. As conseqüências da adoção deste tipo de postura não são nada desprezíveis quando o que está em questão é o entendimento de certos aspectos conceituais do trabalho de Zermelo. O resultado é que, pouco a pouco, vai surgindo, na obra de Zermelo, uma concepção extremamente confusa acerca da natureza do método axiomático, bem como da finalidade de sua utilização. Tal confusão colaborou, de forma decisiva, para uma série de equívocos envolvendo esta noção e que iria se agravar, posteriormente, com o advento da noção de sistema axiomático formalizado. Assim, por exemplo, com a sua recusa em discutir a natureza e a origem dos axiomas da teoria de conjuntos, bem como com sua adoção da concepção formal 14 do método axiomático, Zermelo contribui para urna dissociação entre o método axiomático, de um lado, e o conceito de evidência, de outro. Um dos problemas que surge com este tipo de postura é quando o método axiomático é utilizado dentro de um contexto de fundamentação, como era o caso de Zermelo. Neste caso, é impossível não se apelar, em um momento ou outro, à noção de evidência. O resultado disto é uma postura completamente incoerente por parte de Zermelo que, ao mesmo tempo em que adotava a concepção formal do método axiomático (que havia expurgado completamente a noção de evidência da base do sistema), lançava mão da noção de evidência para justificar o emprego do axioma da escolha na demonstração do teorema de boa ordem. 15 Além disso, Zermelo vai se enquadrar dentro de um movimento muito forte, desde o início do século passado, e que iria conceber o método axiomático como sendo um instrumento de fundamentação, de justificação de teorias. O fato de se passarem sete anos entre a axiomatização da teoria de conjuntos e a primeira descoberta 16 de um resultado envolvendo a axiomatização de Zermelo parece ser bastante s ignificativo a este respeito. Posteri-
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Quando o termo formal é utilizado deve-se manter em mente o seu significado sempre como qualificador do novo tipo de concepção do método axiomático. Caso contrário, dúvidas de natureza extremamente elementares podem acabar surgindo. É claro que é possível atribuir um determinado significado à palavra formal, de tal forma que toda teoria matemática (ou mesmo empírica) é, em maior ou menor grau, formal. Além disso, formal e formalizada são dois qualificativos que, apesar de manterem uma relação bastante estreita entre si, devem ser, cuidadosamente, distinguidos. 15 Ver o artigo de Zermelo {1908, p. 187) 16 Em 1917, Hartog demonstrou que o princípio da tricotomia dos cardinais implicava o teorema de boa ordem.
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ormente, com o advento do programa formalista de Hilbert, este problema somente iria se agravar. O resultado disto foi uma dificuldade crescente de se entender as outras finalidades da axiomatização de uma teoria que não fosse a da sua legitimação ou justificação. E, finalmente, ao adotar a nova concepção de método axiomático em seu trabalho, Zermelo, involuntariamente, contribuiu, de maneira decisiva, para o surgimento, anos depois, da posição relativista defendida por Skolem durante toda a sua vida. O relativismo de Skolem foi gerado a partir de três pressupostos específicos: a crença de que uma teoria matemática deve ser apresentada, necessariamente, de forma axiomática; de que o método axiomático deve ser entendido de acordo com os preceitos da axiomática formal (o que se adequava particularmente bem ao seu estudo de modelos para a teoria de conjuntos); e, finalmente, a crença de que a lógica, de uma forma geral, deveria ser identificada com a lógica de primeira ordem. Esta última observação não deixa de ter relevância, uma vez que "os skolemitas" 17, para usar um termo de P. Benacerraf, continuam ocupando um lugar de destaque na discussão de várias questões filosóficas ligadas à lógica e à matemática. É de se esperar que uma revisão na forma de se entender a noção de sistema axiomático possa permitir o avanço de várias questões extremamente importantes nesta área. Questões ontológicas e epistemológicas ligadas à teoria de conjuntos, à relação da matemática com a lógica, da lógica com a teoria de conjuntos, bem como do estatuto da lógica de segunda ordem, são apenas a lgumas das questões cujo avanço dependem, de uma forma essencial, da melhor compreensão da noção de método axiomático, bem como de sua formalização. Entender, adequadamente, as concepções de Zermelo a respeito do método axiomático não deixa de ser um passo muito importante neste sentido.
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Skolcmita seria todo aquele disposto a sustentar teses do tipo: uma vez que nossas formalizações da teoria de conjuntos sempre possuem modelos enumeráveis elas não capturam o conceito de não-enumcrabilidade; uma vez que não possamos capturar tal conceito, através das axiomatizações de primeira ordem, tal conceito não existe, etc. (ver Bcnacerraf, p. 30-1 ).
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Arno Aurélio Viero
ton, A. & Stich, S. (eds), Benacerraf and His Critics. Oxford: Blackwell, pp. 9- 59. Cantor, G. 1955. Contribuition to the .Founding of the Theory of Transfinite Numbers. New York: Dover. Euclides. 1956. The Elements. New York: Dover. Frege, G. 1980. Philosophical and Mathematical Correspondence. (ed.) G. Gabriel, Chicago: The University ofChicago Press. Hilbert, D. 1971. The Foundations of Geometry. La Salle: The Open Court. Hilbert, D. e Bernays, P. 1958. Los Fundamentos de la Matematica. (manuscrito), trad. José Goldstein. Kleene, S. C. 1974. Jntroducción a la Metamatemática. Madrid: Tecnos. Moore, G. 1982. Zerme/o's Axiom ofChoice. Its Origins, Deve/opment, and lnjluence. New York: Springer-Verlag. Poincaré, H. 1906. " Les Mathématiques et la Logique". Revue de Métaphysique et de Mora/e, 13: 815- 35. Zerme1o, E. [1904) 1981. "Proofthat E very Set Can Be Weii-Ordered." In Heijenoort, J. van., (ed.). From Frege to Gode/. Cambridge: Harvard University Press, pp. 139-41. - - . [1908a] 1981. " lnvestigations in the Foundations ofSet Theory 1." In Heijenoort, J. van., (ed.). From Frege to Godel. Cambridge: Harvard University Press, pp. 199- 2 15. - -. [1908] 1981. "A New Proof ofthe Possibility of a Well-Ordering." In Heijenoort, J. van., (ed.). From Frege to Godel. Cambridge: Harvard University Press, pp. 183- 98.
GENTZEN Y EL PROBLEMA DE LOS FUNDAMENTOS DE LA MATEMÁTICA: DE LA FlLOSOFÍA A LA METAMATEMÁTlCA JORGE ALBERTO MOLINA
Universidade Católica de Pelotas
1. Tránsito de la Fundamentación filosófica de la Matemática a una
Fuodamentación interna de la Matemática Un filósofo actual. interesado en Filosofia de la Matemática, se encontrará probablemente con la situación siguiente: es probable que pueda enteder obras como Los Fundamentos de la Aritmética de Frege, y hasta quizás buena parte de los Principia Mathematica de Russell-Whitehead, así como las reflexiones de Wittgenstein sobre la Matemática contenidas en el Tractatus. Estamos suponiendo que nuestro hipotético filósofo tenga algún conocimiento de Lógica Simbólica y hasta podríamos suponer que conociera bastante de esa disciplina. Por ejemplo, podríamos atribuirle un conocimiento adecuado de lo que se denomina Lógica de primer orden. Pero, si nuestro hipotético filósofo intentara leer alguna de las obras que figurao en la Colección Estudios en Lógica y Fundamentos de la Matemática de Ia Editorial North-Holland, o si intentara abordar alguno de los artículos que han aparecido en los últimos treinta anos en el Journal of Symbolic Logic, o en general, si quisiera leer alguno de los múltiples trabajos sobre Fundamentos de la Matemática editados después de la 2" Guerra Mundial, en muchos casos, se encontrará con que no consigue entender lo que allí se expone. De hecho muchos de esos líbros y artículos no pareceo ser líbros de Filosofia, aún considerando el término ''Filosofia"en sentido amplio, sino simplemente libros de Matemática. Ya para entender esos trabajos no es suficiente conocer Lógica de primer orden sino también tener conocimientos de ramas de la Matemática como la Topologia. Intente el Jector de estas Hneas leer, si le es desconocido, el libro La Matemática de la Matemática de Rasiowa-Sikorski. Parece ser que la disciplina que llamamos Fundamentos de la Matemática ha dejado de pertenecer a la Filosofia para convertirse en una rama de la Matemática. En Frege encontramos referendas a toda la tradición filosófica. Frege discute y critica los términos de la..distinción kantiana entre enunciaMortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 33-47.
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dos analíticos y enunciados sintéticos, afirma que los enunciados de la Aritmética son analíticos en contra de Kant, pero coincide con Kant en que los enunciados de la Geometria euclideana están basados en la intuición del espacio y por consiguiente son sintéticos. También discute la tentativa leibniziana de derivar todos los enunciados de la aritmética del principio de identidad. 1 En Russell, en su obra Los Princípios de la Matemática, encontramos referencias a las concepciones de Kant, de Leibniz y de Frege.2 Este tipo de referencias filosóficas casi no se encuentran en los trabajos actuales sobre e! área conocida como Fundamentos de la Matemática. En lugar de referencias filosóficas encontramos referencias a otras disciplinas matemáticas. l,Cómo se dió este tránsito de una fundamentación filosófica de la Matemática a una fundamentación matemática de la Matemática misma, esto es, a una fundamentación interna de la Matemática, o a una autofundamentación, si se prefiere llamarla así. l,Cómo se llegó a la consideración de los Fundamentos de la Matemática, como una rama de la Matemática más, a! lado por ejemplo del Algebra o la Topologia? Este trânsito está ligado fundamentalmente a dos nombres: Tarski y Gentzen. Ellos son los que dieron impulso decisivo a dos de las teorias más importantes de la Lógica Matemática actual: La Teoria de Modelos y la Teoria de la Demostración. No son strictu sensu los creadores de estas dos disciplinas mas tuvieron un papel destacadísimo en su desarrollo. Al caracterizar de forma precisa el concepto de verdad en los sistemas formates, esto es, el concepto de verdad de una fórmula cerrada en un modelo 91, Tarski dió el impulso decisivo para la Teoría de Modelos. Y cuál fue el aporte de Gentzen? Éste está ligado a la demostración de la consistencia de la Teoria formal de números o aritmética formal. 2. El programa de Hilbert
Gentzen no fue el creador de la Teoria de la demostración. En verdad fue Hilbert, pero lo que Hilbert presentó de forma programática, fue Gentzen quien lo realizó. El programa de Hilbert consistia en justificar las diferentes teorias matemáticas por medio de una prueba de que, basándose en los axiomas de esas teorias, no se puede derivar una contradicción. Ese tipo de prueba se llama prueba de consistencia. El origen de las pruebas de consis1
Ver Frege, 1950. Cap I, parágrafo 5. Sobre Leibniz ver el capítulo I de Los Princípios de la Matemática, sobre Kant el capítulo LD, y sobre Frege el Apéndicc A de la misma obra.
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tencia está en Ia aparición de las llamadas Geometrias no euclideanas. Como estas Geometrias parecían no tener una interpretación fisica como si Ia tiene la Geometria euclideana, surgió Ia sospecha sobre si a partir de los axiomas de estas nuevas Geometrías no podria algún día demostrarse una contradicción, esto es un enunciado de la forma A " .A. 3 Era preciso pues encontrar una prueba de consistencia de estas Geometrias alternativas. Para realizar la prueba de consistencia de una teoría matemática era preciso, pensaba Hilbert, encontrar en primer lugar un sistema formal o formalismo r que representara a Un formalismo está compuesto por fórmulas y regias de inferencia que permiten pasar de una fórmula a otra. Dentro de esas fórmulas hay una clase de fórmulas escogidas que se llaman axiomas. Por este uso de sistemas formates, la fundamentación propuesta por la escuela hilbertiana de Matemática se conoce como fundamentación formalista, y la escuela hilbertiana es llamada escuela formalista. Decimos que en r demostramos (derivamos es el término técnico) una fórmula rp cuando a partir de los axiomas de r usando las regias de inferencia de r llegamos a rp. Qué quiere decir que derivamos rp en el formalismo r? Significa que podemos encontrar una secuencia de fórmulas A 1,A 2, ••• ,An tal que A11 = rp, y cada A;, i< n, o es un axioma de r, o se infiere de las anteriores usando alguna de las regias de inferencia propias de! formalismo. r en principio fue construído para representar a T, pero las fórmulas de r podrían ser interpretadas también de forma de simbolizar otra teoria matemáticaS distinta de r. En sí mismas las fórmulas de r no tienen significado, son meros signos. Lo que es importante destacar es que cualquier demostración que pueda realizarse en r debe poder ser representada por una derivación en el sistema formal r. Luego para demostrar la consistencia de T es suficiente probar que en r no puede derivarse ninguna fórmula dei tipo A "
r
r.
.A.
Hay dos formas de demostrar la consistencia de un sistema formal r. La primera consiste en encontrar un sistema formal ó. cuya consistencia ya haya sido probada, o cuya consistencia se acepte por el hecho de que el formalismo ó. represente una teoria matemática que tenga una interpretación física, y una función de traducción S entre las fórmulas de r y las fórmulas de ó., con la propiedad de que si A " ...,A es derivabJe en r entonces S(A) " -,S(A) es derivable en ó.. Tal prueba de consistencia se llama prueba de consistencia relativa. Fue una prueba de ese tipo la usada para probar la consistencia de las geometrias no euclideanas, relativa a la geometria euclideana. La otra 3
Sobre las interpretaciones filosóficas de las geometrias no euclideanas ver Torretti,
1984.
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forma de probar la consistencia de un sistema formal r consiste en considerar r en sí mismo, independientemente de otros formalismos, examinar la estructura de las derivaciones en r, y usando herramientas tan simples y formas de razonamiento tan evidentes que no puedan ponerse en duda, mostrar que en r no puede derivarse ninguna contradicción. Esos métodos son llarnados por Hilbert métodos fin itarios. Es razonable aceptar que para que la prueba de consistencia sea realmente significativa del punto de vista fundacional, ella deba ser efectuada usando modos inferenciales más simples que aquellos que el sistema formal r intenta expresar. Pero cuáles eran las teorias cuya consistencia se deseaba demostrar? Principalmente dos: el Análisis y la Teoria de Conjuntos. En el Análisis nos ocupamos con conjuntos cuyos elementos son conjuntos infinitos, porque cada número real puede representarse como un conjunto infinito de racionales. En la Teoría de Conjuntos nos ocupamos de conjuntos de conjuntos de números reates, esto es, conjuntos de conjuntos cuyos elementos son conjuntos infinitos. En general en la Teoria de Conjuntos podemos iterar tanto como deseemos la noción de conjunto y tener así conjuntos de conjuntos de conjuntos de conjuntos de... ad libitum. Sin embargo esta iteración irrestricta origioaba paradojas que ya eran conocidas por Hilbert, lo que colocaba en jaque toda la teoria. En cuanto ai Análisis resultaba más confiable que la Teoria de Conjuntos, no porque sus fundamentos fueran más confiables que los fundamentos de la Teoria de Conjuntos, sino por el hecho de tener aplicación en la Física. De cualquier modo faltaba tener la certeza de que algún dia no surgiria dentro del Análisis una contradicción. Sobre todo ya era discutido en la época de Hilbert el problema de las defmiciones impredicativas, un tipo de definciones en cierta forma circulares que son de uso ineludivel en el desarrollo del Análisis. Eran ese tipo de definiciones las que según Russell (y Poincaré) originaban las Antinomias de la Teoria de Conjuntos asi corno tarnbién las paradojas semânt icas, como la paradoja del mentiroso. 4 Era necesaria pues una justificación de ambas teorias, del Análisis y de la Teoria de Conjuntos. Hilbert afmnaba que tanto el Análisis como la Teoria de Conjuntos pertenecen a la parte ideal de la Matemática, esto es, a aquella parte de la Matemática que contiene elementos ideales. El término "elemento ideal" tiene su origen en las investigaciones de los algebristas sobre cuerpos numéricos. Al considerar un polinomio P(x) con coeficientes sobre un cuerpo a lgebraico F, puede suceder que las raíces de este polioornio no se encuentren en F, 4
El lcctor interesado en la cuestión de las definiciones impredicativas puede ver Poincaré.l946, Russell, 1908 y Molina, 1986.
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esto es que P(x), en la terminologia de los algebristas, no sea factorizable sobre F. Si .; es una raíz que no pertenece a F, esto es, si P(Ç) = O, podemos formar el cuerpo F(Ç), el menor cuerpo algebraico que contiene a F y a .;. Eo ese caso decimos que .; es un elemento ideal. As i, por cjemplo, x2 - 2 = O no tiene raíces en Q el cuerpo de los racionales. Formamos Q(..f2) el cuerpo cuyos elementos tienen la forma a + b..f2, donde a y b pertenecen a Q. ..f2 es un elemento ideal, agregado con la intención de hacer completamente factorizable e! polinomio x 2 - 2 =O. La geometria proyectiva nos da otro ejemplo de elemento ideal: el punto impropio y la recta impropia. Los geómetras querían mantener la vigencia dcl llamado principio de dualidad. Según ese principio si A es un enunciado verdadero que contiene los términos ''punto" y "recta", e! enunciado A* que resulta de sustituir " punto" por "recta" y "recta" por "punto" será también verdadero. Así, según este principio el enunciado verdadero "dos puntos determinao una única recta" debería transformarse en el enunciado "dos rectas se cortan en un único punto". Sin embargo este último enunciado no es siempre verdadero, ya que sabemos que las rectas paralelas no se cortan en ningún punto. Para salvar la vigencia de este principio de dualidad, se determina que las rectas paralelas también se cortan, en un único punto, el llamado punto impropio o punto ai infinito. La recta formado por los puntos impropios se Jlama recta impropia y también es un elemento ideal. Los elementos ideales, y las Teorias que los contienen son contrapuestas por Hilbert a las partes reales de la Matemáticas. Estas son dos: la aritmética elemental y la Geometria euclideana. Las partes reales son para Hilbert las partes confiables de la Matemática, aquellas que no precisao de una justificación por medio de una prueba de consistencia. Por el contrario son las Teorias ideales como la Teoria de Conjuntos y el Análisis las que precisao de una prueba de consistencia. Las Teorias ideales no son consideradas solamente para redondear las partes reales de la Matemática, sino también para facilitar la demostración de enunciados pertenecientes a la parte real de la Matemática. Puede suceder que una proposición F referente a la parte real de la Matemática no pueda ser demostrada por medio de un razonamiento que contenga solamente enunciados de la parte real, y que en su demostración sea necesario considerar enunciados pertenecientes a la parte ideal de Ia Matemática. Ilustraré esta situación mediante el ejemplo siguiente, que creo, ejemplifica el pensarniento de Hilbert: un problema tradicional de la geometria euclideana es el de la trisección del ángulo. Se trata de ver si en todos los casos es posible dividir un ángulo en tres partes iguales usando regia y compás. El enunciado "el ángulo rt/3 no puede ser dividido en tres partes iguales usando regia y compás" pertenceria, según Hilbert, a la parte real de
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la Matemática. Para demostrarlo se necesita de la Teoria de Galois, teoría algebraica de gran generalidad y que, por su naturaleza, puede ser considerada como perteneciente a la parte ideal de la Matemática. 5 Es así que no podemos prescindir de la parte ideal de la Matemática. Las regias de inferencia usadas en la parte real de la Matemática, son, según Hilbert, muy simples. Se reducen ai principio de inducción y a las regias de inferencia lógicas usadas en Ia parte constructiva de la Matemática. El conjunto de tales regias lógicas, da origen a una Lógica más débil que la Lógica clásica, ya que no contiene la regia de Reductio ad absurdum, esto es Ia regia expresada en e! siguiente esquema inferencial
(I)
ABS A
regia que permite inferir A derivando una contradicción a partir de suponer la negación de A. También en esta lógica más débil no está contenida la regia
(2) 3x B(x)
que permite afirmar la existencia de un elemento que satisface la propiedad B a partir de haber probado que no se da el caso que todo elemento no satisfaga la propiedad B.
3. Cómo entendía Gentzen el programa de Hilbert? Para Gentzen la controversia sobre los fundamentos de la Matemática envolvía dos diferentes concepciones sobre el infinito. Gentzen distinguía entre la Matemática actualista y la Matemática constructiva. 6 Estas dos divisiones coinciden con lo que Hilbert denominaba parte ideal de la Matemática y s Ver Stewart, 1973. Ver el artículo de Gentzen "Dic gegenwãrtige Lage in der mathematischen Grundlagenforschung". (Gentz.en, I 969, pp. 235-51 ).
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parte real de la Matemática respectivamente. En la Matemática actualista consideramos el infinito como una totalidad dada, en la Matemática constructiva lo consideramos solamente en sentido potencial. La distinción entre infmito actual e infinito potencial ya era tradicional entre los filósofos. Puede ser encontrada, por ejemplo, en Descartes y en Spinoza7, cuando ellos contraponen la intinitud de Dios a la infinitud de la serie de los números naturales. El infinito potencial es algo inacabado, algo a lo que se pueden agregar indefinidamente nuevos elementos. Por el contrario el infinito actual es algo acabado. Su infinitud, como la de Dios, no puede ser acrescentada por nada más. Según Gentzen estas diferentes concepciones sobre el infinito están a la base de la elección de determinadas formas de inferencia y del rechazo de otras. Así, por ejemplo, quien considere conjuntos actualmente infinitos, esto es, quien considere que pueden existir ya dados conjuntos infinitos, y razone sobre ellos, aceptará la evidencia de determinados esquemas inferenciales que son válidos para conjuntos finitos, dado que los conjuntos finitos son completamente dados. Así no dudará en aceptar el esquema inferencial
(2) 3x B(x) Habiendo demostrado que la suposición de que todos los elementos de un domínio infinito dado no tengan la propiedad P nos lleva a una contradicción, inferimos que en "algún lugar" de esa totalidad dada hay un elemento que tenga la propiedad P. Este modo de razonar que es válido cuando razonamos sobre conjuntos finitos parece aceptable ai razonar ahora sobre conjuntos infinitos, siempre que éstos se consideren como totalidades dadas. Pero si negamos la existencia de conjuntos actualmente infinitos, y pensamos lo infinito como algo potencial, y no dado, entonces el esquema inferencial (2) expuesto arriba deja de ser legítimo. Si fuéramos matemáticos puros, esto es, personas interesadas solamente en la Matemática, deberíamos quedamos con la Matemática constructiva y rechazar la Matemática actualista, afirma Wey1. 8 Pues la Matemática constructiva es la parte confiable de la Matemática, o usando la terminologia de 7
Princípios de la Filosofia, art.XXVU de Descartes y Etica 1, Escolio de la Proposición XV de Spinoza. 8 Weyl, H., 1931. Die Stufen der Unendlichen, p. 17.
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Hilbert, es la parte real de la Matemática. Pero debido a las múltiples aplicaciones de la Matemática actualista a la Física, y a la necesidad de usar enunciados de la Matemática actualista en la demostración de enunciados pertenecientes a la parte real de la Matemática, debemos intentar conservar la Matemática actualista. Sin embargo, para ello precisamos una justificación de la Matemática actualista. Esa justificación, piensa Gentzen dentro de los moldes dei programa de Hilbert, sólo puede obtenerse por medio de una demostración de la consistencia de la Matemática actualista. Pero esa demostración debe ser realizada usando los modos de inferencia aceptables dentro de la Matemática constructiva. 4. La prueba de Gentzen
El programa de Hilbert exigia que fuese demostrada la consistencia dei Análisis y de la Teoría de Conjuntos. Pero para realizar ese programa era preciso demostrar en primer lugar la consistencia de la Teoria Formal de Números también conocida como Aritmética formal clásica o Aritmética formal de Peano PA. En qué consiste esta Teoría? La Teoria Formal de Números es un formalismo que intenta representar la Aritmética elemental. Pero además de representar los modos de razonamiento propios de la Aritmética elemental, ella contiene todos los esquemas inferenciales aceptables dentro de Lógica clásica de primer orden, entre e!los los esquemas ( 1) y (2). En suma, PA se obtiene agregando a la Lógica clásica de primer orden: a) Los axiomas de Ia igualdad:
a=a a = b~b = a
a = b, b = c ~ a = c b) Los axiomas específicos de Ia aritmética de Peano:
a' = b' ~a = b -.a' = O a= b~ a'= b' c) El esquema de inducción completa, d) Las definciones recursivas elementales de suma y producto. Dentro de Ia prueba de consistenca de PA que deberá ser realizada dentro de la Matemática constructiva no podrán ser usados ni (1) ni (2).
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Gõdel demostró dos resultados que, según la opinión de Paul Bernays9, limitao por lo alto y por lo bajo el grado de complejidad de los argumentos que pueden aparecer en una prueba de consistencia de la Teoria Formal de Números. Esta prueba debe ser efectuada, como ya dijimos antes, dentro del âmbito de lo que Gentzen denominaba Matemática constructiva. Por lo bajo, los medios através de los cuales podemos efectuar una prueba de consistencia de la Teoría Formal de Números deben ser más complejos que aquellos que pueden ser representados en dicho formalismo. Esto es una consecuencia dei célebre Teorema de Gõdel que establece que la consistencia de la Aritmética formal no puede ser demostrada dentro dei propio formalismo. Como consecuencia de ello se deduce que no puede haber una prueba finitaria de la consistencia de PA dado que cualquier razonamiento finitario puede ser representado en PA. Luego una prueba de consistencia de PA no puede ser finitaria, pero por pertenecer a la parte constructiva de la Matemática debe contener métodos que se asemejen en algún sentido a los métodos finitarios. Esos métodos, usando la term inolgía de Gõdel, deben consistir de una extensión del punto de vista finito. Por lo alto, los medios de prueba deben ser menos complejos que aquellos expresables dentro de la Aritmética intuicionista. Esto último merece una aclaración. Podemos hablar de una Aritmética intuioionista que difiere de la clásica, entre otras cosas, por no aceptar como regias válidas de infe- , rencia los esquemas (I) y (2). A esa aritm ética intuicionista corresponde un formalismo, la llamada Aritmética formal intuicionista o Aritmética de Heyting HA. HA es como i>A, con la'diferencia de que en lugar de contener la Lóg ica clásica de primer orden, contiene la Lógica intuicionista de primer orden. 10 Consecuentemente los esquemas inferenciales (I) y (2) no son aceptados dentro de HA. Gõdel demostró que es posible construir una inyección ôde PA dentro de HA con la propiedad siguiente: si una fórmula A es demostrable (esto es, derivable) dentro dei formalismo PA, entonces ~A) será derivable dentro de HA. La inyección ô es la siguiente:
IJ.p) =p ~A A
B) =
~A) A ~B)
~-,A) = .~A) ~V'xA(x)) = V'x~A(x)) ~A 9
v B) =-,(-,~A) A
...,~B))
Ver Bemays, 1941. Para una exposición introductioria de los problemas filosóficos relacionados con la Lógica lntuicionista ver Molina-Legris, 1997. 10
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Jorge Alberto Mofina ~A :::> B) =-.(~A) 1\ -.9._B)) 9._3xA(x)) = -.(V'x--,~A(x))
De las propiedades de ô resulta que si una contradicción A 1\ -,A es derivable en PA su imagen ~A) 1\ -.~A) que es también una contradicción será demostrable en HA. Lo que equivale a decir que si PA no fuese consistente tampoco lo sería HA o, en otras palabras, PAes tan confiable como HA. El resultado de Gõdel desvanece así la suposición, en un tiempo bastante extendida, de que la aritmética intuicionista es más segura que la aritmética clásica. Ahora bien, qué significaria tener una demostración de la consistencia de PA usando los medios de razonar de la aritmética intuicionista?. Como todo razonamiento en la aritmética intuicionista puede ser representado en HA y HA no es más confiable que PA no habríamos, desde el punto de vista hilbertiano, ganado gran cosa. Según Bernays la prueba de Gentzen de la consistencia de la aritmética elemental debe situarse en un punto intermedio entre los métodos finitarios de Hilbert y los métodos de la matemática intuicionista, aunque Gentzen no fuese enteramente consciente de ello. Pero, l,existe en verdad ese punto medio entre los métodos finitarios y los métodos intuicionistas? Es claro que las ideas de Gentzen pareceo constituir una extensión dei punto de vista finito êle Hilbert. Lo que, sin embargo es dificil determinar es cuáles son las diferencias entre las ideas y métodos propuestos por Gentzen para demostrar la consistencia de PA y las ideas y métodos de los intuicionistas. Daremos un bosquejo de la prueba ofrecida por Gentzen sin entrar en los detalles. 11 Para probar la consistencia de la aritmética formal es suficiente probar que ninguna derivación fi en PA puede terminar coa la fórmula O = l. Gentzen asocia a cada derivación fi un número ordinal. Hay un proceso de reducción que transforma toda derivación f1 en una derivación con un ordinal menor. Se demuestra que si en toda derivación con ordinal a no aparece la fórmula O = I entonces en toda derivación con ordinal a + I no aparece Ia fórmula O = 1. De ahí, usando el principio de inducción transfinita inferimos que dada una derivación asociada con cualquier ordinal P ella no puede contener la fórmula O = 1. La prueba de Gentzen usa pues inducción transfinita sobre ordinales. l,Pero sobre qué ordinales? Justamente es ese uso del principio de inducción transfinita lo que parece objetable, y lo que hablaría en contra de la afirmación de Gentzen de que su prueba tiene 11 En verdad Gentzen presenta dos demonstraciones de la consistencia de la Aritmética formal de Peano PA. La primera se encuentra en Gentzen, 1936 y la segunda en Gentzen, I938b.
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un carácter finitario, o por lo menos que sus métodos extienden naturalmente los métodos finitarios. Aqui conviene hacer algunas precisiones. Generalmente se asocia la Teoria de los Números ordinales con ]a Teoria de Conjuntos de Cantor. Gentzen introduce los ordinales de forma independiente de la Teoria de Conjuntos, librándose así de aceptar la jerarquia cantoriana de conjuntos infinitos actuales. La definción inductmva de los ordinales propuesta por Gentzen es Ia siguiente: Definese la clase a0 cuyo único elemento es O. Además en esa clase se define la igualdad y la relación de menor dei siguiente modo: O = O y -,0 < O. Supongamos haber sido definida la clase ap y la relación de igualdad entre elementos de esa clase, así como la relación de menor entre dos elementos de esa clase. Esto es, supongamos haber definido cuándo dos elementos de <Tp son iguales y cuándo un elemento de esa clase es menor que un elemento de esa misma clase. La clase a p+ 1 está formada por todos los elementos de la forma 0Ja1 + 0Ja2 + ... a>a v donde cada ai está en <Tp y a 1 ~ a2 • .. a .. Podemos definir de manera puramente fÓrmal cuándo dos elementos p y r de a p+1 son iguales. Decimos que p = r si sus representaciones como sumas de potencias de a> coinciden. También podemos definir cuándo p < y. p < r si el primer exponente no coincidente de p es menor que e! correspondiente exponente no coincidente en r. Observamos que cada clase op está contenida en la clase <Tp+J· Si relacionamos los ordinales así definidos por Gentzen con los ordinales de Cantor podemos formar la siguiente tabla
ao = o a, = a> Oi = OJ(J)
a3 = (a>~(J)
y as! sucesivamente. Por ejemplo, la clase a 2 está formada por O, 1,2, ... a>, a>+- I, ... &2,0>2+ l , ... ai... EI ordinal limite de las cIases a, es denominado por los conjuntistas &o· Vemos entonces que la prueba de Gentzen usa inducción transfinita hasta &,. Si una inducción de ese tipo constituye una extensión natural de los métodos finitarios de Hilbert, como pensaba Gentzen, es asunto muy discutible. Hablarla en favor de Gentzen, el hecho de que él introduce los ordinales de forma puramente constructiva, sin precisar de la Teorfa de Conjuntos de Cantor que envuelve la aceptación de conjuntos infinitos actuales. Por otro lado, el conjunto de los ordinales usados en la inducción de Gentzen está
ar, ...
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bien ordenado, después de cada segmento de! conjunto viene un elemento también perteneciente a él que sigue inmediatamente ai segmento. Intuitivamente vemos que podemos alcanzar cada ordinal usado en la inducción de Gentzen en el proceso de recorrer ese conjunto desde su comienzo, del mismo modo que podemos alcanzar cualquier número natural ai recorrer el conjunto de los números naturales desde O. Así Gentzen puede decir que su demostración de la consistencia de la aritmética formal PA usa el tipo de razonamiento aritmético propio de los métodos finitarios, que se distinguen de los métodos geométricos usados en el Análisis. S. Métodos finitarios y métodos intuicionistas
Independientemente de cual sea el resultado de la evaluación sobre si encontramos una extensión de los métodos finitarios en la demostración de Gentzen de la consistencia de PA, podemos preguntarnos sobre la diferencia entre los métodos de demostración finitar ios y aquellos usados por los intuicionistas de la escuela de Brouwer. En el artículo "Sur les questions méthodologiques actuelles de la théorie hilbertienne de la démonstration" Paul Bernays intentó responder esta pregunta. Devemos decir que Gentzen no fue preciso ai intentar caracterizar esta diferencia. Hay algunas indicaciones de Gentzen en su artículo "Die Wiederspruchsfreiheit der reinen Zahlentheorie" sobre la diferencia entre el condicional intuicionista y el condicional fintario (Ver Gentzen [1 969] pp. 167-70). Es claro que los objetivos de la escuela de Hilbert y los de la escuela de Brouwer eran diferentes. En cuanto los matemáticos pertenecientes a la pri:mera escuela buscaban salvar toda Ia matemática clásica, aquellos pertecientes a la segunda escuela buscaban reformular toda la matemática eliminando aquellas partes de la matemática clásica, como la Teoría de Conjuntos, que no les parecfan ser contiables. El problema es determinar si aquella diferencia de objetivos, puede traducirse en una diferencia en cuanto a los métodos que deben ser empleados en una demostración matemática. Los intuicionistas no admiten expresiones del tipo \ixA(x) v ..., \ixA(x). Los formalistas ya ab initio evitao por principio emplear la negación de toda proposición general, así como su uso como antecedente de una proposición hipotética. En general para los finitistas la negación de una proposición tiene sentido si equivale a una proposición afumativa. Así la proposición -.3a,b,c,n > 2, a.b.c :t: O tales que cl' + b" =c", no tiene sentido finitario pues ella equivale a afirmar la existencia de una demostración cualquiera de \ia,b,c,n (si a.b.c :t: Oy n > 2 entonces d' + b" :t: c''). Por el contario, la aseveración de que en un sistema formal D existe una demostración (derivación)
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de \:fa,b,c,n (a.b.c ~O 1\ n > 2 ::> d' + b" ~c") tiene sentido afirmativo, pues dado un determinado sistema formal D podemos imaginar cual seria la posible estructura de una derivación II de la fórmula anterior. Bemays presenta un ejemplo para ilustrar la diferencia entre los modos de razonar de los formalistas de la escuela de Hilbert y de los intuicionistas. Considérese un sistema formal D que sea suficiente para la formalización de la Aritmética. Esto es cualquier demostración dentro de la Aritmética podrá ser representada por una derivación en el formalismo O. Supóngase además que (i) tenemos una demostración (metamatemática) de que el forma lismo D es consistente, esto es, en D no puede derivarse ninguna contradicción y (ii) tenemos una derivación II en D de la fórmula \:fx\:fy\:fz\:fn(x.y.z ~ O 1\ n > 2 ::> x" + j' i: i"). El siguiente razonamiento finitario probaría, según los formalistas, el teorema de Fermat: es suficiente demostrar que no pueden ser dados cuatro números p ,q,r,n (p,q,r > O y n > 2) tales que la ecuación p" + q" = /' sea verificada. Ahora bien, dado que O representa cualquier demostración aritmética, la verificación de aquella ecuación deberá poder ser representada en D. Es decir en D tendremos una derivación 1: cuya última fórmula será p" + q" = r". Por otra parte a partir del supuesto (i i) podemos deducir la fórmula p" + q" ~r". Luego en D se podría derivar una contradicción, lo que no puede ser en virtud del supuesto (i). Debemos concluir entonces que la ecuación p" + q" = r" no tiene solución para p.q.r ~ O y n > 2. Mas este último es justamente el enunciado del teorema de Fermat. Los intuicionistas no aceptarían una demostración como aquella expuesta en el parágrafo anterior. No verían la necesidad de recurrir al formalismo O. Con Abs F expresamos que una contradicción se sigue se suponer la verdad dei enunciado F del Teorema de Fermat. F expresa que cs imposible encontrar cuatro números p,q,r,n que estén en la relación G(p,q,r,n) definida así: cuatro números naturales p,q,r,n están en esa relación si y só lo si p.q.r ~ O, n > 2 y p" + q'' = r'. Tenemos entonces que
F ::> Abs G(p,q,r,n). Usando la regia de inferencia intuicionista
A ::> Abs B B ::> Abs A deducimos
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Jorge Alberto Mofina
G(p,q,r,n) ::::> Abs F aplicando la regia de inferencia intuicionista
A::::>B Abs B::::>AbsA obtenemos
Abs Abs F::> Abs G(p,q,r,n) Si por consiguiente Abs Abs F fuese intuicionistamente aceptable deduciríamos Abs G(p,q,r,n) que es justamente el enunciado F dei teorema de Fermat. Esta sería uma demostración dei Teorema de Fermat en concordancia con los modos de razonar aceptables desde un punto de vista intuicionista. Veamos las diferencias entre las dos demostraciones ofrecidas. La primera depende de la existencia de un formalismo D con las propiedades (i) y (ii). La segunda es más directa porque no precisa de hacer un rodeo por e! sistema formal D, depende solamente de haber demostrado (intuicionistamente) Abs Abs F.
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SOBRE LA IDEA DE UNA SEMÁNTICA PROCEDIMENTAL PARA LA INFERENCIA LóGICA ]A VlER L EGRlS
Universidad de Buenos Aires y Conicel
La investigación en inteligencia artificial realizada en los últimos aftos no sólo ha generado nuevos problemas y perspectivas en la lógica simbólica, sino que también ha repercutido en la manera de entender la relación de inferencia lógica o deductiva. Las constantes y la consecuencia lógicas pueden ser interpretadas en términos de una semántica procedimental, que se caracteriza por incluir mecanismos computacionales de control y procedimientos de búsqueda de demostraciones en el análisis semántico. En lo que sigue me voy a ocupar de este nuevo enfoque mostrando cómo se vincula con los análisis semânticos que parten dei concepto de demostración constructiva (u otro análogo) y con ideas de la ciencia cognitiva, que llevan a considerar a la lógica como la teoría de los procesos inferenciales deductivos. Finalmente, también llamaré la atención sobre algunos problemas que apareceo dentro de este enfoque.
El análisis de la relación de la consecuencia lógica es la tarea esencial de la filosofia de la lógica (la verdad lógica puede considerarse un caso límite de esta relación). Desde Aristóteles, esta relación ha sido tematizada de diferentes maneras. Se debe a Bernhard Bolzano la formulación , en su Teoría de la ciencia de 1837, de una caracterización de la consecuencia lógica que ejerció posteriormente una enorme influencia. Esta caracterización remitía a los conceptos de forma lógica y de constante lógica, y se servia del concepto de verdad, los cuales se convirtieron, por así decirlo, en los actores principales de la filosofia de la lógica contemporânea. La consecuencia lógica era aquella relación que transmitia la verdad de un conjunto de enunciados a otro enunciado. En la década de 1930, Tarski, de manera independieote, reformuló esta idea de forma más sistemática, con relación a lenguajes formalizados, y, utilizando herramientas algebraicas y de la teoría de conjuntos, desarrolló su concepto de modelo o realización dando lugar a la teoria de Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analltica. Florianópolis: NEL, pp. 48-60.
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modelos (véase, por ejemplo, Tarskj 1936), que acepta el uso de princípios matemáticos no constructivos. La concepción propuesta por Bolzano estaba dentro de la una tradición objetivista que se continuaria también en Tarski. La relación de consecuencia lógica podía ser caracterizada con independencia de sujetos de conocimiento y sus procesos inferenciales. La dis.cusión semântica recurría a conceptos ontológicos. De todos modos, toda teoría de la coosecuencia lógica debe ser coherente con los diferentes métodos que los sujetos de conocimiento utilicen para afirmar y justificar que un enunciado es consecuencia lógica de otros. Estos métodos que estructuran los procesos inferenciales de sujetos de conocimientos dan lugar a demostraciones. En el caso de la lógica moderna, estos métodos de demostración se han sistematizado en sistemas de deducción relativos a lenguajes formates que constao esencialmente de regias y respecto de los cuales se definen relaciones de derivabilidad (versión dei concepto de demostración relativo a sistemas específicos). La determinación de las propiedades de esta relación de derivabilidad formal en los diferentes sistemas se convirtió en la tarea central de la teoria de la demostración. Ahora bien, hay un sentido en el que se habla de consecuencia lógica en el cual la mera preservación de verdad no es suficiente para afirmar la existencia de una relación de consecuencia lógica entre un enunciado y un conjunto de enunciados. Se pretende además haber comprendido o entendido que efectivamente se puede afirmar la existencia de esa relación de consecuencia lógica. Por ejemplo (y el ejemplo está pensado a propósito, véase Prawitz 1978, p. 26), nadie concederia que el teorema de Fermat es consecuencia de los axiomas de Peano para la aritmética, incluso en el caso de que el teorema de Fermat sea realmente una verdad aritmética (lo que, ai parecer, no se ha podido determinar todavía). Se exigiria además una demostración de tal hecho, que permitiera un entendimiento dei mismo (demostración que no está relativizada a un sistema formal). Este sentido de consecuencia lógica tiene también una larga historia, y sus orígenes bien pueden encontrarse en la caracterización aristotélica de la lógica como ciencia demostrativa (Anal. Pr. I 124al0). No obstante, los primeros esbozos de una presentación sistemática se encuentran en las condiciones de demostrabilidad propuestas por Arendt Heyting en relación con la fundamentación de la lógica intuicionista y en la "lógica de problemas" de Andrei Kolmogorov. En ambos autores se encuentran las bases para desarrollar una semántica constructiva. En síntesis, hasta aquí quedao claramente delineadas dos tradiciones diferentes en cuanto a la justificación fi losófica de la consecuencia lógica.
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Una es la semântica de raigambre tarskiana, afin a justificaciones ontológicas y vinculada en el plano formal con la teoría de modelos. La otra es la semântica oonstructiva, afio a justificaciones gnoseológicas de Ia consecuencia lógica y vinculada en el plano formal con la teoría de la demostración. La mayor parte de la discusión filosófica en torno de la consecuencia lógica se ha desarrollado, puede decirse, dentro de estas dos tradiciones. La suscripción a una u otra tradición depende de Ias propias convicciones filosóficas acerca de las herramientas metateóricas que se adopten. Puede decirse que la tradición tarskiana admite un ámbito de verdades que está más aliá de los limites de las capacidades cognoscitivas humanas. Por el contrario, la segunda tradición no se expide ai respecto, sino que se limita a la obtención de verdades efectivamente asequibles por medio de los métodos de demostración a disposición de los seres humanos. La verdad queda ligada a los métodos de demostración.
H En nuestra época, gracias a los avances de Ia lógica matemática, se pudo cumplir el "sueõo de Leibniz" de desarrollar "máquinas de razonar" que fueran realizaciones concretas de un ca/culus ratiocinator. Los sistemas deductivos pasan a estar ''realizados", por así decirlo, en estas máquinas que poseen determinados procedimientos computacionales. Las deducciones o demostraciones en los sistemas deben llevarse a cabo, entonces, de una manera efectiva, bajo la forma de algún algoritmo y conforme a los recursos de los que disponga la máquina. Esto lleva a tomar seriamente en cuenta, además de los métodos de demostración según diferentes sistemas deductivos, los mecanismos de búsqueda que permiten a Ia máquina construir efectivamente demostraciones. Aqui juegan un papel importante aspectos como la fàctibilidad y la eficiencia y conceptos cuantitativos de constructibilidad. (La situación es análoga a Ia que preseota la "matemática computacional", en la que, por ejemplo, es importante especificar aquellas funciones computables que sean realmente fàctibles.) Todas estas cuestiones que se acabao de mencionar pueden agruparse genéricamente bajo el rótulo dei problema de la automatización de la deducción, y la solución de este problema es la tarea de la deducción automática, considerada como una disciplina dentro de la inteligencia artificial. El fundamento de la deducción automática está dado por el corpus teórico de la teoria de la demostración. Esto se hace evidente a través de los siguientes hechos. En primer lugar, la teoria de la demostración estudia el proceso de razonamiento (representado en el desarrollo de una derivación
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formal) y no meramente el resultado de ese proceso que son los teoremas, de modo que importa especialmente cómo se llega ai resultado que son los teoremas. En segundo lugar, los sistemas formates que se proponen y se analizan en la teoría de la demostración pretendeo además representar formalmente el "conocimiento lógico", por así decirlo, que tienen los razonadores naturales (los seres humanos). Estos dos rasgos se perfilan muy nítidamente en, por ejemplo, los sistemas de secuentes y de deducción natural debidos a Gerhard Gentzen. En definitiva, son estos dos rasgos los que condujeron a la teoria de la demostración a formular sistemas cuyas demostraciones fueran normales (canónicas), es decir demostraciones elementales e irreductibles para todo teorema, y este es el sentido dei célebre Hauptsatz o teorema fundamental de Gentzen. Y también son los que la condujeron a elaborar métodos puramente mecânicos de demostración y refutación para los teoremas de la lógica de primer orden, y este es el sentido del teorema de Herbrand. Como es sabido, los resultados de indecidibilidad obtenidos en la década de 1930 por Alonzo Church, entre otros, hacían imposible la construcción de algoritmos que decidieran si una derivación en la lógica de predicados de primer orden es correcta o no. Sin embargo, el teorema de Herbrand mostraba la posibilidad de construir un algoritmo para demostrar que toda derivación válida efectivamente lo es. Ahora bien, la teoria de la demostración no tematizaba los procesos de búsqueda de demostraciones en sistemas formates específicos; tan sólo se hacían vagas referencias a ellos, de carácter puramente intuitivo. Es decir, no se indicaban de manera explícita y formal las estrategias a seguir en cada caso ni se indicaban órdenes de aplicación de las regias dei sistema en cuestión. Todo esto quedaba librado a la inventiva de quien hiciera uso dei sistema. Sin embargo, desde el punto de vista de una máquina de razonar, la mera posesión dei sistema formal, dado por el conjunto de regias (y, eventualmente, axiomas), a partir de los cuales se define el concepto de derivación en el sistema, no son condición suficiente para poder efectuar demostraciones. Esto se hace evidente, por ejemplo, en sistemas de deducción natural, donde sin una guía para efectuar demostraciones, las regias no aseguran en absoluto llegar ai objetivo deseado. En general, sucede que un conjunto de regias no suministra un algoritmo de demostración, ya que no establece el orden en que deben ser aplicadas las diferentes regias. Es sabido que a partir de un sistema de regias, se puede producir una pluralidad de derivaciones. Sin embargo, puede construirse un algoritmo que conste de las regias dei sistema de deducción, junto con un conjunto de instrucciones que especifique el
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orden de aplicación de regias. Este algoritmo constituirá un mecanismo automático de demostración dei que dispondrá la máquina. Con el fin de ilustrar el problema, daré un ejemplo de una derivación que emplea secuentes múltiples. Tomaré el sistema de secuentes para la lógica de prirner orden tal como aparece en Gentzen 1935. Los secuentes son expresiones de la forma
A., ... ,Am : B., ... ,B,., siendo A J. ...,Am,B ., ...,Bn fórmulas dei lenguaje de primer orden. Supóngase que se quiere demostrar el secuente (I) Pa v Pb: 3xPx
y supóngase además que se emplea un método reductivo o analítico de derivación en el cual se parte dei secuente que se quiere demostrar llegando, mediante las regias del sistema (concebidas de manera invertida), a los secuentes básicos (de la forma A: A). La obtención del secuente final (1) implica una eleccióo del orden de las regias a emplear. En efecto, se puede proceder aplicando primero la regia de introducción del cuantificador universal en el antecedente o la de introducción de la conjunción en el sucedente. Si se elige este último camino se obtiene la derivación
Pa:Pa Pa: 3xPx
Pb :Pb Pb: 3xPx
Pa v Pb : 3xPx, la cual al terminar en secuentes básicos, constituye una demostración de (1). No obstante, si se adopta el primero de los caminos, se obtiene la derivación
Pa:Pb
Pb :Pb
Pav Pb: Pb Pav Pb: 3xPx que, ai no llegar en ai menos un caso a un secuente básico, no es una de-
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mostración de {1). Como consecuencia, la adopción de este orden en la aplicación de las regias podría llevar a la falsa impresión de que el sistema de secuentes es incompleto respecto de la lógica clásica de primer orden. Debe observarse que la posibilidad de esta derivación incorrecta no se da si se emplea un método sintético, que parte de los secuentes básicos para llegar ai secuente a demostrar, pues, junto con la regia estructural de contracción, se obtiene la siguiente derivacmón
Pa:Pa
Pb :Pb
Pav Pb: Pa, Pb Pa v Pb : Pa, 3xPx Pa v Pb : 3xPx, 3xPx Pav Pb: 3xPx que constituye una derivación de {1). Sin embargo, la derivación exige el empleo de regias estructurales mientras que la anterior no, y, además, la automatización de un método sintético presenta, en comparación con la de un método analítico, un número mayor de dificultades {debido a que no parte de un objetivo que se pueda descomponer unívocamente). Claramente, lo que está en discusión aqui es la permutabilidad de las regias dei sistema de secuentes. En realidad el problema no era desconocido dentro de la teoria de la demostración, y, de hecho, se propusieron cambios en la formulación de las regias cone! fin de solucionarlo {véase la discusión en Curry 1952). De todos modos, nunca se consideró que el sistema originario de Gentzen fuese incompleto ni se puso eu duda que sirviera para caracterizar enteramente la lógica clásica de primer orden. Pero, lo cierto es que, tal como muestra el ejemplo, estipulaciones diferentes para la aplicación de regias y la adopción de diferentes métodos de derivación sobre la base dei mismo sistema de regias, puede hacer que un sistema deje de caracterizar una lógica determinada. El hecho de que e! problema pueda mostrarse fácilrnente en el contexto de derivaciones secuenciales es particularmente revelador, pues los sistemas de secuentes han mostrado ser muy aptos para analizar la estructura de demostraciones y para formalizar el modo en que los razonadores naturales realizao demostraciones. En resumidas cuentas, entonces, debfan especificarse mecanismos de búsqueda de demostraciones, lo que implica cosas como un indicar un orden
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en la aplicación de regias. De acuerdo con esto, debería diseõarse una heurística para la búsqueda de demostraciones, es decir un método práctico que para el caso de un teorema determinado permita seleccionar la aplicación de regias que permite construir una demostración (y, cabría agregar, la demostración más breve). Pero, más aun, los procedimientos de búsqueda deberían quedar totalmente determinados, dando lugar a un algoritmo para generar demostraciones. Por ejemplo, en e! caso recién visto, una solución consiste en establecer relaciones de interdependencia entre las constantes de individuo, de modo que no pueda aplicarse irrestrictamente la regia de introducción del cuantificador existencial en el sucedente (véase Wallen 1990). De este modo, el sistema deductivo debe quedar caracterizado por el conjunto de sus regias y un algoritmo de demostración, pasando a ser sistemas automáticos de demostración. Sistemas de este tipo han sido denominados sistemas algorítmicos de demostración por Dov Gabbay (véase Gabbay 1994a, p. 185). Cada conjunto de regias puede dar lugar a una ilimitada cantidad de sistemas algorítmicos. A su vez, cada sistema algorítmico de demostración genera los teoremas de una lógica determinada, la cual puede ser expresada mediante una relación de consecuencia. Gabbay defme un sistema algorítmico de demostración como un par ,s), donde :1... es una relación de consecuencia formalmente caracterizada y S un sistema para la lógica definida por esa relación de conscuencia. Cambios en el algoritmo pueden hacer que el sistema no genere todos los teoremas de esa lógica (incompletud) o genere teoremas de otra lógica (divergencia).
e.
IIl
En tomo de las consideraciones que se acabao de hacer, puede analizarse también el caso de la programación lógica. La idea central de la programación lógica consiste en ver a la lógica de primer orden (o fragmentos de la misma) como un lenguaje de programación. Así, un programa estaria formado por un conjunto de enunciados y los mecanismos computacionales efectuarían inferencias lógicas. En este aspecto, la programación lógica difiere de la programación tradicional, que considera a un programa como un conjunto de instrucciones. Ellenguaje de programación lógica por excelencia es Prolog (apócope de ''programación en lógica"). No es difícil ver en quê medida Prolog explota ideas de la deducción automática. Pero obviamente no se trata de un demostrador de teoremas, sino de un /enguaje de programación cuya peculiaridad consiste en que las computaciones que efectúa se interpretao como inferencias lógicas. Las regias de inferencia adoptan la forma, entonces, de regias
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de computación. Así, Prolog no es otra cosa que la inferencia lógica automatizada. Un programa Prolog está formado por un conjunto de expresiones que representa un tipo de enunciados llamados cláusulas, y además un conjunto de instrucciones para efectuar inferencias que es llamado el intérprete Prolog. Las preguntas que el intérprete responde afirmativamente son consecuencias lógicas del programa. La aplicación de estas instrucciones o regias de computación debe darse en un orden que está predeterminado y en el lenguaje deben incorporarse ciertos procedimientos con el finde representar información de control acerca de cómo se llevan a cabo las computaciones, limitándolas. Esto es lo que denomina contrai. Así, Prolog es una aplicación de la deducción automática: el mecanismo computacional tiene un componente lógico y otro de control, de modo que cristaliza computacionalmente un sistema algorítmico de demostración, en el sentido de Gabbay. Este es el significa de la conocida ecuación formulada por Robert Kowalski: Algoritmo= Lógica + Computación, donde por "algoritmo" se entiende aqui el procedirniento computacional de un lenguaje de programación lógica (véase Kowalski 1979, p. 125). Ahora bien, los aspectos ligados al control afectan seriamente la lógica que Prolog pretende reflejar computacionalmente. Una breve muestra de ello la da el siguiente programa Prolog, cuyas cláusulas son:
(PI) p. (P2) p :-p.
p se interpreta como un enunciado atómico cualquiera y el símbolo :- es un símbolo incorporado de Prolog que se puede interpretar como una versión computacional del símbolo secuencial, pero invertido en el orden. Una cláusula de Prolog de la forma
q :- pl, ... ,pn. se puede hacer corresponder con el secuente singular pl,...,pn: q.
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Dado este programa y frente a la consulta acerca de si p se sigue del programa, el intérprete Prolog responde afirmativamente, tal como es de esperar, si Prolog reproduce al menos características fundamentales de la lógica clásica. (En efecto de los secuentes : p y p : p se deriva p mediante aplicación de la regia de corte.) Si se invierte el orden de las cláusulas, se obtiene el nuevo programa P' (P'I) p :-p. (P'2) p. y puede comprobarse que, frente a la misma consulta, Prolog entra esta vez en un loop, no comportándose de la manera deseada. Sin entrar en detalles acerca de los procedimientos computacionales de Prolog (los que, justamente, se corresponden con la regia de corte), puede decirse que este comportamiento no esperado de Prolog tiene su causa en Ia manera en que Prolog "lee", por así decirlo, Ias cláusulas de un programa y opera sobre ellas. Las versiones usuales de Prolog permiten que una cláusula sea leída más de una vez, produciendo un círculo en la lectura de las clásulas dei programa P'. En otras pai abras, Prolog puede ''volver hacia arriba" en la lectura de las cláusulas. El problema podría solucionarse haciendo que Prolog lea las cláusulas en una única dirección, de arriba bacia abajo, sin poder volver atrás. Sin embargo, en ese caso apareceo otros problemas. Tómese el siguiente programa
P" (P"l) q :- p. (P"2) r. (P"3) p :-r. Frente a la pregunta acerca de si q se sigue del programa, el intérprete Prolog, modificado de la manera recién indicada, responderia negativamente, contrariamente a lo que sería deseable (y esperable), ya que luego de leer la cláusula (P"2), Prolog no puede volver sobre la cláusula (P"l) (véase Gabbay l994b, pp. 395 y ss.). Problemas como estos conciemen exclusivamente ai control y han dado lugar a lo que Gabbay ha designado como "lógica de la prioridad" (priority logic, véase Gabbay loc. cit.). Se ha argumentado que también la negación en Prolog debe entenderse únicamente en términos de los mecanismos de control (véase, por ejemplo, Gillies 1996, p. 91 ). En general, entonces, resulta que la lógica computacionalmente cristali-
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zada que es Prolog muestra la necesidad de especificar aspectos dei control de la información ai caracterizar un sistema lógico. Así, podría decirse que Ia lógica es inferencia más control (una idea semejante se encuentra en Gillies 1996). Esta idea se acerca a la tesis de Oabbay de que un sistema lógico se define en función de una relación de consecuencia y un algoritmo de demostración y resume bien lo que he planteado hasta ahora en los dos casos de la deducción automática y de Ia programación lógica. La pregunta que queda por responder es en qué medida estas tesis repercuten en Ia concepción filosófica de Ia inferencia deductiva. IV
Los comentarios que se acabao de hacer en tomo de la deducción automática y Ia programación lógica sugieren la idea de lo que puede denominarse una semántica procedimental para Ia relación de consecuencia lógica, en la cual esta queda caracterizada en términos de regias de computación. En ellenguaje Prolog mismo encontramos un ejemplo de esta idea. Las regias de Prolog, de la forma
se interpretao procedimentalmente del s iguiente modo: Si se quiere establecer el subobjetivo de demostrar B, demuéstrense primero los subobjetivos A~, ... ,A,. Entendida filosóficamente, esta semántica está claramente emparentada con la segunda de las tradiciones mencionadas ai comienzo, a saber, Ia tradición de Ia semântica constructiva basada en el concepto de demostración. Más aun, podría decirse que es heredera de esta. Hay varias razones que avalan esta afirmación. Antes que nada, es inmediata la asignación de un carácter constructivo de cualquier procedimiento aigorítmico (y esta sería una razón bastante obvia, pero no la más interesaote). Las demostraciones algorítmicas, como las que realiza un demostrador de teoremas son casos ejemplares de demostraciones constructivas. No seria posible que la máquina demostrara de una modo no constructivo. Además, en esta concepción procedimental los procesos inferenciales constituyen una forma de obtener información a partir de información dada, de modo que tienen un claro valor cognoscitivo. En efecto, las máquinas de razonar son un tipo de máquinas inteligentes. Es usual pensar que estas máquinas tienen un conocimiento de su entorno, expresado mediante con-
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juntos de enunciados. Este sería un conocimento declarativo (véase Nilsson 1991, pp. 38). Cada estado de la máquina estaría dado por un conjunto de enunciados. Las transiciones entre un estado y otro está dado por funciones que le permiten manipular símbolos, tomar dccisiones c intcractuar con el medio ambiente. Este sería un conocimicnto procedimental. Dentro de este conocimiento procedimental se ubican los mecanismos inferenciales. La máquina, ai emplear sus procedimientos de inferencias para obtener un enunciado, hace algo que se interpreta como unajustificación de ese enunciado. Dicho de otro modo, la relación de consecuencia lógica se caracteriza de manera relativa a un agente de conocimiento. Ahora bien, (,CO qué sentido podría decirse que la máquina debería "entender" el significado de las constantes lógicas? La máquina debería hacerlo en términos de las instrucciones que Je permiten construir demostraciones. Una vez más, la idea de una intuición que le permita acceder a métodos de demostración no constructivos le debería ser ajena, imposible incluso. De todos modos, deben distinguirse aquí algunos matices y deben seí'lalarse algunas dificultades importantes. En primer lugar, pareciera aqui que esta concepción procedimental es una variante de la concepción sintactista acerca de la relación de consecuencia lógica, pues se la caracteriza en relación con un sistema concreto de regias y procedimientos (los que caracterizao a la máquina), es decir, se la caracteriza en relación con un lenguaje de programación determ inado. Como es sabido, la concepción sintactista define la consecuencia lógica como derivabilidad en un sistema formal, con las serias conocidas lirnitaciones que esto acarrea, y además deja de lado aspectos relativos ai contenido de los enunciados, lo que parece contrario a la idea misma de una semântica. En realidad, la concepción procedimental debe formularse en términos gcnerales, sin depender de un lenguaje de programación determinado y a la manera de una teoria acerca dei concepto de demostración algorítmica o efectiva. E! problema es semejante ai que se plantea entre la teoría de la demostración y la semántica constructiva. Quico pretende dar una semântica basada en el concepto de demostración no desea limitarse a un sistema formal determinado, sino construir una teoria acerca dcl concepto de demostración. Esto originó una ''teoria acerca de demostraciones" (en el sentido propugnado por Georg Kreisel) o una "teoria general de la demostración" (en el sentido de Dag Prawitz), las cuales se inspirao en las ideas de Arendt Heyting y Andrei Kolmogorov mencionadas más arriba, y también en las ideas de Gerhard Gentzen acerca de definir las constantes lógicas en términos de regias de inferencia (véase ai respecto Legris 1996).
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Siguiendo esta comparación, se trata aquí de desarrollar una teoría algorítmica general de la demostración, que debería dar condiciones y procedimientos generales acerca de la construcción de demostraciones antes de dar regias para las constantes lógicas. El programa recuerda bastante a la "lógica operativa" de Paul Lorenzen (véase Lorenzen 1955), donde se considera una serie de regias "protológicas" referidas a un "operar esquemático" (inversión de regias, inducción, etc.) que son anteriores a la formulación de toda regia lógica; algo así como sus "condiciones de posibilidad". Por ejemplo, estas condiciones deberfan ~onsiderar el problema de la necesidad de un orden o prioridad en la aplicación de regias de cierto tipo lo cual daría apoyo, por ejemplo, a la idea de una temporalidad previa a (como "condición de posibilidad" de) toda demostración. Obviamente, en la medida en que cambiara el concepto de algoritmo tarnbién cambiaria esta semântica procedimental. En resumen, esta concepción procedimental trae como novedad que no basta formular regias para las constantes lógicas a fin de caracterizar plenamente la relación de consecuencia lógica, sino que es necesario explicitar además operaciones y procedimientos externos a la lógica. La consecuencia lógica así caracterizada seria la consecuencia lógica de cualquier ser inteligente. Sin embargo, naturalmente surge aquí la pregunta de si este concepto de consecuencia lógica agota todas las posibilidades de inferencia deductiva. Por ejemplo, puede plantearse el caso de inferencias deductivas que no satisfagan el requisito de compacidad. Los límites aquí establecidos son los límites de la demostración algorítmica (tal como están indicados en el teorema de Herbrand), de modo que el concepto que corresponde discutir es el concepto mismo de algoritmo.
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A INTRODUÇÃO DA IMPLICAÇÃO EM CÁLCULOS AXIOMÁTICOS ABERTOS ARTHUR B UCIISBAUM
Universidade Federal de Santa Catarina
T ARCISIO P EQUENO Universidade Federal do Ceará
l. Introdução Podemos observar dois tratamentos clássicos distintos dados em Lógica para a implicação material: 12) a regra para a introdução da implicação não apresenta restrições, mas existem limitações para a introdução do quantificador universal e outras regras análogas, como se dá nas lógicas ditas fechadas [1,3,4,5]; 22 ) a introdução da implicação é feita com restrições, mas há liberdade incondicional para a introdução do quantificador universal e outras regras análogas, como ocorre nas lógicas ditas abertas [6,7,9]. A primeira abordagem tem sido adotada em sistemas de dedução natural [3,8] c cálculos de scqüentes [4], enquanto que a segunda, por questões de elegância, tem sido vista em cálculos axiomáticos abertos1 [6,7,9]. As formulações para o Teorema da Dedução referentes a cálculos axiomáticos, representando lógicas abertas, que temos encontrado na literatura, padecem de algumas deficiências, tais como: • •
uso explícito do conceito de demonstração, ao invés de uma idéia de nivel mais alto versando sobre conseqüência sintática; falta de um rastreamento adequado que acompanhe o uso de objetos variantes em regras de generalização, dificultando possfveis reaplicações do Teorema da Dedução após uma primeira aplicação.
1
Os cálculos axiomáticos fechados não são convenientes para representar lógicas possuindo objetos variantes distintos de variáveis, tais como as lógicas modais.
Morta ri, C. A & Outra, L. H. de A (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 61-75.
62
Arlhur Buchsbaum e Tarcisio Pequeno
Além disto, consideramos essencial , para uma compreensão mais profunda deste assunto, um levantamento c estudo das propriedades básicas das relações de conseqüência envolvidas. Descobrimos, neste estudo, duas relações de conseqüência relevantes. com sistemas distintos de rastreamento para objetos variantes, chamadas adiante de "dependência" e de " sustentação", as quais, sob certas condições que estabeleceremos a seguir, são equivalentes, e daí podemos utilizar as propriedades relevantes de ambas. Estabelecemos uma série de resultados concernentes a objetos variantes e introdução da implicação, para cada uma das classes de cálculos axiomáticos abordadas. Damos a seguir dois exemplos de formulações do Teorema da Dedução, comumente encontradas na literatura, que sofrem dos defeitos citados: • "Para o cálculo de predicados (ou o sistema formal da teoria dos números), se r,A B, onde as variáveis livres na suposição A são mantidas constantes, então r f- A--)' B." Conforme [6, p. 97]. • "Se r ,A f- B, onde, na dedução, nenhuma aplicação de Gen 1 em urna fórmula que dependa de A tem como sua variável quantificada uma variávcllivre em A, então r f- A--)' B." Conforme [7, p. 63]. Neste trabalho encontramos formulações para o Teorema da Dedução que superam os problemas citados, em urna generalização abrangendo um amplo espectro de lógicas.
r
2. Variação, Dependência e Sustentação Deste ponto em diante, consideramos C um cálculo axiomático, a.,f3;y fórmulas em C, e r,s,ç coleções de fórmulas em C; as mesmas convenções continuam valendo se usarmos os sinais citados acrescidos de índices ou plicas. Pré-Definição 2.1: Para cada aplicação de uma regra de inferência r em C, consideramos como previamente conhecidos os objetos variantes em C desta aplicação. Se r é uma regra em C cujas aplicações não possuem objetos variantes, dizemos que r é uma regra constante em C, caso contrário dizemos que r é uma regra variante em C. Dizemos que o é um objeto variante em C se existe uma aplicação de uma regra em C tal que o é mn objeto variante desta aplicação. Consideramos também como previamente conhecido quando um objeto variante o é livre em urna dada fórmula a.; e quando a. está 1
Gen é a regra de generalização para a quantificação universal, adotada
em [7].
A Introdução da Implicação em Cálculos Axiomáticos Abertos
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no escopo de o. Se C é um dos cálculos quantificacionais definidos neste trabalho, antecipamos que toda variável em C é um objeto variante em C. As seguintes condições adicionais devem ser cumpridas: • •
o número de objetos variantes de toda aplicação de alguma regra variante em C é finito e não vazio: todo objeto variante de uma aplicação de regra variante não é livre na conseqüência desta aplicação.
Exemplo 2.2: Na prática, encontramos os seguintes objetos variantes: • variáveis usadas na quantificação universal; O Exemplo: x é um objeto variante da aplicação da regra da ge. l vxa nera lização uruversa : • variável "oculta" usada na introdução de conectivos associados a modalidades tais como necessidade, plausibilidade cética [2, capítulo 5], etc.; a mesma pode ser indicada pelo próprio sinal introduzido pela regra; O Exemplo: "n" é o objeto variante da regra
-.!f--
;a.
Definicão 2.3: Seja V = (a••... ,<X.n) uma demonstração em C. Dizemos que O.i é relevante para a.j em 'D (i,j E {l, ... ,n}) se uma das seguintes condições for cumprida: • i = j e a.j é justificado em V como uma premissa; •
a J é justificado em V como uma conseqüência de uma aplicação
f3t,~,~p
de uma regra em C e existe uma hipótese da aplicação
(k E { 1, ... ,p}) tal que a.i é relevante para Definição 2.4:
J3k em
J3k
V.
Dizemos que uma demonstração V em C depende de uma
1t de objetos variantes se 1t contém a coleção dos objetos variantes o de aplicações de regras em V possuindo alguma hipótese na qual o seja
coleção
livre tal que há uma fónnula, justificada em V como uma premissa, na qual
o também seja livre, relevante em V para esta hipótese. Se existir uma der tal que esta dependa de 'V; dizemos que a. depende de 1t a partir de r em C, e notamos isto por r ft- a. Se monstração em C de a a partir de
"TY = {q, ... , ~}
...
lY.. I~ , ,On 1, DOtamos r fC a. também por r C a. Se 1t = 0, dizemos que V é uma demonstração invariante em C. Se a. depende de 0 a partir de r em C, dizemos que a é uma conseqaência invari-
ante de r em c.
e
D~
Artlwr Buchsbaum e Tarcisio Pequeno
64
Teorema 2.5: Uma fórmula ex depende de "Y a partir de r em C se, e somente se, pelo menos uma das seguintes condições for cumprida: • ex é um axioma de C; • ex E r ; • existe urna aplicação ex•. -~,<x.n de uma regra em C tal que
r
ft- a. 1, . . . ,r ft- <Xn e, para todo objeto variante o desta aplicação tal
que
o
~
e para todo <X.i (1 ~ i ~o), se
Y
o é livre em
<x.j, então existe
r ' ç; r tal que o não é livre em r · e r' Jf-a.j. Se "Y = 0 , podemos substituir a terceira cláusula pela seguinte condição: • existe uma aplicação de uma regra a.,, .~,<X.n em C, tal que
r ~ <X.t. . •. ,r ~ <X.n
o desta aplicação e o é livre em <X.i, então existe r ' ç r tal que
e, para todo objeto variante
para todo <X.i (I ~ i ~o), se
o não é livre em r· c r· ~ <l.j. Exemplo 2.6: Em um cálculo axiomático aberto possuindo as regras da generalização universal c da necessidade, temos os seguintes exemplos de dependência: p(x,y) ~Vx\iy p(x,y);
px~ OV'xpx. Teorema 2.7: (i)
As seguintes propriedades são válidas para a relação"
ft-":
se existe uma demonstração 'D em C de a. a partir de r cuja coleção de objetos variantes de aplicações de regras de C em 'D é então r
Jf a.;
'V,
ft- a. então r h: a.; (üi) se r h: a., então existe uma coleção "Y de objetos variantes tal que r ft- a.; (iv) h: a. sss ~a.: (v) se r ft- a. e Y ç; Y', então r ~ a.; (vi) se r Jt- <x. e r ç; r', então r' Jf ex.; (vii) se r Jf a , então existe "Y'ç "Ytal que "Y' é finito e r Jf a.; (vüi) se r Jf <X., então existe r 'ç r tal que r· é finito e r·Jf a.; (ix) se r Jf a. e, para cada o 1-v, o não é livre em r, então r I"\:"W a.; (ü)
se r
E
A Introdução da Implicação em Cálculos Axiomáticos Abertos
(x)
se
{
65
•r~a
* para cada o E W, existe r· ç r tal que o não é livre em r ' e
r'lf u.
então f~ a. Teorema 2.8: •
•
se r
As seguintes asserções não são válidas para a relação "
~ f Qf_ . _ rc- a~, ... ,r rcan, \<X.J , ... ,an} rc-13. então r * r lf a~, ... ,r J-t- ap ~ ~ * {ar, ... ,ap} c 13
L]_
l
'
J-t-":
~~ v... v ~ v tv
c
A ...,;
.....
se *para todo i E {l, ... ,n} e para todoj e {l, ... ,p}, se OJ e;Y e Oj é livre em a j,então existe r ' ç r tal que OJ não é livre em r '
e r ' ft-aJ
então r Prova:
J-t- 13.
Seja C um cálculo cujos axiomas são dados pelos esquemas "a ~ a v 13" e "V'x a~ a(xit)", e cujas regras de inferência são a, a.l3~ 13 e V';a , de modo que a primeira é uma regra constante e a segunda é uma regra variante cujo objeto variante de cada aplicação é a variável quantificada correspondente. Temos que {{V'y ~(y,z), Q(y,z) ~ Ry} Ry ~ V'z (Ry v Sz)
~ Ry
, contudo não é verdade
que {V'y Q(y,z), Q(y,z) ~ Ry} ~ V'z (Ry v Sz)}, daí temos um contraexcmplo para a primeira proposição. { V'y Q(y,.z), V'y (Q(y,z) ~ Ry)} ~ Ry
Da mesma forma, temos que { R Jl
1.1'_ ""' '"'- R S rcvy w. ( J1 v z)
, todavia
não é verdade que {V'y Q(y,z), V'y Q(y,z) ~ Ry} ~ V'yV'z (Ry v Sz)}, daí temos um contraexemplo para a segunda proposição.
•
Definicão 2. 9: Dizemos que uma demonstração 'D em C é sustentada por uma coleção Y de objetos variantes se Y contém a coleção de objetos vari-
66
Arthur Buchsbaum e Tarcisio Pequeno
antes de aplicações de regras em 'D tais que, para cada conclusão de uma destas aplicações, há urna premissa relevante para esta em 'D. Se existir uma demonstração em C de a a partir de r tal que esta seja sustentada por 'Y, dizemos que a é sustentada p or 'V a partir de r em C, e notamos
I~ <X..
isto por r
Se )r= { ~ ' .. . ' l\t} e
D
~ 1, notamos r I~ (X. também por
,Or, "\, . 'D r 11 Ot •••• c · a . Se ..- = 0, dtzernos que é uma demonstração estável em
C. Se a é sustentada por 0 em C, dizemos que a é urna conseqüência estável de r em C. Teorema 2.10: Se 'V é uma coleção de objetos variantes em C, a é sustentada por 'V a partir de r em C se, e somente se, pelo menos urna das seguintes cláusulas for cumprida: • a é um axioma de C;
• a e •
r;
existe uma aplicação
<X.t, .~,<X.n
de uma regra em C tal que
r ~~ a~> ... ,r ~~ <X.n e, se existe um objeto variante o desta aplicação tal que o E 'V, então h: <X.t. . •. , h: <X.n· Se 'V= 0, podemos substituir a terceira cláusula acima pela seguinte condição: • existe uma aplicação
r ~~ a 1, então
. ..
h: a
<X.t, ·~,<X.n
de urna regra em C tal que
,r ~~ <X.n e, se existe um objeto variante o
1, .. . ,
desta aplicação,
h: <X.n·
Exemplo 2.11: Em um cálculo axiomático aberto possuindo as regras da generalização e da necessidade, temos o seguinte exemplo de sustentação:
Opxl~ 0\fy Opx. Teorema 2.12: As seguintes propriedades são válidas para a (i)
relação " ~~ ":
se existe uma demonstração 'D em C de a a partir de r cuja coleção de objetos variantes de aplicações de regras de C em 'D é 'Y, então r ~~ a ;
(ü)
se r
(iii)
se
r
~~ a , então r
h: a;
h: a , então existe uma coleção 'V de objetos variantes tal que
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A Introdução da Implicação em Cálculos Axiomáticos Abenos
rlft-a; (iv) (v) (vi) (vü) (vili)
.
h: ex. sss ~~ ex.:
IJf a e 'V ç 'V', então r IFc-a; se r 1 ft- ex. cr ç r ', então r'llf ex.; se r 1ft- a, então existe 'V'ç 'V tal que 'V' é finito e r lffa; se r 1 ft- a , então existe r'ç r tal que r' é finito e r ' 1ft- ex.; se r
r ll_l
ll_]h_
Se fCat, ... ,f fC a n, {at, ... ,CX.n} ~~A fC ,_..,então r ~~ ~ v ... vC"" v 'W f3 . O teorema abaixo descreve uma forma de expansão para a relação " em um cálculo genérico. (IX)
ft-"
Teorema 2.13: então r
I
Se
r
"\'J v ...v "" v 'W
Lema 2.14:
c
Se r
LX_c, 17'"""
<X.t , •••
,r
A
,.....
lrf ex., então r ft- a.
Prova: Se a é axioma de C ou a e r, não há o que provar. Suponhamos então há uma aplicação CX.t,-~,an de uma regra de C preenchendo as condições do teorema 2.10. Por hipótese de indução, temos que
r
ft- cx.~, ...,r J-t- an. Dado um objeto variante o desta aplicação tal que
o e 'V, temos que
h: a
1 , •.• ,
h: an, e daí h: ex., o que é, segundo o teore-
ma 2.7, uma condição suficiente para concluirmos que r
•
J-t- a .
3. Cálculos Axiomáticos Especiais Definição 3.1: Um cálculo C é dito semiestáve/ se as seguintes condições forem válidas: • toda regra variante de C é unária, o seu dominio é a coleção de todas as fórmulas em C, e cada aplicação da mesma possui exatamente um objeto variante; • para cada aplicação ~· de uma regra variante em C, se o seu objeto variante não é livre em a', então cx.' ~~ cx.;
68 •
Arthur Buchsbaum e Tarcisio Pequeno
para cada aplicação ai, ·;·an de uma regra constante em C, se e1.' são respectivamente conclusões de aplicações de uma regra variante a partir de a" ... ,an, o. usando os mesmos objetos variantes, então ai, ... ,a~ ~~ a'.
«i, ...•~,
r ~~ «, então, para toda aplicação :, de uma regra variante em C, se o seu objeto variante não for livre em r , ri~ a·. Lema 3.2: Se C é semiestável e
Prova: é semelhante à prova do lema 3 .11. Teorema 3.3:
Se C é scmicstávcl, então
r
~a sss r ~~ a.
Prova: é semelhante à prova do teorema 3.12. Teorema 3.4: Se C é semiestávcl. então dade adicional:
" I~· possui a seguinte proprie-
* r l~ aJ, ... ,r j~«p
l
• se * {o.t·····O,}
1
,~
•... ,0., c
P
*paratodo i E {l, ... ,n}eparatodoj E {l, ... ,p}, se,é livreemaJ, então existe r' ç r tal que Dj não é livre em r' e r ' ~ aJ
entãof j~p. Prova: é semelhante à prova do teorema 3. 13. Corolário 3.5:
Se C é scmiestável, então valem as seguintes propriedades
adicionais para a relação"~": • ser ~ a . .....r ~ap, {a., ... ,ap} ~fj, cntãof ~f3;
*r ~
l
a.., ... ,r ~ a p 1 ~ •... ,Ot,
• se * {«t , ... ,a,} 1
* para todo i
E {
c
B
1, ... ,o } e para todo j
então existe r' ç
E {
1, ... ,p }, se Of é livre em a J,
r tal que Oj não é livre em r ' c r' ~ a.J
então r ~ fj. Prova: basta usar o teorema 3.3, a nona proposição do teorema 2.12 e o teorema 3.4.
A Introdução da Implicação em Cálculos Axiomáticos Abertos
69
Definição 3.6: Um cálculo C é dito sem ifvrte se as seguintes cláusulas forem satisfeitas: (i)
h:
(ii)
BI~ a.~ P:
(J.
~ a.;
(iii) para cada aplicação
f3t,.i;' ~~~~
de uma regra constante de C.
{ex.~ p.,... ,a. ~ Pn} ~~a.~~~. Teorema 3.7: As seguintes proposições são equivalentes: (i) C é um cálculo scmifortc; (ii) para quaisquer r e ex. tais que r é wna coleção de fórmulas em C c a. é uma fórmula em C, r u {a.} ~~ f~ implica em r I~ a.~~. Prova: é semelhante à prova do teorema 3 .I 6. Definição 3.8: Um cálculo C é dito quaseforte se C é serniforte c semiestável. Teorema 3.9: Se C é um cálculo quascforte, então em r ~a. ~ p. Prova: basta usar os teoremas 3.3 e 3.7.
ru
{a.} ~f~ implica
Definição 3.10: Um cálculo semiestável C é dito estável se este possuir a seguinte propriedade adicional: • para cada aplicação ~ de uma regra variante em C, onde o é o seu objeto variante, se P' e a.' são respectivamente conclusões de aplicações de uma regra variante em C sobre p,a. usando o mesmo objeto variante, então P' ~~ a.' . Lema 3.11: Se C é estável c
r ~~ a.,
então, para toda aplicação ~· de
uma regra variante em C, se o seu objeto variante não for livre em
r,
r i~ ex.·. Prova: Se a. é um axioma de C, então ex., e daí ex.', e portanto r ~~ a.' . Se u. E r , então o objeto variante da aplicação considerada não é livre em a., e dai, como c é estável, a. I~ a.·. c portanto r 1~ a.·. Se existe uma aplicação de uma re1:,rra constante a.•• ·;.;, .a.n em C tal que
h:
h:
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Arlhur Buchsbaum e Tarcisio Pequeno
r1Jf- a.j, ... ,r 1ff- a.;.,
r ~ a.J, ...•r ~ <X.n.
temos. por hipótese de indução. que onde a.i, ... ,cx~ são respectivamente conseqüências de
a.., ... , CJ.n pela mesma regra em que a.• é conseqüência de a.. Como C é estável, temos que ui, ... ,a.~ ~~ a.', e daí r
~~ a.' .
Suponhamos então que existe uma aplicação
~
de uma regra variante de C
r~~ f3, e, se o seu objeto variante não pertence a Y, então ~a.. Seja o o objeto variante de ~ . Se o ~'V, ~a., daí lc a.', e portanto r ~~ a.•. Considere f3' conseqüência de f3 pela mesma regra em que a.' é conseqüência de a.. Se o e Y, como f} ~~ f3', P', e dai, como C é estável temos que f3' ~~ a.', e portanto a.' . tal que
t·jJf-
rlff-
•
Jf-
Teorema 3.12: Se C é estável, então r a. sss r Prova: a. implica em r Pelo lema 2.14, temos que r
lff-
recíproca. Suponhamos que r
lff- a..
Jf- a., dai resta provar a
Jf- a..
Sejam 1J uma demonstração em C de a. a partir de
r
dependente de
Y, f3 a
primeira ocorrência de uma fórmula em 1J justificada como conseqüência de
f
tal que o seu objeto variante não pertenuma aplicação de regra variante ce a 'V e f3' depende em 1J de alguma premissa. Seja o o objeto variante desta aplicação.
o não é livre em f3', então, como C é estável, temos que f3' ~~ f3, e daí, como a ocorrência considerada de f3' precede f3 em 1J, temos que r f3', e
Se
portanto, pela transitividade de ..
IJf-... r IPc"- p.
IJf-
o é livre em f3', então, como o ~ 'Y, existe r' ç; r tal que o não é livre em e f3', e daí, como C é estável e pelo lema 3.11, f3, e Se
r• r'Jlf portanto r lff- f3.
r'IJf-
Em qualquer caso, existe uma demonstração VJJ em C de f3 a partir de r sustentada por 'Y. Substituindo a ocorrência considerada de f3 em 1J por Vp , obtemos, dado 1J, uma demonstração em C de a. a partir de r possuindo uma aplicação de regra variante a menos cujo objeto variante não perten-
A lntroduçilo da lmplicaçilo em Cálculos Axiomáticos Abertos
71
ce a Y e cuja hipótese depende de alguma premissa. Repetindo o mesmo processo um número finito de vezes, obtemos uma demonstração em C de a partir de r sustentada por Y, ou seja, r
a.
I~ a..
• Teorema 3.13: Se C é estável, adicional:
.....,rUfa.P ,o,.
então" ~~ " possui a seguinte propriedade
* rJ~a.
* {a.., ...,Ct.p} •
Oj,...
c
11
p
se *para todo i E {l, ... ,o} c para todo j E {l, ... ,p}, se Oj e )f [ e Oj é livre em Ct.J, então existe r ' ç r tal que Oj não é livre em r ' e
r· J~a.J
entãor J~p. Prova: Sejam V 1 , . . . , Vp respectivamente demonstrações em C de a.~. ... ,a.p a partir de r sustentadas por Y, e seja 'E uma demonstração de p a partir de {a.h ... ,a.p} sustentada por {Ot , ... ,O,.}. Concatenando 1J1, ... , Vp, 'E, obtemos uma demonstração V de p em C a partir de r. Seja y a primeira ocorrência de uma fórmula em 1J justificada como conseqüência de uma aplicação
~·
de regra variante, tal que o seu objeto variante
não pertence a ')I e y' depende em 'D de algum· elemento de r. Como V 1, ... ,Vp são demonstrações sustentadas por
Y, temos que a ocorrência o o objeto variante da
considerada de y' figura em 'E, c daí, considerando aplicação, temos que o S . eJam
E {
{.S = {Ct.J I j E {l, ... ,p} c o é livre em Ct.J} ç=
{Ct.J 1j
E
{l, ... ,p} e
É fácil verificar que existe para
q , ... , o,.}.
todo
8
E
o não é livre em Ct.J}
r · finito
.S, r· I!Fõ,
e
tal que
r ' ç r, o
portanto,
pela
não é livre em construção
r · e,
de
Ç,
r · v c; I!Fa.~ •... ,r· v c; lffa.p. e o não é livre em r· v c;. Como a ocorrência considerada de y' precede y em 'D, temos que
{a.l·····Ct.p} lrcr·. e dai, pela transitividade de
"lfF",
temos que
Arthur Buchsbarmr e Tarcisio Pequeno
72
r'uç l~r·. e portanto, pelo lema 3.11 , r 'u çj~y. Para cada 8 e
r' u
Ç, temos que
r ~~ 8, e dai, novamente pela transitivida-
de de " ~~ ", r l~r- Ou seja, existe uma demonstração 'Dy em C de y a partir de r sustentada por 'V. Substituindo a ocorrência considerada de y em 'D por 'Dy, temos uma demonstração 'D' em C de p a partir de r possuindo uma aplicação a menos de uma regra variante cujo objeto variante não pertence a 'V e cuja hipótese dependa de alguma premissa. Repetindo o mesmo processo um número finito de vezes, obtemos uma demonstração em C de p a partir de r sustentada por 'Y, ou seja,
rlrf- p.
•
Corolário 3. 14: Se C é estável, então valem as seguintes propriedades adicionais para a relação"~": •
se r L]_ rc Cl t, ... ,r ili_ rc Clp, {Clt, ... ,Clp}
rc p, então r
l}f_
I~ v
... v~ v1V
A-,
p
* r ~ o.1, ... ,r ~ o.p
l *
•
{o.l, ... ,Clp}
Io,_,c•••• o.;
p
se *paratodoie{ l , ... ,n} eparatodoj e {l ,... , p} , seo.~'V e Ot é.Vvre em O.J, então existe r ' ç r tal que Ot não é livre em r ' e r' ~ Clj então r~ j3.
Prova: basta usar o teorema 3.12, a nona proposição do teorema 2.12 e o teorema 3.13. Defmicão 3. 15: Um cálculo semiforte C é dito forte se este possuir a seguinte propriedade adicional: • para cada aplicação ,Pn de uma regra variante de C,
{o.~ Pt. ... ,o. ~ Pn}
Ptp ..
lrf- o.~ p, onde 'V é a coleção de objetos varian-
tes da aplicação e nenhum elemento de 'V é livre em o.. Teorema 3.16: As seguintes proposições são equivalentes: (i) C é um cálculo forte;
73
A lmroduçiJo da lmpllcaçiJo 11m Cálcu/(u A.rJomátlco1 Abertos
"'
{ru lfe- ~Y, {ex.}
(li) para quaisquer l c a, 80 paro cndn 0
C!
0
n4o é livre 0111 ex.
,cntlJo
ri~ ex~ f~. Prova do (l) implica (U): Suponhamos quo c ó um cálculo forte, r u .(o.} ~c, para cada o . 'v, o nllo é livre em o. Se ~ ó axioma de C, cnUio h; fl, e dllJ, pela cláUJula (il) da deOnlçlo'i.G, ~ ex.~ 1~. c portanto r I~ o.~ j3. Se 13 C! r, cntao r I~ ~. c dai. pcln. cláusula (H) da dc11nlçtlo 3. 16,
Uf
r lfi- a ... ~ .
Se ~ • ex, crltao, pela cláusuln (I) da dcfiniç!o 3. 16, ~ ex._.,
"'• o portanto
rlfi-a-+ ~. Se existe wna aplicaçao l~ .... ,f~n de wna rcsra de C tal que r u (o. drt 11,, ... ,r v <a.>1~ ~~ temos, por hipótese de tnduçao, que
r IJf o._. ~~ · ....r ~~ ex-+ ~n· Se existe um objeto variante desta aplica·
ç!lo quo nao pertence a Y, cntao, conforme o teorema 2. 10, ~ ~. e dai, novamente pela cláusula (li) dD dcflnlçao 3.6. ~ex.-+~~ c, portanto, r ~~ o.-+~. Se todo objeto variante desta apllcaçllo pertence a Y, cntllo, como C é forte, concluhuos quo r ~~ <x. -+ ~. Prova do (ii) implica (i): Suponhamos (li). Como o. ~ a, temos que ~ <x. -+ ex.. Como {~.a} ~~~ temos que~ I~ ex.-+~. Finalmente, seja ~ •.~.r~n uma apücaçllo de uma regra de C cuja coleçllo de objetos variantes é Y, e o. uma fórmula de C onde nenhum elemento de
'V é livre. Temos que
{ex. -+ f.it. ... ,a -+ f3n,C.X.} ~~ ~" ... , {<X. -+ Pt. .. .,ex. -+ Pa,a} ~~ Pn, e dai, como {~~o ... ,Pn} p, temos que {a-+ P11 ... ,a -+ Pn,a} ~~ p, e portanto {a-+ Pt.····cx.-+ Pn} ~~ ex.-+ p.
Uf
•
74
Artlwr Buchsbaum e Tarcisio Pequeno
Definição 3. 17:
Um cálculo C é dito superforte se C é forte e estável.
· {C é um cálculo supcrforte p , então r Teorema 3.18: Se r u {a.} para cada o e Y, o não é livre em a. Prova: basta usar os teoremas 3. 16 e 3. 12.
Jf
Jf a. -+ p.
Definição 3.19: Notamos por C[r] o cálculo aplicado obtido de C acrescentando r como postulado. Se r é um conjunto unitário da fonna {a.}, então notamos C[r] também por C[a.]. Teorema 3.20: As seguintes asserções são válidas para C[r] :
• r'u
r
rc a. sss r' IcrrJ a.; l-E- a. sss r· IcfrJ
•
r· u r
•
se r' u r
•
se r' l cYrJ a., então exist~ 'W 2 Y tal que r'u r
•
se r·u rUfa., então r · llcYr1 a.;
•
a.;
Jf a.:então r ' IcYrJ a.; ~ a.;
se r·llcYr~ a., entao existe )y.2., tal que r ·u r 1~ a.;
• se C é seaúestável, então C[r] é scmiestável; •
se C é semiforte, então C [r] é semiforte;
• se C é quaseforte, então C[r] é quaseforte; •
se C é estável, então C[r] é estável;
• se C é forte, então C[r] é forte; •
se C é superforte, então C[r] é superforte.
Teorema 3.21: implicação:
C[r] possui as seguintes propriedades para a introdução da
• se C é semiforte e r' u {a.} llc~rJ ~. então r' llc~rl a.-+ P;
If
f3, então r' l cfri
P;
•
se C é quasefortc e r' u {a.} c r i
•
se C é forte e {r' u {a.} llcYrJ p, ,. 'então r ' llcYrJ a.-+ J3; para cada o e Y, o não e hvre em a.
• se
a. -+
p, . LJ::_ ·u {a.} ~r c é superforte e {rpara c r1 ' . 'então r rarra.-+ p. cada o e Y, o não e hvre em a.
A Introdução da implicação em Cálculos Axiomáticos Abertos
75
4. Conclusões
Encontramos formulações otimizadas do Teorema da Dedução para uma ampla classe de cálculos axiomáticos abertos, as quais superam todos os problemas que inicialmente apontamos, para uma ampla classe de lógicas, em todo um espectro de possíveis restrições em seu funcionamento dedutivo. Desde os cálculos semiestáveis e semifortes, até os cálculos superfortes. A formulação mais fraca da Teorema da Dedução dá-se para os cálculos quasefortcs. Um exemplo de cálculo deste gênero pode ser visto em [2], p. 133, o qual é uma tradução para uma linguagem de primeira ordem da Lógica da Dedução Cética, definida no mesmo trabalho, no capítulo 5. Este cálculo foi essencial para a prova de completude desta lógica. A formulação mais fort.e do mesmo teorema dá-se para os cálculos superfortes, os quais constituem a grande maioria dos cálculos axiomáticos abertos, concernentes à implicação material, encontrados na literatura. Nossa motivação inicial foi a busca de uma base conceitual para uma prova de completude abstrata com respeito a uma classe abrangente ·de cálculos, o que foi realizado em [2), pp. 72-88. Uma exposição concisa desta prova será · objeto de um futuro artigo. Referências [1) Bell, J. L. & Machover, M. 1977. A Course in Mathematical Logic.
North-Holland Publishing Company. (2] Buchsbaum, Arthur. 1995. Lógicas da Inconsistência e da Jncomp/etude: Semântica e Axiomática. Tese de Doutorado, Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro. [3] van Dalen, D. 1989. Logic and Stntcture. Springer-Verlag. [4] Ebbinghaus, H. D. & Flum, J. & Thomas, W. 1984. Mathematical Logic. Springer-Verlag. [5] Enderton, Herbert B. 1972. A Mathematical Jntroduction to Logic. Acadcmic Press. [6] K.Jccne, Stephen Cole. 1971. Introduction to Metamathematics, NorthHolland Publishing Company. [7] Mendelson, Elliot. 1979., Introduction to Mathematical Logic, D. Van Nostrand Company. [8] Prawitz, Dag. 1965. Natural Deduction -A Proof-Theoretica/ Study, Almqvist & Wiksell. [9] Shoenfield, J. R. 1967. Mathematical Logic, Addison-Wesley Publishing Company.
MODALIDADES EM LÓGICAS DE CONHECIMENTO E CRENÇA CEZAR A. MORTARl Universidade Federal de Santa Cararina
1. Introdução Neste artigo apresentamos resultados com respeito ao número de modalidades distintas (í.e., não-equivalentes) em algumas lógicas proposicionais de conhecimento e crença. Usaremos uma linguagem proposicional que também inclui operadores para saber que e acreditar que. Letras minúsculas (p, q, ... ) serão usadas como variáveis proposicionais, e letras gregac; <p, llf, . .. , como variáveis sintáticas para fórmulas. Letras gregac; maiúsculas r . .ó.,. . . representarão conjuntos de fórmulas. Dado que vamos nos limitar ao cac;o de um agente único, K <p e 8<p serão usadas como abreviações de KA <p ('o agente A sabe que <p') e 8AlfJ ('o agente A acredita que <p'), respectivamente. Os operadores ..., e -4 são introduzidos como primitivos; "• v, and H podem ser definidos através deles do modo usual. Além disso, para preservar algumas similaridades com as lógicas modais aléticas, vamos introduzir ac; seguintes abreviações: Def M. M<p =c~r•K•<p Def P. P<p =ctt -,8-,<p Uma possível tradução de M<p é 'é possível, tanto quanto o agente A saiba, que <p'; e, de P<p, 'é compaúvel com tudo o que A acredita, que <p' (cf. Hintikka 1962, p. 3). Vamos iniciar considerando uma lógica epistêmica básica, que chamaremos de X, e que tem os seguintes axiomas e regras de inferência: PC. K1c. T. Kb. D.
Todas as tautologias clássicas.
K(<p -4 llf) -4 (K<p -4 Kllf) K<p-4<p 8( <p -4 llf) -4 (8<p -4 8llf) 8<p -4 -,B-,<p M . K<p -48<p MP. 1- <p, 1- <p -4 li' I 1- li' Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analltica. Florianópolis: NEL, pp. 76-101.
77
Modalidades em l6gicas de conhecimento e crença
RK. 1-cp I 1--Kcp Além das regras de inferência primitivas MP e RK, as entre muitas outras, também são admissíveis em X:
regra~
seguintes,
RB. I- cp I I- Bcp R*C. I- cp ~ 'I' I I-*({!~ *'I'· onde* E {K,B.P,M} R*E. I- cp H 'I' I I-*({! H *V', onde* E {K,B,P,M} Vamos agora considerar rapidamente a semântica padrão para X (c f. Meyer & van der Hoek 1995, Fagin et al. 1995, por exemplo). Definição 1. Um modelo de mundos possíveis M para X é um temo (S,/C,B),
onde: (a)
S::~=0;
(b) (c) (d) (e)
cada sE S ~uma atribuição de valores de verdade às fórmulas atómicas; Bç;JCç;,SxS; JC é reflexiva; B é serial.
O conjunto S pode ser entendido como um conjunto não-vazio de "mundos",
ou "pontos", ou "estados". Para simplificar um pouco as coisa~. eles estãó sendo aqui caracterizados como atribuições de valores de verdade às variáveis proposicionais. A relação B é a relação de acessibilidade para crença, e JC, para conhecimento. Podemos agora definir, para cada fórmula cp, em que condições cp é verdadeira em um modelo Me em um estados de M (o que denotaremos por (M.s) I= cp): Definição 2. Seja M = (S, JC, B) um modelo, e s um elemento de S:
i. ii. iii. iv.
v.
(M,s) I= cp (M,s) I= -,cp (M,s) I= <p ~ 'I' (M,s) I= K<p (M,s) I= B<p
sse sse sse sse sse
s(cp) = 1, se cp for uma variável proposicional; (M,s)Y. cp; (M,s) Y. <p ou (M,s) I= 'lf; para cada tE S tal que JCst, (M,t) I= <p; para cada 1 E S tal que Bst, (M,t) I= (/).
As definições semânticas usuais são como segue: uma fórmula cp é verdadeira em um modelo M (i.e., M I= cp) se, para cada sem M, (M,s) I= cp. Dizemos que ({J é válida (I= cp) se, para cada modelo M, M I= ({'. Se r é um conjunto de fórmulas, M I= r se, para cada 'I' E r, M I= 'I'· Finalmente, <pé uma conseqü~ncia semdntica de um conjunto r de fórmulas se, para cada M tal que
78
Cezar A. Monari
r, temos que M I= <p. Com estas definições podemos facilmente provar teoremas de correção e completude (ver, por exemplo, Lenzen 1980, Fagin et a/. 1995). Vamos agora considerar brevemente as razões pelac; quais X está sendo tomada como a lógica básica de conhecimento e crença. Em primeiro lugar, neste artigo estamos fazendo a suposição de que os agentes são logicamente OT}iscientes, i.e., eles sabem todac; as conseqüências lógicas de seu conhecimento. (Esta propriedade é algumas vezes chamada fecho dedutivo.) Os agentes são também logicamente onicredentes, i.e., eles acreditam em todac; as conseqüências lógicas de suac; crenças. Estas duas propriedades são, supostamente, uma Coisa Ruim, porque as pessoas não são logicamente oniscientes; há ~ários contra-exemplos. Contudo, pode-se argumentar razoavelmente em favor da onisciência c onicredência lógicas. Por um lado, podemos considerar que lógicas são prescritivas, ao invés de descritivas: assim, a onisciência lógica não é realmente um defeito, mac; um objetivo a ser atingido pelo raciocinador virtuoso. Ou podemos defender que lógicas como X estão formalizando as noções de conhecimento imp/feito e crença implícita (cf. Levesque 1984, Lakemeyer 1986). Finalmente, há muitas aplicações em Inteligência Artificial, por exemplo, para lógicas oniscientes (cf. Fagin et ai. 1995). (Não obstante, planejar sistemas lógicos que não requeiram a onisciência lógica é muito desejável. Ver Fagin et ai. 1995, cap. 9, onde algumas alternativas são apresentadas.) Assim, por ora teremos onisciência e onicredência lógicas, o que significa que Kt, Kb e RK são válidos. Se adicionarmos apenas estes postulados à lógica proposicional clássica (PC, MP), obteremos um sistema bi-modal que poderia ser chamado K-K. Contudo, esta caracterização de conhecimento e crença é muito fraca. Devemos ter ao menos T para conhecimento- correspondendo à idéia de que, se uma proposição é conhecida, então ela é verdadeira Em outras palavras, que não se pode saber proposições falsas. Por outro lado, um agente pode acreditar em tudo o que quiser - ainda que talvez obedecendo a algumas restrições, como não poder acreditar em contradições. Esta é a razão pela qual temos D , o axioma característico da crença. Estamos postulando, portanto, que agentes não possam ter crençac; contraditórias. (É claro, por outro lado, que podemos rejeitar D e trabalhar com o subsistema de X resultante como a lógica epistêmica básica.) M I=
2. Axiomas com os quais estender X
Nesta seção vamos considerar o problema de estender X pela adição de um ou mais axiomas novos. Obviamente, a primeira coisa a fazer é identificar que
Modalidades em /6gicas de conhecimento e crença
79
novos axiomas estão disponíveis. As lógicas epistêmicac; são usualmente construídas por analogia a lógic~ modrus aléticas. Assim, vários axiomas conhecidos na literatura sobre lógica moda! são simplesmente transportados para a lógica epistêmka, substituindose O por K, digamos. Para dar alguns exemplos, Oq> -4 OOq>, o axiomacaracterísticodeS4, toma-seKq> -4 KKq>, ou Bq> -4 BBq>, enquanto que Oq> -4 DOq> (SS) toma-se -,Kq> -4 K -,Kq>, ou -,Bq> ---7 8-.Bq>. Muitos destes axiomas têm a forma x"'q> -4 y" q>, onde xm e yn são modaJjdades, i.e., seqüências de operadores unários, cujo comprimento é, respectivamente, m e n. Uma das coisas que podemos fazer, obviamente, é testar fórmulas tendo esta estrutura para ver se são aceitáveis como axiomas. Assim, vamos gerar candidatos a axioma dando valores param e n no esquema xmq> -4 y"q>. Faremos, apenas nesta seção, a restrição adicional de que x"' e y" sejam modaJjdades afirmativas, ou seja, cujos únicos operadores são K, B, M, P. Começamos com modalidades de comprimento zero: isto corresponde a x0 q> -4 y0 q>, que é simplesmente q> -4 q> e já um teorema. A seguir temos as fórmulas 1-0 (x1 q> -4 y0 q>): há apenas quatro delas. Elas.são: Kq> -4 q>, Bq> -4 q>, Pq> -4 q>, e Mq> -4 q>. A primeira é nosso axioma T; as outras três fórmuJac;, claro, não são intuitivamente válidas, e não se qualificam. portanto, como axiomas aceitáveis. (Um aviso a respeito de intuições. Obviamente, ao se construir algum sistema lógico - como para a crença, por exemplo - temos que fazer algum tipo de idealização; isso já acontece na lógica proposicional clássica. A razão primafacie para rejeitar, digamos, Bq> ---7 q>- a saber, que ela vai contra nossas intuições - deve ser examinada com algum cuidado. Ocorre com muita freqüência que noções tidas intuitivas e "obviamente verdadeiras" acabam por mostrar-se errôneas. Contudo, há provavelmente uma gradação de "aceitabilidade"; assim, devemos prosseguir usando algum senso comum. Algumas fórmulas serão totalmente inaceitáveis - com elas não há problema. Outras serão inteiramente aceitáveis -nenhum problema aqui também. Sobre os casos difíceis pode-se argumentar, e aceitar - ou rejeitar - provisoriamente. Como com relação a qualquer coisa, o tempo, ou um argumento melhor, dirá.) As fórmulas 0-1 , claro, (x0q> -4 y 1 q>), são apenas as contrapositivas das 1-0. q> -4 Mq> é um teorema, seguindo-se facilmente de T. As demais, novamente, não são intuitivamente válidas. Temos a seguir x1 q> -4 y1 q>. Há 16 destas fórmulas, e nós as encontramos na Tabela 1: Esta é uma maneira compacta de apresentar Kq>·-4 Kq>, Kq> ---7 Bq>, e ac;sim por diante. Algumas das fórmulas são classicamente válidas, como K q> ---7 K q>; e algumas são teoremas de X - estac; estão assinaladas com '•', com exceção
80
CtJf!lr A. Mortarl ~
Klp Hcp Plp Mip
Klp
Bcp Plp Mcp
• M D• - • - - • - - -
• • • •
dos nos808 axiomas M e D (também teoremas de X, 6 claro). Plnalmcnte, aJ. gumas 8Ao con11ideradas inválidas, como Hcp ~ Klp, e 8!J fórmulas que o acarretam: Pip ~ Klp e Mip ~ Klp. Estas estao as11inalada8 com '- '. Pcp ~ Hlp também é inaceitável. pois, CMO contrário, terlamos Bcp ~ Plp. Por razOei! somelhantell, Mli' ~ Blp eMli' ~ Plp nao sAo intuitivamente válidas. No final du conta.'!, nada de novo por aqui. Vamos entao passar às fórmulas da forma '!f.0lp ~ y2cp, ou 8Cja, li' ~ yzlp. Temos outra vez 16 tais fórmulas, que podem ser vJstas na Tobela 2.
I; IK~lp IB~lp IP~lp IM:p IK~p IB~ IP~p IM~cp I Tabela 2: As 16 fónnulaslp ~ y2((J Doze fórmulas (novamente, aquelas marcadas com '- ') sfto claramente Inaceitáveis. Por exemplo, nfto deveria absolutamente seguir-lle, da verdade de lp, que um agente sabe que acredita que cp -ele poderia igualmente acreditar que -,cp, ignorando completamente que li' 6 verdadeira. A mesma coisa pode ser dita a respeito das outras fórmulas. li' ~ MM ((J, por outro lado, é um teorema de X (é a contrapositiva de KKlp ~ qJ), e é o dnicocaso onde faz sentido lnforir conhecimento a partir da verdade de alguma proposiç!o cp: a saber, que nAo é o caso que um agente sabe que sabe que -,cp, Em outras palavras, tpAKK-,tp nlio pode ser o caso- caso contrário, os agentes acabariam sabendo -,tp, e nDo estamos supondo que eles possam saber falsidades. As três fórmulas r~m~ID~~çcnu;~, !1". Bb c 8 111 , agora. silo casos mais difíceis: elaiJ sAo inválida.'i, ffiM, em ql'fl ccrtg !!Ç~tido, "menos i!'lV!1fJdos" que as outra.' As reta~~ Á" f\eorr~fmllm!Q ~ntr@ ~1M, em ?', sP.o
t~lf>.~/1" !
MotkzlldtJdl!s 11m lóslcas dlt conluu:lmtmto I! r.~nça
81
Yamo11 examinar Hk, l.e., <p ~ KM<p, <m, allemativarnento, <p -+ K-,K-,qJ. (Esta fórrnulo corro11ponde ao Hrouwer.vche Axiom B da lógica moda! alética.) Isso 8ignlflca que, 110 qJ é verdadeiro, enttio um ogento sabe que nAo sabe -,fP. Ora, um agente certamento nflo sabe - nem pode saber - -,fP, mas será que ele 11abe IHHo? Nflo necossorlrunenr.e, porque ele poderio acreditar que sabe que -,<p: BK-,<p. Como K-,K-,({J acarreto 8-,K-,<p, este agente teria crenças contraditória.~. o que é cxclu(do por D. Portanto esta fónnu la é claramente Inválido: por que e11tarnos perdendo tempo discutindo-a aqui? O problema é que nossas lnmiçOeH para aceitar/rejeitar candidatos a axiomas e11tllo "sintoni1.ada.1" com racioclnadorcs humanos, ainda que algo idealizados. Nilo podemos aceitar o Brouwersche Axlom dizendo que, como Kk c a onisciencia lógica, estamos apena11 formalizando conhecimento e crença impHcltos. Isto nAo vai funcionar aqui: agentes nllo acreditam em contradiçOc.o;, nem mesmo implicitamente. O que esta fórmula realmente diz, no fim das contas, é que, 11e fP é verdadeira, entno um agente nunca vai acreditar que sabe que -,qJ; ele nunca comer.erá um tal erro. E isto nao é mais uma idealizaçAo razoável. Por outro lado, na lógica modal aléúca, lógicas diferentes capturam diferentes noçOes de ncce11sidade e posHibllidade - nAo poderíamos fazer um paralelo com a presente situaçao e pretender que estamos, com um princípio tal como Bk, modelando um diferenr.e tipo de agento? De fato, nós podemos. A verdade é que muitoll pesquisadores em IA usam S5 como lógica de conhecimento, da qual Bk acima é um teorema (além de alguma.'! outras fónnula.'l problemáticas). S5 é dtil, por exemplo, para modelar conhecimento em ambienr.es distribuidoR, e a.CJ pesROa.'l estilo conscienteR de que 11eus agentes nllo 11110 humanos (ver, e.g., Halpem & Mose11 1984, p. 1). Assim, se J)k é válida em uma lógica que é reconhecidamente dtil, podemoR aceitá-lo aqui como um princípio epiHt~mico. (É claro que esta é uma decisAo puramente pragmática; nllo pretendemos afirmar que haja agenteHque se comportam epistemicamente como em B.) O dltimo caso que consideraremos ne11te artigo silo a'i fónnulas x1fP-+ y1 qJ (e, implicitamente, x2 <p-+ y 1<p, 11uaq contra,posilivM). Temos 64 tais fónnula.'!, que estilo apresentada.'! na Tabela 3. -+ Ktp Blp_ P<p M<p
KK_q>_ BK<p 4K
-
w c
-
PK<p WP
MKtp
KB({J M~
CP
•
C'"
-
-
-
PBqJ L
p
BB<p M/} 4b
-
-
-
y
MB({J
• •
-
82
Cezar A. Monari -4
K<p B<p P<p M<p
KP<p J PP
Q
-
BP<p JP
PP<p U'
MP<p
KM<p
BM<p
PM<p
MM<p
4.P
•
•
•
A
•
•
•
R F
• • • •
so -
SP
-
-
s.t
• E
v
•
•
VP
Tabela 3: As 64 fórmulas x 1<p -4 y 2 <p
Entre estas fórmulas nós encontramos outra vez teoremas de X, assinalados com '•' como anteriormente, e algumas fórmula~ inválidas ('-'). Mais uma vez, há fórmula<; "mais inválidas" e "menos inválidas". Consideremos M <p -4 K K <p, por exemplo: como <p ~ M <p e K K <p -4 K <p são teoremas de X, ela tem <p -4 K <p como conseqüência. E isto é obviamente demais: não apena<; são os agentes logicamente oniscientes, mas, dada uma proposição e sua negação, eles sempre saberão qual delas é verdadeira. (Se <p é verdadeira, K <p segue-se imediatamente. Se <pé falsa então -,<pé verdadei.ra, e temos K-,<p.) M<p -4 KK<p, portanto, se adicionada a X causa um colapso de X na lógica proposicional clássica, uma vez que <p H K <p passa a ser um teorema Assim, podemos esquecê-la. Além destes ca<;os óbvios, temos algumas fórmulas "não tão inválidas", como M<p -4 KP<p, ou, equivalentemente, -,K<p -4 K-,B<p. Ora, esta fórmula seguramente não é válida, porque um agente pode não saber que <p e, contudo, acreditar que <p, e saber disso também (KB<p). De qualquer maneira, esta fórmula seria válida apenas em uma lógica onde K e B fossem equivalentes (B<p -4 K <p segue-se dela). Não conseguimos ver a utilidade de uma tal lógica - ela é a mesma coisa que a versão epistêmica de SS - mas, enfim, talvez haja uma ontologia inteira de agentes lá fora com capacidade de memória ilimitada e poderosa capacidade de raciocínio. Em tais casos, a equivalência de conhecimento e crença poderia fazer sentido. Contudo, tal situação seria mais simplesmente modelada por uma lógica pura de conhecimento. De volta às nossas fórmula<;, entendemos que aquelas acarretando B<p -4 K <p, e que, portanto, eliminam a distinção entre conhecimento e crença, são inteiramente inaceitáveis como axiomas legítimos da lógica epistêmica. Há, contudo, alguns casos fronteiriços: as fórmulas "menos inválida<;" como o conhecido axioma característico de S5, 5* (P<p -4 KP<p ou, alternativamente, -,K<p -4 K-,K<p). Para seres humanos, ou agentes não ideais, isto é indubitavelmente falso (a mesma história de "podemos não saber e mesmo ao;sim acreditar" vista acima). Contudo, como mencionamos, há aplicações para lógicas contendo este axioma. Assim, apesar da invalidade (geralmente aceita) de 5*,
Modalidades em lógicas de conhecimento e crença
83
vamos incluHo entre os axiomas adequados para estender X. 5* tem, contudo, algumas conseqüências estranhas (como BK~ ~ K~) que, junto com alguns outros princípios, vão causar problemas. As fórmulas remanescentes na Tabela 3 (aquelas não a~sinaladas nem com '•' nem com '- ')são aquelas que podemos, baseados em nossa intuição, admitir como novos axiomas. Estão assinaladas com rótulos como P, Q, Mb, e assim por diante. Há 27 destes axiomas, e podemos dividi-los em dois grupos: os não-seriais (16 fórmulas) e os seriais (11), como segue. Axiomas não-seriais: 4*, Mk, P, W, C, Mb, 4b, 5*, Q, F, V , Sb, E, SP, A, JP Axiomas seriais: R, PP , J, VP, WP, CP, C"', L, Y, U, 4P Há uma razão para esta divisão: se removermos o axioma D de X, e introduzirmos em seu lugar qualquer um dos axioma<; seriais, digamos, J, então D será um teorema desse novo sistema (o que não acontece se acrescentarmos um dos axiomas não-seriais). Para dar um exemplo, vamos mostrar como a adição de V a X-{D} permite derivar D: L
K(-,p v p) ~ PP(- w v p)
2. • PVP 3.
K(-,pv p)
v PC 2RK
4. PP(-,pvp) 1,2PC 5. P(-,pv p)~ (-,pv p) ZPC 6. PP(-,pv p) ~ P(-,pv p) 5RPE 7.
P(-,pv p)
4,6MP
8. P(-,p v p) ~ (P•pv Pp) teorema 9. PopvPp 7, 8MP 10. •Bpv•B•p 9Def. P, PC 11. Bp~•B•p 10 Def. v (Tanto RPE quanto o teorema usado na linha 8 da demonstração acima valem em X-{D}.) Algumas das fórmulas na Tabela 3 são bem conhecidas na literatura, tais como 4k, ou 5b, que caracterizam, respectivamente, a K-introspecção positiva, e E-introspecção negativa. Na verdade, todac; ela~ poderiam ser chamadac; de axiomas "introspectivos"; elas representam diferentes graus de introspecção com respeito às diferentes noções epistêm.icas. Inventamos nomes para os demais axiomas, como P, Q, porque, tanto quanto sabemos, eles não têm nenhuma denominação padrão. Entre eles nós encontramos, por exemplo, C - i.e.,
84
C~ar A.
Monari
Brp ~ BK rp -, que é o axioma da convicção. Ou seja, ele pode ser aceito como válido apenas se interpretannos B como convicção (crença forte), e não como uma crença "geral", mais fraca. (Ver, p. ex., Lenzen 1980 a este respeito.) A Figura 1 mostra as relações entre os 30 axiomas identificados até agora (Tabelas 2 c 3).
Figura 1: Axiomas epistêmicos O próximo passo seria considerar as fónnulas com a estrutura x2 rp ~ y2 rp. Nilo faremos isto aqui, deixando-as para trabalhos futuros. Porém, há, de fato, algumas fórmulas interessantes entre elas; por exemplo, MKrp ~ KMrp, que é a versao epistêmica do axioma G da lógica moda! alética (0Drp ~ D0rp), e considerada um princípio válido da lógica epistêmica. Por exemplo, afinnase que S4.2 (i.e., KT4kG) é a lógica do conhecimento (cf. Lenzen 1980). G, contudo, terá que esperar outra oportunidade. Quanto à semântica para os axiomas apresentados, as restrições necessárias nas relações de acessibilidade x:, e B para obter modelos caracterizando cada axioma podem ser facilmente obtidas através de resultados da teoria da correspondência (cf. van Benthem 1984, van der Hoek 1993). À gujsa de exemplo, vamos apresentar aqui (Tabela 4 abaixo) apenas as restrições para alguns
Modalidades em lógicas de conhecimento e crença
85
axioma<;, já que faremos uso dela<; nas demonstrações de alguns teoremas nas próximas seções. 4Jc 4b sk sb p
c Q
v Bk
se X:st e X:t r, então X:sr; se Bst e Btr, então Bsr; se X:st e X:sr, então X:t r; se Bst e Bsr, então Btr; se X:st e Btr, então Bsr; se Bst e X:tr, então Bsr; se Bst e JCsr, então Brt; se Bst e X:sr, então X:tr; se X:st , então JCt s.
Tabela 4: Restrições nas relações de acessibilidade
3. Extensões de X
Tendo escolhido um conjunto de axiomas epistêmicos com os quais trabalhar, deveríamos investigar agora que lógjcac; podemos obter adicionando um ou mais destes axiomac; a X. Neste artigo, contudo, estamos interessados apenas no número de modalidades, portanto, não vamos examinar todos os sistemas. É claro que, se todos os axiomas fossem independentes, teríamos algo como 230 novas lógicas. Contudo, uma vez que alguns axiomas acarretam outros, nem toda combinação de axiomas é uma nova lógica. Por exemplo, sabemos, das lógicas modais aléticas, que Sk acarreta 4k; a<;sim, a lógica X5k4k é na verdade simplesmente xsk. o primeiro passo, portanto, é identificar possíveis relações de acarretamento entre pares de axiomas - o ·que foi parcialmente indicado na Figura 1 acima (uma seta de um axioma x para um axioma y significando que x acarreta y em X). Além dessas relações, temos ainda as apresentadas na seguinte proposição, que estamos enunciando sem provar. (As demonstrações, contudo, não são difíceis.) Proposição 1. ~
1.
Xu {C, VP} f- Bq>
2. 3.
Xu{cP,V}f-Bq>~Kq>
Xu{C,BP} f- Bq> ~ Kq>
4. Xu{P,W,E}f-F 5. Xu{4k,F, V} f- Sk 6.
Kq>
Xu{Q,W,V} f-S*,P
10. 11. 12. 13. 14. 15.
Xu {VP,R} f- LP Xu{F, V} f- Mb Xu{F, W} f- M* Xu{Q,V} f- P Xv{C,E} f- 5b Xu{P,W,V}f-Sk,Q
86 7. 8. 9.
Cezar A. Monari
Xu{4b,Q} 1- P Xu{Sb,P} 1- Q Xu{F,C} 1- P,Q
16. Xu{Q,Mb} 1- M.t 17. Xu{P,S.t} 1- Q 18. Xu{C"} 1- CP
O que ( l) realmente mostra é que os axiomas C e V P - este último sendo uma versão mais fraca de 5* - são, em certo sentido, incompatíveis. Basicamente, o problema surge se supomos que algum agente tem a convicção de saber algo, sem realmente sabê-lo (Bp e • Kp). Ora, Bp gera, através de C, BKp. Por outro lado, VP requer, de proposições que um agente não sabe, que ele não acredite que as sabe (oKp ~ •BKp). Isso traz uma inconsistência, pois ficamos com BKp e • BKp. É claro que esta situação nunca ocorre se C e VP valem, justamente porque, para esta espécie de superagente, acreditar que uma proposição é verdadeira implica que ela é mesmo verdadeira. Isto certamente não é nada realista. Se houvesse tais agentes, não seria possível distinguir, para eles, conhecimento e crença e, neste ca~o. não é necessário ter dois operadores para a mesma atitude. Pela mesma razão, (2) e (3) mostram que CP e V , e C e eh são incompatíveis. (CP c VP, por outro lado, não são.) Esta incompatibilidade entre C e VP (e, assim, entre C, e s.t e V, que acarretam VP), junto com os outros acarretamentos listados na proposição, acima reduz em muito o número de extensões de X. Mesmo assim, é um n6mero ba'itante grande. As lógicas mais fortes que podemos ter são XQS.t e XC4*Q. É fácil verificar, na Figura 1, que XQS* 1- P , e que, portanto, os únicos axiomas que ainda não são teorema~ desta lógica são cP e C- que são incompatíveis com s.t. Por outro lado, XC4kQ 1- P, e os únicos axiomas que não são teoremas desta lógica são BP e a<; fórmulas que o acarretam. Porém, C é incompatível com todas elas. Assim, qualquer axioma que adicionarmos a uma das duas lógicas produz o mais forte sistema de todos, onde B e K são equivalentes, sistema que já decidimos desconsiderar. Não vamos, portanto, nos ocupar neste artigo de todas a'i extensões possfveis de X através do uso de um ou mais dos 30 axiomas apresentados. O que nos interessa aqui são as modalidades; assim, vamos identificar primeiro a lógica mais fraca com um número finito de modalidades distintas nãoequivalentes, e considerar então suas extensões. 4. Modalidades e leis de redução
Vamos agora discutir a questão de se o número de modalidades não-equivalentes em nossas lógicas epistêmicas é finito (e, nesse caso, quantas modalidades há), ou se é infinito. Vamos falar sobre este assunto nesta seção, e fazer uso de
Modalidades em l6gicas de conhecimento e crença
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alguns resultados da lógka modal alética. Recordemos que uma modalidade é uma seqüência finita de operadores unários (incluindo • ), como KB• K ou KK-,-,K. Uma modalidade yn de comprimento n é redut(vel, numa lógica L, a urna modalidade xm de comprimento m < n se yn q> H xm q> é um teorema de L. Este teorema é então chamado uma lei de redução. Duas modalidades x e y são ditas distintas, ou niüJ-equivalentes, em uma lógica L, ser'L x<p H y<p. Em alguns sistema<; de lógica moda! alética, em SS para citar um, temos apena<; um número finito de modalidades distinta<;. Por exemplo, em SS, DODD<p é equivalente a Oq>. Por outro lado, muitos sistemas, como T, têm um número infinito de modalidades distintas, ou seja, para cada n, há uma modalidade de comprimento n que não pode ser reduzida a uma modalidade de comprimento m < n. Em lógicas epistêmicac; multi-agentes, não é possível ter um conjunto finito de modalidades distintas, por uma razão muito simples. Ainda que, por exemplo, tenhamos Kt K2<p ~ Kt q>, não é o cac;o que K1 <p ~ K1K2q>. Por isso, estamos nos concentrando aqui em sistemas para um agente único. Ora, o ramo de conhecimento de X - o conjunto daquelas fórmulas em que nem B nem P ocorrem - corresponde a T, c uma vez que esta lógica, não tendo axiomas de redução como 4 (D <p ~ DD<p) ou 5 (O<p ~ DO<p), tem um número infinito de modalidades, poderíamos suspeitar que isto também será o caso com respeito a X. Significando que, sem um axioma como 4*, provavelmente teremos um número infinito de distintas K-modalidades. Claro, devemos verificar se a presença de axiomac; mistos altera este quadro. Ainda que não tenhamos, como em KT4, K <p ~ K K q> como teorema, poderíamos ainda obter, devido a axiomac; de crença, algo como, digamos, KBq> H K K K <p, que permitiria a redução de modalidades a um número finito. De modo similar, o ramo de crença de X corresponde a KD, e sabemos que mesmo em KD4 o número de modalidades é infinito também; assim, precisaremos ter ao menos o axioma 5b (KDS de fato tem um número finito de modalidades não-equivalentes). Não obstante, mesmo que os ramos de conhecimento e crença tenham um número finito de modalidades, precisamos também mostrar que o número de modalidades mistas também é finito, o que não é necessariamente o caso. Com relação à primeira parte, podemos mostrar que, de fato, as lógicas (neste artigo) que não têm 4* c 5b como teoremas têm um número infinito de modalidades distintas. Examinaremos quatro lógicac;: XCQ e XQVB*, ac; lógicas mais fortes sem 4*, e X4b5k e XPC4k. as lógicas mais fortes sem 5b. A razão de termos duas lógicas para cada um dos axiomas deve-se à incompatibilade entre o axioma C e seus derivados, por um lado, c 5k e seus, por outro.
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Ou seja, XCQ é a lógica mnis forte, contendo C, do qual ~ nllo 6 teorema; XQVB*, a mais forte contendo V c ~, ma.9 nAo 4*. (Se Sk fosse um teorema, 4.t seria demonstrável, claro). Para demonstrar que estas lógica.~ silo. de fato, a.~ mais fortes sem~ ou 511, basta conferir na Figura 1 c, com auxflio da Pmpo~~içllo 1, verificar que, om cada caso, qualquer um dos axiomas faltantes leva à derivoÇIIo, na lóglcn em questão, de 4* ou Sb. Consideremos, por exemplo, XCQ. A ProrsiçAo 1. Item 7, nos diz que X4bQ f- P. E, na Figura 1, vemos que C f-x 4 . Assim, os dnicos axiomas a não serem teoremas de XCQ silo Bb e as fórmulas que a acarretam. Já sabemos, porém, que C e IJb são incompatíveis. Logo, nada há que possamos acrescentar a XCQ que não acarrete 4*. Para mostrar que 4* nllo é um teorema de XCQ, consideremos o modelo Ma seguir. SejaM= {(a,b,c,d).~,8}, tal que~ é reflexiva em M. Além disso, ~ab. ~bc, e, para todo estados em M, ~sd c Bsd. Finalmente, seja a(p) = b(p) = d(p) = 1, e c(p) =O. É fácil verificar queM 6 um XCQ-modolo, que (M,a) F Kp, mas que (M,a)Jo! KKp. Logo, 4* nlo é teorema de XCQ. Thorema 1. O número de modalidades distintas em XCQ e XQVB* I i'lfinito.
Prova. Vamos considerar XCQ primeiro. Vamos mostrar que, para qualquer n. modalidades consistindo de n Ks não podem ser reduzida.c; a modalidades mais curtas. Em outras palavras, não há um teorema da forma Kn cp H x'" q>, onde n > m, ex'" é uma modalidade de comprimento m. Suponhamos que houvesse, para algum m, n, um tal teorema. Em primeiro lugar, podemos supor que x'" é uma modalidade afirmativa (i.e., onde-, não ocorre). Se xm contém-,, podemos mover os sinais de negação para dentro, eliminando as duplas negações. No final, ou r" é afirmativa (contém K, B, P, M apenas), ou xm = ym-1-,. Neste último caso, uma vez que K-,qJ implica 8-,q>,P.q>, e M-,q>, Knq> ~ Km-1-,q>, e portanto KnqJ ~ •(/), também seria um teorema de XCQ. O que é absurdo. Logo, x'" é afirmativa. Se há agora um teorema da forma Knq> H xmcp, seguese entAo que Pq> ~ Knq> também é um teorema de XCQ. Mostramos que não é, construindo um modelo que falsifica P p ~ Kn p, uma instância desta fórmula. Seja M=({ao, ... ,an,b}.~.B), tal que: (a) (b) (c)
(d) (e)
b(p)= ao(p)= ... =an-t(P)= 1, an(P) =O;
VxJCx:x; VxJCxb; VxB:xb; Vi<n:~a,a;+t·
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Modalidades em lógicas de conhecimento e crença
É óbvio que a relação /C é reflexiva, e que B é serial, e que B ç /C. Não tão óbvio é o fato de que as condições para C e Q valem, mas o leitor pode fa-
cilmente verificar isso. Além disso, uma vez que a,(p) = O, (M,a,_1)Jz! Kp, e, finalmente, (M,a0 )Jz! K"p. Por outro lado, uma vez que cada estado dá 1 a p, exceto a,, e uma vez que a, não é /C-accessfvel a ao, (M,a0 ) I= Km p. Logo, P p ~ K" p é falsa neste modelo, e não é, portanto, um teorema. Segue-se que, para qualquer n, há uma modalidade de comprimento n consistindo apena<; de Ks. Isso é suficiente para mostrar que XCQ tem um número infinito de modalidades distintas. Uma variação no modelo anterior mostra que P<p ~ K"<p também não é um teorema de XQVBk: ba<;ta substituir os requisitos (c) e (e) acima por (c) '1'/x(JCxbA/Cbx); (e) "i/i< n: (JCa;ai+tAICa,+la,).
É fácil verificar que o modelo satisfaz as condições necessárias para os axiomas
de XQVB·\ contudo, Kmp ~ K"p é falsa nele.
•
Thorema 2. O número de modalidades distintas em XPC4k e X4b5k é infinito. Prova. Suponhamos que houvesse um teorema da fonna <p =B" p H x"' p, onde n > m, e xm é uma modalidade de comprimento m. Por razões análoga<; às apresentadas no teorema anterior - teríamos B" p ~ JC-1-,p, e assim B" p ~
•P como teoremas - podemos supor que xm é uma modalidade afirmativa Vamos examinar alguns casos para ver que forma esta modalidade pode tomar. (I) xm contém apenas ocorrências de B. Se cp fosse um teorema, então B" p ~
sm p também seria um teorema. Vamos mostrar que não é. Para isto, consideremos um modelo M =({ao, ... ,a,},JC,B), tal que:
(a) (b) (c) (d)
ao(p)= ... =am(p)=O, am+t(P) = ... =a,(p) '1'/x"i/y/Cxy; Ba,a,; '1'/i,j,i < j ~ n, Ba;ai.
=1;
É fácil ver que JC é uma relação de equivalência, que B é serial e transitiva, e queB ç;, /C. Também é fácil de verificar que (M,ao)Jz! Bmp, e que (M.ao) I= B" p, e B" p ~ sm p é assim falsa; logo, <p não é um teorema. Segue-se que, para qualquer n, há uma modalidade de comprimento n consistindo apenas de Bs, e não-redutível a uma modalidade de comprimento menor. Substituindo, no modelo acima, o requisito de que IC seja uma relação universal (de equivalência) pelo requisito de que seja apenas reflexiva e transitiva,
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Cezar A. Monari
veremos que as condições para C e P também são satisfeitas, e que, portanto, 8" p ~ Bmp também não é um teorema de XPC4k. (2) x'" não contém ocorrências de K nem de M, mas apenas ocorrências de B, e ao menos uma de P. Suponhamos que a primeira ocorrência (a mais à esquerda) de P esteja na posição k. Se ({J fosse um teorema, então x"'p ~ B" p também seria. Vamos mostrar que esta última fórmula não é teorema de X4bs.t. SejaM = ({ao, ... •an,b},JC,B), tal que: (a) (b) (c) (d)
ao(p) = ... = an(P) = O, b(p) = 1; Vx'Vy/Cxy; Banan; Bbb; Ba.tb; Vi,j, i < j ~ n, Ba;aj.
É fácil ver que JC é uma relação de equivalência, que 8 é serial e transitiva, e queB ç;;, JC. Também é fácil de verificar que (M,ao)Jt B" p, e que (M,ao) I= xm p, e, em conseqüência disso, que ({J é fal.<;a. Substituindo a exigência de ser relação de equivalência por refl exividade c simetria, o modelo resultante também falsifica a fórmula para XPC4Jc, como podemos facilmente verificar.
(3) xm contém ao menos uma ocorrência de K e/ou M. Vamos considerar dois subcasos: (3a) O operador de conhecimento mais à direita (ou seja, K ou M) em xm é K. Bem, uma vez que ({J é um teorema, por hipótese, B" p ~ xm p também é. Suponhamos que o operador K mais à direita está localizado na posição k. Seja agoraM =({ao.... ,an.b},JC,B), tal que: (a) (b) (c)
ao(p)
=... = On(P) = 1, b(p) =O;
Banan;
Bbb;
Vi,j,i<j~n.
ICa~cb;
Ba;aj.
Ou seja, temos uma sucessão linear de mundos a;, dando 1 a p, e, na posição k há uma "bifurcação" para um mundo b, /C-acessível a a~;, e 8-acessível a si mesmo, onde p leva O, da mesma maneira que todas as subfórmulas à direita de K em r". Se fizermos o requisito de que JC seja uma relação de equivalência, teremos um X4bs.t-modelo falsificando B" p ~ x"'p. Se exigirmos de JC apenas reftexividade e transitividade, veremos que temos um XPC4.t -modelo (as condições para P e C são automaticamente satisfeitas) falsifi cando B" p ~r" p. (3b) O operador de conhecimento mais à direita é M , na posição k. Por um raciocínio análogo ao do caso precedente, analisando a estrutura de r", vemos que, se ({J é um teorema, x"' p ~ B" p também deve ser um. E podemos construir um modelo, análogo ao caso anterior, mostrando que isto não é o caso.
Modalidades em lógicas de conhecimento e crença
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.
Segue-se que X4b5J: e XPC4* têm um número infinito de modalidades distin~.
Corolário 1. Qualquer extensão de X q11e não tenha Kcp --7 KKcp ou -,Bcp --7 8-,8cp como teoremas tem um ruimero infinito de modalidades distintas. O que este corolário mostra é que precisamos ter ao menos 4.t e 5b em nossas lógicas, para que haja uma possibilidade de ter um número finito de modalidades distintas. A lógica mais fraca contendo ambas as fórmulas como teoremas é, obviamente, X4k5b. Ora, um resultado em lógica modal alética nos diz que o ramo de conhecimento desta lógica tem as modalidades de S4 (í.e., KT4), que são catorze, enquanto que o ramo de crença tem as mesmas modalidades de KDS, que são dez (ver, e.g., Chellas 1980). Não se segue ainda que o número de modalidades de X4k5b é finito, porque poderíamos ter algo como (K8)"cp, para qualquer n, que poderia ser irredutível a modalidades mais curtas. Vamos mostrar que isto não é o caso, c que X4.tsb tem, de fato, finitamente mui~ modalidades distintas. Thorema 3. Em X4k5b há 114 modalidades distintas, a saber • (a modalidade imprópria), K, 8, P, M, KB, KP, KM, MK, M8, MP, 8KIPK, B8/P8, 8PIPP, 8M/PM, KMK, KM8, KMP, K8KIKPK, K8P/KPP, MKB, MKP, MKM, M88/MP8, M8MIMPM, 8K8/PK8, 8KP/PKP, 8KMIPKM, 8MKIPMK, 8M8/PM8, 8MPIPMP, KMKB, KMKP, K8KPIKPKP, KM88/KMP8, MKM8, MKMP, MKBPIMKPP, M8M8/MPM8, 8KMKIPKMK, 8KM8/PKM8, 8KMPJPKMP, 8K8PIPKBP/8KPPIPKPP, 8MK8/PMKB, 8MKPIPMKP, 8MKMIPMKM, 8M88/PM88/8MP8/PMP8, KMK8PIKMKPP, MKM88/MKMP8, 8KMK8/PKMK8, 8KMKPIPKMKP, BKM8B/PKMBB/8KMP8/PKMP8, BMKM8/PMKMB, 8MKMPIPMKMP, 8MK8PIPMK8PIBMKPPIPMKPP, 8KMK8PIPKMK8P/BKMKPNPKMKPP,8M~88/PMKM88/BMKMP8/PMKMP-
8, e, é claro, suas negações: -,•, -,K, e ass.im por diante. As implicações entre as modalidades afirmativas podem ser vistas na Fig. 4 (no final do artigo). Prova. A prova é bastante longa, mas relativamente sem problema~. Em primeiro lugar, como mencionamos acima, o ramo de conhecimento de X4*5b corresponde à lógica modal alética S4, que tem apenas dez modalidades. Algumas modalidades, como o leitor pode ter notado, foram colocadas juntac; na lista acima, como 8K8/PK8: isso significa que elas são equivalentes (poderíamos remover uma dela~ do par), mesmo que não sejam mais redutíveis a modalidades mais curtas. Assim, o que temos que fazer é mostrar que temos um número finito de modalidades onde aparecem tanto operadores de conhecimento quanto de crença
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Cezar A. Monari
Faremos isto usando a seguinte lista de equivalênciac;, que são teoremac; de X4*Sb. (Para apresentar uma lista completa, estamos listando também as equivalencias entre as modalidades só de conhecimento, ou só de crença). 1. KKqH~K<p 2. MM<pHM<p 3. BB<p H PB<p 4. BP<p H PP<p 5. BK<p H PK<p 6. BM<p H PM<p 7. KBB<p H KB<p 8. KPB<p H KB<p 9. KBM<p H KM<p 10. KPM<p H KM<(J 11. BBK<p H BK<p 12. BPK<p H BK<p 13. PBK<p H PK<p 14. PPK<p H PK<p 15. BBB<p H BB<p 16. BPB<p H BB<p 17. PBB<p H PB<p 18. PPB<p H PB<p
19. BBP<p H BP<p 20. BPP<p H BP<p 21. PBP<p H PP<p 22. PPP<p H PP<p 23. BBM<p H BM<p 24. BPM<p HBM<p 25. PBM<p HPM<p 26. 27. 28. 29.
30. 31. 32. 33. 34. 35.
PPM<p HPM<p MBK<p HMK<p MPK<p HMK<p MBP<p HMP<p MPP<p HMP<p KBKB<p H KB<p KPKB<p H KB<p KBKM<p H KM<p KPKM<p H KM<p KMKM<p H KM<p
36. KMKB<p H KM<p 37. KMPM<p H KM<p 38. BKBK<p H BK<p 39. PKBK<pH BK<p 40. BKPK<pHPK<p 41. PKPK<p H PK<p 42. BMBM<p HBM<p 43. PMBM<p HBM<p 44. BMPM<p H PM<p 45. PMPM<p HPM<p 46. MKBK<p H MK<p 47. MKPK<pHMK<p 48. MKMK<pHMK<p 49. MBMK<p HMK<p 50. MPMK<p HMK<p 51. MBMP<p HMP<p 52. MPMP<p HMP<p
Vamos começar com as modalidades de comprimento 2, que são as modalidades mistas mais curtas, e considerar apenas os casos afirmativos, uma vez que as modalidades negativas podem ser tratadas da mesma maneira. (i) Temos oito modalidades mistas possíveis de comprimento 2: KB, KP, BK, PK, BM, PM, MB, e MP. As equivalência'> (5) e (6) mostram que, por exemplo, BK e PK são equivalentes, mesmo que não sejam mais redutíveis. A'iSim, temos de fato 6 modalidades de comprimento 2. (ü) Se agora prefixarmos (ou sufixarmos) estas modalidades com um K , B, P, ou M , obtemos 24 modalidades mistas de comprimento 3. Algumas delas -como KKB e MMP - podem ser imediatamente reduzidas a modalidades de comprimento 2. Ac; equivalências (7)-{14) e (23)-{30) acima permitem a redução de outras oito, enquanto que, usando mais uma vez (5) e (6), nós colocamos algumas das remanescentes em pares. Feito isto tudo, terminamos com 16 modalidades de comprimento 3, aquelac; listadas no enunciado do teorema. (iii) O próximo passo é prefixar as modalidades assim obtidas com um K , etc., para obter modalidades de comprimento 4, o que nos dá 64 possibilidades. Usando todas as equivalências acima, reduzimos este número a 16 (listadas acima).
Modalidades em lógicas 'de conhecimento e c rença
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(iv) Repelimos o procedimento para obter modalidades de comprimento 5. As 64 possibilidades obtida~ podem ser reduzida<; a 8 modalidades, listadas acima, que não podem ser adicionalmente reduzidas. (v) tomando as 8 modalidades recém obtidao;, c repetindo o procedimento, obtemos 32 possíveis modalidades de comprimento 6. O uso das equivalência-; mais uma vez reduz este número a 2: BKMKBP e BMKMBB, e, claro. todos os seus equivalentes. (vi) É fácil ver agora que não podemos obter modalidades adicionais que não sejam redutíveis por uma das 52 equivalência-;. Vamos tomar BKMKBP como exemplo: prefixando-a com um K, B, P, ou M, obtemos KBKMKBP, BBKMKBP, PBKMKBP, e MBKMKBP. Ora, (33) nos diz que a primeira destas é equivalente a KMKBP; por (11), a segunda é equivalente a BKMKBP; por (13), a terceira é equivalente a PKMKBP; finalmente, (27) reduz a quarta a MKMKBP- e uma aplicação de (48) nos dá MKBP. .De fonna similar para BMKMBB. Assim, não há modalidades irredutíveis de comprimento 7 ou maior. Portanto, X4k5b tem no máximo 114 modalidades distintas. Para provar a outra direção (que não podemos reduzir mais estas modalidades) necessitamos mostrar, para cada par de modalidades, que elas não são equivalentes, o que pode ser feito construindo modelos que verificam uma e falsificam a outra. Não faremos isto aqui, contudo, devido ao grande número de testes necessários. Um pouco de engenhosidade pode reduzir esse número, claro. Por exemplo, ao invés de comparar, digamos M com todas as outras modalidades, apenao; necessitamos mostrar que Jz! Mcp ~ MBMcp e que Jz! Mcp ~ cp. Uma vez que, para toda modalidade x, xcp acarreta Mcp (cf. Fig. 4. p. 96), se x fosse equivalente a M, Mcp teria que acarretar MBMcp, e isto não é o caso, como se pode facilmente verificar. • Assim, fica demonstrado que X4k5b é a menor das extensões de X a ter um número finito de modalidades distintas. A questão que gostarfamos de considerar, agora, é: quantas extensões temos de X4tsb, e que modalidades cada uma dela-; têm? Como 4.1: e Sb acarretam alguns dos axiomas da Figura I, o número de axiomas dispon1veis será menor que os 30 lá representados. Além disso, em X4k5b temos ainda alguns outros acarretamentos. A proposição seguinte resume isto: Proposição 2. I. 2. 3.
X4t5bu{PP}I-F X4k5bu{R} 1- F X4.1:5bu{CP} 1- C
5. 6. 7.
X4.1:5bu{Y} 1- 4b X4.1:5bu{BP} 1- sh X4.t5bu{sh} 1- V
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Cezar A. Mortari
Em conseqüência da proposição acima, ficamos, para fazer extensões de X4k5b, apenas com os axiomas apresentados na Figura 2 abaixo.
Figura 2: Axiomas para estender X4k5b Combinando estes axiomas, e observando as relações de acarretamento indicadas na~ Figuras 1 e 2, e nas Proposições 1 e 2, chegamos ao número de 14 extensões possíveis de X4k5b, todas elas, claro, com um número finito de modalidades distintas. (X4tsb e sua~ extensões estão representadas na Fig. 3.)
Figura 3: Sistemas com um número finito de modalidades Os teoremas a seguir, agora, dizem respeito ao número de modalidades nas remanescentes 141ógicas. (Lembramos outra vez que modalidades equivalentes, mas não adicionalmente redutíveis, estão colocadas juntas.)
Modalidades em lógicas de conhecimento e crença
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Thorema 4. Em X4k5b4b há 82 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, KB, Kl~ KM, MK, MB, MP, BKIPK, BMIPM, KMK, KMB, KMP, KBKIKPK, MKB, MKP, MKM, MBMIMPM, BKB/PKB, BKP/PKP, BKMIPKM, BMKIPMK, BMBIPMB, BMP/PMP, KMKB, KMKP, MKMB, MKMP, BKMKIPKMK, BKMBIPKMB, BKMPIPKMP, BMKB/PMKB, BMKPIPMKP, BMKMIPMKM, BKMKB/PKMKB, BKMKPIPKMKP, BMKMB/PMKMB, BMKMP/PMKMP, e suas negações. (Relações de acarretamento entre as modalidades afirmativas podem ser vistas na Fig. 5.) Teorema S. Em X4ksby há 58 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, KB, KP, KM, MK, MB, MP, BB/PB, BP/PP, KMK, KMB, KMP, KBP/KPP, MKB, MKP, MKM, MBBIMPB, KMKB, KMKP, KMBBIKMPB, MKMB, MKMP, MKBPIMKPP, KMKBPIKMKPP, MKMBB/MKMPB, e suas negações (ct Fig. 8). Teorema 6. Em X4k5b4bV há 42 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, KB, KP, KM, MK, MB, MP, KMK, KMB, KMP, MKB, MKP, MKM, KMKB, KMKP, MKMB, MKMP, e suas negações (cf. Fig. 9). Teorema 7. Em X4k5bF há 34 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, KB, KP, MB, MP, BKIPK/MK, BBIPB, BPIPP, KMIBMIPM, KBPIKPP, MBBI MPB, BKPIPKPIMKP, KMBIBMBIPMB, e tambbn suas negações (ct Fig. 6). Thorcma 8. Em X4ksbpp há 30 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, KB, KP, MB, MP, BKIPKIMK, BBIPB, BP/PP, KMIBMIPM, BKPIPKPIMKP, KMB/BMBIPMB, e também suas negações (ct Fig. 6). Teorema 9. Em X4*Sb4bF há 26 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, KB, KP, MB, MP, BKIPKIMK, KM/BMIPM, BKP/PKP/MKP, BKP/PKPIMKP, KMBIBMB/PMB, e suas negações (ct Fig. 8). Thorema 10. Em XSkSb há 26 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, KB, KP, MB, MP, BBIPB, BP/PP, KBP/KPP, MBBIMPB, e suas negações ( ct Fig. 9). Teorema 11. Em X4bs.l:sb há 18 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, KB, MB, KP, e suas negações (ct Fig. 7). Teorema 12. Em X4tcsb há 18 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, KB, KP/KM, MK/MB, MP, e suas negações ( cf. Fig. 7). Teorema 13. Em XSksbpp há 18 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, KBIBBIPB, KP, MB, BP/PP/MP, e suas negações ( ct Fig. 6).
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Thorema 14. Em XP4kQ há 14 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, BK/PKIMK, KMIBM/PM, e suas negações (cf. Fig. 7). Thorema 15. Em XC41Q e também em XQSic, há 10 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M, e suas negações (cf. Fig. 7). S.
Observações finais
O objetivo deste artigo era investigar o número de modalidades distintas nãoequivalentes em alguns sistemas de lógica epistêmica. Isto foi feito para a lógica básica X e suas extensões através de um número razoável de possíveis axiomas que identificamos. Mas este trabalho ainda pode ser ampliado: poderíamos examinar lógicas formadas usando-se outros axiomas (fórmulas com a estrutura x 2 q> ~ y2 q>, por exemplo) que não foram discutidos aqui, e que ficam para trabalhos futuros.
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A NATUREZA DA CRENÇA MÁRIO A. L. G UERREIRO Departamento de Filosofia da UFRJ
No contexto da filosofia analítica, podem ser encontradas ao menos três destacadas concepções a respeito do status ontológico da crença: (1) como ocorrência consciente, (2) como disposição e (3) como estado. Pode ser que haja outras, mas são justamente estas que tematizaremos na presente abordagem. Tentaremos mostrar que nenhuma destas concepções por si só pode dar conta inteiramente do caráter complexo do conceito de crença, embora cada uma delas chame a atenção para um particular aspecto que não deve ser negligenciado. Ao que tudo indica, a concepção (I) remonta ao pensamento de D. Hum e. No Treatise of Human Nature (livro 1, parte 3, seção 7), ele se voltou para a natureza das crenças indutivamente adquiridas concernentes às questões de fato e apresentou uma concepção da crença como uma idéia vívida associada a uma impressão presente. Desse modo, transpondo a linguagem humeana para um fraseado contemporâneo, dizer que a tem a crença x equivale a dizer que a está de posse da idéia vívida x. Do modo como Hume se expressou, o que estava em jogo era uma relação entre a (um indivíduo humano qualquer) e x (uma idéia vívida qualquer), não uma relação entre a e p (uma proposição qualquer), coisa que caracterizaria uma especial atitude proposicional simbolizada na lógica epistêmica de J. Hintikka (1962) pela expressão Bap (a crê que p). Contudo, antes de discutir se a crença pode ser tratada de outra maneira que não uma atitude proposicional, há um ponto para o qual devemos chamar a atenção. Embora a concepção de Hume possa estar adequada a uma situação tal em que um indivíduo tem uma crença aflorada na sua consciência, ela não está adequada a outra situação em que cabe dizer que um indivíduo tem uma crença qualquer, porém esta apresenta um caráter imanifestado. Um indivíduo desacordado ou em sono profundo pode ter a crença de que, por exemplo, corpos físicos não se interpenetram. Esta crença não está aflorada na sua consciência, mas quando ele acordar e se dirigir para a porta, de modo a sair do quarto em que se encontra, podemos afirmar que ele agiu sob esta crença, ainda que não tenha se dado conta disto. (Supondo que Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV En~ojltro de Filosofia Anal/fica. Florianópolis: NEL, pp. 102-32. ''-··:
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ele não a tivesse, ele poderia tentar sair do quarto atravessando a parede, coisa que só um demente tentaria). Se reduzirmos a crença à sua atualização, mediante esta ou aquela idéia ou mesmo mediante a consideração desta ou daquela proposição, ficaremos em urna situação dificil para compreender uma série de crenças que estão alojadas na memória, que - por diferentes motivos ou razões - não se manifestam em um determinado momento, mas podem se manifestar em um momento subseqüente. Por exemplo: um indivíduo pode ter a crença imanifestada de que, caso ele despenque do décimo andar de um edificio, seu corpo se esborrachará no chão. Não é dificil imaginar situações em que esta mesma crença passe de um estado latente a um manifesto. Suponhamos, por exemplo, que ele esteja lavando a janela de um apartamento e uma das cordas que o prendem se rompa. Levando em consideração esta possibilidade de um indivíduo ter uma crença imanifestada, G. Ryle (1949) deixou de lado qualquer consideração da crença como um conteúdo de consciência (seja a de uma idéia vívida de x, a aceitação tácita de que p, etc.) e passou a conceber como uma disposição para a ação. Na linguagem coloquial, a noção de disposição costuma ser usada em relação a seres animados (pessoas ou animais). Diz-se, por exemplo, que determinada raça de cães é facilmente irritável ou que determinada pessoa é confiável. A irritabilidade e a confiabilidade são consideradas disposições. Um animal irritável se mostrará irritado diante de tais e tais estímulos e uma pessoa confiável se mostrará uma pessoa de confiança em tais e tais situações. Termos tais como "irritado", "deprimido", "eufórico" expressam estados afetivos, porém termos tais como "irritável," "deprimlvel", "excitável" não expressam estados: expressam disposições afetivas passíveis de se manifestarem ou não. Desconsiderando inteiramente quaisquer conteúdos de consciência e levando em consideração tão-somente a noção de que está em jogo uma propensão para alguém agir de tal modo, ou uma coisa se mostrar de tal modo, Ryle pôde tratar disposições humanas do mesmo modo que se poderia tratar disposições de seres inanimados. Desse modo, a elasticidade e a quebrabilidade passaram a ser consideradas disposições de determinados materiais como a borracha e o vidro. A disposição passou a ser considerada uma propriedade especial, mas uma propriedade cuja caracterização independia de estar em jogo a noção de consciência. A vantagem mais óbvia e imediata desta concepção é que se entendemos a crença como uma disposição para agir ou se mostrar em tal estado, podemos falar de "crenças" em relação a animais ou computadores, sem estar incorrendo no menor risco de estar usando uma linguagem antropomorfizante, pois tanto os primeiros como os
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segundos não só costumam apresentar propensões para se comportar de determinados modos, como também podem ser induzidos a substituir tais propensões por outras. À primeira vista, tudo indica se tratar de uma concepção bastante fértil e promissora para um esclarecimento disto que chamamos de "crença", desde que se tenha em mente a distinção entre: (a) uma disposição de uma coisa (animada ou inanimada) e (b) a manifestação de um estado correlacionado a esta disposição (por exemplo: a quebrabilidade de um pedaço de vidro comum e este mesmo pedaço se quebrando em determinada circunstância). O fato de x possuir a disposição DI não implica a manifestação de DI, embora implique a possibilidade fisica da manifestação de D1 e a impossibilidade fisica da manifestação de, digamos, D2. Supondo, por exemplo, que x seja uma xícara de porcelana, x possui D1 (quebrabilidade), que poderá se manifestar ou não, porém, neste caso, x não possui m (digamos, a maleabilidade) cuja manifestação constitui uma impossibilidade fisica. Supondo que x seja uma borracha de apagar coisas escritas, x possui m, que poderá se manifestar ou não, mas x não possui DI cuja manifestação constitui uma impossibilidade fisica. Usando uma linguagem aristotélica, isto consiste em dizer que só pode se atualizar uma propriedade de uma coisa que está na potencialidade desta mesma coisa, embora não seja necessário que ela se atualize nem que não se atualize. Brevemente delineadas as concepções da crença como (I) ocorrência consciente e (2) como disposição, podemos passar agora para a concepção da crença como (3) estado. D. M. Armstrong (I 981) procurou argumentar no sentido de que (2) é uma visão mais satisfatória do que (1), porém (3) poderia fornecer uma complementação capaz de preencher uma lacuna deixada por (2). Armstrong começa examinando a situação em que está em jogo uma crença manifestada, porém, diferentemente de Hume, não converge sua atenção para nenhum conteúdo de consciência, mas sim para uma condição tal em que um indivíduo manifesta uma especial atitude proposicional. Assim sendo, dizer que a crê que p é, para todos os efeitos, dizer que a está em determinado estado continuado, ou seja: um estado que perdura ao longo de todo o tempo em que um individuo mantém tal crença. No caso das crenças adquiridas, a atitude de a crer que p é, para Armostrong, uma questão de a mente de a estar carimbada ou impressa de algum modo. De acordo com a imagem tradicional sugerida por Platão no Teeteto (191, c-e), trata-se de algo análogo a uma impressão feita por um carimbo em um bloco de cera - uma marca capaz de durar por um tempo maior ou menor. Indo um pouco além da sugestão platônica, ele acrescenta que não é de nenhum modo necessário que a esteja consciente de que tem a crença de
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que p. Se entendêssemos a crença como uma idéia vívida, a afirmação acima seria nitidamente contraditória; mas, se a entendemos como um estado, não é de nenhum modo contraditório dizer que um individuo se encontra em determinado estado, mas sua atenção não está convergida para o estado em que ele se encontra. Neste sentido, "estar consciente de" para todos os efeitos, equivalente a "estar atento em relação a" e "não estar consciente de", "estar desatento em relação a". Há uma série de coisas que fazemos de um modo automático, sem que estejamos nos dando conta de que as fazemos no momento em que as faze·mos. Porém, ao simplesmente fazer tal coisa deste ou daquele modo, agimos sob esta ou aquela crença que comanda nossa ação. Por exemplo: um indivíduo que passa por um pedágio em uma estrada, enfia seu bilhete em uma máquina e desencadeia a abertura de uma cancela. Se perguntarmos a ele se ele tem a crença de que toda vez que fizer tal coisa obterá tal efeito, ele certamente dirá que sim. Porém o fato de ele possuir esta crença, e até mesmo o fato de desempenhar uma determinada conduta orientada por esta mesma crença, não implica de nenhum modo que em uma determinada situação específica ele esteja consciente de que (ou atento para o fato de que) a tem. Mais que isto: podemos ter uma série de crenças, agir sob estas mesmas crenças, porém nunca termos considerado o fato de que as abrigamos. Como propõe J. Searle: Tenho muitas crenças que não estou pensando nelas no momento e que posso jamais ter pensado. Por exemplo: acredito que meu avô paterno passou toda a sua vida nos Estados Unidos, mas até este momento nunca formulei conscientemente nem considerei esta crença. Tais crenças inconscientes, diga-se de passagem, não precisam ser instâncias de qualquer tipo de repressão, freudiana ou de outro tipo; são simplesmente crenças que se tem e que normalmente não se pensa sobre elas. (Searle, 1983, p. 2). Como já propusemos em um trabalho anterior (Guerreiro, inédito, 1996), uma análise da ação humana não pode deixar de levar em consideração que as crenças acionadas por um agente humano, digamos A I, estão em função do(s) objetivo(s) al.mejado(s) por ele. Desse modo, se AI visa ao objetivo 01, as crenças b 1, b2 e b3 que estavam adormecidas e arquivadas na sua memória, podem ser acionadas e as crenças b4, b5 e b6 podem ser narcotizadas. Isto não quer dizer que A I, ao visar a 02, não tenha b l ,b2 e b3, mas sim que elas não estão ativas e não são tomadas conscientemente em consideração na ação específica desenvolvida por ele. Armstrong afirma que a noção de estado de um objeto requer alguns
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esclarecimentos. Dizer que um objeto x está em em estado EI é para todos os efeitos atribuir uma propriedade a este mesmo objeto. Trata-se de uma propriedade não-relaciona! do objeto. Temos de distinguir o estado de um objeto das circunstâncias em que ele se encontra. É claro que o estado pode por si próprio envolver relação, quer dizer: o estado pode ser uma propriedade estrutural. Costumeiramente, o conceito de estado de um objeto é associado à estrutura interna do objeto, mas cabe pôr em dúvida se a noção de estrutura é parte do conceito de estado. Por exemplo: o conceito de temperatura não implica que o objeto - quente ou frio - esteja estruturado deste ou daquele modo. Todavia nem toda propriedade não-relaciona! de um objeto define um estado de objeto. Por exemplo: uma coisa é um cavalo em virtude de uma conjunção de propriedades não-relacionais, e uma conjunção de propriedades é também uma propriedade, mas não podemos dizer que o vencedor do Grande Prêmio Brasil há dez anos está no estado de ser um cavalo. Isto indica que quando falamos de um estado de um objeto sempre temos em mente uma classificação deste mesmo em relação à qual o estado é uma feição acidental ou mutável do objeto. Pode-se supor evidentemente o caso de um objeto sempre possuindo determinadas feições, mas, ainda assim, não se pode rejeitar a suposição de que ele possa perder estas mesmas. Desse modo, admitindo que crenças sejam estados, elas constituem feições acidentais ou mutáveis das mentes ou, caso se queira, das pessoas portadoras das mentes. (Armstrong, 1981, p. 9-l 0). Armstrong admite que a concepção acima apresentada é demasiadamente ampla. Embora possa constituir um fraseado não-coloquial e até soar de modo estranho, tal concepção permite dizer que um homem correndo está no estado de correr. Mas como poderia ser excluído este ato ou estado? Armstrong entende que a resposta talvez esteja no fato de que o conceito de correr é um conceito de um processo e por "processo" ele entende algo cujas diferentes fases apresentam diferenças de natureza, de modo tal que conceitos como o de movimento retilíneo uniforme - considerado um "estado natural" dentro do quadro de referência da mecânica clássica - não podem ser considerados processos. Contudo, um estado não tem de envolver necessariamente um processo. Ele pode ser um processo, mas não está implicado que é. Crenças podem ser concebidas como processos. Supondo que o fisicalismo fosse uma visão adequada, as crenças seriam circuitos reverberativos. Porém, diferentemente do conceito de correr, não é parte do conceito de crença que ele seja ou tenha de envolver um processo. O próprio Armstrong admite ser possível encontrar um contra-exemplo para o que foi proposto acima. Referimo-nos a uma pessoa ou a um líquido
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como estando em um estado agitado, e a agitação parece envolver um processo. Porém o que quer que se queira dizer com um "estado agitado" é este mesmo estado que é responsável pela agitação de uma pessoa ou de uma coisa. Neste ponto, ele introduz uma distinção entre (a) "uma pessoa estando agitada" (a person being agitated) e (b) "seu ser em um estado agitado" (his being in an agitated state). À primeira vista, parece que estamos diante de mera diferença de fraseado sem relevância conceitual. Armstrong procura esclarecer sua distinção dizendo que a primeira expressão se refere a uma condição particular e passageira, ao passo que a segunda se refere a uma condição continuada e de natureza não-especificada, que costuma produzir uma razoável quantidade de comportamentos agitados. Com este esclarecimento ele acredita que o contra-exemplo é derrubado. Segundo ainda Armstrong, a polêmica entre as concepções do status ontológico da crença como disposição ou como estado está repleta de malentendidos produzidos pelos defensores de ambas as posições. Diante disto, ele adota o seguinte procedimento: Primeiramente, ele apresenta três proposições tendo um caráter de quase-postulados. Em seguida, desenvolve um argumento em sete etapas, destinado a sustentar a concepção de crença como estado. As três proposições são: (l) Embora nem todos os estados sejam disposições, disposições são sempre tipos de estados. (2) Há uma espécie de crença (as crenças gerais) que podem ser plausivelmente concebidas como disposições. (3) No que diz respeito às outras espécies de crenças - apesar das inegáveis semelhanças entre estados-disposições e estados-crenças - há significativas diferenças. Estas fazem com que seja bastante desnorteante dizer que crenças não-gerais são espécies de disposições. (Armstrong, 1981 , pp. 11 0-1). Podemos passar agora ao argumento elaborado por Armstrong visando à sustentação das proposições elencadas acima. (I) Para cada proposição contingente verdadeira tem de haver algo no mundo que faz com que ela seja verdadeira. Se considerarmos uma proposição deste tipo e imaginarmos como ela poderia ser falsificada, teremos de imaginar automaticamente uma diferença no mundo. Isto não implica que, para cada proposição contingente verdadeira diferente, há algo no mundo que faz com que ela seja verdadeira. (2) Como corolário de (1), temos: onde um predicado F não é aplicável a um objeto x até um tempo t - mas é aplicável após t - então tem de ser o
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caso de que x sofreu uma transformação em 1. Não é dificil imaginar uma falsificação deste corolário. Suponhamos o caso de um homem que não tem cem anos de idade até antes de f, mas completa cem anos em t. Anteriormente, o predicado "cem anos de idade" não era aplicável a ele, mas passa a poder ser aplicado em 1. Apesar de ele não ter experimentado nenhuma transformação de nenhuma das suas propriedades não-relacionais, pode-se dizer que ele experimentou uma transformação de. ao menos uma das suas propriedades relacionais (a da sua relação com a sua idade). Armstrong entende que uma transformação de uma propriedade relacional de um objeto é, para todos os efeitos, uma transformação do próprio objeto. (3) Segue-se imediatamente de (2) que, se uma propriedade disposicional não é aplicável a um objeto antes de f, porém aplicável após 1, então tem de haver uma transformação do objeto em 1. Por exemplo: se um pedaço de vidro não era de fato quebrável antes de 1, mas se mostrou quebrável em 1 (em virtude de um impacto muito mais forte do que seu limite de resistência) então este mesmo pedaço de vidro tem de ter se transformado no tempo. Segundo pensamos, o exemplo é infeliz e a idéia de que uma transformação de uma propriedade relaciona) do objeto é uma transformação do próprio objeto fica seriamente comprometida. O termo " inquebrabilidade" é notadamente ambíguo, pois pode ser usado para fazer referência a (l) uma disposição não-encontrável em um objeto em virtude da sua própria estrutura (por exemplo: a inquebrabilidade de uma substância pastosa) e (2) uma disposição encontrável em virtude da sua estrutura e de um possível grau de impacto exercido sobre ela. Um objeto pode ser inquebrável, caso se choque contra o chão a uma distância de 2 metros, mas pode se quebrar caso se choque contra o chão a uma distância de 200 metros. Neste caso, pode-se dizer que sua inquebrabilidade é relativa à intensidade de um impacto sofrido por ele. Ele pode ser inquebrável até um determinado grau de impacto e passar a ser quebrável diante de um impacto mais intenso. A ponte Rio-Niterói foi construída com uma estrutura maleável de aço, de tal modo que pode balançar sem se quebrar sob o impacto de ventos de 120 km/h; mas, se ela recebesse o impacto de ventos de 400 kmlh, é bastante provável que ela se partiria. Desse modo, predicados tais como " quebrável" e " inquebrável" estão em uma condição semelhante à dos predicados criados por N. Goodman (1965, pp. 72-83) quando da apresentação daquilo que ele considerava o novo enigma da indução. Neste contexto, ele pedia que considerássemos "grue" (que é verde até 1 e azul após 1) e "bleen" (que é azul até I e verde após t). É como a história do pente " inquebrável" vendido pelo camelô. Se ele fosse colocado no bolso de trás, um indivíduo podia se sentar que ele não quebra-
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va, porém submetido a fortes torções - como um camelô às vezes fazia para persuadir os possíveis compradores do pente de sua resistência - ele acabava se quebrando, pois não tinha s ido fabricado para resistir a isto. (4) Armstrong se dá conta da dificuldade apontada e procura encontrar uma saída dizendo que pode ser levantada uma objeção à idéia de que a transformação tem de ser uma transformação nas propriedades nãorelacionais de um objeto. Estabelecido isto, ele pede que consideremos uma determinada ocorrência em que uma disposição se manifesta. Por exemplo: um pedaço de vidro quebrável é atingido por uma pedra e, em conseqüência disto, se quebra. Nesta, como em qualquer outra relação de natureza causal, a natureza do efeito depende de três fatores: (1) a natureza da causa, (2) a natureza das circunstâncias em que ela atua e (3) a natureza das coisas sobre as quais atua. O vidro em questão se quebrou, porque foi atingido pela pedra; ele não recebeu um tratamento técnico especial conferido aos vidros inquebráveis: ele é um vidro quebrável. Do modo como Armstroog se expressa, dá a entender que propriedades como a quebrabilidade podem ser concebidas como propriedades nãorelacionais. Mas o problema é que a quebrabilidade não depende apenas da estrutura de um material mas também da intensidade de uma pressão ou um impacto exercidos sobre ele. O vidro inquebrável de uma janela de avião provavelmente resistiria ao impacto de uma pedra, mas talvez não resistisse ao impacto de um tiro de bazuca. O vidro quebrável da janela da minha casa não resistiria ao impacto de uma pedra, mas poderia resistir ao impacto de uma bola feita com papel amassado. E se é assim, a quebrabilidade tem de ser pensada como uma propriedade relaciona) em que está em jogo a estrutura do material e a intensidade de um impacto ou pressão exercidos sobre ele, ou seja: x é inquebrável até um impacto de intensidade i3, mas passa a ser quebrável sob um impacto maior que i3; y é inquebrável até um impacto de intensidade i8, mas passa a ser quebrável sob um impacto superior a i8, etc. Todavia, este impasse não afeta a fórmula proposta por Armstrong: causas de determinada natureza + circunstâncias de determinada natureza+ disposição= efeito de determinada natureza Para Armstrong, uma disposição é algo que a coisa que a possui retém, tanto na ausência de uma causa inicial adequada, como na das circunstâncias adequadas para a atuação desta mesma causa. Um vidro quebrável continua sendo um vidro quebrável, mesmo quando não é atingido pelo impacto de um objeto duro e mesmo quando protegido para não ser atingido por nenhum objeto (por exemplo: uma tela de arame protegendo o vidro de uma
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janela). Contudo, a presença ou a ausência de uma causa inicial, assim como a presença ou a ausência de circunstâncias adequadas para a sua atuação, são as únicas propriedades não-relacionais do pedaço de vidro consideradas relevantes para seu quebrar ou não quebrar. Admitido isto, Armstrong passa a admitir que a posse da disposição tem de depender das propriedades nãorelacionais do vidro. (Armstrong, 1981, p. 12). lodo um pouco mais longe, Armstrong admite que o argumento acima pode ser posto em questão, a partir das possibilidades das circunstâncias envolvendo o pedaço de vidro - circunstâncias que formam uma unidade indissolúvel, juntamente com o próprio vidro, e que desempenham um importante papel causal na quebra do vidro. Sem dúvida. Estamos de pleno acordo com sua ressalva. Parece difícil conceber qualquer disposição (tanto de objetos como de indivíduos humanos) sem considerar ao menos a possibilidade da sua manifestação. Quando ela se manifesta, não podemos dizer que foi acionada unicamente por fatores internos (a estrutura de um material ou um mecanismo da mente humana), mas também por fatores externos (ação de forças fisicas sobre o material ou ação de estímulos sobre a mente humana). Um individuo irritável não se torna um indivíduo irritado simplesmente pela posse desta disposição, mas também pela atuação de fatores externos que a acionam. Mutatis mutandis, o mesmo pode ser dito de um objeto quebrável. Objetos ou pessoas podem ter ou não ter disposições para isto ou aquilo, mas, supondo que tenham determinada disposição, esta pode envolver uma questão de grau. Algumas pessoas são mais irritáveis do que outras, assim como determinados materiais são "mais quebráveis" do que outros, ou seja: quebram-se com mais facilidade ou não resistem a pressões ou impactos que outros resistiriam com facilidade. (5) Segundo Armstrong, a disposição implica não só a presença ou a ausência das propriedades relacionais do objeto, mas também a idéia de que o objeto está em determinado estado. Embora os estados dos objetos sejam propriedades não-relacionais dos objetos, nem todas estas propriedades são estados dos objetos. Para Armstrong, as características especiais destes estados são: (a) Se um objeto de determinado tipo está em um estado, é sempre possível que cesse de estar, porém continue sendo um objeto do mesmo tipo. (b) Embora estados possam envolver processos (como é o caso do circuito reverberativo) o conceito de estado nunca implica a existência de um processo. Para Armstrong parece claro que a ausência ou a presença de propriedades não-relacionais implicadas pela posse de uma disposição podem ser apropriadamente consideradas corno sendo um estado do objeto, porque cabe
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sempre fazer a suposição de que uma coisa que é quebrável ou elástica perca uma ou outra destas propriedades, mas não deixe de ser a mesma coisa. E uma vez que os conceitos disposicionais nos deixam na ignorância no tocante às propriedades do objeto que lhes fornecem essa disposição, segue-se que a atribuição de disposições não implica um processo tendo lugar no interior do objeto. (6) A atribuição de uma disposição a um objeto implica o objeto estando em um determinado estado. Cabe indagar, portanto, qual a real natureza deste mesmo estado. Armstrong considera impossível fornecer uma resposta de caráter apodítico. Para ele, a resposta mais plausível é: Qualquer estado que os cientistas apontem como o responsável pela manifestação da disposição quando uma causa inicial atua sobre o objeto. Assim sendo, no caso da quebrabilidade, a causa apontada é uma desagregação da estrutura molecular do objeto quebrável (Armstrong, 1981, pp. 12-13). (7) Concluindo seu argumento, Armstrong assevera que, se as disposições são estados do objeto, elas são destacadas claramente de outros estados pelo modo como são identificadas. Assim sendo, quando falamos da quebrabilidade de um objeto, estamos identificando um estado do objeto em relação ao que a coisa neste mesmo estado é capaz de produzir em conjunção com uma causa ativa, não identificando este mesmo estado em virtude da sua natureza intrínseca. Resta acrescentar que isto, por sua vez, está intimamente ligado ao papel desempenhado pelos conceitos disposicionais no nosso pensamento. Costumamos empregar este tipo de conceito quando descobrimos que um objeto de determinado tipo, acionado por uma determinada causa, comportase de modos inusitados, além dos costumeiramente conhecidos e esperados. Desse modo, creditamos a responsabilidade por estes modos de comportamento a um estado não-corriqueiro do objeto. Todavia, como não sabemos qual é a natureza deste estado, anteriormente a penosas pesquisas científicas, nós o nomeamos pelos seus efeitos. O próprio Armstrong reconhece que sua explicação está correndo o sério risco de ser tomada como uma explicação vazia e exposta ao ridículo, semelhantemente à fornecida pela conhecida personagem de Moliere - o médico que, quando indagado por que razão uma determinada droga farmacêutica produzia sono, disse prontamente que ela possuía uma vis dormitiva (força adormecedora). Assumindo sua própria defesa, Armstrong alega ter ao menos estabelecido a estrutura formal de uma explicação, que pode se mostrar posteriormente proveitosa. Ele se declara satisfeito em parte com seu argumento, à medida mesma que este, entre outras coisas, alcançou a idéia de que disposições são conceitos primitivos - conceitos de estados especificados pelo que a coisa,
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neste ou naquele estado, é capaz de produzir como efeito. Investigações cientificas costumam conduzir à identificação contingente da natureza destes mesmos estados. (Armstrong, 1981, pp. 15-6). Para Armstrong, os conceitos de disposição e de estado são bastante distintos, mas não incompatíveis. À primeira vista, uma crença pode ser concebida como uma disposição e ao mesmo tempo como uma impressão marcada na mente. Ele entende que as crenças particulares devem ser concebidas como estados, mas as crenças gerais devem ser concebidas como disposições. Para ele, há fortes diferenças entre disposições e crenças particulares. Uma destas diferenças entre disposições (como a solubilidade) e crenças particulares (como a de que a Terra é redonda) é que o conceito de disposição tem de envolver uma causa inicial de determinado tipo, que aciona o gatilho da manifestação. Um tablete de açúcar é considerado solúvel, porque se dissolve quando colocado em um líquido como a água. Porém o conceito de crença não parece envolver qualquer causa inicial responsável pela manifestação de uma crença determinada. Não há dúvida de que causas iniciais estão sempre presentes quando uma crença se manifesta, porém tais causas não desempenham nenhum papel especial relativamente ao conceito de crença. (Armstrong, 1981 , p. 16). Armstrong lembra que há muito tempo N. Chomsky tem chamado a atenção para a natureza independente de estímulos das sentenças produzidas pelos falantes. Para o mencionado lingüista, quando um falante produz uma sentença bem-formada e significativa, geralmente não há nenhum estímulo externo que tenha causado seu ato de produção desta mesma sentença. O que o falante costuma dizer é na maior parte das vezes determinado por seus particulares interesses e finalidades. As disposições são também independentes de estímulos, mas as manifestações das disposições dependem de estímulos, à medida mesma que dependem do acionar de uma causa inicial. As crenças gerais, no entanto, não dependem de quaisquer estímulos. Armstrong pede que consideremos a crença de que o arsênico é venenoso. Trata-se de uma crença geral, pois o termo do sujeito faz referência a uma substância (no sentido químico do termo). Nomes de substâncias químicas como o arsênico ou o cloro ou nomes de materiais como a madeira ou o ferro são considerados por P. F. Strawson (Guerreiro, 1986, pp. 97-9) como universais de massa. Na sua teoria dos universais (Armstrong, 1978) não empregou este termo técnico, nem defendeu o nominalismo mitigado proposto por Strawson, mas o fato de ele considerar uma proposição tal como "o arsê~ nico é venenoso" como uma proposição geral ou universal só pode ser justificado tendo como pressuposto que o termo sujeito, "o arsênico" é considerado como um universal de massa ou outro tipo de universal bastante seme-
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lhante. Armstrong diz que se a tem a crença geral de que o arsênico é venenoso, isto pode ser tratado como uma disposição de a. A causa inicial da manifestação desta mesma crença consiste em a crer que determinada substância diante dele é arsênico. Esta crença em uma particular matter offact aciona o gatilho de uma outra manifestação determinada: a adquire a crença de que a substância diante dele é venenosa (Armstrong, 1981, pp. 1Cr7). Com isto, Armstrong chama a atenção para o aspecto de que ao menos um tipo de crença não é inata nem obtida pela mera observação, mas sim adquirida e obtida mediante inferência. Podemos reoonstitui-la nos seguintes termos: (1) O arsênico é venenoso (crença abrigada por a anteriormente a t) (2) Esta substância é arsênico (crença adquirida por a em t) (3) Esta substância é venenosa (crença adquirida após a constituição de (2) em t) Não há a menor dúvida de que o esquema inferencial acima é de natureza dedutiva. (3) foi corretamente deduzida das premissas (1) e (2). Supondo que (2) fosse uma proposição falsa decorrente de uma identificação equivocada da substância observada por a, a conclusão (3) teria de ser também falsa. A crença de que o arsênico é uma substância venenosa (uma crença geral) parece só poder ter sido obtida mediante observação e indução, mas a crença de que determinada substância se apresentando para a percepção é arsênico (uma crença particular) é urna inferência dedutiva podendo ser reconstituída assim: (I) O arsênico tem as características F, G, H, etc. (2) Esta substância tem as características F, G, H, etc. (3) Esta substância é arsênico Supondo que (!) fosse uma proposição falsa, o que estaria falsificado seria a crença geral de que o arsênico é venenoso, mas supondo que (2) fosse uma proposição falsa, o que estaria falsificado seria a proposição particular de que determinada substância observada era de fato arsênico. Ora, a falsificação de (I) implica a falsificação de (3). mas a recíproca não é verdadeira, pois um equívoco de identificação de uma instância de uma substância não afeta a caracterização da própria substância qua ta/e. Deixaremos de lado as importantes conseqüências podendo ser extraídas dessa diferença entre a
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natureza das crenças gerais e a das particulares, para retomar a argumentação de Armstrong. Ele põe em destaque outra importante di ferença. Supondo que uma disposição como a quebrabilidade se manifeste, ela só pode se manifestar de um único modo: o objeto quebrável se :fraccionando em pedaços maiores ou menores quando do impacto com outro objeto ou com a ação de uma força física (ultrasons, por exemplo) capazes de promover uma desagregação molecular. Não há, no entanto, um só modo mediante o qual uma crença (a de que a Terra é redonda) se manifesta, supondo evidentemente que ela venha a se manifestar. E também não é de nenhum modo necessário a manifestação assumir formas de aquiescência tácita ou explícita. Armstrong reconhece que G. Ryle (1949, pp.43- 5) estava plenamente consciente disto, tanto que tentou superar a dificuldade envolvida para seu conceito de disposição recorrendo a uma distinção entre: (a) disposição de trilha única (sing/e-track disposition) e (b) disposição de trilha múltipla (many-track disposition). Desse modo, para ele a quebrabilidade, a elasticidade, a solubilidade, etc. constituíam disposições do tipo (a), ao passo que crença - como a crença de Pedro de ·que a Terra é redonda - constituíam disposições do tipo (b), porquanto podiam se manifestar de diversas maneiras. Considerando maneiras diretas e indiretas, Ryle chegou mesmo a admitir um número potencialmente infinito de maneiras (Armstrong, 198 I, pp. I 6-7). De nossa parte pensamos que, embora haja quase sempre uma grande diversidade de maneiras, não estamos tão seguros quanto ao seu caráter potencialmente infinito. Arrnstrong considera que a distinção de tipos introduzida por Ryle é bastante esclarecedora, porém, por si só, insuficiente para superar a dificuldade envolvida. Para ele, qualquer pessoa que compreenda o uso lingOístico da palavra breakable (quebrável) compreende automaticamente o que é a manifestação da quebrabilidade: o ato de se esfacelar após o recebimento de um impacto. Contudo, esta última noção pode ser perfeitamente compreendida sem que haja qualquer apreensão da noção de quebrabiHdade (enquanto uma especial forma de disposição). Contrastantemente, as manifestações características da crença só podem ser identificadas por uma referência retroativa à própria crença. Armstrong reconhece que o contraste estabelecido por ele não é suficientemente claro (Nós mesmos o apresentamos sem ter compreendido seu sentido). Diante deste franco reconhecimento, ele não vê outra alternativa senão recorrer a exemplos. Por exemplo: se a acredita que a Terra é plana e se a é anglófono, ele poderá manifestar a sua crença mediante o proferimento da sentença inglesa: "The earth is flat." Esta manifestação tem de
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estar elencada em qualquer lista das possíveis manifestações de crenças de a. Mas o que faz com que e la seja uma manifestação de uma das crenças de a? A resposta de Armstrong é surpreendentemente simples: unicamente o fato de que as regras de construção de sentenças da língua inglesa são de tal natureza que o ato de proferir a seqüência de fonemas ou de escrever a seqüência de sínais apresentada acima constitui o modo natural de expressar tal crença. Cabe observar aqui que se a fosse um falante da língua portuguesa, o mencionado modo natural seria "A Terra. é plana." Porém, temos de admitir que em ambos os casos está em jogo a expressão da mesma crença, apesar das diferenças de fonemas ou de letras. Evidentemente, Armstrong pretendia algo mais do que apontar uma convenção lingüística. Ele se apressa em tentar esclarecer o exemplo acima proposto. Se tomarmos os possíveis modos de expressão de uma crença de que é o caso de p , o único fator unificante podendo ser detectado neste mesmo conjunto é que todas as expressões brotam de uma mesma crença. Isto mostra que, ainda que não consideremos as disposições como estados reais da coisa, teremos de considerar as crenças como estados reais da mente do indivíduo que as abriga, pois somente quando ele está em um estado em que, dentro de circunstâncias adequadas, gera todas essas manifestações, podemos compreender o fator aglutinador que as agrupa em determinada classe. Desta vez, Armstrong recorre a um exemplo extremamente esclarecedor. Ele pede que imaginemos uma casa em que a janela foi aberta, cinzas de cigarro foram jogadas no chão, há um copo com um pouco de uísque em cima de uma mesa, etc. Ele observa que não há nada nos eventos assinalados capaz de unificar isto que se apresenta como uma coleção heterogênea de ocorrências. Todavia, um princípio unificante desponta imediatamente, caso façamos a conjetura, bastante provável, de que todos estes eventos díspares e isolados foram causados pela ação de um indesejável intruso. (Armstrong, 1981 , p. 18). De fato, os diferentes efeitos parecem só poder ser atribuídos a uma única causa. A diferença entre uma crença imanifestada e uma crença manifestada torna-se, ao menos para determinados propósitos, uma diferença entre: (a) um estado causalmente inativo e (b) um estado causalmente ativo. Isto posto, Armstrong faz uma analogia com uma situação corriqueira no campo da computação. Uma coisa é uma informação inativa registrada em uma das seções da memória de um computador, outra, notadamente distinta, é esta mesma informação desempenhando um papel causal no processamento de um texto e culminando em um print out. (Armstrong, 1981, p. 18). Embora Armstrong tenha proposto a analogia acima visando à exempli-
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ficação e sem conferir grande peso a ela, temos boas razões para acreditar que - juntamente com o já mencionado processo inferencial de aquisição de crenças - estamos diante de tópicos merecedores de considerações mais aprofundadas, pois estas podem nos fornecer importantes pistas para um esclarecimento maior da concepção de crença como disposição e, mais especificamente, como disposição para a ação. Admitamos que em algum ponto da minha memória está registrada a crença de que p. A situação com a qual estou envolvido em 11 apresenta aspectos bastante distanciados do conteúdo significativo de p, de tal modo que não há nenhuma razão nem nenhum motivo para p aflorar à minha consciência. Contudo, em 12, ocorre algo inesperado e faz com que p aflore à minha consciência e eu tome uma importante decisão baseada em p. Tudo indica que em situações deste tipo a crença se apresenta como uma disposição para a ação seguida da manifestação desta mesma. Ela passa de um estado causalmente inativo para um ativo, de modo que, ao menos à primeira vista, não parece diferir do que pode ser encontrado no comportamento de animais ou computadores. Não há dúvida de que há fatores de caráter estrutural marcando a diferença entre a consciência humana, de um lado e a dos animais e dos dispositivos computacionais de outro, porém não devemos desprezar as semelhanças. Novamente as crenças gerais despontam como uma marcante exceção em relação ao que foi dito sobre crenças particulares e disposições. É plausível dizer que a crê que p (por exemplo: "O arsênico é venenoso"), se, e somente se, a aquisição da crença particular de que uma determinada substância é arsênico faz com que a adquira a subseqüente crença particular de que esta mesma substância é venenosa. Seria incongruente, caso a aceitasse as premissas (1) e (2) do esquema inferencial já apresentado, mas recusasse (3) a conclusão. Supondo que a se recusasse a aceitar (3), a estaria desempenhando um comportamento tão irracional quanto o de b, admitindo que b abrisse sua boca para formular a seguinte hipótese: "Se a Terra é plana, a navegação na direção do Ocidente tem de conduzir ao Oriente." Tal hipótese é manifestamente incongruente. A idéia de que a referida navegação conduz ao referido objetivo não é compatível com nenhuma propriedade do plano, mas sim com uma propriedade topológica da esfera. No caso das crenças pensadas em contraposição a disposições (como a solubilidade do tablete de açúcar, por exemplo), parece que os estados envolvidos têm de apresentar uma determinada estrutura interna. Suponhamos que a creia que p (O gato está deitado no tapete), creia que q (O gato está dormindo) e que r (O gato é preto). Embora p, q e r sejam crenças distintas, elas envolvem claramente um núcleo comum, pois são crenças a respeito de
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aspectos de um particular gato. Ora, se tomarmos as crenças como estados do crente, não teremos de assumir que estes mesmos estados apresentam uma estrutura interna, de modo tal que aos elementos comuns nas coisas acreditadas correspondem elementos comuns no estado que é a crença? Não há dúvida de que temos de fazer uma distinção entre: (a) o ato de a crer que p e (b) o objeto da crença de a. Se é assim, cabe levantar a hipótese de que a estrutura interna do estado doxástico reflete a estrutura da proposição acreditada, pois, supondo que assim não fosse, como poderiam crenças com diferentes conteúdos dar lugar a diferentes mani festações? Cabe alegar que a noção de estrutura interna de um estado não é de nenhum modo uma noção clara. Não é dificil conceber que um objeto ou um evento tenham uma estrutur a, mas como pode um estado - que é um tipo de propriedade - ter uma estrutura? Armstrong admite que a noção de "estrutura de um estado" é prima facie algo bastante estranho; porém, esta noção, uma vez bem esclarecida e compreendida, pode ser aplicada sem dificuldade. As moléculas de um pedaço de vidro estão articuladas de modo especial. Este é para todos os efeitos o estado em que o vidro está. Uma vez que este estado envolve determinado tipo de arranjo das moléculas Constituintes do vidr o enquanto material, não é incongruente dizer que este mesmo estado possui uma estrutura. Para Armstrong, a noção crucial neste contexto é a de "elementos articulados em uma relação." Desse modo, faz sentido dizer que os estados doxásticos têm urna estrutura, porque eles apresentam de fato elementos articulados em uma relação. Segue-se dai que a diferença entre os conceitos de disposição e crença não é uma diferença de natureza, porém, de grau. Além da noção de "estado," o conceito de crença envolve a noção de "estrutura", e isto tanto no que se refere às crenças particulares como no que se refere às gerais. Há, contudo, uma diferença entre os mencionados conceitos: a manifestação de uma disposição é diretamente observável (Podemos observar o açúcar se dissolvendo na água ou um copo de vidro se quebrando), mas a disposição qua ta/e não é observável. Ela só pode ser indiretamente observável ou, para dizer de outro modo: alcançável por meio de uma inferência partindo da sua manifestação. O mesmo pode ser dito no tocante à atribuição de crenças a outras pessoas. Porém, no que diz respeito às nossas próprias crenças, podemos ter um acesso privilegiado a elas, independentemente das suas possíveis manifestações. No entanto, quando indagamos como conceber esse conhecimento das nossas próprias crenças, a questão toma-se complexa. Caso este conhecimento seja concebido como indubitável e incorrigível enquanto conhecimento privilegiado - abre-se uma fenda intransponível entre crenças e disposições naturais, pois é inteiramente despropositado falar
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em conhecimento privilegiado em relação à quebrabilidade de um copo de vidro ou em relação à solubilidade de um tablete de açúcar. Em um trabalho anterior, Armstrong (1968, 6, lO) tinha desenvolvido um argumento destinado a refutar a tese de que temos de fato um conhecimento privilegiado dos nossos próprios estados mentais. Mas no presente trabalho ele admite que, uma vez rejeitado tal tipo de conhecimento, passa a ser um fato meramente contingente o de que temos um conhecimento direto ou não-inferencial de alguns dos nossos estados mentais, inclusive de a lguns dos nossos estados doxásticos. Porém, não dispomos de um conhecimento deste tipo no que se refere a disposições naturais como a maleabilidade e a solubilidade. (Armstrong, 1981, p. 20). Como vimos, Armstrong rejeitou a concepção humeana de acordo com a qual as crenças são ocorrências. Elas podem se apresentar assim, mas não são necessariamente assim. Indo um pouco mais longe, ele rejeitou a identificação da crença com qualquer tipo de conteúdo de consciência. Elas podem se manifestar assim, mas não é necessário que elas se manifestem tout court. Não obstante, ele está disposto a reconhecer que uma crença pode se apresentar sob a forma de um conteúdo de consciência, pois ela pode estar "diante da nossa mente." Mas qual o significado preciso desta expressão? De saída, cabe reconhecer que ela não é de nenhum modo uma expressão unívoca. (Armstrong, 1981, p. 2 1). Como vimos também, Armstrong fez uma distinção entre crença causalmente ativa e crença causalmente inativa, e isto reforçou a idéia de que uma crença nesta segunda condição é incompatível com uma crença enquanto conteúdo de consciência. Armstrong vai agora um pouco mais longe, afirmando que muitas das crenças que orientam nossa ação jamais afloram à consciência, no momento preparatório em que uma ação é ainda um projeto. Algumas vezes, uma crença confiantemente sustentada revela-se falsa e, em conseqüência disto, a ação baseada nela fracassa completamente. Porém, é somente com a apreensão do fracasso que nos tomamos conscientes de que estivemos a todo tempo assumindo a veracidade de uma falsa crença. Quanto à elucidação do sentido de " diante da nossa mente", Armstrong assevera que não é possível dar uma resposta satisfatória, a não ser no interior de uma teoria da consciência, e não resta dúvida de que a análise da mencionada expressão constitui uma das mais dificeis tarefas de uma psicologia filosófica. Ele tinha tentado isto em um livro anterior (1968) em que tinha se comprometido com a idéia de consciência como "sentido interno" na acepção kantiana, ou seja: como percepção dos conteúdos da nossa mente. Nesta perspectiva, dizer que uma c rença está "diante da consciência" é algo análogo a dizer que um objeto está no nosso campo visual. Contudo,
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Armstrong vê-se forçado a reconhecer que isto remete o pensamento a uma questão não menos espinhosa: a da natureza da percepção. (Armstrong, 1981, p. 22). Apesar dessas observações, o desenvolvimento posterior do pensamento de Armstrong ( 1981, pp. 38-219) revelou que ele não estava interessado na investigação de quaisquer tópicos de psicologia filosófica, mas na problematização de um tópico clássico na epistemologia desde Platão: as relações entre crença e conhecimento. Contudo, antes de ter abordado a questão epistemológica propriamente dita, ele considerou oportuno oferecer uma resposta para outra questão considerada prioritária. Qual o status ontológico da crença? Sua resposta, como vimos, pode ser resumida nos seguintes termos: de um ponto de vista formal, nossas crenças têm um caráter proposicional, coisa que pode ser expressa - na lógica epistêmica de Hintikka (1962) - e no seu próprio texto (I 981) pela fórmula Bap (em que a (um indivíduo humano qualquer) crê que p (uma proposição qualquer)). Como as de qualquer outro tipo, as proposições doxásticas podem ser universais ou particulares. Para Armstrong, as universais são disposições e as particulares são estados. Todavia, esta diferença não decorre da diferença da quantificação lógica, que nos permite reconhecer como universais crenças encabeçadas pelos quantificadores naturais ("O", "Todos", etc.) ou por universais de massa ("A madeira", "A água", "O arsênico", etc.). Como vimos, Armstrong considérou que era plausível dizer que a acreditava que p (por exemplo: "O arsênico é venenoso" - uma crença geral) se, e somente se, a aquisição da crença de que a substância x é arsênico fizesse com que a adquirisse a crença posterior de que aquela substância diante dele era venenosa. Como observamos em seguida, isto era uma evidência da necessidade de aprofundar o aspecto inferencial envolvido com as crenças, pois parece não haver dúvida de que - de acordo com a formulação avançada por Armstrong - parece só haver duas maneiras de afrrmar com segurança que a possui a referida crença: (1) Caso a a expresse explicitamente mediante o proferimento da asserção universal afirmativa p "O arsênico é venenoso" ou (2) caso nos permita inferir esta asserção universal afirmativa de duas asserções particulares afirmativas: q "Esta substância é arsênico" e r "Esta substância é venenosa." Mas por que precisa razão Armstrong considera que p é ontologicamente uma disposição, ao passo que q e r são estados? De acordo com Armstrong, tudo começou quando ele se deparou com um artigo de F. P. Ramsey (1931). Neste artigo, Ramsey tinha apresentado uma sugestiva definição de caráter metafórico: "Crenças são mapas por meio dos
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quais navegamos" (Belieft are maps by which we steer). Armstrong disse que de saída levantou a suspeita de que a analogia metafórica proposta por Ramsey tinha se inspirado na conhecida comparação de sentenças com figuras tal como feita por Wittgenstein no Tratado Lógico-Filosófico. Armstrong entende que, se concebermos as crenças como mapas, poderemos conceber a totalidade das crenças de um homem, em um determinado momento, como um único e grande mapa em que as crenças particulares são submapas. Contudo, não seria adequado imaginá-lo como uma carta geográfica moderna feita por um cartógrafo tecnicamente qualificado - uma imagem mais adequada como analogia com o conhecimento - porém como um mapa antigo contendo diversas imprecisões, lacunas, acidentes geográficos imaginários, etc. Diante disto, Armstrong pondera que - no caso dos mapas propriamente ditos- há que distinguir: (1) o próprio mapa enquanto representação e (2) as possíveis leituras feitas por seus possíveis leitores. Não obstante, esta distinção não pode ser estendida às crenças, porque não fazemos nossa representação da realidade a partir dos dados fornecidos pelas nossas crenças: para todos os efeitos, nossas crenças são nossa interpretação da realidade. Assim sendo, devemos concebê-las como mapas trazendo em si mesmos sua interpretação da realidade. Elas apontam para a existência de estados de coisas, ainda que não haja um só dos estados por elas apontados. Falsas crenças não deixam de ser crenças. Independentemente da sua adequação ou inadequação com estados de coisas, as crenças possuem um poder intrínseco de representação (Armstrong, 1981, p. 4). De acordo ainda com Armstrong, há que distinguir ainda as crenças de meros pensamentos e o ato de pensar em p do ato de crer que p. A princípio, nada há contra a idéia de se conceber também pensamentos como mapas, porém há uma crucial diferença entre mapas-pensamento (thought-maps) e mapas-crença (belief-maps). No Tratado da Natureza Humana (1, 3,7), D. Hume talvez tenha sido - como de resto reivindicara - o primeiro filósofo a descortinar a diferença entre: (I) ''pensar em algo" e (2) "crer que é o caso de algo." Armstrong afirma que Ramsey forneceu uma resposta para o problema vislumbrado por Hume. Ao propor que "crenças são mapas por meio dos quais navegamos", ele sugeriu que - diferentemente de proposições meramente entretidas pelo pensamento - as crenças são orientadoras da ação (action-guiding). As crenças são mapas do mundo à luz dos quais tornamonos preparados para a ação. (Armstrong, 1981, p. 4). Pode-se fazer uma conseqüente ressalva à referida analogia de Ramsey, a partir da restrita abrangência desta mesma, pois, quando muito, ela pode dar conta de crenças relativas a lugares e tempos particulares, porém não pode
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dar conta de crenças sob a forma de proposições universais com quantificadores irrestritos. Chegamos assim ao ponto em que queríamos chegar: É justamente na passagem que se segue que Arrnstrong teve seu primeiro insight de que crenças gerais não podem ser estados, mas disposições: Penso que a objeção é justificada e que estas crenças requerem uma explicação diferente. O próprio Ramsey reconheceu a necessidade de uma explicação diferente ( ... ) Ele sugeriu que tais "crenças gerais" ( ... )eram "hábitos de inferência", que nos dispõem a nos deslocarmos de uma crença sobre uma particular questão de fato para uma crença posterior sobre outra questão de fato (matter offact). Crenças gerais são disposições para que estendamos o mapa-crença original e assim o façamos de acordo com certas regras. (Arrnstrong, 1981, p.5.) De acordo com Arrnstrong, Ramsey estava seguindo urna orientação fornecida· por C. S. Peirce (1940) em seu conhecido ensaio The j'lXation of belief, porém, advertido por O. Gasking, Ramsey foi provavelmente levado à sua visão da crença impulsionado por uma visão das dificuldades suscitadas pela concepção wittgensteiniana de proposições universais com quantificadores irrestritos como conjunções infinitas de proposições particulares. Arrnstrong considera que qualquer tentativa de explicação das crenças gerais através desta concepção enfrenta obstáculos intransponíveis. Examinando melhor a crítica endereçada por Amstrong a Ryle, podemos constatar que esta se resume em sustentar que este último tomou ambas as crenças particular e geral como disposições, ao passo que ele, Armstrong, entende que somente as crenças do segundo tipo podem realmente ser consideradas disposições, porque, como vimos, apresentam duas características básicas: (1) Acionam o gatilho de um mecanismo inferencial e (2) ao acionar este gatilho, permitem que partamos de crenças particulares já incorporadas ao nosso acervo de crenças e cheguemos à aquisição de novas crenças particulares. Em uma passagem em que Ryle estava interessado em distinguir asserções legalóides (law statements) de asserções fatuais (statements of fact), ele diz o seguinte: Asserções legalóides são verdadeiras ou falsas, mas não assentam verdades ou falsidades do mesmo tipo das assentadas pelas asserções de fato às quais elas se aplicam ou ao menos se supõe que sejam aplicáveis. Elas têm diferentes tarefas. A diferença crucial pode ser estabelecida da seguinte maneira: Ao menos parte da atividade de tentar estabelecer leis consiste em descobrir como fazer inferências de particulares questões de fato a outras particulares questões de fato e como
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explicar particulares questões de fato a outras ( ...) Uma lei é usada, por assim dizer, como um bilhete-inferência, que dá permissão aos seus possuidores de se deslocarem de uma asserção fatual à afirmação de outras. (Ryle, 1949, pp.Il6-7). Importante frisar que embora a caracterização feita por Armstrong não difira essencialmente da feita por Ryle, há uma significativa diferença entre ambas: Ryle não estava atribuindo esta mesma caracterização a asserções doxásticas (belief-statements), porém a asserções legalóides (/awstatements). Desse modo, ficou bastante claro na supracitada passagem que seu interesse não era a investigação da crença, mas do conhecimento. Assim sendo, supondo que ambos estejam corretos nas caracterizações dos seus respectivos objetos, pode-se questionar a pretensão de Arrnstrong de que sua caracterização seja uma peculiaridade das crenças gerais, assim como pode ser questionada uma possível pretensão de Ryle de que sua caracterização seja uma peculiaridade das asserções legalóides como universais nomotécnicos. E ao mesmo tempo cabe levantar a hipótese de que a referida caracterização endossada por ambos seja, na realidade, uma peculiaridade de quaisquer proposições gerais (universais) funcionando em quaisquer mecanismos inferenciais. No que diz respeito às inferências indutivas, é impossível conceber qualquer esquema inferencial sem a presença de uma proposição geral (universal) ocupando o lugar da conclusão. Não há indução sem generalização empírica, e não se pode expressar o produto desta mesma generalização sem uma proposição geral (universal). Certamente, há casos especiais de generalizações não-empíricas, como é o caso da assim chamada "generalização existencial" que, diga-se de passagem, não é um esquema inferencial indutivo, porém dedutivo e, além disso, não é uma inferência mediada - como são todas as indutivas - mas uma inferência imediata de uma proposição singular a uma particular. No que diz respeito às inferências dedutivas, pode-se afirmar com segurança que, ao menos as da forma si logística são inconcebíveis sem a presença de uma proposição universal, figurando como uma das premissas ou ocupando o lugar da conclusão. Não é de surpreender, portanto, que todos os modos de silogismos na silogística aristotélica apresentem ao menos uma proposição deste tipo, embora tenhamos de reconhecer outras formas de dedução em que não há proposições universais. (Skirms, 1971, p. 4). Não há dúvida de que as crenças gerais - justamente por se apresentarem sob a forma de proposições universais, independentemente da sua quantificação universal restrita ou irrestrita - costumam desempenhar o papel que
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lhes é atribuído tanto por Ryle como por Armstrong. Não obstante, dando por assentado que não estão em jogo quaisquer disposições inatas do sujeito da crença - coisa que dificilmente poderia ser aceita - cabe indagar como este mesmo as adquire. Tudo leva a crer que o modo mais comum de aquisição (ou ao menos o mais estudado por filósofos) se faz por meio de generalizações empíricas em esquemas indutivos, que Hume remeteu pura e simplesmente aos hábitos e Ramsey qualificou como "hábitos de inferência." Contudo, não se pode sustentar que este seja o único meio de aquisição. Alguém pode adquirir a crença de que p (por exemplo: de que "o arsênico é venenoso") simplesmente por ouvir dizer que assim é e conferir plena credibilidade ao que ouviu ou lhe foi dito, seja porque o foi por seu professor de química, seja porque assim leu em uma revista de divulgação científica, seja de qualquer outro modo em que a crença foi adotada por pura credibilidade sem nenhuma investigação ou questionamento. Para todos os efeitos, o que importa neste contexto não são os motivos nem as razões que levam a, b ou c, etc. a acreditarem em p, q ou r, etc., mas o fato de a, b ou c, etc., conferirem sua adesão a p, q ou r, etc., e confiarem na veracidade de p, q ou r, etc. Não importando se uma crença foi obtida por indução ou por alguma forma de ouvir dizer, ela só é incorporada ao repertório de crenças do sujeito caso desperte nele credibilidade, o que nada tem a ver com seu caráter possível ou imposslvel, racional ou irracional, pois o que está realmente em jogo não é o conteúdo da crença, mas uma atitude proposicional assumida pelo sujeito da crença. Este é um aspecto da questão que não foi levado em consideração por Armstrong, mas foi levado seriamente em consideração por outros autores, como é o caso de R. Needham ( 1972, pp. 64-1 08). À primeira vista, isto não é incompatível com com a concepção de Armstrong, mas abre uma importante perspectiva não descortinada por ele. Não iremos explorá-la antes de examinar mais alguns aspectos da concepção de Armstrong. Embora Armstrong tenha insistido em manter sua distinção entre crenças gerais como disposições e crenças particulares como estados, na sua posterior explicitação dos princípios de inferência que nos permitem o deslocamento de uma crença particular a outra, Armstrong ( 1981, pp. 99-11 O) assume que, para todos os efeitos, as expressões doxásticas são atitudes proposicionais. E ele mantém este mesmo pressuposto mais adiante - no capitulo 10 de Belief, Truth and Knowledge - em que tematiza a fórmula clássica da epistemologia desde Platão a Hintikka, de acordo com a qual o conhecimento implica a crença, porém a recíproca não é procedente. Como é sabido, no Teeteto (20Ic-d) Platão apresentou uma definição do conhecimento em termos de crença: Episteme esti a/ethe doxa meta logou (O conheci-
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mento é a crença verdadeira aceita por razões, ou contraidamente: a crença justificada). Arrnstrong faz farto uso da lógica epistêmica de Hintikka em que a referida definição platônica está implícita nos seus dois axiomas: (I) Kap ::> Bap (2) - (Bap ::> Kap) (em que a representa um indivíduo humano qualquer enquanto sujeito cognitivo, K (de ''knowledge") é o functor epistêmico, B (de "beliet'') é o functor doxástico e::> é o conectivo de implicação material no sistema de Russell & Whitehead. Desse modo, ( I) deve ser lido como: "a sabe que p implica a crê que p" e (2) "a crê que p não implica a sabe que p"). Pode-se dizer que expressões tais como: (a) a crê que p, (b) a sabe que p, (c) a tem certeza de que p, (d) a duvida de que p, (e) a supõe que p, etc., caracterizam diferentes atitudes, podendo ser assumida por um indivíduo diante de uma mesma proposição. O conteúdo proposicional não sofre nenhuma alteração, mas a atitude diante da proposição se modifica. Em uma análise das diferenças entre atitudes proposicionais, o conteúdo proposicional não tem a menor importância. O que importa é a diferença qualitativa entre as atitudes proposicionais. Por exemplo: em (a) está em jogo uma adesão não-justificada ou até mesmo não-justificável, em (b) está em jogo uma adesão justificável, em (d) uma incapacidade de tomar uma decisão quanto a uma adesão ou não. Desse modo, cabe levantar a hipótese de que a caracterização da crença como um tipo de atitude proposicional de adesão é válida tanto para as crenças particulares como para as gerais, pois parece independer de a crença ser concebida como estado ou como disposição. Embora não possamos aceitar a identificação da crença como urna ocorrência consciente (concepção de Hume), temos de admitir que ele tocou em um ponto importante para a caracterização da natureza da crença. Além de ter surpreendido a crucial diferença entre "pensar em algo" e "crer que a lgo é assim" - em que estão em jogo respectivamente a ausência e a presença de uma atitude de adesão - ele afirmou explicitamente que, admitindo que esta diferença nada tem a ver com uma idéia vívida associada a urna impressão presente, segue-se que esta diferença tem de estar na maneira como a concebemos. Desse modo, após ter chegado bastante perto do conceito de atitude proposicional, Hurne (1978, I, 3,7, p. 95) colocou uma excelente questão para a qual forneceu uma resposta insatisfatória: "Onde está a diferença entre acreditar em uma proposição ou desacreditar desta mesma?" Uma das possíveis respostas seria: acreditar em uma proposição consiste
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em aderir a uma proposição (independentemente de ela ser verdadeira ou falsa, plausível ou implausível, possível ou impossível, etc.) e desacreditar de uma proposição é não aderir a uma proposição (independentemente do seu conteúdo significativo). l-lume, no entanto, provavelmente impulsionado por um empirismo radical, voltou-se para os conteúdos de consciência, para as impressões, e concluiu seu pensamento com a definição de crença como "uma idéia vívida relacionada com, ou associada a, uma impressão presente." E dando por assentado que "crença é um termo que todo mundo compreende muito bem na vida comum," julgou que não podia ir mais longe além de dizer que a crença é: Algo sentido pela mente, que distingue as idéia de ')uízo" e de "ficções da imaginação", dá às primeiras mais força e influência, as imprime na mente e as torna o princípio regente de todas as nossas ações. (l-lume, 1978, p. 629). De fato, é bastante dificil compreender a gênese de uma ação humana sem incluir as noções de vontade e crença situadas entre o pensamento e a ação propriamente dita. Mas se é assim, tudo leva a crer que Ramsey - na sua concepção de mapa-crença- partiu mesmo de l-lume, pois admitiu explicitamente que as crenças são orientadoras da ação (action-guiding). Armstrong, por sua ve:z., malgrado ter manifestado sua concordância com l-lume, Ramsey e Ryle neste particular, não desenvolveu nenhuma idéia sobre as relações entre crença e ação. Em Belief. Truth and Knowledge, ele se concentrou inteiramente sobre as relações entre crença e pensamento. De acordo com S. Hampshire, este procedimento gera uma imperdoávei lacuna, pois ele considera que, assim como o pensamento não pode ser pensamento a menos que direcionado para uma conclusão, crenças que não orientam jamais a ação não contam como crenças. Dito explicitamente: "Se um homem consigna qualquer significado às alternativas de acreditar ou não acreditar, ele deve (he must) em cada caso considerar as possíveis conseqüências" (Hampshire, 1959, p.I59). Temos a impressão de que Hampshire, ao dizer isto que disse, abrigava tacitamente uma diferença entre crenças sérias e crenças tolas, assim como Wittgenstein estabelecia explicitamente uma diferença entre dúvidas relevantes que se mostram de algum modo na prática e dúvidas irrelevantes que não se mostram: Se alguém duvidasse disto, como sua dúvida se mostraria na prática? Deveríamos deixá-lo duvidar sossegado, uma vez que sua dúvida não faz a menor diferença? (Wittgenstein, 1969, ítem 120).
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Embora sob determinado aspecto sejamos levados a concordar com Hampshire e com Wittgenstein, sob outro somos compelidos a admitir que crenças e dúvidas - relevantes ou irrelevantes- não deixam de ser crenças e dúvidas pura e simplesmente. Desse modo, entendemos que a questão da natureza da crença qua ta/e é independente da sua possível relevância teórica ou prática, embora a determinação do status ontológico da crença não possa ser considerada irrelevante para a do seu possível papel nos processos do pensamento e da ação. Supondo que assim não fosse o caso, a crítica desta ou daquela determinação do seu status ontológico perderia inteiramente sua razão de ser, pois o que se pode criticar - e de fato o foi - é justamente a impossibilidade gerada por esta mesma determinação por não ter se mostrado capaz de dar conta de coisas tais como crenças imanifestadas e estados causalmente inativos. Pode-se dizer assim do conceito de crença como talvez se possa dizer de outros da mesma família - que a determinação do seu status ontológico delimita as possibilidades de determinação do seu status epistemológico, que, por sua vez, delimita as possibilidades de determinação do seu status praxiológico. Tendo isto em mente, concordamos quase inteiramente com a estratégia de Armstrong quando ele aborda primeiramente a questão ontológica, para, posteriormente, abordar a epistemológica (em que as observações de Ramsey, Wittgenstein e Hampshire passam a adquirir grande relevância como oportunas advertências). Só não conseguimos entender a razão pela qual Armstrong (1981, p.4)- após endossar plenamente a concepção de crenças como orientadoras da ação (action-guiding), "mapas do mundo à luz dos quais tomamo-nos preparados para a ação" - não dedicou nenhum espaço à investigação do papel praxiológico da crença. Diversas suposições podem ser aventadas, mas estas não são relevantes para a nossa hipótese de trabalho. Cabe apenas assinalar de passagem - para retomar mais adiante a questão que, embora não possa ser negado o papel crucial desempenhado pelas nossas crenças, tanto no que se refere à ação racional como no que se refere à irracional, não conseguimos vislumbrar nenhum critério plausível para uma concessão de uma primazia praxiológica às crenças. Assim como elas podem ser concebidas como orientadoras da ação (action-guiding), podem igualmente ser concebidas como orientadoras do pensamento (thought-guiding), mesmo quando aquele que pensa não esteja envolvido imediatamente com nenhuma ação atual ou futura. A definição platônica de episteme, tal como já apresentada, desempenhou e ainda desempenha um papel crucial na epistemologia, principalmente pela ênfase que enseja nos procedimentos de justificação e apesar da séria objeção feita por E. Gettier (1963, pp. 121-3). Hintikka (1962) a tomou
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como base sólida para a construção de uma lógica epistêmica e Popper ( 1972) partiu dela para uma problematização de uma lógica da justificativa (ars probandi), não conferindo importância a uma lógica da descoberta (ars inveniendi). Sua conhecida afirmação de que "Eu não sou um filósofo da crença" deve ser entendida como "Eu não estou interessado na crença qua ta/e, mas sim na justificativa da crença'', pois seu declarado interesse deve ser visto como uma questão de preferência por um determinado domínio do saber- o da filosofia da ciência- em que a crença enquanto tal não parece ter a mesma importância que assume nos domínios da filosofia da mente e da filosofia da ação. Dizemos isto, porque a grande aceitação conferida ao conhecimento como crença justificada, embora tenha sido bastante fértil para os domínios da filosofia da ciência e da epistemologia, gerou também um desprestígio no tocante à tematização da crença qua ta/e. Não há a menor dúvida de que crenças injustificadas e injustificáveis não podem ser consideradas conhecimento no sentido rigoroso do termo, mas nem por isto deixam de ser crenças e de exercer uma considerável influência tanto sobre o pensamento como sobre a ação humanos. Em um trabalho já citado, R Needham dá ínício a um capítulo sobre critérios de abordagem da crença fazendo uma observação que nos parece correta e relevante: A crença não depende necessariamente da possibilidade; algo pode ser acreditado mesmo quando é reconhecidamente impossível. (Needham, 1972, p. 64). E após algumas considerações sobre a posição fideísta de Tertuliano (Credo quia impossibile) Needham faz uma observação em que não está em jogo nenhuma questão de caráter teológico, mas o conhecimento comum. Na realidade, não é somente no discurso teológico que a crença e a impossibilidade são conjugadas. Um homem poderia muito bem dizer: "Acho que ele acreditava que seu filho já falecido estava presente, mesmo que ele soubesse que tal coisa era impossível." E outro homem poderia dizer que acreditava que sua esposa voltaria para ele, apesar de todas as circunstâncias conhecidas por ele fizessem com que tal coisa fosse impossível. (...) Devemos observar que este uso lingüístico não faria nenhum sentido em contextos triviais. Por exemplo: um homem não comunicaria nenhuma coisa inteligível, se ele dissesse que o motor do seu carro pegaria sem combustível, ainda que ele soubesse que isto era impossível. (Needham, 1972, p.65.)
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Assim como a expressão de uma impossibilidade lógica, a de uma impossibilidade fisica tem como conseqüência imediata o não-fornecimento de qualquer informação de caráter objetivo, mas isto não quer dizer que tais expressões não sejam informativas tout court, pois elas podem fornecer informações sobre aquele que as profere, sobre condições mentais em que se encontram aqueles que as proferem. A existência de crenças injustificadas ou irracionais sugere uma independência da "doxologia" em relação à "epistemologia", se é que podemos dizer assim. Onde não há razões para crer pode haver motivos para crer ou, como dizia Pascal, "O coração tem razões que a própria razão desconhece." Ora, desde o momento em que uma investigação filosófica apresenta como seu objeto a crença qua ta/e, não vemos nenhuma razão plausível para excluir as assim chamadas crenças injustificáveis ou irracionais - crenças que teriam de ser excluídas caso o objeto de investigação fosse o conhecimento (episteme) concebido como crença verdadeira aceita por razões (alethe doxa meta logou). Caso aceitemos esta definição platônica reforçada pela lógica epistêmica de Hintikka, pensamos que estamos plenamente autorizados a extrair dela um corolário não muito agradável para os racionalistas empedernidos: Não dependemos necessariamente da posse deste ou daquele conhecimento para aderir a esta ou àquela crença, mas dependemos necessariamente da adesão a esta ou àquela crença, para justificá-la e apresentá-la como conhecimento no sentido rigoroso do termo. Além disso, devemos estar preparados para lidar com determinados tipos de crença que, embora não possam ser consideradas absurdas, irracionais ou injustificáveis, não podem ser consideradas justificadas em determinado momento histórico do conhecimento humano, pois não podem ser confirmadas, tampouco fa lsificadas. Consideremos, por exemplo, a crença na existência de outros seres inteligentes em distantes pontos da Via Láctea ou mesmo em galáxias bastante distantes da nossa. Caso a transformássemos em uma proposição existencial afirmativa tal como "Há seres inteligentes em outros planetas fora do sistema solar", e indagássemos sobre sua condição de verdade, teríamos de aceitar que ela não é verdadeira nem falsa, porém indeterminada. Contudo, não é de nenhum modo irracional ou absurdo supor que um dia uma expedição enviada ao espaço sideral viesse a descobrir seres inteligentes. Uma proposição deste tipo não pode ser falsificada, a menos que o ser humano venha a esquadrinhar todos os pontos do universo - coisa que se afigura como uma remotíssima probabilidade - mas, apesar disto, pode ser confirmada, bastando para tal que seja descoberto em algum planeta um ser capaz de fazer inferências dedutivas e indutivas, de construir argumentos e resolver equações (coisa que é muito mais provável do que esquadrinhar todos os pontos
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do universo e descobrir que defmitivamente somos os únicos seres pensantes em todo este vasto cosmos, que não sabemos sequer se é fi nito ou infinito). A. P. Griffiths (1967, pp.l27-l43) entende que o ato de crer é um modo de consciência, assim como os de desejar, imaginar, etc. Apesar de usar esta expressão proveniente do jargão da fenomenologia, ele não é levado à tese de que toda consciência é intencional. Prefere se limitar à constatação da existência de verbos intencionais. De fato, trata-se muito mais de uma questão de gramática do que de qualquer outra coisa. Quem crê em alguma coisa, assim como quem deseja ou imagina alguma coisa. J. Searle colocou isto de modo bastante claro: Em primeiro lugar, somente alguns, nem todos, estados e eventos mentais têm intencionalidade. Crenças, temores, esperanças e desejos são intencionais; mas existem formas de nervosismo, euforia e ansiedade indireta que não são intencionais. Uma chave para esta distinção é fornecida pelas restrições sobre o modo como esses estados são comunicados. Se digo para você que tenho uma crença ou um desejo, sempre faz sentido você perguntar: "Em que exatamente você acredita?" ou "Qual o seu desejo?" E não faz sentido eu dizer: "Ah, apenas tenho uma crença e um desejo sem crer em nada e sem desejar nada." Minhas crenças e meus desejos tem de ser sempre de alguma coisa. (Searle, 1983, p. I). Admitindo que os atos de crer, desejar e imaginar são diferentes modos de consciência e que em todos estão em jogo verbos intencionais, Griffiths detem-se particularmente sobre o ato de crer é diz que a tentativa de estabelecer a natureza deste mesmo costuma esbarrar em dois tipos de obstáculos: (I) O conceito de crença não pode ser explicado por meio de outros tais como "asserção", "ação", "evidência", etc. Trata-se de um conceito primitivo como, por exemplo, o de valor. (2) O conceito de crença apresenta as mesmas dificuldades apresentadas por outros que estão ligados a estados privados (dificuldades estas já apontadas por Ryle (1949) quando da sua crítica do dualismo cartesiano e do que ele próprio chamou de "mito do fantasma dentro da máquina"). Desse modo, Griffiths é levado à idéia de que resta apenas uma pista a ser investigada: a de que deve haver uma conexão entre crença e conhecimento, embora a natureza específica desta conexão seja dificilmente explicável. Não obstante, ele pensa poder afirmar que a crença é apropriada à verdade. Mas em que sentido? Ele diz que afirmar isto não é dizer o que é a crença, tampouco estabelecer qualquer conexão necessária entre a crença e uma condição real qualquer. Trata-se de estabelecer um elo que não se sus-
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tenta necessariamente, mas que deve se sustentar. Como assim? Griffiths entende que a grande vantagem dessa concepção da crença como algo apropriado à verdade é que ela permite r esponder a dificil questão de como a crença pode ser identificada com um conceito público. Nas suas próprias palavras: "Somente esta tênue conexão estabelece um vinculo entre um nãoanalisável estado mental privado e o mundo público." (Griffiths, 1967, p. 140). Desse modo, para Griffiths, o conceito de crença só se torna objetivamente manejável, caso pressuponhamos " padrões de propriedade" (patterns ofappropriateness). A princípio, somos levados a encarar com simpatia o esforço feito por Griffiths para contornar as dificuldades apresentadas, mediante seu recurso à concepção de que a crença é apropriada à verdade. Mas que queria ele dizer precisamente com isto? Ele não prestou maiores esclarecimentos, mas, apesar disto, tocou em um ponto para o qual já havíamos chamado a atenção: o ato intencional de crer e o objeto deste ato constituem uma relação indissolúvel e revelam a estrutura de uma atitude proposicional. De um ponto de vista formal, não há nenhuma diferença estrutural entre as diferentes atitudes proposicionais de crer, conhecer, saber, duvidar, etc. Não é surpreendente que os predicados "é verdadeiro" e "é falso" tenham sido usados em relação a sentenças, proposições e crenças. Mas não estamos seguros de que este uso seja unívoco e não sabemos qual o sentido preciso de expressões tais como "crença verdadeira" e "crença falsa." Se o que Griffiths estava procurando era contornar a dificuldade de falar na terceira pessoa de um estado privado, pensamos que ele teria feito melhor caso abandonasse seu conceito de "modo de consciência" e adotasse o de atitude proposicional. A vantagem é que se trata de uma espécie de conceito-ponte, uma vez que tem um pé no domínio privado e outro no público. Toda atitude é uma maneira de um indivíduo humano se colocar diante de alguém ou de algo. E se é o caso de uma atitude proposicional, trata-se de uma maneira de um indivíduo se colocar diante de uma sentença ou de um enunciado, que não pertencem ao domínio privado dos estados de consciência, porém ao domínio público da linguagem. ''Não há linguagem privada, uma vez que a linguagem é poder institucionalizado, uma vez que, a partir de um princípio, ela é o elemento da praxis vital comum." (Wittgenstein, 1969, item 243). Como já propusemos, cabe fazer uma distinção entre: (1) a atitude de crer e (2) o objeto da crença. Se a crença é pensada como uma atitude proposicional, seu objeto não é uma coisa nem um estado de coisas, mas uma proposição que não tem de fazer necessariamente referência a um estado de coisas, uma vez que proposições falsas podem ser acreditadas como verda-
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deiras e verdadeiras como falsas. A distinção entre (l) e (2) mostra-se oportuna também quando reconsideramos a natureza das crenças absurdas ou irracionais. Suponhamos que alguém dissesse que acredita na existência de um círculo quadrado. O suposto objeto da sua crença não pode ser percebido, imaginado nem concebido, pois sua descrição constitui uma autocontradição. Nem mesmo de um ponto de vista fenomenológico, cabe falar em um objeto "intencional", pois, para o próprio Husserl, trata-se de uma intenção significativa que não adquire preenchimento e que, por isto mesmo, não se transforma em uma intuição. Mas, como observou Needham ( 1972, p. 64), um indivíduo pode perfeitamente crer em algo absurdo ou impossível. Desse modo, se ele diz que acredita na existência de um círculo quadrado, sua atitude doxástica não pode ser considerada impossível: o que é impossível é o suposto objeto da sua crença, uma vez cjue constitui uma impossibilidade lógica (algo mais forte do que a impossibilidade fisica). Mas, se é assim, como podemos dizer que crer é um verbo intencional e que toda crença é uma crença em alguma coisa? Temos uma situação aparentemente paradoxal em que há (1) mas não há (2), ou seja: há a crença, pois a restrição imposta pelo princípio de nãocontradição não afeta em nada a possibilidade de crer, mas não temos o objeto da crença, pois, para todos os efeitos, "círculo quadrado" é um nome vazio que não designa nenhum objeto em nenhum mundo possívelleibniziano. A expressão "objeto impossível" é perigosa e escorregadia, pois pode dar a entender que "impossível" está qualificando um tipo de objeto, quando o que se pretende dizer é que se trata de algo não podendo ser pensado como um objeto. Dizendo de outro modo: a descrição "figura geométrica de quatro lados iguais e cujos pontos ao longo do perímetro são equidistantes do centro" é uma descrição vazia, não descreve nenhum objeto. Assim sendo, temos de considerar que a proposição "Há zero círculos quadrados" (o mesmo que: ''Não há nenhum círculo quadrado") é verdadeira. Negá-la seria admitir que há ao menos um; considerá-la indecidível seria colocar uma dúvida tola a respeito do indubitável caráter autocontraditório da descrição correspondente ao nome "círculo quadrado". Não nos interessa aqui problematizar a questão da quantificação lógica em relação aos supostos objetos correspondentes a descrições autocontraditórias, mas chamar a atenção para o abismo que se abre entre crença e conhecimento. Ninguém pode fazer uma alegação séria de conhecimento, caso esta envolva impossibilidade lógica; mas no que se refere à crença, parece não haver qualquer restrição lógica relativa à atitude de crer. Parece que podemos crer em qualquer coisa, assim como podemos desejar qualquer coisa. Se há algum limite, este nada tem a ver com qualquer restrição de caráter lógi-
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co nem ontológico, mas com os limites da nossa imaginação e da nossa capacidade de adesão a esta ou aquela proposição, ou seja: só não podemos desejar aquilo que desconhecemos totalmente e só não podemos crer naquilo cuja existência nos é ignorada ou naquilo que nossa vontade se recusa a crer, ainda que se apresentem fortes motivos ou razões para a promoção de uma adesão.
Referências Bibliográficas Armstrong, O. M. 1981. Belief, Truth and Knowledge. Oxford: Oxford University Press. - - . 1978. Universais and Scientific Realism. Cambridge Un iversity Press. Gettier, E. I 963. "ls justified true beliefknowledge?" Analysis, 23. Goodman, N. 1955. ''The new riddle of induction". Fact, Fiction and Forecast. Indianapolis: Bobbs-Merrill. Griffiths, AP. 1967. "On belieP'. In Griffiths (org.), Knowledge and Belief Oxford: Oxford University Press. Guerreiro, M. A. L. 1986. "Sobre o Nominalismo de Strawson." in D. M. Souza Filho (org.), Significado, Verdade e Ação. Niterói: EDUFF. - - . 1997. O Problema da Ficção na Filosofia Analítica. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina (no prelo). Hampshire, S. 1959. Thought and Action. Londres: Chatto & Windus. Hintikka, J. 1962. Knowledge and Be/ief Ithaca: Comell University Press. Hume, D. 1978. A Trealise of Human Nature. Oxford: Oxford University Press. Needham, R. 1972. Be/ief, Language and Experience. Oxford: Blackwell. Popper, K. 1972. The Logic ofScientific Discovery. Londres: Hutchinson. Ramsey, F. P. 1931. The Foundations of Mathematics. Londres: Routledge. Ryle, G. 1949. The Concept ofMind. Londres: Hutchinson. Searle, J. 1983. Intentionality: An Essay in The Philosophy of Mind. Cambridge: Cambridge University Press. Skirms, B. 1971. Choice and Chance: An Introduction to Jnductive Logic. Belmont, Cal.: Dickinson. Wittgenstein, L. 1969. On Certainty I Über Gewissheit (edição bilíngile). Oxford: Blackwell.
CRENÇA VERDADEIRA JUSTIFICADA É CONHECIMENTO? UMA INTRODUÇÃO AO PROBLEMA DE GEITrER ALEXANDRE MEYER LUZ Fundação Educacional de Brusque
I A Definição Tradicional de Conhecimento
Tem sido consenso entre os epistemólogos 1 que têm se dedicado em algum grau à pesquisa em história da filosofia - o que não é o nosso caso - aceitar que já no Ménon e no Teeteto de Platão2 aparece a seguinte definição de conhecimento, que permaneceu ilesa por mais de dois milênios: 3
(DT) S sabe que p se e somente se (i) S crê que p; (i i) p é verdadeiro; (iii) S está justificado em crer que p; 1 Seguindo a tradição de língua inglesa, utilizaremos aqui "epistemologia'· (e correlatos) como sinônimo de "teoria do conhecimento". 2 Cf. Shope, Robert K., The Analysis of Knowing. Princeton: Princeton University Press, 1983, p. 12- 19. Shope apresenta-nos, por exemplo, uma passagem do Ménon em que a definição platônica de conhecimento é explicitada, quando Sócrates, procurando distinguir opinião verdadeira de ciência, diz a Ménon que opinião verdadeira é comparável à estatua de Dédalus, a qual, se não amarrada, escapa, e que é necessário, por isso, 'amarrá-la' através do uso da razão (97e98a). Citando Richard Aaron, Shope apresenta-nos também uma passagem da Crítica da Razão Pura na qual Kant parece referendar a definição platônica (A822, B850). 3 O termo 'saber', equivalente à 'conhecer', tem sido utili1..ado em diversos sentidos - correlatos mas não idênticos - ao longo da tradição filosófica: i) saber como ter habilidade para, como em "O Palmeiras sabe jogar bem"; ii) como familiaridade, como em "Pedro sabe o caminho para casa" ou em "Antônio conhece Maria"; iii) como possuir informação com, digamos temporariamente, certa propriedade, como em "José sabe que 'dois mais dois são a quatro' é verdadeiro". Este trabalho restringirá seu escopo apenas ao último destes sentidos, que designaremos 'proposicional'.
Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Anal/fica. Florianópolis: NEL, pp. 133-52.
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onde: a) Sé um sujeito epistêmico qualquer (ou seja, um sujeito capaz deter estados mentais aos quais atribuímos o status de 'epistêmicos', como, por exemplo, crer, suspender o juízo, etc.); b) p representa uma proposição4 qualquer; c) 'S crê que p' afirma que pé uma proposição que faz parte do conjunto que contém todas as proposições da mente de S 5 ; d) 'pé verdadeira' afirma simplesmente que é o caso que p; e) 'S está justificado em crer que p' nos informa que S tem, falando provisoriamente, boas razões (aquele raciocínio que, como nos falava Platão, "amarra" a mera crença verdadeira). A essa definição, por razões evidentes, deu-se o nome de Definição Tripartite (DT). Passaremos agora a reconstruir as razões que levaram ao abandono da mesma. 2 O Problema de Gettier
Depois de termos revisitado a definição tradicional de conhecimento, (DT), trataremos agora (i) brevemente do histórico dos ataques à (DT), (ii) do ataque particularmente feliz de Edmund Gettier, que deu origem ao assim conhecido ''Problema de Gettier" e (iii) da discussão gerada a partir do texto de Gettier 6 • 2.1 Dois Antecedentes Históricos do Ataque à Definição Tripartite
Alguns autores apontam para certas descrições de situações hipotéticas, imaginadas já bem antes do artigo de Gettier, as quais pareciam atacar (DT) (apesar de não existir consenso entre os críticos sobre se realmente 4
Tomaremos aqui 'proposição' como sinônimo de 'enunciado'. Aí incluídas aquelas crenças das quais S tem atualmente consciência (crenças 'ocorrentes') e aquelas com as quais ele atualmente não se preocupa, mas podem ser por ele acessadas a qualquer instante (crenças 'disposicionais'). 6 Gettier, Edmund. "Is Justified True Belief Knowledge?" In Analysis, 23: pp. 121- 3, 1963. Esse artigo tem sido constantemente reimpresso em inúmeras coletâneas. A mais recente delas talvez seja On Knowing and the Known lntroductory Readings is Epistemology, editada por Lucey, Keneth G. (Nova York: Prometheus Books, 1996). 5
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tinham a intenção específica de realizar tal ataque). Vejamos as duas mais conhecidas. Segundo Israel Scheffier7, já B. Russell, teria elaborado a seguinte descrição de caso na qual poderíamos identificar um ataque a (DT): (R) O Relógio Parado: S tem uma crença verdadeira, p , sobre o horário daquele instante, mas somente porque ele está olhando para um relógio que ele imagina estar funcionando, mas que está. de fato, parado.8
Russell pretendia mostrar, com (R), apenas, que poderia existir uma crença verdadeira sem, no entanto, conhecimento. Scheffler, porém, sustenta que (R) pode ser considerado um ataque a (DT) se supusermos que S tem bons motivos (evidências, boas razões, etc.) para acreditar que o relógio está funcionando. Também Roderick Chisholm9 pretendeu ter encontrado um caso que, antes dos de Gettier, atacaria (DT). Chisholm propôs que o seguinte caso, elaborado por A. Meinong, escondia um ataque à definição tripartite: (M) A Alucinação Auditiva: Há um sino num jardim próximo. S costumava escutar o badalar do sino, que tocava balançado pelo vento. Agora, porém, S desenvolveu um tipo de surdez que é acompanhada por alucinações auditivas. Devido a essas alucinações, S ad~uirc o que, por acaso, é uma crença verdadeira, p,: "o sino está tocando". 0
Existem aqui contra-exemplos (DT)? É importante percebermos o que é tentado através dos dois exemplos acima: apresentar-nos casos-modelo, intuitivamente aceitáveis, nos quais a crença do Sujeito Epistêmico, mesmo sendo verdadeira e justificada (satisfazendo, assim, (DT)), não mereceria o título de 'conhecimento', ou seja, apresentar-nos um contra-exemplo (DT). 7
Scheffier, Israel. Condilions of Knowledge. Chicago: Scott, Foreman ed., 1965, p.ll2. 8 In Shope, 1983, p.l9. 9 Chisholm, Roderick. Theory of Knowledge. z• cd. Englewood Cliffs: PrenticeHall., 1977, p.l04. 10 In Shope, 1983, p. 20.
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A nosso ver, porém, nem (R) nem (M) estabelecem-se como contraexemplos (DT); 11 isso porque, nos dois casos, S não está adequadamente posicionado para saber que p. Isso é evidente em (M): claramente S não tem um aparelho auditivo minimamente competente (e isso é relevante nesse caso, haveríamos de conceder) para que possamos atribuir-lhe conhecimento. No caso de (R) isso é menos evidente, mas também detectável. S pode aqui ser acusado de desleixo intelectual, deixando de executar uma tarefa tão relevante quanto simples: avaliar o funcionamento do relógio. Assim, apesar de p ser verdadeira e de S crer em p, não concordaríamos muito facilmente em atribuir a S justificação para tal crença, já que podemos facilmente concordar que uma condição a ser cumprida para que S estivesse efetivamente justificado, nesse caso, é a que ele consultasse as horas num relógio que funcionasse. Mas podemos descrever mais minuciosamente a situação que tornaS um sujeito epistemicamente atacável: em ambos os casos a justificação de p depende de uma outra crença, q, que, por sua vez, não está justificada. Vejamos então: - Em (M) a crença p ('o sino está tocando') depende, para sua justificação, da crença qm ('ouço o som do sino tocando no jardim'), claramente não justificada. - Em (R) a crença p ('são x horas') depende, igualmente, de uma outra crença, q, ('segundo. tal relógio são agora x horas'), à qual não atribuímos justificação, dado que, nesse caso, o relógio não é um instrumento fidedigno para indicar o horário atual. 2.2 Os Exemplos de Gettier Como vimos, os casos apresentados por Russell e Meinong parecem não servir como contra-exemplos à definição tripartite, enquanto existem problemas claramente detectáveis na justificação das crenças que sustentam a crença p e, assim, não sabe que p (e (DT) continua de pé). 11
Seguimos aqui a posição de Shope, contra Scheffier e Chisholm. À margem de tal discussão, porém, o fato é que, mesmo que (R) e (M) possam ser considerados já como ataques à (DT) (ao acrescentarmos às situações ali descritas aquele plus ausente, que nos impede de atribuir justificação aos sujeitos epistêmicos de tais casos), Gettier merece os méritos por, pelo menos, ter tomado explícito o problema.
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Os exemplos propostos por Gettier em 1963 tiveram sorte bastante diferente. Vamos agora reapresentá-los e demonstrar as razões de seu sucesso, em comparação com o fracasso dos de Russell e de Meinong. Gettier, no seu artigo "ls Justified True Belief Knowledge?" (já citado), nos propõe dois exemplos semelhantes, que podemos assim esquematizar:
2.2.1 Brown em Barcelona (G I) Brown em Barcelona: Smith tem fortes evidências a favor de uma proposição que ele não imagina ser falsa, a saber, f 'Jones tem um Ford'. Ele toma aleatoriamente o nome de um lugar, 'Barcelona', e constrói a proposição p: 'ou Jones tem um Ford ou Brown está em Barcelona'. Não tendo a menor idéia do atual paradeiro de Brown, Smith aceita p tendo por base f Acontece porém ~ue, por coincidência, Brown está em Barcelona e, assim, p é verdadeira. 1 Sendo aqui, (por definição):
f = Fj: Jones tem um Ford p = Fj v Bb: Ou Jones tem um Ford ou Brown está em Barcelona E temos ainda que: i) Para Smith, Fj é verdadeira e ele está justificado em aceitar Fj (já que as evidências para ela podem ser de tal grau que garantam a justificação). Se Fj é verdadeira então Fj v Bb também o é e, já que Fj está justificado e a dedução é um transmissor de justificação13, está também justificada para Smith. ii) É o caso, porém, de Fj ser de fato falsa: Fj v Bb seria, também, então, falsa, já que os dois lados da disjunção mostram-se falsos. Porém, por sorte (ou má sorte), Brown está em Barcelona (Bb é verdadeira), o que acarreta a verdade de Fj v Bb. iii) dados i) e ii), percebemos que Smith tem crença verdadeira justificada (e, se aceitamos (DT), conhecimento) devido, porém, apenas a um enorme golpe de sorte, do qual ele não faz a menor idéia, de modo tal que não nos disporíamos a atribuir a ele conhecimento nesse caso. Ele teve apenas, diríamos, sorte, um grande golpe de sorte. 12
Este é o exemplo esquemático apresentado em Shopc, 1983, p. 23. Assumimos aqui a suposição de que justificação pode sempre ser transmitida via dedução. 13
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2.2.2 Smith com dez moedas Vejamos, agora o segundo contra-exemplo original de Gettier: (G2) Com novo emprego e dez moedas no bolso: Smith tem forte evidência a favor da seguinte conjunção, d: 'Jones será indicado para o emprego e tem dez moedas no bolso', da qual deduz a proposição e: ' O homem que será indicado para o emprego tem dez moedas no bolso' . Acontece que, sem que Smith o saiba, ele é que será o indicado para o emprego e, 14 coincidentemente, tem dez moedas no seu bolso.
Temos em (02): d = Ej & Mj: Jones será indicado para o emprego e tem dez moedas no bolso. e = 3x(Ex & Mx): existe um homem que será indicado para o emprego e que tem dez moedas no bolso. O problema aqui se instala de um modo semelhante ao do primeiro caso: existe uma proposição justificada para Smith (Ej & Mj), da qual ele deduz uma nova proposição (3x(Ex & Mx)), que também está justificada para ele. Acontece, porém, que a proposição original (Ej & Mj) é, de fato, falsa, mas a deduzida (3x(Ex & Mx)) é, por um golpe de sorte, verdadeira. Devemos notar que o sujeito epistêmico desses problemas não padece das mesmas debilidades daqueles dos exemplos (R) e (M). O sujeito epistêmico dos casos de Gettier tem aqui "forte evidência" para crer no que crê. Os exemplos de Gettier supõem que S possa dispor de um número virtualmente infmito de evidências relevantes que justificariam as crenças de Smith de modo aceitável para a maior parte dos indivíduos numa situação real semelhante. Os exemplos de Gettier não são passíveis dos mesmos ataques dirigidos aos de Russell e Meinong; o sujeito epistêmico dos exemplos de Gettier, diríamos, num primeiro momento, está em 'posição para saber', 'tem boas evidências ou razões para o que crê' ou, em outras palavras, está justificado em crer no que crê. Qual é, então, o problema de Gettier? O problema posto através dos exemplos de Gettier é, agora, facilmente 14
Esse é novamente um exemplo esquemátiCfl
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detectável: S tem crença verdadeira justificada, f, após cumprir um número altamente razoável de obrigações para com uma crença original d - da qualfé deduzida. d é falsa (apesar de S o desconhecer):/, porém, por um golpe de sorte igualmente desconhecido por S, é verdadeira. Dadas tais condições, S tem crença verdadeira justificada de que f, mas não tem conhecimento. Assim, a definição tripartite imp/ode! E mais, isso vai se dar porque descobrimos o real caráter da justificação: cria-se ser a justificação algo sempre sólido e suficiente para garantir aquela conexão entre nossa razão e o verdadeiro que se julgava necessária para garantir o título de 'conhecimento' a uma opinião verdadeira. Gettier veio, com seus exemplos, nos mostrar a falsidade dessa suposição, nos ensinando que podemos obter justificação para uma crença (verdadeira) e, mesmo assim, em certas situações, falharmos em obter conhecimento em relação a tal crença. O problema de Gettier vai consistir, então, em um ataque mortal à antiga definição tripartite de conhecimento proposicional, acertando-a no coração: na noção-chave de justificação, que passa a ser, então, desde 1963, o principal objeto de investigação dos epistemólogos. Resolver o problema de Gettier passa a andar de mãos dadas com a reforma da noção de Justificação, tentando, com isso, bloquear a porta de entrada dos ataques de Gettier. Antes de seguirmos adiante resta ainda uma questão a ser respondida: qual a relevância filosófica do problema de Gettier? Não poderíamos simplesmente requerer que um sujeito epistêmico soubesse utilizar o conceito de 'conhecimento'? Tal (pertinente) questão pode ser respondida ao nos lembrarmos do status especial de tal conceito: 'conhecimento' é um termo com caráter normativo 15 ; o caso não é apenas o de sabermos utilizar o conceito, mas em descobrirmos os requisitos que devem ser preenchidos por alguém que pretende atribuir tal título meritório (de 'conhecimento') a uma sua proposição. E para isto faz-se necessária uma análise rigorosa do conceito. 16
15
Tal afirmação, porém, não caracteriza um compromisso com as teorias da virtude epistêmica (sobre tal grupo de teorias consulte, por exemplo, Montmarquet, Jarnes. Epistemic Virtue and Doxastic Responsability. Lanhan: Rowman & Littlefield, 1993.) 16 Uma discussão mais detalhada pode ser acompanhada em Conee, Earl. Why Solve the Gellier Problem?, in. Moser, Paul (Ed.). Empirical Knowledge -
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2.3 Um Ataque aos Exemplos de Gettier: a Presença de Falsidades Em paralelo ao imaginável espanto causado pelo pequeno artigo de Gettier, multiplicaram-se as tentativas de descaracterizar os exemplos ali apresentados como contra-exemplos. Vejamos uma dessas primeiras réplicas. A presença de falsidades
Na análise dos exemplos de Gettier podemos facilmente detectar, nos dois casos, o seguinte movimento: I - S tem justificação para crer que p; 2 - pé falsa (apesar de S não o saber); 3 - de p se chega, através de dedução, a f 4 - f é verdadeira, e S tem, então, crença verdadeira justificada. O argumento contra os exemplos propostos por Gettier 17 apoiava-se exatamente na passagem de 2 para 3, ou seja: os exemplos de Gettier supõem que a justificação de f está apoiada em uma proposição, p , que é de fato falsa. Ora, poderíamos alegar que uma dedução a partir de premissas falsas não é um processo transmissor da justificação, já que, como sabemos, não nos fornece nenhuma garantia de preservação da verdade contida nas premissas (e o que desejamos com a cláusula de justificação é que, no que depende de nós, permaneçamos o mais próximo possível da verdade- e longe do erro). Teríamos, então, um bom motivo para não considerar S justificado em crer que f, dissolvendo, assim, os contraexemplos originais de Gettier. 18
Readings in Contemporary Epistemology. Lanhan: Rowman & Littlefield, 2• ed., 1996. 17 Tais argumentos contra os contra-exemplos podem ser acompanhados em ··Know1edge without Paradox" de Robert Meyers e Kenneth Stem (The Journal of Philosophy 70 (março 22, 1973), pp. 147-60) c em Belief, Truth and Knowledge, de David Armstrong (Cambridge: Cambridge U.P., 1973) 18 Cf., por exemplo, Shopc, 1983, p. 24, assim como o artigo "An Alleged Defect in Gcnier Countcrexamples," de Richard Feldman (in Lucey, 1996). A despeito da discussão sobre o assunto, aceitamos aqui que justificação se transmite via implicação, mesmo nos casos em que o antecedente da implicação é falso (como
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2.4 Superação do Problema: Exemplos de Tipo-Gettier
Após a publicação dos contra-exemplos de Gettier e dos ataques a esses, foram desenvolvidos inúmeros novos contra-exemplos, inspirados nos dois originais, trazendo, porém, em relação àqueles, pequenas alterações que permitiram superar ataques como os apontados acima, e que nos permitirão falar de exemplos de tipo-Gettier. Listas extensas de exemplos deste tipo podem ser conferidas no livro já aqui citado de R. Shope, e em Furman, 1992 19• Apresentaremos, aqui, apenas alguns exemplos que demonstram a extrema - e problemática (pelo menos para aqueles que pretendem definir 'conhecimento') adaptabilidade de exemplos semelhantes aos de Gettier (de tipo-Gettier, já podemos dizer) a novos contextos. Assim, vejamos o seguinte exemplo, criado por Keith Lehrer: (TG I) Mr. Nogot (versão não-discussiva): Um funcionário no escritório de S, Mr. Nogot, deu a S a evidência e, da qual S inferiu diretamente p: 'alguém no escritório possui um Ford'. Mas, sem que S o suspeitasse, é Havit quem tem um Ford, e não Nogot. 20
Este exemplo tem um endereço certo: procura superar a crítica - já apontada (da presença de falsidade) - dirigida aos exemplos originais de Gettier. 21 Podemos observar neste exemplo que Lebrer apresenta uma versão ligeiramente modi ficada dos exemplos originais, tentando estabelecer uma ligação direta entre as evidências e a conclusão ('alguém no escritório tem um Ford'). Ele é, porém, igualmente atacável pelo argumento da existência de premissas falsas: o crítico poderá alegar que uma premissa do argumento ('Mr. Nogot tem um Ford' ) - que é falsa - não está dada explicitamente, sendo, porém, suposta. O próprio Lehrer apresentaria posteriormente um novo contraexemplo que continuava a evitar o envolvimento de premissas falsas, nos casos originais de Gettier). Como veremos, porém, existem casos de tipoGettier que não vão utilizar condicionais com o antecedente fàlso. 19 Furman, Michacl T; Living in the Gettier Fallout. Santa Barbara, 1992. Tese. University ofCalifornia. 20 In Shope, 1983, p. 24. 21 Cf. também Feldman, Richard. "An Alleged Dcfect in Gcttier Counterexamples" (in Moser, 1996).
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mas sem padecer do mesmo mal que (TGI): (TG2) The C/ever reasoner: Um aluno da classe de S. Mr. Nogot deu aS evidência e, suficiente para justificar a crença q paraS: ' Mr. Nogot tem uma Ferrari'; S não tem evidências que sustentem r: 'Mr. Havit tem uma Ferrari'. O professor não está in~eressado em quem possa ser na classe o proprietário da Ferrari, mas somente se p é verdadeira, onde p é a proposição 'alguém na classe tem uma Ferrari'. As razões do professor para inferir que a evidência e apóia q são as de que (dado e) é possivel que alguém na classe tenha uma Ferrari.
Algumas variações desse contra-exemplo são particularmente danosas. Vejamos, por exemplo, a seguinte versão proposta por Paul Moser, conhecida também como Jones sob Hipnose, na qual apenas proposições verdadeiras aparecem justificando a crença em questão: (TG3) Jones sob Hipnose: Suponhamos que uma pessoa, S, sabe a seguinte proposição verdadeira, M: o Sr. Jones, um colega de trabalho que S sempre tomou como alguém confiável e em relação ao qual S não tem, no presente, nenhuma razão para nutrir desconfiança, disse a S que P: Ele, Jones, possui um Ford. Suponhamos também que Jones disse P a S somente devido ao estado de hipnose em que Jones se encontra, e que P é verdadeira unicamente porque, sem que o próprio Jones o saiba, ele ganhou um Ford na loteria no instante em que entrou no estado de hipnose. E suponha ainda que S deduz de M a generalização existencial Q: Há alguém, o qual S sempre considerou confiável e em relação ao qual S não tem nenhuma razão para começar a desconfiar no presente, que disse a S, seu colega de trabalho, que ele possui um Ford. S, então, sabe que Q, desde que ele deduziu corretamente Q de M, o qual ele também sabe. Mas suponhamos também que, baseado em seu conhecimento de que Q, S acredita também em R: Alguém no escritório possui um Ford. Nestas condições S tem uma crença verdadeira;ustificada de que R. conhece sua evidência para R. mas não sabe que R. 2
Este caso nos mostra a dramaticidade do Problema de Gettier: tal caso, enquanto não envolve nenhuma crença falsa, serve como contraexemplo a tentativas (como a do próprio Shope em 1983) de propor urna condição adicional à (DT) que servisse exatamente para desvelar aquela 22
Moser, Paul. Knowledge and Evidence. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 237.
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fa lsidade oculta no processo de justificação da crença (como nos casos orig inais de Gettier). Tal proposta, como podemos bem notar, não dá conta de Jones sob Hipnose pela simples razão de tal contra-exemplo não envolver, como bem vimos, falsidades.
2.4.1 Tom Grabit O contra-exemplo conhecido como Tom Grabit foi publicado pela primeira vez por Peter Klein, em 1971. Sua particularidade consiste, exatamente, em demonstrar que a adição de novas evidências pode solapar a justificação de S para uma crença p , mesmo que estas novas evidências não sejam diretamente contra p. Eis a apresentação clássica: (TG4) Tom Grabil: S acredita que se u vizinho, Tom Grabit, roubou um livro na livraria, enquanto S viu Tom fazendo isto. Porém, sem que S o saiba, Tom tem um irmão gêmeo idêntico que estava na livraria no momento do roubo. 23
Podemos notar que, como já apontamos, existe uma informação adicional (sobre a existência do irmão gêmeo de Tom) que não é contraevidência ao enunciado em questão (o de que Tom roubou o livro), mas que, quando adicionada a esse enunciado, solapa a justificação que S para ela possuía. Vejamos agora a seguinte variação do caso: (TG5) A louca Sra. Grabil: S acredita que seu vizinho, Tom Grabit, roubou um livro na livraria, já que S viu Tom fazendo isto. A mãe de Tom, em estado de demência, diz aS que T<>m tem um irmão gêmeo cleptomaníaco (o que é fruto de sua imaginação perturbada) e que 'o irmão gêmeo de Tom estava na livraria na hqra do roubo, enquanto Tom estava a milhares de quilômetros de distância dali.' 24
O que temos de novo aqui? Algo que nos revela mais uma característica que uma nova definição (é adequada) de justificação deve possuir: a capacidade não só de explicar como a adição de novas evidências pode solapar aquela base possuída para a crença, mas também que essa evidência adicional pode, por sua vez, ser derrotada por uma nova informação, que funciona, no caso acima, como contra-evidência à essa evidênn mShope, 1983, p.49. 24
Id., p.53.
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cia. Ou seja, uma definição adequada para 'conhecimento proposicional' deve dar conta não apenas de apontar situações nas quais (e apenas nas quais) o título de 'conhecimento' pode ser atribuído a uma proposição mas também prever a possibilidade deste título poder ser perdido (através da adição de nova informação) e reconquistado (idem), e assim sucessivamente.
2.4.2 O Líder dos Direitos Civis O próximo contra-exemplo, chamado de o líder dos direitos c1v1s (também conhecido como do jornaf), foi apresentado pela primeira vez por Gilbert Harman em 1968, e traz à discussão aquelas situações em que S, levando apenas em conta as evidências para ele disponíveis para uma crença p, encontra-se justificado, vindo a perder, porém, tal justificação a partir do momento em que é levada em conta a comunidade na qual ele se insere. Eis o contra-exemplo, na versão de Shope: (TG6) O Jornal: S acredita no assassinato de um famoso líder dos direitos civis, após ter lido uma matéria em um jornal geralmente confiável. A matéria foi escrita por um jornalista que foi testemunha ocular do fato. Sem que S o saiba, as pessoas de sua comunidade não sabem o que pensar, enquanto eles possuem a informação adicional fornecida por novas noticias que apontam para o contrário da crença de S. Estas outras noticias, porém, foram divulgadas apenas devido a uma insuspeita conspiração por parte das outras testemunhas, que visam evitar uma crise racial. 25
Podemos perceber que, neste contra-exemplo, temos um problema diferente daquele apresentado com o contra-exemplo anterior, a saber: a justificação de Sé solapada pelo acréscimo de nova informação verdadeira (a de que os outros jornalistas, baseados em testemunhas, afirmaram que o líder dos direitos civis não havia sido assassinado), como no caso de Tom Grabit, mas essa informação adicional, por sua vez, tem por evidência uma outra informação, essa sim, falsa (as testemunhas, que presenciaram o fato, estão descrevendo fidedignamente o ocorrido). Se esse contra-exemplo (que a nosso ver tem sido indevidamente negligenciado) de fato se instala (como nos parece ser o caso), somos conduzidos 2 s Id., pp. 33-4. Variações podem ser conferidas também nas páginas 229, 230 e 232.
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a uma situação, no mínimo, estranha: não apenas informação verdadeira pode destruir a justificação que possuíamos para uma crença; também crenças falsas o podem. Estes contra-exemplos mostram bem o campo minado em que Gettier nos deixou: um conjunto de condições necessárias e suficientes para uma definição de conhecimento proposicional adequada requer muito mais do que apenas supor um certo 'encadeamento racional' adicionado à crença verdadeira. Requer - e aqui já se revela preliminarmente nossa simpatia na disputa acerca desse plus - também que esse encadeamento racional seja de um tipo resistente a diferentes 'acidentes epistêmicos' , como os ocorridos com os sujeitos epistêmicos das situações descritas nos casos recém-apresentados. Não é de estranhar, pois, que o conceito de justificação ocupe o lugar central na disputa. Crer é algo que depende apenas de nós; a verdade de uma proposição (pelo menos das com conteúdo empírico), por outro lado, absolutamente não depende de nós como sujeitos; estar justificado é, então, aquilo que aproxima estes dois extremos (crença e verdade). Estar justificado é aquilo que podemos fazer para nos aproximarmos da verdade. E o problema de Gettier veio exatamente nos mostrar que não sabemos a real natureza do conceito de justificação. O que liga intimamente tal problema à discussão acerca das teorias da Justificação, que apresentaremos rapidamente a seguir, de modo generalíssimo.
3 As Teorias da Justificação: Quadro Geral da Disputa Enquanto as tentativas de refutação do caráter de contra-exemplo dos casos de tipo-Gettier não alcançam sucesso, qualquer nova proposta de definição de conhecimento proposicional deverá levar em conta a necessidade de escapar ilesa de qualquer potencial ataque de casos deste tipo e, além disso, deverá satisfazer a diferentes intuições aparentemente aceitáveis, mas não imediatamente compatíveis. Apresentaremos agora, aqui, rápida e esquematicamente, algumas das principais tentativas de solução engendradas pelos especialistas. Elas têm todas em comum pelo menos uma característica: todas se fundam sobre teorias da justificação, o que não é, de modo algum, surpreendente; primeiro porque, como vimos, é exatamente através da noção de justificação que os contra-exemplos se instalam; segundo, porque não temos muito mais com que trabalhar. Mesmo considerando algumas tentativas de apresentar definições adequadas manipulando não o conceito de justi-
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ficação, mas os de crença e de verdade26, nos parece que, de fato, o nó da questão (e a sua possível solução) encontra-se apenas em um lugar: como era de se esperar, no conceito de justificação. Isto não causará estranheza ao nos lembrarmos, primeiro, do papel central de tal conceito em qualquer teoria do conhecimento: ela media a subjetividade da condição de crença e a objetividade da condição de verdade, caracterizando exatamente o nosso esforço de aproximarmo-nos da verdade (afastando-nos do erro); segundo porque é no conceito de justificação que reside o caráter normativo do conceito de conhecimento, ao qual nos referimos anteriormente Vamos, então, ao quadro geral das principais intuições envolvidas no debate.
3.1 Teorias da Justificação Externalistas O primeiro grande grupo de teorias da justificação é constituído pelas teorias de tipo externa/isto. O Dicionário Cambridge de Filosofia27 apresenta o confiabilismo28 (reliabilism) (o principal tipo de teoria externalista) como ''um tipo de teoria em epistemologia a qual defende que o que qualifica uma crença como conhecimento ou como epistemicamente justificada é uma ligação confiável com a verdade" e apresenta uma conhecida analogia de David Armstrong: uma crença que conjiave/mente indica a verdade é como um termômetro que, conjiavelmente, marca a verdade. K. Lehrer, de modo análogo, fala de tal grupo de teorias como uma tentativa de definir conhecimento que tem como principal doutrina que "o que devemos adicionar à crença verdadeira para obter conhecimento é uma conexão apropriada entre crença e verdade ( ...) A tese central do 26
Cf. um recente e instigante artigo de Sartwell, Crispin. "Why Know1edge is Merely True Belief." The Journal of Philosophy, LXXXIX, 4, pp. 167-80, 1992. 27 Audi, R. (Ed.) The Cambridge Dictionary of Philosophy. Cambridge: Carobridge University Press, 1996, p. 693. 28 O principal tipo de teoria extemalista. A definição, porém, pode ser estendida a qualquer tipo de externalismo. Podemos encontrar as raízes do projeto externalista na proposta quineana de transformar a Epistemologia em ' um capítulo das ciências naturais'. Alguns artigos já clássicos sobre o externalismo podem ser encontrados em Komblith, Hilary (Ed.). Naturalizing Epistemology, 2' ed. Cambridge: The MIT Press, 1994.
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extemalismo é a de que alguma relação com o mundo externo é o suficiente para converter crença verdadeira em conhecimento, mesmo que nós não façamos nenhum idéia sobre essa relação. Não é nossa ciência do como estamos relacionados com um fato que garante conhecimento, mas simplesmente o (fato de, n.a.) estarmos ao fato relacionado" 29 • A parte em itálico da citação acima nos remete à analogia de Armstrong: falamos aqui de "externalismo" porque do sujeito epistêmico não se espera outra coisa senão essa conexão com os fatos; dele não se espera sequer consciência dessa conexão. A noção de justificação como já vimos, a noção central em nossa discussão - será definida de um modo muito particular: como algo em termos de 'estar próximo da verdade', assim como a temperatura indicada pelo termômetro está relacionada aos fatos (mesmo que o termômetro mesmo não o saiba). Vejamos agora o grupo das teorias adversárias.
3.2 Teorias da Justificação lnteroalistas As teorias intemalistas da justificação apoiam-se, como veremos rapidamente, em algumas das mais antigas intuições em filosofia. Para W. Alston (um autor que procura absorver intuições tanto intemalistas quanto externalistas), ( ...) como o nome implica, uma posição "intemalista" restringirá os justificadores a coisas que estão dentro de algo, mais especificamente, dentro do sujeito. Mas, é claro, nem tudo que está "dentro" do sujeito conhecedor será admitido como um possível justificador por um intemalista. Processos fisiológicos que ocorrem dentro do sujeito e dos quais esse não sabe nada, não serão admitidos. Então, em que sentido algo deve estar "no sujeito" para atender aos desejos do intemalista? Temos duas respostas diferentes na literatura: primeiro, há a idéia de que, para conferir justificação, algo deve estar dentro da "perspectiva" ou "ponto de vista" do sujeito, no sentido de ser algo que o sujeito sabe, acredita ou justificadamente acredita. ( ...) Segundo, há a idéia de que, para conferir justificação, algo tem que estar acessível ao sujeito de um modo especial, por exemplo, diretamente acessível ou infalivelmente 30 acessível . 29
Lehrer, 1990 (grifo nosso). Alston. Willian P. lnternalism and Externalism in Epistemology. In Alston. Willian P. Epistemic Justijication- Essays in the Theory of Knowledge. lthaca: Comell University Press. 1989, p. 185.
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Utilizemos a analogia de Armstrong, descrita anteriormente, para melhor esclarecer a noção aqui: uma exigência internalista ao termômetro seria algo como "estar ciente da relação entre sua afirmação e os fatos" ou, pelo menos, "ter capacidade de se dar conta dessa relação, se necessário."
3.2.1 Dois Grandes Tipos de "lnteroalismos" No final da citação acima, ao nos apresentar a posição internalista sobre justificação, Alston nos falava sobre justificadores "internos ao sujeito", que poderiam ser crenças justificadas ou conhecidas a dar justificação a outras crenças. Essa formulação nos põe diante de um problema de extrema relevância: se uma crença justificada é justificada por outra, e assim adiante, como evitar que caiamos em um regresso infinito epistêmico?31 A resposta ao problema será dado, a grosso modo, de duas maneiras distintas, que caracterizarão as duas grandes doutrinas internalistas: i) por um apelo à noção de coerência entre as crenças (imaginemos aqui um círculo, ou uma rede), noção central do coerentismo, como veremos; e ii) por um apelo à noção de uma crença de status especial, que, de algum modo, não necessita de outra crença para tornar-se justificada, o que caracteriza a posição jimdacionista.32
3.2.1.1 O Coerentismo O coerentismo, uma família de teorias da justificação, da qual podemos encontrar raízes em filósofos tão dis6ntos quanto Hegel e Bosanquet de um lado e Neurath e Sellars de outro, consiste em uma posição internalista que vai definir o conceito-chave de justificação apelando para a noção de mútuo suporte entre crenças. R Audi apresenta-nos o modelo 31
Sobre esse problema c suas conseqüência confira, p. ex., Audi, Robert. Beliej. Justification, and Knowledge. Califomia: Wadsworth Publishing Company, 1988, pp. 83ss. 32 Uma reconstrução mais detalhada de uma teoria coerentista (a de K. Lehrer), assim como a de uma teoria fundacionista (de Paul Moser), pode ser acompanhada em Luz, Alexandre Mcyer. A Análise do Conhecimento: O Problema de Gellier e Três tentativas lnternalistas de Solução. Porto Alegre, 1997. Dissertação. Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
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de justificação coerentista do seguinte modo: "A idéia central a guiar o coerentismo é a de que a justificação de uma crença emerge de sua coerência com as outras crenças aceitas por um sujeito epistêmico. O conjunto das crenças coesas pode ser tão largo quanto a totalidade das crenças desse sujeito epistêmico".33 Ou seja, o regresso ao infinito é evitado enquanto não temos uma reta, mas, antes, um círculo ou uma rede. 3.2.1.2 O Fundacionismo
O segundo tipo de resposta para o problema do regresso epistêmico vem do grupo de teorias da justificação denominadas defundacionistas (e este termo nos parece bem adequado, lembrando-nos das fundações a sustentar todo o prédio). Essas apelam para uma intuição bastante antiga em filosofia (que tem seu início com Aristóteles, passando por Descartes, pelos empíristas34 e, no nosso século, por Russell, Carnap, etc.): a de que existiriam crenças com status especial que, de algum modo, não necessitariam de justificação fornecida por outras crenças, interrompendo, assim, o regresso3 ~ .
33
Cf. Audi, 1988, p. 87. Notemos que "coerentismo" aqui se refere a "coercntismo epistemológico", sem relação com a mesma expressão utilizada em outros casos como, por exemplo, nas "teorias da verdade coerentistas". Além do livro de Lehrer que aqui será apresentado adiante, como dissemos, outras leituras interessantes para um panorama mais detalhado são o livro de Laurence Bonjour (talvez, com Lchrer, um dos mais importantes coerentistas), Bonjour, Laurence, The Structure of Empirical Knowledge. Cambridge: Harvard University Press, 1985, e a coletânea de artigos crfticos editados por John Bender: Bender, John (Ed.). The Current State ofThe Colzerence Theory: Criticai Essays on lhe Epistemic Theories of Keith Lehrer and Lawrence Bonjour with Replies. Doordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1989. 34 Descartes e os empiristas clássicos podem ser considerados fundacionistas, apesar da aparente divergência em seus projetos. Ambos apelam para crenças que, de um modo particular para cada um, se auto-sustentam: para Descartes, as crenças que sustentam as demais crenças devem ser indubitáveis; para os empiristas clássicos, o papel de sustentação das demais crenças é executado pelas crenças com conteúdo empírico. 35 Uma primeira consulta pode ser feita rapidamente no já citado The Cambridge Dictionary of Philosophy, no verbete ' Foundationalism', redigido por Paul K. Moser.
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3.3 lnternalismo e Externalismo Antes de caracterizarmos melhor as duas posições, vale lembrarmos o contexto da disputa em que essas posições se inserem: a tentativa de apresentar uma definição de conhecimento que não sucumba a ataques de contra-exemplos de tipo-Gettier36• Muitos autores referem-se à questão como a busca pela quarta condição, supondo que conhecimento deva ser definido como crença verdadeira justificada mais... ; alguns outros autores, porém, tentam trilhar um caminho diferente, atacando uma das três condições classicamente estabelecidas37 • Posicionamo-nos aqui, desde já, junto com o primeiro grupo, assumindo que uma definição adequada para o conceito de conhecimento dar-se-á através do acréscimo de uma quarta condição (e veremos algumas propostas para tal) às três propostas por (DT). Seguindo, então, o caminho para estabelecer o complemento invencível à definição tradicional de conhecimento podemos identificar dois grandes grupos, (num recorte extremamente grosseiro, enquanto temos em cada grupo inúmeras posições diferentes e divergentes sob diversos aspectos) caracterizados a grosso modo anteriormente: o dos externalistas e o dos intemalistas. A diferença entre ambos38 talvez tique melhor caracterizada através de um exemplo. Suponhamos uma criança bastante pequena, C, filha de mais eminente astrofisico vivo, autor de uma teoria plenamente aceita e - para fins de exemplo - verdadeira39• Essa criança nos repete uma afinnação qualquer decorrente da teoria astrofisica elaborada por seu pai. Suponha ainda que essa criança não sabe nada sobre a profissão de seu pai nem de sua competência como pesquisador. 36
Em Luz, 1997, demonstramos dois casos de teorias sendo derrotadas por contra-exemplos: as de Paul Moser e Keith Lehrer. 37 C f. Shope, 1983,cap.6. 38 Uma boa introdução à disputa internalismo x externalismo pode ser encontrada sob o verbete ' internalism/externalism' do execelente dicionário editado por J. Dancy e E. Sosa, A Companion to Epistemology (Oxford: Blackwell Publishers Ltd, 1996). 39 Notemos que não nos importa aqui se é possível tennos efetivamente proposições verdadeiras ou qualquer outras questão do gênero. Como já apontamos, apesar da proximidade, a questão da definição do conhecimento não depende diretamente da questão do ceticismo.
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Essa criança tem conhecimento? Um extemalista não teria muitas dúvidas em afirmar que sim, já que 40 ela tem crença verdadeira e justificada (e imune a acidentes epistêmicos; mas vamos nos furtar neste instante, a acrescentar qualquer condição às três tradicionais) enquanto essa crença foi obtida através de um método confiável (um apelo legitimo à autoridade). Um intemalista, ao contrário, teria sérias restrições em atribuir conhecimento à criança, enquanto essa não passaria no principal teste intemalista: ser capaz de defender a justificação de sua crença, ou seja, de explicar o como se dá sua justificação, se para isso for requisitada. Notemos aqui que as duas correntes trabalham com intuições básicas que parecem ser igualmente plausíveis, as quais teríamos todo interesse em preservar: os externalistas nos lembram de que a justificação deve ser algo de algum modo ligado à verdade; os intemalistas, que estar justificados é um título meritório que serve exatamente para premiar indivíduos que cumprem requisitos para ter conhecimento (que é a lgo diferente da mera posse de in formação). Mas a discussão não se situa apenas no nível das intuições, enquanto existem argumentos bastante fortes a favor das duas posições. Vejamos alguns deles:
a) Regresso ao infinito: alguns extemalistas acusam o internalismo do seguinte pecado: se o intemalista exige que o sujeito conhecedor esteja justificado em crer que está justificado (que saiba porque sabe, etc.), não podemos exig ir que ele tenha justificação (ou saiba) num terceiro nível e, assim, sucessivamente, caindo num regresso ao infinito?
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Não é dificil supor que, para um extemalista radical, a justificação não será um requisito de algum tipo de ' ação racional' em relação à crença, mas um mero requisito de proximidade entre o conteúdo da crença e a verdade. Alvin Goldman, por exemplo, definia justificação do seguinte modo: "Se a crença de S em p em t resulta de um processo cognitivo confiável, e se não há nenhum [outro] processo confiável ou condicionalmente confiável disponível para S, o qual, se tivesse sido utilizado por ele junto com o processo atualmente utilizado, resultaria na sua descrença em relação a p em t, então a crença de S em p está justificada". (Goldman, Alvin. " What is Justified Belief?'' In Pappas, G. S. (ed.) Justification and Knowledge. Dordrecht: D. Reidel, 1979. ).
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b) Separação entre justificação e verdade: esse argumento faz apelo a uma intuição bem aceita: justificação, de algum modo, deve ser definida em função da verdade, os extemalistas acusam o intemalismo de não conseguir realizar uma definição de conhecimento que conecte, de modo satisfatório, justificação e verdade; estar justificado, em um sentido internalista, não nos diria nada em relação à verdade ou falsidade de uma crença c) Dificuldades em definir "processo condutor à verdade" (truthconducive): esse conceito, caro aos externalistas, padeceria, segundo muitos internalistas, de uma debilidade grave. Vejamos: enxergar algo é um processo condutor à verdade? Bem, teríamos que aí definir distância do objeto, seu tamanho, condições de visibilidade, condições do observador...e n outras variáveis, de tal modo que não poderíamos apresentar uma resposta universalmente válida. 4 Considerações Finais Existem muitos outros argumentos, postos de modo muito mais sofisticado que os apresentados acima. O que gostaríamos de ressaltar, aqui, porém é o fato de: a) termos boas intuições em ambos os lados; b) termos dificuldades de formalizar teorias em ambos os lados. É isso que tem garantido a continuidade da discussão, principalmente na direção de uma tentativa de conciliar as diferentes intuições. O mais importante aqui, porém, consiste em que percebamos que, para qualquer teoria (seja qual a inspiração a lhe mover), temos já um critério de sucesso bem estabelecido: a sua capacidade de sobrevivência diante dos contra-exemplos de tipo-Gettier. É esse critério comum que garante rigor à discussão; mesmo que, de saída, estejam em jogo intuições radicalmente diferentes, o critério continua sendo único e implacável. Em compensação, porém, depois de cada derrota poderemos aprender a lidar melhor com o conceito de conhecimento e simultaneamente, esclareceremos passo a passo tal conceito que, hoje, se encontra ainda em lusco-fusco.
CONSEQÜÊNCIAS EPISTEMOLÓGICAS DA TERAPIA WriTGENSTEINIANA: PRAGMÁTICA FILOSÓFICA. ARLEY MORENO
Unicamp
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Gostaria, inicialmente, de delimitar dois elementos do tema geral propostoepistemologia e pragmática -, para melhor situar as observações que apresentarei a seguir. Do conceito amplo de pragmática, restringir-me-ei a salientar o aspecto pragmático da significação lingüística, a saber, as formas de produção da significação que envolvem as circunstâncias da enunciação e das aplicações das palavras- como, por exemplo, as situações de interlocução, os diferentes processos para a atribuição de nomes, as diversas ligações entre palavras e técnicas de organização da experiência, etc. Do conceito de epistemologia, salientarei o aspecto de interpretação filosófica das condições gerais dos mecanismos lingüísticos de construção de conceitos - aspecto este que se distingue muito claramente de uma explicação através de modelos lingüísticos: não se trata, como veremos adiante, de tomar a linguagem como fenômeno empírico e de explicar seus processos, mas de pesquisar as condições simbólicas propriamente lingüísticas que estão supostas e que determinam a organização do conhecimento através de conceitos. É assim que uma pragmática da significação lingüística pode ser entendida como uma Pragmática filosófica.
2 Em seguida, gostaria de salientar, ainda que esquematicamente, a filiação da proposta que farei a seguir, para bem situar seu contexto filosófico. Em primeiro lugar, a passagem gradualmente realizada pelos filósofos do chamado empirismo lógico da idéia kantiana de transcendental - como condição a priori para a representação dos objetos - à idéia de forma lógica. Esta pasMortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analltica. Florianópolis: NEL, pp. 153-74.
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sagem permite que o centro de interesses passe a incidir, cada vez mais clara e sistematicamente, sobre os mecanismos do simbolismo lingüístico como uma forma filosoficamente mais adequada de interpretação do conhecimento. Ao criticar a tese de que o pensamento é autônomo ao elaborar juízos sintéticos a priori, e, pelo contrário, ao assumir a tese de que a experiência empírica fornece um modelo indispensável para o conhecimento - que não devemos descartar, sob o risco de reincidirmos nos tradicionais sistemas metafisicos -, os filósofos do empirismo lógico, desde Russell até Carnap, esclarecem-nos, cada um à sua maneira, a função constitutiva desempenhada particularmente pelo simbolismo lingüístico na construção do conhecimento conceitual: os próprios fatos coincidem com sua expressão língilistica em algo que lhes é comum, sua forma. Ora, esta forma possui propriedades lógicas que podem ser exploradas e explicitadas, e é a este trabalho que se dedicam os empiristas lógicos. Em segundo lugar, gostaria de ressaltar o alargamento da concepção kantiana da Lógica proposto por G.-G. Granger. A Lógica, segundo Kant, deve fornecer exclusivamente as formas legítimas do pensamento em geral, independentemente de seus eventuais conteúdos. A Lógica não legisfera, neste sentido kantiano, sobre o pensamento de objetos e, por isto, não possui a função transcendental que é atribuída à Estética. Ora, Granger (1968 e 1994, cap. 2), ao reconhecer a importância do simbolismo lingilfstico na constituição do conhecimento conceitual, é levado a propor a idéia de que a Lógica já legisfera a respeito da organização perceptiva da experiência, enquanto experiência a ser expressa lingilisticamente. Em outros termos, a Lógica já é transcendental porque fornece as formas mais primitivas do pensamento de objetos, a saber, do pensamento simbólico. E encontramos, aqui, uma situação equivalente àquela com que se defronta o jovem Wittgenstein do Tractatus: a Lógica é transcendental e fornece as condições para o pensamento objetivo. Em terceiro lugar, neste ponto, acompanhamos Wittgenstein nas dificuldades encontradas para a caracterização do conceito de objeto e a passagem à segunda fase de sua atividade filosófica (Moreno 1995). Após o Tractatus, ao indagar a respeito de quais são os objetos, Wittgenstein percebe que a Lógica oferece as condições a priori para o pensamento do objeto, mas, apenas do ponto de vista daquilo que é denominado de modelo referencial, ou agostiniano, nas Investigações Filosóficas. Pode-se afirmar, após o Tractatus, que as formas primitivas da experiência expressa lingilisticamente, fornecidas pela Lógica, são relativas ao modelo referencial, e, portanto, limitadas a uma determinada concepção de linguagem, a qual, nessa
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obra de juventude, havia sido indevidamente generalizada. Ao recusar o exclusivismo desta concepção, Wittgenstein percebe que as formas primitivas da experiência expressa se multiplicam, extravazando o modelo referencial - ao qual se aplica, adequadamente, está claro, a Lógica transcendental - :tais formas serão encontradas aquém da Lógica, em situações pré-lógicas, mas já de natureza lingtiística, nas quais intervêm diversificados aspectos pragmáticos, como diz Wittgenstein, de uso das palavras.
3 Esta breve exposição, para indicar a filiação e o contexto da proposta de uma pragmática filosófi ca. Tendo como pano de fundo o deslocamento das formas puras da intuição para as formas lóg icas de organização lingilística da experiência, nossa proposta consiste apenas em sistematizar alguns conceitos envolvidos naqui lo que poderíamos denominar de "terapia gramatical" do pensamento, exercida por Wittgenstein após o Tractatus, e mais exaustivamente a partir do final da década de 30. Neste percurso terapêutico, Wittgenstein explora aspectos do simbolismo lingtiístico que são tradicionalmente considerados processos de natureza extra-lingüística, como por exemplo, as diversas técnicas de ensino para a aplicação das palavras, as diversas instituições sociais e as convenções que orientam tanto a aplicação das palavras quanto a própria compreensão da significação, as ligações entre a expressão lingüística de nossas ações e as próprias ações, através dos hábitos e das convenções, o papel desempenhado pela simples suposição da existência de entidades mentais, matemáticas ou lógicas nos usos que são feitos dos respectivos conceitos. O domínio do lingüístico é consideravelmente expandido, ao serem incorporados elementos pragmáticos diversos enquanto estiverem envolvidos com a linguagem. O grau desse envolvimento consiste em que tais elementos possam ser considerados como exercendo a função de regras lingüísticas, i.e., regras permitindo que sons sejam usados como palavras, que palavras sejam aplicadas a diversas situações, que objetos existentes ou supostamente existentes sejam investidos da função de conteúdos de expressões lingüísticas - para que possamos com a linguagem, por exemplo, comunicar pensamentos sobre objetos em geral, mas também apenas exprimir esses pensamentos, sem comunicá-los, como, ainda, realizar operações de cálculo, construir objetos, aplicar técnicas as mais diversas, elaborar novas técnicas, ou, simplesmente, jogar com palavras. E, para tudo isto, lançamos mão de gestos ostensivos, modelos de objetos, tabelas, gráficos, técnicas de medida, suposições, hábitos comunicativos, expressivos ou
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de puro contato, etc. No percurso terapêutico de Wittgenstein, podemos encontrar uma concepção de linguagem claramente estabelecida e mais um conjunto bem articulado de conceitos que a sustenta. Entretanto, a natureza da atividade filosófica proposta, de acordo com o próprio Wittgenstein, impede que teses sejam avançadas, que um conjunto de conceitos seja organizado sob a forma de sistema de teses e este apresentado como solução às dificuldades sobre as quais se debruça o filósofo; essa atividade limitar-se-á a uma descrição dos diversos usos das palavras e deverá ter como resultado a cura do pensamento, ao esclarecer a origem lingüística daquelas dificuldades. Assim sendo, a concepção de linguagem e os conceitos que a articulam encontram-se, em Wittgenstein, dispersos entre as diversas anotações, pouco sistematizados através de um discurso teórico que os tematize, uma vez que são parte natural dessa atividade mais voltada para a prática, e menos para a teoria. Ora, nada nos impede de conceber, entretanto, contrariamente a essa concepção da atividade filosófica, uma teoria a respeito do conhecimento inspirada, precisamente, nos conceitos e na concepção de linguagem presentes na prática terapêutica de Wittgenstein. Sem negar ou excluir o caráter curativo da terapia, nem, tampouco, o caráter prático desta filosofia, uma tal epistemologia consistiria em sistematizar os conceitos e aplicá-los a questões filosóficas precisas. Haveria lugar para a análise de relações simbólicas elementares - tal como, por exemplo, a relação de reenvio- assim como para a pesquisa das condições que estão supostas pelas formas elementares de organização simbólica da experiência - as condições, por exemplo, daquelas atividades acima mencionadas, que permitem a Wittgenstein expandir o domínio do lingüístico. Esta epistemologia deveria apresentar, como um de seus principais instrumentos de análise, uma teoria da repr~sentação em geral, e lingüística em particular. 4
Gostaria, a seguir, de indicar alguns elementos pragmáticos que me parecem importantes para orientar a construção de uma tal teoria da representação. Em primeiro lugar, a idéia de contexto e, em segundo lugar, seguindo a terminologia de Wittgenstein, a idéia de uso (Gebrauch), com as devidas especificações a seguir. A idéia de contexto, da maneira como procuro introduzi-la, é recoberta pelo conceito de sistema estrutural, a saber, a situação em que um conjunto de elementos quaisquer permite que sejam estabelecidos critérios de fecha-
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mento para o conjunto. Em outros termos, o conjunto é organizado através de relações internas de co-determinação entre seus elementos, e os critérios de fechamento permitem identificar os respectivos elementos, incluindo ou excluindo-os do conjunto. Tais critérios podem ir dos mais rígidos - como os que se aplicam a conjuntos formalmente organizados- até os que se aplicam a conjuntos cujo fechamento é apenas virtual, permitindo a identificação de elementos não previstos inicialmente- a exemplo das línguas naturais, com seus neologismos, e dos sistemas s imbólicos não-lingüísticos. A partir desta idéia geral de contexto, enquanto sistema estrutural, seria preciso ressaltar, em seguida, seu aspecto pragmático: cada contexto é um sistema determinado por elementos circunstanciais que passam a agir ao serem aplicados - a exemplo do sentido lingUístico que depende das situações de sua enunciação efetiva. Esta determinação apresenta, pelo menos, dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, o caráter aberto dos conjuntos assim constituídos: seus limites não são exaustivamente determináveis, pelo contrário, são sempre provisórios, uma vez que relativos às circunstâncias regionais de aplicação dos elementos do conjunto. Assim, tomando um exemplo de Wittgenstein, a aplicação de uma regra não se realiza no vazio, da mesma maneira como, podemos acrescentar, o próprio pensamento da regra também não se realiza no vazio: aplicar uma regra e compreendê-la supõe que seja possível pensar um contexto determinado, permitindo precisá-la - para que se torne possível compreendê-la e, consequentemente, aplicá-la. Sendo este processo indefinidamente reiterável, pode-se afirmar, generalizando, que a aplicação e a compreensão de um significado supõem e correspondem à capacidade de inseri-lo adequadamente em diferentes contextos, inclusive em contextos inicialmente imprevistos. Daí surgirão, naturalmente, os limites entre o possível e o impossível para o pensamento, ou melhor, os limites entre as aplicações conceituais que admitimos e as que rejeitaremos, os critérios de identidade que estaremos dispostos a ampliar ou não, conforme as circunstâncias. Situamo-nos, então, deste ponto de vista, muito aquém das condições fornecidas pela Lógica transcendental, no sentido acima indicado - a forma lógica, o princípio de não-contradição, o modelo referencial - uma vez que passam a entrar em consideração as múltiplas atividades estreitamente ligadas à manipulação de palavras. Não somente o caráter virtual, mas, principalmente, o contexto circunstancial de aplicação e compreensão das regras ficam , assim, acentuados e assumidos. O segundo aspecto, complementar ao anterior, consiste na inseribilidade de cada contexto particular em outros sempre mais amplos, através de sua composição com outros contextos particulares - sem que se possa determinar
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a priori um limite superior para este processo de complexificação contextual. Este aspecto não é apenas complementar ao anterior, mas, principalmente, tem a função de interromper a cadeia indefinida de novos contextos particulares que podem ser apresentados como legítimos candidatos à aplicação de um conceito. Trata-se de um princípio holístico que permite indicar um conjunto de hábitos e convenções como critérios suficientes para identificar a aplicação correta ou adequada de uma regra, ou melhor, que permite decidir qual é o contexto geral suficiente para que a aplicação do conceito possa ser julgada como correta ou adequada Se cada contexto particular permite sempre a criação de novas ambigüidades, sua inserção em um contexto mais rico poderá levar à desambiguação. É este aspecto, aliás, que permite descartar a observação do cético kripkeano (Kripke 1982) - segundo a qual nunca será possível decidir se uma regra está ou não sendo seguida, um conceito corretamente aplicado - ao situá-la na posição do olhar divino, i.e., ao caracterizá-la, contraditoriamente às próprias pretenções do ceticismo, como essencialista. Frente a situações-limite, em que não mais é possível fornecer razões para a ação, deve-se apenas reconhecer, como diz Wittgenstein, que é assim que agimos- e procurar, se for o caso, fornecer causas para a ação, mas não mais fundamentos. É este aspecto complexo das relações entre os diferentes contextos que Wittgenstein indica através de uma metáfora ainda muito vaga: "formas de vida". A segunda idéia que gostaria de introduzir é a de uso, para salientar dois aspectos importantes da significação conceitual: a construção e a aplicação do signo. No caso da construção do signo, trata-se de investigar, em primeiro lugar, as condições das formas elementares de organizar a experiência em objetos do reenvio. Quaisquer que sejam essas formas elementares de organização, devem elas supor situações tornadas típicas através de sua repetição, de sua constância. Para melhor esclarecer esta idéia, proporemos a seguinte distinção: por um lado, o que podemos denominar de "situação": é simplesmente um conjunto de ações e hábitos diversos; por outro lado, um ou vários fragmentos da situação que são eleitos como elementos pertinentes para certas finalidades - o que podemos denominar "aspectos" da situação. Assim, a organização simbólica da experiência incide sobre as situações, destacando nelas os aspectos considerados pertinentes para a realização de determinadas finalidades; são as finafidades que permitem fixar, em cada caso, os critérios de pertinência para a seleção dos aspectos. Em nosso caso, trata-se de investigar as condições das formas elementares de se atribuir a função de objeto do reenvio do signo aos fragmentos da experiência que são os aspectos. Em segundo lugar, a construção do signo permite também uma
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pesquisa a respeito das condições para a atribuição da função significante do signo aos aspectos. Neste último caso, deve-se colocar a questão da relevância das condições pragmáticas para a constituição do significante: em que medida a independência relativa do significante com respeito ao objeto do reenvio não o torna autônomo e, assim, livre, em princípio, das determinações pragmáticas? Note-se que o aspecto pragmático da construção do significante é, indiscutivelmente, relevante para as diferentes descrições semilógicas empíricas, mas coloca-se, pelo contrário, sob a forma de um problema para a atividade reflexiva, como o é a pragmática filosófica. Ora, a complexidade da função significante coloca, como sabemos, questões também em outro nível, quando se trata de focalizar a construção das combinações entre os significantes. Mais uma vez, pode-se indagar sobre a independência das regras de combinação dos significantes com respeito aos aspectos pragmáticos, assim como, sem dúvida, com respeito à própria relação de reenvio semântico. Em outros termos, e evocando conceitos de Peirce: em que medida a Gramática seria independente com respeito tanto à Lógica quanto à Retórica - ou, ainda, em que medida a construção das combinações entre os significantes seria autônoma com respeito às construções semânticas de reenvio e também às construções pragmáticas de significação?- autonomia para criar, inclusive, objetos do reenvio próprios. Ora, de nosso ponto de vista, trata-se de indagar se as condições pragmáticas permitem dizer apenas quais são os significantes em tais e tais casos - assim como nas descrições empíricas- ou se, previamente a isto, permitem, também, legislar a respeito de um campo de possibiliddes operatórias, i.e., se impõem a priori condições reguladoras de operações possíveis sobre os aspectos enquanto significante. Seria preciso, pois, distinguir os diferentes níveis de abordagem. Por um lado, a independência relativa dos significantes com respeito aos objetos do reenvio situa-se em um nível empírico do uso das palavras, a saber, diz respeito ao caráter arbitrário de sua associação com os objetos do reenvio. Por outro lado, a construção do significante enquanto função correlativa à do objeto do reenvio: trata-se de interpretar a relação de codeterminação entre essas duas funções diferentes, e, neste caso, de saber em que medida a relação é pragmaticamente regulada. Ora, a riqueza e complexidade expressiva da função significante é tal que, como sabemos, sempre é possível impor a qualquer objeto do reenvio particular a função expressiva do significante, assim como tomar um significante particular e atribuir-lhe a função objeto do reenvio. Parece-me que é, justamente, a natureza pragmática da função objeto do reenvio que irá permitir uma interpretação clara e simples da construção da correlação de reenvio simbólico. E finalmente, como conse-
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quência, é possível ainda indagar sobre a presença de aspectos pragmáticos na formulação das regras sintáticas de combinação dos significantes- tarefa que não nos cabe aqui abordar, mas que permanece no horizonte de preocupações de uma pragmática filosófica. Finalmente, quanto à aplicação do signo, temos o campo de investigação mais tradicionalmente voltado para as condições pragmáticas em que as circunstâncias e os hábitos comunicativos são princípios para a criação de novas convenções podendo, a todo momento, contrastar e até mesmo contrariar as convenções anteriores. A grande novidade, no nível da aplicação do signo, é que as formas elementares de organizar simbolicamente a experiência são inteiramente lingüísticas, uma vez que têm como fundamento o signo já bem estabelecido enquanto instrumento simbólico. É, aliás, por esta via que transita a atividade terapêutica de Wittgenstein. Todavia, a aplicação do signo pressupõe sua prévia construção. É por esta via que procuraremos, por nossa parte, prosseguir.
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Vejamos, agora, mais precisamente, em que sentido uma pragmática filosófica poderia corresponder à sistematização e desenvolvimento de alguns conceitos presentes na atividade terapêutica proposta por Wittgenstein, no que diz respeito à dimensão construtiva do uso da linguagem. Gostaria de introduzir a idéia de "aspecto", a partir da equivalente noção wittgensteiniana de "perceber um aspecto" (PU, em particular, parte li, assim como no texto das BPP), com as devidas precisões e desenvolvimentos a seguir. Esta noção corresponde a um tema recorrente nas anotações •de 1 Wittgenstein, cujas origens parecem remontar à época do Tr, no contexto da crítica às teorias do juízo de Russell, começa a ser retrabalhada durante os anos 30 e vai ganhando amplitude em seu pensamento até os escritos finais. Wittgenstein apresenta inicialmente esta noção no contexto das experiências com a percepção de figuras ambíguas realizadas pelos psicólogos da Gestalt. Interessa-lhe, nestas experiências, as mudanças do olhar que focaliza diferentes aspectos presentes em uma mesma figura, vendo, assim, objetos diferentes. Trata-se, para Wittgentein, de descrever a gramática do conceito de ver e de seu correlato ver como. Esta discussão é rapidamente introduzida por Wittgenstein nos contextos ético e mentalista, ao ser sublinhada, respectivamente, a presença da vontade e da representação mental
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(Vostellung) na gramática do ver como e sua ausência na do ver. A primeira precisão que sugiro para a noção de aspecto consiste em desvinculá-la do contexto perceptivo. É que a percepção contém um pressuposto que conviria eliminar, a saber, o da existência prévia dos aspectos percebidos: perceber aspectos de uma mesma figura corresponderia à exploração das diferentes facetas que ela já possui, mas que não são percebidas imediatamente, de um só golpe, pelo olhar. Esta desvinculação é, de certa maneira, sugerida pelo próprio Wittgenstein ao introduzir, como salientamos, a vontade e a representação mental como elementos da gramática do ver como. De fato, ao introduzir estes elementos no uso do conceito, expande Wittgenstein, agora por sua própria conta, o ver como, aplicando-o como conceito operatório do próprio método terapêutico: a exemplificação, enquanto etapa essencial da terapia filosófica, encontra seus limites não nas próprias situações confusas que são o ponto de partida para a criação de outras situações àquelas ligadas por laços de parentesco, mas, sim, na disposição da vontade - relativamente ao contexto ético - ou na capacidade, em princípio, ilimitada, para se representarem novas aplicações aos conceitos confusos no contexto prático dos usos das palavras, ou mentalista, que interpreta o ver como através da presença de uma atividade espiritual especifica. As situações consideradas confusas não contêm em si próprias, contrariamente ao que parece ocorrer com as figuras ambíguas da percepção, o conjunto acabado das ligações de semelhança com outras situações: os limites dependem exclusivamente da vontade e da capacidade imaginativa do interlocutor. Assim sendo, desvinculada da percepção, a noção de aspecto deixa de supor a existência prévia do conjunto de aspectos no que é percebido, ou visto como, e passa a depender de fatores de natureza pragmática. Desvinculada da percepção, a noção de aspecto adquire, em Wittgenstein, o mesmo estatuto operatório que a exemplificação na prática terapêutica, a saber, os exemplos apresentam novos conjuntos de regras de uso, inusitadas até, para os conceitos geradores de confusão - inclu sive para os conceitos introduzidos através da percepção, ver e ver como -com a finalidade de introduzir novos aspectos, novas perspectivas, a respeito das situações inicialmente confusas dada a unilateralidade com que eram consideradas. Ora, as palavras não contêm previamente o conjunto dos usos possíveis que delas podemos fazer, assim como nem a significação dos conceitos e nem a compreensão da significação contêm o conjunto de aplicações possíveis dos conceitos. São fatores pragmáticos, como a vontade e a imaginação, entre outros, que orientam criterialmente os usos diversificados e novos da linguagem.
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Prosseguindo e desenvolvendo esta sugestão de Wittgenstein, proponho aplicar a noção de aspecto como conceito que permite definir procedimentos operatórios para a identificação de objetos. Quais seriam a natureza e o estatuto teórico deste conceito? Em primeiro lugar, gostaria de salientar a natureza formal da definição do objeto obtida através dos procedimentos operatórios que permitem sua identificação, i.e., dos aspectos. Uma das tarefas da pragmática filosófica seria, como dissemos, a de indicar formas elementares de se atribuir diferentes funções simbólicas aos aspectos. Note-se, pois, que os aspectos serão concebidos como fragmentos de situações às quais são atribuídas funções simbólicas elementares, a saber, aquelas funções do signo que caracterizam o objeto enquanto expressão ou enquanto objeto do reenvio da expressão. Assim, por exemplo, tal aspecto, ou ftagmento de situação, é instituído enquanto critério para identificar fragmentos da experiência como unidades expressivas - o significante do signo - ou como unidades de reenvio das expressões - o objeto do reenvio do signo. Este som que agora ouço e interpreto como uma palavra era um ruído antes de ser constituído a priori através de procedimentos operatórios, ou aspectos, em urna palavra possível: um ruído foi selecionado como um candidato a objeto do reenvio possível para o conceito palavra. Em segu'ida, na qualidade de objeto do reenvio possível para esse conceito, é instituído empiricamente pela percepção e pelo uso material em uma determinada palavra da língua portuguesa, por exemplo, a palavra "mesa". Da mesma maneira, este objeto à minha frente, sobre o qual escrevo nesta folha de papel, era um algo antes de ser constituído a priori através de procedimentos operatórios, ou aspectos, em um objeto possível: um algo foi selecionado como um candidato a objeto de reenvio possível para o conceito mesa. Em seguida, na qualidade de objeto do reenvio possível para esse conceito, é constituído empiricamente pela percepção e pelo uso material em uma determinada peça de mobiliário, a saber, urna mesa. A percepção e o uso material são orientados, neste nível simbólico elementar, pelos conjuntos de ações habituais instituídos em procedimentos operatórios normativos, i.e., enquanto aspectos do objeto. São os aspectos que, neste sentido, permitem que se formule uma definição, prévia à percepção e ao uso material, da forma geral do objeto palavra ou mesa, operando, assim, à seleção entre os legítimos candidatos, e excluindo todo o resto. Perceber ou usar este ruído ou este algo enquanto uma palavra ou uma mesa supõe, desta perspectiva, a aplicação de determinados procedimentos operatórios, ou
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aspectos, como critérios para a identificação de ocorrências possíveis da forma geral da objetividade em questão. Assim, por exemplo, no primeiro caso, como diz o próprio Wittgenstein, são as ligações regulares entre sons e ações que caracterizam aquilo que denominamos "linguagem" (PU § 207): são estas ligações, em sua regularidade, que nos permitem julgar que tais e tais sons são palavras possíveis, assim como descartar outros sons como ruídos. Não basta, pois, ouvir sons para julgar; é preciso levar em conta, fundamentalmente, os critérios que permitem identificar a objetividade concernida: neste exemplo, as ligações regulares entre sons e ações enquanto norma para a organização da experiência em sons de uma lingua. É preciso sublinhar que este ruído ou este algo, ainda sem qualificação, não contêm, previamente à percepção, todo o conjunto possível de aspectos; pelo contrário, um tal conjunto é sempre aberto e imprevisível, seu fechamento é sempre virtual, uma vez que os aspectos são construídos no interior das situações em função de circunstâncias pragmáticas. Assim, aspectos são instituídos enquanto critérios normativos que permitem indicar a priori aquilo que pode ser um objeto determinado em geral: por exemplo, expressões como "ser som de uma língua é apresentar tais e tais aspectos", "ser palavra da língua portuguesa é apresentar tais e tais aspectos" e "ser mesa é apresentar tais e tais aspectos" correspondem a definições da forma de objetos determinados, correspondem a princípios constitutivos transcendéntais de objetos; em seguida, estes objetos serão constituídos empiricamente pela percepção e pela prática em suas diversas ocorrências. Fica assim, pois, salientada a natureza formal da identificação que os aspectos introduzem: não se trata de indicar empiricamente objetos através dos aspectos, mas de indicar formas de objetos. A este respeito, poderíamos retomar a afirmação feita por Wittgenstein de que a definição do objeto é dada pela gramática, e, por nossa conta, sugerir uma precisão a ela: é no interior de cada situação que conjuntos de elementos pragmáticos permitem selecionar aspectos para indicar formas específicas do objeto; em outros termos, cada situação organiza pragmaticamente a experiência instituindo regras mais ou menos restritivas para o uso das formas expressivas que são as palavras e, consequentemente, organiza a experiência nos respectivos objetos do reenvio dessas palavras. É no interior das situações que, na verdade, serão desenvolvidos e praticados os jogos de linguagem a que se refere Wittgenstein. Em segundo lugar, seria importante sublinhar a natureza pragmática dos aspectos: é que a noção de forma será entendida como correspondendo ao resultado da aplicação de procedimentos operatórios, de ações habituais, à
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experiência, ou, em outras palavras, de aspectos instituídos como critério normativo. A forma do objeto mesa corresponde à aplicação de tais procedimentos operatórios que, no interior de uma situação, foram instituídos como os critérios pertinentes para a organização da experiência segundo tal objeto, ou melhor, corresponde à aplicação daqueles conjuntos de aspectos considerados necessários, ou apenas suficientes, ou ambos, para solecionar i.e., admitir e excluir - os diferentes candidatos a tal objetividade. Não temos ainda, neste nível, manifestações individuais ou ocorrências, de mesas ou cadeiras, nem de triângulos; temos apenas a definição de formas, ou de condições gerais, para identificar ocorrências de diferentes objetos. É somente no nível empírico da percepção e do uso material que serão indicadas as ocorrências da objetividade anteriormente definida a priori através da instituição de aspectos. A noção de forma perde, assim, sua origem a priori, conserva sua aplicação transcendental, e adquire uma dimensão pragmática.
3 Gostaríamos de salientar, em seguida, uma conseqüência do que precede: o domínio pragmático comporta condições de natureza a priori para a indicação da objetividade na medida em que as ações habituais, instituídas enquanto critérios normativos, passam a legislar sobre a forma da objetividade, tornando-se, assim, independentes da experiência. Esta atribuição de função normativa ou criterial às ações é operada por convenções e instituições cuja complexidade empírica pode ser descrita e analisada por uma ciência sociológica ou antropológica, mas que se situa fora do âmbito da pragmática filosófica. Retornando a Kant, devemos reconhecer que, embora tendo como solo de origem a experiência, uma regra normativa é um princípio de organização da experiência pelo pensamento que independe da própria experiência. Uma tarefa da pragmática filosófica seria, pois, a de distinguir, cuidadosamente, e nunca confundir, a origem empírica de um princípio organizador do conhecimento e sua aplicação transcendental. Em outros termos, aquilo que denominamos de aspectos deve interessar e ser descrito em sua função criterial a priori na constituição da objetividade, independentemente de suas origens empíricas. A definição, por exemplo, da forma triangular lança mão de ações e hábitos que são instituídos como critério normativo para a identificação a priori de ocorrências desta forma da objetividade: dentre as diversas ações que permitem interseccionar fragmentos de retas ou de superficies planas, segundo várias posições, assim como aplicar operações aritméticas sobre figuras geométricas, serão selecionadas e instituídas como norma
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aquelas, por exemplo, que permitem construir formas triangulares; a aplicação desta norma define a forma triangular da objetividade, i.e., o que é ser triângulo - independente da experiência, a norma organiza a experiência segundo esta forma. Da mesma maneira, as ações habituais que exprimem natural e espontaneamente sensações doloridas são instituídas, no interior de certas situações, como norma para a definição de tais sensações através da aplicação da palavra "dor", assim como os frutos que vejo neste conjunto de árvores, para a palavra "pomar", ou, ainda, a prática de colher frutos, o conhecimento de que frutos alimentam e de que seu gosto é apreciado, a apresentação de diferentes frutos, etc. , para a palavra "fruto"; formas da objetividade psicológica e empírica são, deste modo, introduzidas através de fragmentos da linguagem e de fragmentos das diferentes práticas envolvidas com a linguagem. Em todos estes casos, aspectos de situações são instituídos enquanto norma regulativa para a organização da experiência através de signos, independentemente, pois, da própria experiência assim organizada, i.e., de minhas dores, de meu pomar e de seus apetitosos frutos.
4 Finalmente, quanto ao estatuto teórico do conceito de aspecto, trata-se, em nosso caso, de aplicá-lo, em primeiro lugar, à descrição das form as elementares de organização simbólica da experiência do ponto de vista pragmático, a saber, tomando como ponto de partida os fragmentos da experiência que denominei situação- i.e., conjuntos de ações e hábitos - formular normas e critérios colhidos em outros conjuntos de ações e hábitos - i.e., os fragmentos de situações que denominei aspectos - e descrever sua função simbólica. Em outros termos, trata-se de descrever, antes de tudo, os princípios que permitem organizar a priori conjuntos de ações e hábitos em aspectos com função simbólica, i.e., com as funções expressiva e semântica. Ficam, pois, excluidas outras formas de organização simbólica por incidirem direta e exclusivamente sobre os conteúdos das ações e hábitos, como, por exemplo, a organização perceptiva pré-conceitual. O ponto de vista pragmático aqui apresentado, seleciona apenas a etapa lingüística do processo mais amplo de organização simbólica da experiência, a saber, os fragmentos de ações e hábitos instituídos como norma das funções expressiva e semântica, e, em seguida, conseqilentemente, a percepção exprimível lingüisticamente, que é a etapa inicial do conceito. Assim, por exemplo, o objeto do reenvio de uma expressão consiste em um complexo de ações habituais, ou operações, incidindo ou não sobre entidades empíricas; ao incidirem sobre tais entidades, o
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objeto do reenvio é o resultado destas operações sobre as entidades, a saber, tais entidades investidas da função criterial: os modelos-padrão, as amostras, as tabelas para testagem, etc.; ao não incidirem sobre entidades empíricas, o objeto do reenvio será, igualmente, critério normativo cujo conteúdo consiste exclusivamente nas próprias operações investidas da função criterial: as operações que permitirão construir o sentido dos conceitos, ou melhor, que definem as condições formais para os candidatos à objetividade conceitual, por exemplo, os aspectos da objetividade enquanto dor ou triângulo. O objeto do reenvio de uma expressão é um tal critério, seja para a aplicação das palavras "dor" e "triângulo", seja para a indicação das ocorrências consideradas legítimas a partir de objetos-padrão, de amostras e da aplicação de tabelas. Note-se que, em nenhum destes casos, o objeto do reenvio será assimilado à referência das respectivas expressões: a referência é o caso particular de reenvio simbólico em que a expressão reenvia a ocorrências empíricas do conceito. De fato, o reenvio referencial supõe, de nosso ponto de vista pragmático, a ligação simbólica prévia e a priori entre as formas lingüísticas, por exemplo, as palavras "dor" e ''triângulo", e os conjuntos de operações - ações e hábitos - que, no interior das diferentes situações, interessa fixar através da linguagem na qualidade de critérios normativos da objetividade. A referência pode estar ausente sem que, por isto, deixemos de aplicar as palavras, por exemplo, com as mais diferentes forças ilocutórias, para pedir perdão ou perdoar, ajudar ou pedir ajuda, ou, ainda, supor, implicitar, exprimir e comunicar estados mentais privados, e, mesmo, indicar a forma lógica geral da proposição! Assim sendo, os casos exemplares que tomam clara a natureza operatória do objeto do reenvio são aqueles em que este já é um signo ou uma operação: os diversos códigos de sinais - como luzes, bandeiras, ou o Morse - reenviam normalmente a palavras ou letras do alfabeto, assim como as diversas formas de transcrição da fala oral, e, por outro lado, as operações de soma, radiciação, exponenciação, etc., são os objetos do reenvio dos respectivos símbolos matemáticos: em todos os casos, os objetos do reenvio são operações, lingüísticas ou matemáticas, ações institucionalizadas, sobre a própria linguagem ou sobre quantidades quaisquer. Retomando, mais uma vez, a expressão de Wittgenstein, poderíamos precisar, desta vez, que a definição da objetividade é fornecida no interior das situações pela seleção de fragmentos e pela atribuição a eles da função criterial e simbólica de identificação dos objetos do reenvio. O estatuto teórico do conceito de aspecto é, pois, de nosso ponto de vista, o de fornecer a forma da objetividade pela aplicação constitutiva a priori de e lementos de natureza pragmática.
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5 Ora, não seria demasiado insistir, neste ponto, sobre a natureza nãoempírica da descrição das ações e hábitos instituídos da função simbólica e criterial. Mais uma vez, é o próprio Wittgenstein quem nos fornece indicações a este respeito. Uma das principais fontes de mal-entendidos na compreensão do pensamento do filósofo reside em atribuir-se uma natureza sociológica, psicológica ou antropológica às descrições que faz de jogos de linguagem, de formas de vida - e isto, apesar das constantes advertências feitas pelo próprio Wittgenstein no sentido de evitar tais interpretações. Ao descrever situações efetivas - reais, possíveis ou, mesmo, inusitadas - de jogos lingUísticos, Wittgenstein não se interessa em descrever situações empíricas ou estados de coisas possíveis, mas, exclusivamente, a capacidade expressiva da linguagem quando as palavras são aplicadas a tais situações e estados de coisas. Não são, por exemplo, os processos de ensino e aprendizado ostensivo que concentram o interesse da descrição gramatical e terapêutica, nem tampouco os processos psicológicos subjacentes às respectivas expressões lingUísticas - assim como não são entidades matemáticas, mentais ou metaflsicas que permitem compreender a significação dos conceitos matemáticos, psicológicos e metafísicos. Afasta-se, Wittgenstein, do idealismo realista tanto quanto do empirismo, ao descrever situações efetivas de uso das palavras, uma vez que a finalidade da descrição gramatical é a terapia do pensamento aprisionado pelo modelo referencial. Este modelo caracteriza-se, segundo Witgenstein, por apresentar ao pensamento seja entidades abstratas autônomas, seja processos empíricos, ambos na qualidade de objeto da designação ou da referência da significação conceitual. Não há, pois, qualquer ambigüidade na prática descritiva de Wittgenstein: através da criação de experimentos de pensamento, que são os jogos de linguagem, trata-se de indicar o poder expressivo ilimitado, em princípio, da linguagem - apenas limitado, de fato, pelos usos particulares a cada situação de jogo-, e sua autonomia de direito com respeito à referência extralingülstica para a constituição da significação conceitual. Não se trata, pois, para Wittgenstein, de explorar situações ou processos empíricos, mas de descrever condições lingüísticas para a significação. Assim, também, em nosso caso - ainda que deixando em suspenso o projeto terapêutico, como salientamos, sem, todavia, negá-lo nem exclui-lotrata-se de conceber os aspectos enquanto unidades pragmáticas complexas, envolvendo interlocutores de ações lingüísticas, envolvidos, por sua vez, em circunstâncias empíricas de comunicação, sem que esta complexidade empi-
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rica seja relevante para a interpretação filosófica. fmporta situar essas unidades pragmáticas enquanto operadores que permitem organizar a experiência em fragmentos com a função criterial tanto para a identificação de objetos do reenvio quanto para a aplicação das respectivas form as expressivas. Assim, retomando o exemplo anterior, segundo Wittgenstein, as manifestações naturais e espontâneas de dor juntamente com as vivências da sensação, ambas no interior de situações em que palavras são usadas para exprimir e comunicar sensações, são tomadas como critério para a aplicação da palavra " dor" da mesma maneira que a palavra " certeza" é aplicada a determinadas situações, entre outras, tomadas como critério para a aplicação da palavra "dor" - a saber, situações de relato da sensação no corpo próprio. Podemos acrescentar, a partir daí, e independentemente, agora, da atitude terapêutica, que as unidades pragmáticas, a que nos referimos, são complexos heterogêneos compostos por indivíduos, ações, vivências, processos empíricos, psicológicos, sociais, culturais e outros, e, até, por suposições a respeito da existência de entidades abstratas, mentais, matemáticas, lógicas e mesmo empíricas - corno o centro da massa do sistema solar no instante th ou a outrora face desconhecida da Lua, etc. - que são propostas como explicação para a significação de determinados conceitos. Seria inútil pretender analisar tais unidades em elementos simples, urna vez que sua composição é manifestamente detérminada por circunstâncias empíricas. Todavia, o que independe das determinações empíricas, e é o ponto que nos importa, são os critérios ou normas construídos e instituídos através das unidades pragmáticas. Por exemplo, o uso de um fragmento de cor enquanto amostra-padrão de uma cor, mais o uso de um gesto ostensivo, ambos ligados à pronúncia de uma palavra poderão ser selecionados como critério normativo para a aplicação da palavra a diferentes situações envolvendo cores, e, conseqilentemente, para a identificação dessa determinada forma da cor; as diversas cores apresentadas poderão ter, ainda, como critério normativo para sua identificação, por exemplo, a transparência ou a opacidade, a luminosidade, o brilho, a composição que admitem com outras cores ou sua s implicidade, e tantos outros aspectos que podem ser propostos. 6 Somos conduzidos, assim, à idéia de contexto. Não se trata, cqmÇl salicnmmos, de tematizar as unidades pragmáticas enquanto instituições "sociais, o.u melhor, de descrever os processos sociais que levaram à criação d~ tais in.stituições. Pelo contrário, trata-se, de nosso ponto de vista, de descrever prio-
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cípios regulativos e constitutivos, em sua aplicação transcendental, que essas instituições impõem à organização lingüística da experiência. Seu poder criterial e normativo distingue-se claramente, como salientamos, de sua origem empírica, pois não é daí que extraem sua legitimidade, ou seja, não é pertinente consultar a experiência para legitimar a aplicação da norma na organização dessa mesma experiência. As unidades pragmáticas só podem legislar, na qualidade de aspectos da objetividade, enquanto fizerem parte de contextos de natureza sistémica: i.e., enquanto forem correlativas a outras unidades pragmáticas - e se não forem consideradas isoladamente, fora de um tal contexto. Ora, é o próprio Wittgenstein quem sugere explicitamente esta idéia, ao frisar a necessidade de se conceber um contexto no qual sejam inseridas as ações e as palavras para que sua função possa ser compreendida. É o caso, por exemplo, dos gestos ostensivos, das palavras para nomear sensações e objetos em geral e dos paradigmas: para ser eficaz, o simples gesto ostensivo deve ser interpretado de determinada maneira, segundo um ensino que indicará sua função no jogo de linguagem em que é aplicado; assim, também, para a função nominativa das palavras: é preciso que um ensino prévio indique as posições das palavras no jogo da nomeação. Sem as informações que inserem ações e palavras nos contextos em que serão aplicadas, estas unidades dos jogos de linguagem não têm qualquer função lingüística, podendo ser, como diz Wittgenstein, qualquer coisa ou nada (PU, § 6, 17, 257). Ora, urna vez que podem ser diferentes os contextos e, consequentemente, as mesmas unidades de ação e de linguagem podendo vir a exercer funções diferentes entre os vários contextos, daí decorrem, segundo Wittgenstein, as diferentes classificações, aproximações e distanciamentos que podem ser estabelecidos entre essas unidades: palavras que possuem fortes laços de afmidade no jogo da nomeação, como, por exemplo, "lajota" e "água", podem perder esses laços em outro jogo de linguagem, por exemplo, em um jogo no qual a palavra "água" é aplicada como pedido de ajuda (PU, § 17, 27). Seguindo, mais uma vez, a sugestão de Wittgenstein, propomos interpretar o poder normativo das unidades pragmáticas que são os aspectos reenviando-as aos respectivos contextos. Não será, pois, o aspecto social da instituição normativa que interessa focalizar, do ponto de vista de uma pragmática 'filosófica, mas, sim, o sistema de oposições, contrastes, semelhanças e proximidades presentes nos contextos. Em outros termos, trata-se de salientar as condições consideradas suficientes para que urna determinada correlação seja estabelecida; por exemplo, para que um gesto seja considerado adequado para cumprir a função ostensiva de indicar objetos, ou, para
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uma palavra, cumprir a função nominativa. Conseqüentemente, trata-se de salientar, também, os casos em que condições suficientes não são satisfeitas; por exemplo, quando o gesto ostensivo for aplicado para indicar entidades mentais ou matemáticas, ou uma palavra que nomeia objetos for aplicada para exercer um ato ilocutório performativo. Não é, pois, o aspecto enquanto instituição que interessa; mas a função transcendental que passa a exercer, na regulação da experiência e na constituição da objetividade, um tal fragmento da própria experiência uma vez instituído enquanto critério normativo. As correlações sistêmicas entre as unidades pragmáticas permitem, pois, escapar ao sociologismo. Não é outra coisa, aliás, o que faz Wittgenstein, apesar dos freqüentes mal-entendidos. Neste ponto, somos levados a abordar, como dissemos no início, os limites entre o que é considerado possível e impossível para o pensamento. Ora, de nosso ponto de vista, e, mais uma vez, seguindo o próprio Wittgenstein, deve-se fazer a seguinte precisão: o pensamento assim como a imaginação são condicionados pelos usos que fazemos das palavras, i.e., pelos conceitos e, assim sendo, os limites entre o possível e o impossível nada mais são do que aqueles entre os usos habituais, os conhecidos, e os usos ínabituais e os desconhecidos. Ao julgarmos que determinada condição de aplicação de uma palavra não é suficiente para que possamos identificar seu sentido, este julgamento apenas exprime o fato de que não reconhecemos o aspecto que nos serviu até então como critério para identificar o sentido; isto não impede que novos aspectos sejam apresentados como critérios para aplicações desconhecidas e inabituais da palavra, levando-nos, eventualmente, a reconsiderar a suficiência das próprias condições para sua identificação. É este, aliás, o procedimento terapêutico de exemplificação, de variação das situações, empregado por Wittgenstein. Gostaríamos, pois, mais uma vez, de salientar e de extrair deste procedimento algumas conseqüências epistemológicas para uma pragmática filosófica. É que os conteúdos possíveis para o pensamento e para a imaginação passam, igualmente, pelo crivo de critérios normativos que permitem, não somente identificar esses conteúdos como também exprimi-los lingüisticamente: exprimir um conteúdo qualquer, de pensamento ou imaginação, que não possuísse nenhum critério para sua identificação por comparação com outros conteúdos- corresponderia a exprimir natural e espontaneamente sensações privadas - e, talvez, até, com o mesmo sentimento de certeza! Isto não implica, todavia, está claro, que não se possa pensar ou imaginar conteúdos desconhecidos: para tanto, é necessário, além de ser suficiente, que sejam fornecidos novos critérios de identificação para que tais conteúdos possam ser expressos lingüisticameote, enquanto conteú-
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dos do pensamento ou da imaginação. Pensar um número desconhecido, ou imaginar uma cor desconhecida, corresponde a fazer comparações com números e cores conhecidas, ou melhor, corresponde a operar no interior das respectivas gramáticas de uso dos conceitos conhecidos para números e cores, e, dai, extrair novos critérios para a aplicação de palavras, i.e., novos aspectos que permitam atribuir identidade a números e cores ainda não pensados e imaginados. Pensar ou imaginar conteúdos no vazio, isoladamente, corresponderia a pretender apreender a identidade de um objeto independentemente de qualquer contexto de outros objetos, ou ainda, como diz Wittgenstein, a emitir um pedido de socorro no deserto: um objeto isoladamente é qualquer coisa ou nada, não é um objeto, assim como um pedido de ajuda no deserto é apenas um grito, não é um pedido. Procuramos, assim, salientar a importância da idéia de contexto, enquanto sistema estrutural, para a descrição das unidades pragmáticas que são instituídas e aplicadas como aspectos para a identificação da objetividade. As vagas formas de vida de que fala Wittgenstein serão concebidas, de nosso ponto de vista, como contextos mais ou menos complexos cuja unidade é garantida pelo sistema de suas correlações. À diferença dos sistemas estruturais formais, os contextos admitem unidades de natureza pragmática, sem qualquer remissão, todavia, aos aspectos empíricos dos elementos que os compõem: não são as ações, as expectativas, as suposições, as sensações privadas dos interlocutores que contam enquanto processos físicos, psicológicos ou sociais, mas suas combinações diversas em unidades normativas, ou criteriais, regulando o campo da objetividade e definindo, no interior de situações específicas de aplicações das palavras, o que é o objeto. Como conseqüência, à diferença dos sistemas formais, os contextos têm, como salientamos acima, limites provisoriamente determinados, uma vez que seus elementos são unidades de natureza pragmática e que, principalmente, cada contexto comporta diferentes conjuntos de tais unidades. Ora, como frisou Wittgenstein, as mesmas palavras são aplicadas em diferentes contextos, e é isto o que caracteriza a inexaustividade da significação conceitual. Daí a possibilidade, explorada por Wittgenstein, de se realizar experimentos de pensamento inserindo os conceitos em diferentes contextos para averiguar a capacidade expressiva da linguagem, i.e., nossa capacidade, ou nossa vontade, de aceitar ou não tais inserções. É esta capacidade da imaginação, ou da vondade, que permite, finalmente, segundo Wittgenstein, indicar o contexto no qual serão encontrados os aspectos considerados suficientes para decidir da aplicação adequada de uma palavra segundo a regra. Poderíamos, neste ponto, colocar a seguinte questão mais geral: se, de
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fato, parece ser mais prudente duvidar quando for possível duvidar, será ainda prudente persistir na dúvida quando for possível eliminá-la? Ora, por que, de nosso ponto de vista pragmático, é possível duvidar? Por duas razões complementares: por um lado, quando o contexto particular não fornecer critérios considerados necessários para a aplicação do conceito, e, por outro lado, quando um ou vários outros contextos fornecerem critérios considerados suficientes para aplicações diferentes do mesmo conceito. Por exemplo, não temos critérios necessários para a aplicação da palavra "mesa" apenas a objetos de mobiliário, com quatro pernas e uma superficie plana que sirva para depositar utensílios em geral, e, ao mesmo tempo, podemos encontrar critérios suficientes para aplicar a mesma palavra a objetos que não possuem essas características, ou, mesmo, para não aplicá-la a objetos que as possuem. Aliás, é a esta manobra que se resume o argumento de um cético radical: isolar os diferentes contextos de aplicação das palavras, apresentando diferentes critérios para sua aplicação e, em seguida, duvidar a respeito de sua aplicação em um determinado contexto. É o próprio Wittgenstein quem denuncia a confusão entre as aplicações contextualizadas a jogos de linguagem e a significação conceitual de uma palavra: o conceito não se esgota em cada aplicação, mas abrange as diversas aplicações consideradas adequadas das palavras. Ao isolar uma aplicação determinada e julgá-la como insuficiente para angariar a certeza - apresentando, para tanto, contextos diferentes de aplicação da palavra - e, em seguida, ao decretar a dúvida que daí se segue, está, o cético radical, na verdade, operando no vazio, ou, como diz Wittgenstein, nos dias feriados da linguagem, uma vez que desconsidera os contextos complexos de uso das palavras: contextos comportando diferentes critérios de identificação dos objetos, ou diferentes aspectos, que se entrecruzam e constituem, assim, a significação dos conceitos. É a dúvida filosófica, criticada por Wittgenstein, que procura seus fundamentos fora da vida efetiva da linguagem, abstraindo as palavras e suas aplicações dos contextos complexos em que são efetivamente usados. Ora, pelo contrário, no interior de tais contextos complexos, apesar de sempre ser possível duvidar, acreditamos! De fato, a dúvida pode ser elinünada quando forem indicados critérios considerados suficientes para julgar a respeito da adequação entre a ação e uma regra. Pelo menos, pois, neste caso da expressão lingüística do julgamento a respeito da ligação entre a ação e uma regra, a dúvida pode ser eliminada: haverá pelo menos um contexto complexo que irá fornecer os critérios suficientes para decidir se a aplicação do conceito é ou não adequada, pertinente ou, até mesmo, concebível. Se ainda restar alguma dúvida, será ela psicológica - ou, então, filosófica, mas no sentido que leva Wi-
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ttgenstein a aplicar a terapia conceitual: os sentidos podem, de fato, enganar-nos; mas, por que, apesar disto, acreditamos neles? Eis a questão filosoficamente interessante, segundo Wittgenstein, e não aquela da dúvida (PU § 354). De qualquer maneira, a dúvida n ão será, em ambos os casos, um empecilho ao julgamento sobre a ação simbólica, nem à legitimidade do julgamento. O caráter virtual do fechamento dos contextos, seus limites sendo sempre provisórios, é, pois, relativo à natureza pragmática das unidades que o compõem, i.e., dos aspectos. Quando não mais for possível apresentar razões, ainda que consideradas suficientes, para a ação, apresentar-se-ão causas empíricas, ou, o que se deve gramaticalmente evitar, razões filosoficamente confusas como as que procura eliminar Wittgenstein atrávés de sua terapia conceitual do pensamento. Ao serem esgotadas todas as razões para fundamentar a ação, deve-se reconhecer, segundo Wittgenstein, que é assim que agimos- sem que isto nos faça penetrar na floresta virgem do aleatório uma vez que, como vimos, as próprias ligações empíricas de causalidade podem vir a fazer parte de unidades pragmáticas criteriais. As vagas formas de vida ficam, assim, em uma pragmática filosófica, desprovidas do que talvez fosse, para Wittgenstein, o mais importante: a dimensão ética. Concebidas sob a forma de contextos, para a pragmática filosófica não resta, das formas de vida, senão a dimensão epistêm ica. Podemos esperar, todavia, que uma tal pragmática seja, ainda que não o exercício, pelo menos um resultado satisfatório da atividade filosófica tal como concebida por Wittgenstein: o resultado de um exercício ético que passou pela terapia filosófica do pensamento confuso. 7
Ainda que breve e precário, este panorama para uma Pragmática filosófica, enquanto conseqüência da terapia proposta por Wittgenstein, deve ser, todavia, suficiente para situar o seu objetivo: explorar as condições e as formas pré-lógicas, mas já lingüísticas, que estão na base do uso - construção e aplicação - dos conceitos, relativamente aos contextos- sistemas imediatos e mediatos - de sua construção e aplicação. Neste sentido, esta Pragmática é uma Epistemologia, ou melhor, uma pesquisa a respeito dos fundamentos do conhecimento, que reconhece a relevância do aspecto pragmático nele envolvido.1 1
Para detalhes complementares a respeito desta proposta, reenvio o leitor ao Artigo "Por uma Pragmática Filosófica," Revista de Estudos Lingüísticos, n° 30. lEL, Unicamp, Campinas, S.P., I997.
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RACIONALIDADE E INDECIDIBILIDADE: NOTA SOBRE AS RAÍZES DO DECISlONISMO DE ÜITO NEURATH NELSON G. GOMES
Universidade de Brasília
I. Neuratb, um pensador peculiar Em artigo publicado no ano de 1936, Otto Neurath apresentou a sua visão sobre o desenvolvimento histórico do empirismo, de modo especial na Áustria. Segundo ele, graças a uma série de contingências históricas, ao longo de todo o século XIX, o pensamento austríaco teria estado Livre de influências alemãs, especialmente das de Kant. Dessa forma, poder-se-ia explicar o surgimento de uma filosofia austríaca autônoma, distante da especulação metafisica alemã e voltada sobretudo para questões de conhecimento empírico (Neurath 1936, pp. 676ss) Independentemente do seu valor histórico-filosófico, este artigo de Neurath é um marco significativo, numa linha de trabalho contemporâneo que se esforça por apresentar a filosofia austríaca da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX como portadora de características específicas, a ponto de não se enquadrar, de modo algum, como parte do pensamento alemão daqueles mesmos períodos. Em contraposição ao idealismo que se instalou firmemente na Alemanha, o realismo seria o traço mais notável, nas diversas vertentes do pensamento austríaco {Haller 1990, pp. 18ss). Otto Neurath foi um dos membros mais destacados e ativos do Circulo de Viena, mas as posições que ali assumiu eram peculiares e polêmicas, a ponto de ele sustentar importantes querelas com alguns de seus colegas positivistas, como Carnap e Schlick. Na verdade, se de fato existiu uma fi losofia austríaca afastada do pensamento alemão, seguramente, Neurath terâ sido o seu representante mais típico. O naturalismo fisicista que ele iria desenvolver, ao longo da década de 30, é uma formulação interessante e original, cujas origens não podem ser buscadas no pensamento alemão da sua época. Tal naturalismo, em particular, envolvia a idéia de que certos procedimentos, como, por exemplo, a escolha de sentenças protocolares a serem mantidas num sistema, ou a serem dele eliminadas, seriam assunto de Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 175-88.
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pura decisão do cientista (Neurath 1932- 29, pp. 208s). Mas tal decisionismo pareceu absurdo aos detratores de Neurath, dentre os quais Popper, que o acusou de defender uma metodologia arbitrária (Popper 1971, p. 63). Sem qualquer dúvida, o decisionismo neurathiano parece bizarro, de modo que cabe a pergunta sobre a sua origem, no contexto filosófico da época. As pesquisas de Haller sobre o assim chamado "Primeiro Círculo de Viena", que se reuniu regularmente entre 1907 e 1912, apresentam evidência suficiente acerca da influência que os grandes convencionalistas franceses, Duhem e Poincaré, exerceram sobre Neurath (Haller 1985, pp. 354s, e 1993, pp. 56ss). Não obstante, tal influência não basta para explicar a formação de teses neurathianas que teriam, mais tarde, um papel central nas idéias do autor sobre ciência e conhecimento. Tais teses começaram a esboçar-se nos primeiros trabalhos filosóficos de Neurath. No presente artigo, a partir de conferências proferidas em 1912 e em 1913, procuraremos caracterizar as premissas do futuro decisionismo de Otto Neurath. Nos seus trabalhos mais tardios, ele evitou discussões propriamente "filosóficas", de modo que um recuo histórico tomar-se necessário, para que possamos reconhecer fontes que aquele autor, posteriormente, preferiria não mais mencionar.
2. O problema do "prazer máximo" e a indecidibilidade do cálculo utilitarista Em palestra proferida frente à Sociedade Filosófica da Universidade de Viena, no dia 1° de junho de 1912, Neurath chamou atenção para o curioso fato de que a idéia de um "prazer máximo" não desempenha papel significativo na ciência econômica, apesar de estar a ela ligada através de textos dos grandes utilitaristas ingleses. Ele põe, a partir daí, a questão esquecida: como calcular o que seja o prazer máximo de uma comunidade? Será que tal pergunta chega mesmo a ter sentido? Segundo Neurath, ao menos em alguns casos muito simples, a questão é plenamente razoável. Assim, por exemplo, se temos um gramofone e um quadro, a serem distribuídos a um cego e a um surdo, obviamente, o gramofone será mais prazeiroso para o cego e o quadro para o surdo. Representando-se por "(Mm)" o prazer que o objeto m causa ao sujeito M, a relação ora descrita pode ser expressa com o auxílio das seguintes fórmulas: I. (Aa) > (Ab) 2. (Bb) > (Ba)
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(I} estabelece que o gramofone (a) causa ao cego (A) maior prazer do que o quadro (b). (2) afirmar que o quadro causa ao surdo (B) maior prazer do que o gramofone. Nestes limites, podemos distribuir os objetos em questão de duas maneiras, dando o gramofone ao cego e o quadro ao surdo, ou o quadro ao cego e o gramofone ao surdo: 3. (Aa) + (Bb) 4. (Ab) + (Ba)
Obviamente, porém, a distribuição (3) produz mais prazer do que (4), de modo que vale: 5. (Aa) + (Bb) > (Ab) + (Ba) A fórmula (5) cinge-se a expressar aquilo que ninguém colocaria em dúvida. Porém, esta relação singela não se deixa generalizar para outros casos. Se dois homens normais têm igual predileção pelo mesmo objeto, como efetuar a distribuição? Por exemplo, se ambos preferem o quadro, como escolher entre as mencionadas alternativas (3) e (4), de sorte a alcançar prazer máximo para ambos? Neste caso, estamos numa situação de indecidibilidade: 6. (Aa) + (Bb)? (Ab) + (Ba). Lógica e matemática em nada nos ajudam, até mesmo neste universo deveras restrito (Neurath 1912, pp. 47-50). Neurath faz ver que o problema em exame se complica extraordinariamente se aumentarmos o número de pessoas envolvidas e se modificamos as relações de preferência e as possibilidades de distribuição. Além disso, prazer e dor não se deixam medir em metros ou quilômetros, e tampouco há como estabelecer o que seria o prazer de todo um grupo humano, na falta de um correspondente "sensorium." Por fim, a simples escolha de um indivíduo para servir de parâmetro, no contexto do seu grupo, seria arbitrária: por que privilegiar suas preferências ou intuições? Conseqüentemente, assevera Neurath, o conceito de "prazer maior" não se deixa operacionalizar nem calcular, de sorte que ele de nada serve para a definição de uma teoria social aceitável (op. cit., pp. 52-55). Destarte, tal conceito tampouco pode ter qualquer significação para a ciência econômica. Esta palestra de 1912 é dominada por um tom cético, quanto ao alcance da moral, da filosofia uti litarista e da metafisica. Sem entrar em
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minudências, Neurath é explícito em afirmar que a escolha de princípios relativos a exigências morais é assunto de opção individual, não havendo provas, neste tipo de questões (op. cit., p. 52). Ele conclui a sua fala com uma posição radical: se não queremos definir a vida de um grupo humano através de uma única ordem, para a qual não teríamos critérios, restam-nos duas possibilidades: I. recurso a uma metafisica insuficiente; 2. tomar decisões com o auxílio do "cara ou coroa" ("Knopfabzlihlen"), isto é, do jogo ao acaso. Para Neurath, esta última alternativa seria, de longe, a mais honesta (op. cit., p. 55). O jogo ao acaso, apesar da sua gratuidade, leva vantagem moral sobre a metafísica.
3. Perdidos no bosque A indecidibilidade do cálculo utilitarista deixa claro não ser possível qualquer tomada de decisão social fundamentada em operações formais, relativas ao prazer e à dor dos membros de grupos humanos. Mas, o que dizer das decisões puramente individuais? Qual a sua natureza, qual a sua racionalidade, quais os seus mecanismos? A resposta a estas questões está numa conferência que Neurath apresentou frente à mesma sociedade filosófica vienense, no dia 27 de janeiro de 1913. Nesta segunda palestra, ele abandona qualquer preocupação formal e passa a mover-se, explicitamente, no sentido de uma psicologia da ação. Seu diálogo agora não é mais com o utilitarismo, mas com René Descartes. Neurath não está interessado em descobrir a estrutura da ação e das decisões humanas, consoante o tipo de indagação metafisica das assim chamadas psicologias filosóficas. Tampouco está preocupado em delinear os componentes de qualquer sujeito transcendental, à maneira do idealismo. Ele procura, isto sim, descrever uma situação extrema, porém realmente possível, de modo a nela encontrar os elementos presentes nos processos concretos de decisão e ação humanas. Como modelo para a sua análise, Neurath escolhe uma conhecida passagem do Discurso do Método, terceira parte, na qual Descartes fala sobre a necessidade da tomada de decisões, mesmo à luz de in formações insuficientes. Preparando a análise de Neurath, recordemos as grandes linhas do texto cartesiano: os viajantes perdidos no bosque não podem andar erraticamente, ora numa direção ora noutra, mas devem caminhar sempre o mais reto possível para o mesmo lado, sem vacilações. Isto não os levará ao lugar originalmente desejado, porém, poderá tirá-los do meio da floresta. Descartes acentua que muitas ações humanas não admitem delongas, de
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sorte que o agente é obrigado a decidir-se, mesmo quando incapaz de reconhecer as opiniões verdadeiras ou sequer as mais prováveis: alguma escolha deve ser feita e realizada sem hesitações. No plano moral, segundo Descartes, estas idéias implicam a necessidades de se perseverar numa linha de ação previamente selecionada, ainda que deveras duvidosa. A consciência da correção deste procedimento liberta o espírito de arrependimentos e remorsos, de vez que há aí uma certa racionalidade, devidamente atestada pela falta de alternativas. Tudo isto enquadra-se no contexto das regras cartesianas para a moral provisória: 1. adaptar-se aos costumes e à religião da sociedade; 2. agir sem hesitações, mesmo sob poucas luzes do intelecto; 3. tentar mudar a si mesmo e não o mundo. Neurath chama esta moral provisória de resignação cartesiana, em virtude do reconhecimento nela contido da necessidade de agir, mesmo sem o conhecimento do verdadeiro (Neurath, 1913, p. 58). A esperança de Descartes, porém, estava em fundamentar mais tarde uma ética definitiva, à luz de princípios irrefutáveis. Sabidamente, Descartes distingue de modo radical pensamento de ação. As regras provisórias dizem respeito tão-somente ao âmbito prático, vale dizer, moral. No plano do pensamento, entretanto, não há princípios provisórios. A partir do momento no qual o filósofo formula o seu "Cogito, ergo sum," ele está em condições de deduzir de forma linear uma série de princípios luminosamente verdadeiros, fundamentando o conhecimento em bases defmitivas, a partir de um princípio necessário e básico. Tal conhecimento tudo pode abarcar e nada é tão escondido que não possa ser por ele descoberto. O âmbito do pensamento não conhece qualquer resignação, mas apenas ampla e ilimitada confiança, como o reconhece Neurath (ibidem). Diante destas idéias cartesianas, Neurath começa a apresentar seus próprios argumentos, cuja conclusão final será uma forma generalizada de resignação, aplicável a ambos, agir e pensar. Para tanto, ele polemiza com Descartes, sobretudo a respeito de quatro tópicos basilares: 1. a diferença entre pensamento e ação; 2. a verdade e linearidade dos princípios cartesianos; 3. a inexistência de regras provisórias para o pensamento; 4. a psicologia cartesiana. Vejamos estes tópicos, caso por caso. 4. Pensar e agir A concepção cartesiana que separa rigidamente pensamento de ação é um erro fundamental, aos olhos de Neurath, embora ele reconheça que ambos não se identifiquem: um pensamento, em princípio, pode ser repetido, mas a
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ação é única, irreversível; podemos interromper um pensamento, mas cessar de agir já é uma ação. Não obstante, a verificação das conseqüências de um único raciocínio poderia tomar toda a vida do indivíduo; por outro lado, a construção de uma casa (que é uma ação) pode ser interrompida e retomada. Consoante tais fatos, Neuratb classifica pensamento e ação como formas de atividade humana, embora o faça sem analisar em pormenor a natureza de cada uma delas. Não obstante, ele conclui que elas se diferenciam quanto ao seu grau, ou seja, pensamento e ação seriam atividades gradualmente distintas entre si (op. cit., pp. 59s). Ao estabelecer uma categoria ontopsicológica comum ao pensamento e à ação (ambos são atividades), Neurath fixa a primeira premissa do argumento através da qual generalizará a resignação cartesiana. Se pensamento c ação pertencem à mesma categoria, não há por que, "a priori", tratar cada um deles segundo regras estanques. Entre eles deve haver alguma forma de proximidade.
5. A rede do saber A suposta verdade e linearidade do discurso construído a partir de um princípio é objeto do mais vigoroso ataque por parte de Neurath. Ele entende que o "Cogito, ergo sum" seria uma espécie de "tabula rasa", vale dizer, um pretenso sustentáculo inamovível para todo o saber humano, sob o qual haveria nada e a partir do qual tudo se estabeleceria, numa perfeita seqtienciação de sentenças verdadeiras. Ora, obtempera Neurath, deixando clara a sua dívida para com os convencionalistas franceses: o conhecimento humano não é uma cadeia de verdades translúcidas, mas um complexo de sentenças interligadas entre si, de sorte que a verdade de cada uma delas depende da verdade de todas as demais. Os fenômenos com os quais nos defrontamos são a tal ponto complexos e inter-relacionados que não nos é possível comparar isoladamente uma sentença com algum fato, porquanto cada asserção está, ainda que implicitamente, conectada com uma infinidade de outras diversas. Isto é verdade tanto sincrônica quanto diacronicamente, ou seja, cada sentença que enunciamos agora está ligada a todo o complexo conceptual que lhe é anterior e no contexto do qual ela foi gerada. Não há como livrarmo-nos deste opaco complexo judicativo, mesmo porque até mesmo a decisão de começar tudo de novo tê-lo-ia como pano de fundo. Em cada questão cognitiva, entra em jogo o complexo judicativo como um todo, de sorte que, a cada vez que se coloca um problema científico, não apenas uma, mas todas as sentenças cognitivas são desafiadas (op. cit., p. 59).
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Esta firme posição neurathiana nada mais é do que uma forma de holismo epistemológico. Mas este holismo é conectado por Neurath com uma certa forma de ceticismo quanto aos poderes da razão, na medida em que ele afirma ser impossível o trabalho sem premissas dúvidosas (ibidem). Se não podemos selecionar uma sentença basilar verdadeira, uma "tabula rasa," e raciocinar linearmente a partir dela, sempre trabalharemos com um complexo ilimitado e pluridimensional, onde falsidades estarão inseridas, sem que possamos identificá-las e corrigi-las. Este adendo cético ao holismo neurathiano é de importância essencial para o entendimento das suas primeiras idéias epistemológicas. 6. A resignação generalizada Depois de afastar-se radicalmente das certezas cartesianas, não foi dificil para Neurath retomar as regras da moral provisória e generalizá-las em direção ao campo do conhecimento. O homem de ciência não se assemelha ao solitário, recolhido na intimidade de uma alcova bem aquecida, livre do inverno que reina lá fora e dotado de confortáveis certezas definitivas. Muito ao contrário, o investigador está perdido no frio bosque, em busca de sinais que o orientem. Já que ele não pode evitar o trabalho com premissas duvidosas e já que a sua ciência é um vasto conjunto de sentenças interrelacionadas de modos mui variados, então o manual de emergência que o cartesianismo produziu para situações de ação sob incerteza há de ser definitivo e não provisório, de vez que só há situações de incerteza (op. cit., p. 58). Entre as incertezas da ação e as do pensamento hão de existir, no máximo, diferenças de grau, mas não de natureza. A confiança que Descartes tenta imprimir na sua filosofia primeira é ilusória. A resignação como princípio está inevitavelmente presente no agir e no pensar humanos. No contexto desta sua terceira crítica a Descartes, Neurath introduziu um curioso conceito que iria empregar ao longo de todo o seu desenvolvimento intelectual posterior: o pseudo-racionalismo. Para Neurath, pseudoracionalismo é a simulação de um conhecimento racional rigoroso, estabelecido pelo pensamento individual e capaz tudo entender, de resolver quaisquer problemas. Em contraposição a isto, o verdadeiro racionalismo é o saber ciente dos seus limites e livre de simulações. Obviamente, o pseudoracionalismo transmite um sentimento de acentuado poder pessoal e envolve desonestidade e arrogância. Já o verdadeiro racionalismo está isento de tais desvantagens morais, em virtude da sua modéstia intelectual (op. cit., pp. 63s).
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Neurath aplica estes conceitos a Descartes, num ato de simultâneo louvor e crítica ao Filósofo. Segundo Neurath, o Descartes da moral provisória seria um verdadeiro racionalista, enquanto que o postulador do "Cogito" seria um pseudo-racionalista. O pseudo-racionalismo presta um desserviço ao verdadeiro racionalismo, uma vez que o grande triunfo deste último é, precisamente, a clara e distinta consciência dos seus próprios limites (ibidem). 7. Uma psicologia com pretensões empíricas No seu exame da descrição cartesiana do pensamento, Neurath percebeu, corretamente, que Descartes não estava tratando da maneira segundo a qual as pessoas exercem suas capacidades intelectuais, mas que ele se limitou a analisar e desenvolver um sistema de puras relações lógicas (op. cit., p. 60). Contra este abstracionismo cartesiano, Neurath afirma uma psicologia de relações reais e não apenas idealizadas, relações estas que ocorrem no plano do pensamento, expandindo-se, a partir daí, ao plano da decisão e da ação. O pensamento humano, consoante Neurath, deve ser entendido como uma unidade psicológica que se mantém ao longo de toda a vida do indivíduo. O holismo epistemológico acima referido tem a ver com as experiências reais da mente humana, porquanto os fenômenos que nós vivenciamos são tão entrelaçados entre si que é impossível descrevê-los por urna série unidimensional de sentenças (op. cit., p. 59). Idéias e relações lógicas existem no pensamento real das pessoas, nunca em si mesmas (op. cit., p. 60). Com estas teses, Neurath afasta-se da construção cartesiana de um pensamento puramente idealizado, e volta-se para uma psicologia da cognição empírica. Entretanto, a psicologia que Neurath assume, na sua conferência de 1913, apesar do mencionado traço anticartesiano, é mais tradicional do que poderia parecer. Isto porque Neurath concebe o pensamento como um conjunto de complexos processos empíricos, mas continua a aceitar o modelo herdado dos séculos anteriores, segundo o qual, após o ato de pensar, ocorre a interferência da vontade que, finalmente, impulsiona a ação humana numa direção específica. Nestes termos, a decisão do homem é o ponto final de um processo que começa na mente, com o ato de pensar, e que passa por uma outra faculdade psíquica, a vontade. A psicologia que Neurath aqui representa, como era comum na época, enquadra-se na grande família das concepções mentalistas, de vez que entende a ação humana como resultado de uma série de processos que se desenrolam no interior do homem, na sua mente ou psiquismo. Quase duas décadas mais tarde,
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Neurath iria identificar psicologia e comportamentalismo, afastando-se das suas posições originais (Neurath 1931, pp. 413s). Em 1913, porém, a primeira proposta de uma psicologia comportamental com pretensões científicas ainda estava em fase de formação, muito longe de Viena. A psicologia mentalista que Neurath representou continha um elemento essencial para a sua teoria da decisão: é a idéia de que decidir implica a eliminação de um sentimento de desprazer. Enquanto o homem delibera, reflete sobre alternativas, procura pelo melhor caminho, ele, de alguma maneira, sofre, está sujeito a formas aversivas de vivências psicológicas. Ao decidir-se, porém, o sentimento de desprazer é removido, o que, por si só, já é um fato psicológico positivo (Neurath 1913, pp. 62s). É interessante observarmos, neste particular, que também Descartes associa decisão e eliminação de "arrepedimentos e remorsos", precisamente na mesma passagem do Discurso do Método tomada por Neurath como ponto de partida para a sua conferência de 1913. Isto mostra que a crítica de Neurath dirige-se à teoria cartesiana do pensamento, mas não se estende à sua psicologia da vontade e da decisão. Um último ponto deve ser aqui agregado, apesar da extrema brevidade com a qual Neurath o trata: ciente da limitação do seu tempo de vida, o homem tem o desejo de elaborar uma visão completa de mundo, num tempo finito e previsível ("in absehbarer Zeit," op. cit., p. 59). Este desejo, obviamente, seria um simples fato da psicologia humana, mas um fato com importantes conseqüências epistemológicas. A finitude do tempo humano e o desejo de conhecer implicam a aceitação de regras provisórias também no plano do pensamento, tornando-as uma necessidade (ibidem). Na conferência de 1913, Neurath não aprofunda este tópico, de vez que seu tema é a psicologia das decisões. Não obstante, ele já fornece elementos para a derivação unívoca de conseqüências epistemológicas. Assim como as regras provisórias da ação obrigam o agente desorientado a tomar decisões firmes, até em estado de ignorância, o mesmo há de valer relativamente a problemas teóricos, visto que não há qualquer abismo entre pensamento e ação, mas apenas distinções de grau. O investigador, muitas vezes, não dispõe de elementos para resolver seus problemas, imerso no cipoal de complexas experiências interconectadas, de sentenças holisticamente interrelacionadas, trabalhando com múltiplas premissas tacitamente pressupostas e admitindo inapelavelmente algumas hipóteses falsas. Apesar disto, ele quer chegar a resultados ainda ao longo da sua vida, de sorte que lhe resta apelar arbitrariamente para alguma decisão metodológica e levá-la adiante. Assim, quem sabe, ele sairá do espesso bosque de problemas teóricos no qual se perdera.
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O decisionismo neurathiano aparece, então, claramente, como resultado de dois itens: 1. a generalização do princípio cartesiano da resignação, que Neurath estendeu ao plano do pensamento; 2. a valorização do suposto fato psicológico do desejo humano de elaborar uma cosmovisão completa, ao longo de uma vida não apenas finita, mas também curta. Este fato psicológico ganha, por assim dizer, uma surpreendente dimensão epistemológica. 8. O processo empírico das decisões e o Motivo Auxiliar Ao estabelecer suas regras para uma ética provisória, Descartes enfatiza a perseverança com a qual se deve caminhar sempre para o mesmo lado, sabedor como era de que a reta é a menor distância entre dois pontos. Complementando a regra cartesiana, Neurath se pergunta sobre como se dá, empiricamente, a tomada de decisões, em condições de radical incerteza. Suponhamos que alguém tenha de decidir algo, sem encontrar qualquer indício que tome uma das suas alternativas mais provável do que as demais. Suponhamos ainda que o indeciso não consiga fazer progressos, por mais que se esforce, refletindo sobre suas alternativas. O que poderá ele fazer, visto que tem de agir, de alguma forma? Neste caso, responde Neurath, sendo incapaz de encontrar dentro de si a solução para o problema, o indeciso poderá lançar mão da loteria, do "cara ou coroa", do puro jogo de azar para, finalmente, obter alguma indicação sobre o caminho a tomar (op. cit., pp. 60s). Com este tipo de solução, Neurath retomou a mesma idéia com a qual concluíra a sua palestra de 19 12, sobre a indecidibilidade do cálculo utilitarista do prazer máximo. Ao propor a loteria como método de escolha para o indeciso radical, Neurath tenta situar-se numa espécie de campo neutro, pois, para aquele cujas alternativas rigorosamente se equivalem, qualquer escolha é tão boa quanto as demais. Ao jogar "cara ou coroa", lançar dados ou recorrer a algum artificio do mesmo tipo, o indeciso tem, aos olhos de Neurath, a grande vantagem moral de reconhecer as limitações do seu saber. Sua escolha é racional e se enquadra naquilo que Neurath chama de verdadeiro racionalismo, pela sua modéstia e ausência de simulação. Quando o agente indeciso lança mão de uma alternativa qualquer, ao acaso, e emprega um princípio de t ipo mais geral, ele estará gerando um motivo para a sua ação que Neurath chama de Motivo Auxiliar e ao qual atribui grande importância (ibidem). Se o indeciso abandona à moeda lançada ao acaso a opção sobre o caminho a tomar, ele estará escolhendo um
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juiz exterior despretensioso e realmente imparcial. Pois bem, isto é fazer uso do Motivo Auxiliar neurathiano, em condições de incerteza extrema. Neurath manifesta a sua crença de que o homem sábio, esgotadas as possibilidades do seu raciocínio, poderá encontrar no Motivo Auxiliar uma força motriz capaz de fortificar sua vontade e de conduzi-lo à ação, libertando-o do sentimento aversivo que a indecisão acarreta (op. cit., p. 65). Mas, a sabedoria é para poucos. Em geral, os seres humanos empregam sucedâneos do Motivo Auxiliar, que não têm as suas vantagens. Usualmente, o instinto e o recurso à autoridade são os sucedâneos preferidos. O instinto, segundo Neurath, é rápido e objetivo, oferecendo ao agente uma alternativa sem hesitações, de modo a libertá-lo quase que instantaneamente do incômodo causado pela indecisão. O instinto parece preferível, numa análise superficial, em virtude da sua naturalidade e eficiência. Porém, embora reconheça no instinto um precioso recurso para o homem primitivo, Neurath duvida que ele possa ser útil nas sociedades complexas, dominadas pela técnica, pela organização social e pelos processos mediatos de raciocínio (op. cit., pp. 6l s). Nas sociedades modernas, consoante a análise de Neurath, há múltiplas formas de sucedâneos para mecanismos neutros de decisão. Muitos preferem recorrer à autoridade supersticiosa de magos, de cartomantes, de médiuns espíritas ou algo parecido. Com isto, eles conseguem alguma forma de alívio, ainda que provisório. Outros apelam para a autoridade de terceiros, supostamente mais sábios do que eles, como o seriam os confessores ou vários conselheiros. Em qualquer destes casos, o ponto fundamental é a necessidade de decisão, sem a qual não se remove a sensação aversiva na qual se encontra o indeciso. Sabedor desta necessidade tão humana, o político demagogo faz dos seus discursos um teatro, no qual ela simula uma racionalidade que, de fato, não existe. Neste contexto, estabelece-se uma desonesta relação de cumplicidade entre o demagogo que engana e seus ouvintes, que se deixam enganar, pois, dessa maneira, liberam-se de certas pressões psicológicas. O orador demagogo é o melhor exemplo de pseudoracionalista, que Neurath repudia com vigor (op. cit., pp. 63s). Neurath valoriza a tal ponto a neutra pureza do Motivo Auxiliar que chega mesmo a propor toda uma interpretação da história humana em termos de instinto, autoridade e decisão ao acaso. No passado, o homem teria sido dominado pelo instinto, nas formas simples de organização humana. Hoje, nós viveríamos uma época de autoridade, nas sociedades complexas, quando o homem moderno crê na força ilimitada da sua razão individual e na sua capacidade de resolver todos os problemas, através de raciocínios abstratos. No futuro, porém, o homem dar-se-á conta, mais
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honestamente, das suas próprias limitações e fará uso concreto do Motivo Auxiliar, tanto na sua vida privada, quanto em assuntos públicos (op. cit., pp. 66s). É interessante observarmos que Neurath vê no instinto um processo insuficiente de decisão, ao menos em fases mais avançadas de evolução humana. Não obstante, ele não condena o instinto. Muito diferente, porém, é a sua posição quanto aos diversos tipos de recurso ã autoridade, assim como quanto ã crença na força ilimitada da razão individual. Nestes casos, Neurath vê apenas desonestidade, superstições ou simulação pseudoracionalista. Sem qualquer dúvida, o pseudo-racionalismo foi escolhido por Neurath como o seu grande adversário intelectual e moral. Sua crença num progresso humano sob o signo do Motivo Auxiliar é, ao fim e ao cabo, uma esperança de aperfeiçoamento moral do homem (ibidem). Concluindo o seu texto, Neurath retomou a comparação cartesiana e imaginou quatro viajantes perdidos no bosque e igualmente indecisos, de forma extrema. O primeiro deles poderá apelar para o instinto, de modo a definir um caminho; o segundo invocará algum espírito; o terceiro pretenderá raciocinar, pesando cuidadosamente várias razões, até, em supostas bases lógicas, orgulhosamente, apontar para uma direção; o quarto, finalmente, reconhecerá seu pouco s aber e decidirá para aonde ir a partir do "cara ou coroa". Segundo Neurath, o pesquisador da verdade repudiará o terceiro dentre estes e olhará para o quarto com simpatia. Entretanto, as chances de sucesso de qualquer dos quatro, quanto a sair do bosque, poderão ser exatamente as mesmas (op. cit., p. 66). Este último ponto merece nossa atenção, porquanto evidencia que o recurso ao Motivo Auxiliar, em condições de incerteza extrema será vantajoso tão-somente sob o ponto de vista moral. Se as alternativas postas ao indeciso têm rigorosamente o mesmo valor, sob o ponto de vista do sucesso da ação a ser .realizada, pouco importa uma decisão a partir do instinto, da magia, do conselheiro religioso, do demagogo ou da loteria. As alternativas irão equivaler-se, e as decisões liberarão os agentes dos seus desconfortos psicológicos, da mesma maneira. A loteria, porém, não envolve simulação de conhecimento, e esta é sua única vantagem. Em casos de tomada de decisão sob incerteza extrema, a tese neurathiana é a de que a moral deve servir de apoio para a definição de um rumo. 9. Algumas conclusões A leitura cuidadosa das citadas conferências de 1912 e 1913 torna manifesta a intrincada raiz do decisionismo neurathiano que começa a se caracterizar
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como uma espécie de apêndice à análise do cálculo utilitarista, desenvolvendo-se na querela com Descartes, mas com o acréscimo de uma premissa específica da filosofia de Neurath. A separação cartesiana entre pensamento e ação, a seqüência linear de luminosas certezas (objeto de plena confiança), além da concepção do pensamento como um conjunto de processos lógicos foram teses cartesianas vigorosamente repudiadas por Neurath. Ele escolheu o intelectualismo da ordem das razões como seu alvo preferencial e manteve-o, assim, ao longo de toda a sua vida. Não obstante, Neurath também teve a sua face cartesiana, ao aceitar parte da psicologia do filósofo francês e, sobretudo, ao valorizar a moral provisória, cujo caráter de resignação ele tratou de generalizar. Mas a querela com Descartes não é tudo. Para estabelecer o seu decisionismo, Neurath careceu de uma premissa essencial, que foi a tese psicológica de que o homem deseja constituir uma cosmovisão completa, ao longo da sua curta vida. Ora, tal desejo ilimitadamente amplo jamais encontrará apoio nos modestos recursos intelectuais humanos. Portanto, a única alternativa de "realizá-lo" será o recurso decisionista a escolhas metodológicas arbitrárias. No caso-limite de caminhos intelectuais diversos, mas indecidíveis, resta o recurso moralmente honesto do "cara ou coroa", o que situa a moral na base dos processos de decisão, em situações extremas. Um tópico importante merece atenção, no contexto do debate de Neurath com Descartes. Se, consoante Neurath, o homem decide sobre algo a respeito do qual não tem informações bastantes, movido pelo seu desejo de completar sua cosmovisão, ele estará sujeito a erro, visto que, ao decidir, dará um salto no escuro. Mas esta é também a conhecida tese de Descartes: a vontade humana é livre e infinita e o homem engana-se quando estende-a àqui/o que não entende. Neurath deve concordar com Descartes, no que diz respeito à razão do erro, ao menos nos casos-limite de tomadas de decisão. Em qualquer hipótese, a semelhança entre as teses da expansão da vontade (Descartes) e o desejo de uma cosmovisão completa (Neurath) é grande demais, para ser simples coincidência. Há aqui uma clara influência cartesiana sobre Neurath. . Para o filósofo leitor de Neurath, urna pergunta importante fica sem resposta: por que o homem não modera a sua pretensão de formular uma cosmovisão completa, reconhecendo honestamente os modestos limites da sua razão? Neurath não nos deu elementos para resolver estes singelo problema, pois, para tanto, deveria acrescentar uma nova premissa ontopsicológica, estabelecendo o caráter absolutamente necessário da tendência humana à cosmovisão completa. Visto que tal premissa não consta nos textos ora examinados, o decisionismo permanece como tese
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problemática, carente de justificação, mesmo no contexto puramente imanente à filosofia de Neurath. Para o historiador da filosofia, as conferências de 1912 e 1913 evidenciam: a) o interesse crítico de Neurath relativamente ao utilitarismo britânico; b) a conhecida influência dos convencionalistas franceses sobre aquele autor; c) o vivo debate de Neurath com Descartes, debate este no qual o primeiro opõe-se radicalmente ao segundo, sob vários aspectos, mas deixa-se influenciar pelo seu adversário, em outros tópicos. De qualquer maneira, Kant e o idealismo alemão estão ausentes de todos os questionamentos aqui elaborados. Nestas palestras, os interlocutores de Neurath estão na Grã-Bretanha e, sobretudo, na França, mas não na Alemanha.
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JOHN STUART MILL E OS INGREDIENTES DA FELICIDADE MARJA CECÍLIA M. DE CARVALHO
PUCCAMP/CNPq
1. O utilitarismo miJieano: um novo olhar Objetivo primeiro deste trabalho é dar notícia acerca de alguns resultados recentes da investigação que tem por objeto a filosofia moral e social de John Stuart Mil! e sugerir a possibiüdade de um outro olhar sobre sua filosofia. Estudiosos recentes do opus milleano' destacam sua organicidade, origina lidade e sutileza, contra o que se convencionou chamar de leitura clássica ou 1
O autor mais prestigiado é sem dúvida Fred R. Berger, que escreveu Happiness, Justice and Freedom. The moral and po/itical phi/osophy of John Stuart Mil/ ( 1984). No mundo de fala espanhola, destaca-se Ana de Miguel Alvarez, eminente conhecedora da filosofia milleana. com quem muito aprendi através da leitura de suas obras: Elites y parlicipación política e" la obra de John Stuart Mil/, tese de doutoramento, defendida na Universidad Autónoma de Madrid em 1990 e que permanece inédita, e Cómo /eer a Jolm Stuart Mil/. (1994). Ainda na Espanha, Esperanza Guisán, com extraordinária competência e imaginação, tem defendido a filosofia moral milleana, contribuindo para a necessária difusão e revitalização da obra deste importante filósofo. De sua autoria, gostaria de mencionar sobretudo o capítulo "EI Utilitarismo", publicado no segundo volume da coletânea dirigida por Vietoria Camps, intitulada História de la ética, o capítulo "Utilitarismo", escrito para o Vol. 2, intitulado "Concepciónes de la ética", que compõe a Enciclopedia Jberoamericana de Filosofia, organizada por Victoria Camps e Oswaldo Guariglia, assim como a "Introdução", escrita para a tradução espanhola de sua autoria do ensaio Ulilitarianism de J. S. Mil!. Brilhantes são seus livros Razón y pasión en la ética (1986), Manifiesto hedonista (1990) e Jntroducción a la ética ( 1995), dentre muitos outros, igualmente valiosos e de apaixonante leitura. Outro respeitável leitor de J. S. Mill é John GRAY, autor de Mil/ on liberty: a defence. ( 1983). Indispensável para quem deseja se introduzir no pensamento de Mill é a leitura da extensa e minuciosa monografia de John Skorupski: John Stuart Mil/, publicada em 1989. No espaço de lingua alemã, destacam-se Jean-Ciaude Wolf. autor de John Stuart Mills "UtiliJarismus". Ein krilischer Kommentar ( 1992) c Ralph Schumacher, John Stuart Mil/, 1994. Mortari, C. A. & Outra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 189-21 O.
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ortodoxa, que imputava a Mill uma série de falácias e incoerências. A interpretação tradicional veria John Stuart Mil! como um pensador menor, eclético, de transição, que desejava ardentemente, até mesmo doentiamente, conciliar demandas tidas como inconciliáveis. Por ser um pensador que buscava restaurar a dignidade de um Utilitarismo, acusado de ser uma filosofia para suínos, Mill teria acolhido valores alheios à indole da vertente utilitarista sem o perceber; teria, de fato, abandonado os axiomas fundamentais utilitários, voltado as costas para o hedonismo sem se dar conta de sua apostasia. Existe atualmente um movimento na direção de se recuperar o pensamento de John Stuart Mill, de divulgá-lo e propor-lhe uma leitura que se presume mais adequada. Não há de minha parte o propósito de endossar tacitamente a assim chamada nova interpretação; com todo o distanciamento crítico que julgo salutar manter com relação a qualquer proposta de leitura, não se pode, todavia, deixar de reconhecer que se trata de uma interpretação que é, no mínimo, instigante e desafiadora, convidando-nos a uma releitura da obra deste importante pensador do século XlX. John Stuart MiH é um autor que continua a suscitar polêmica em torno de sua filosofia. A publicação de suas obras completas tem dado ensejo, nas últimas décadas, a incontáveis estudos sobre sua filosofia. É consenso entre os novos intérpretes de John Stuart M ill que seus comentadores clássicos foram também seus algozes, tendo contribuldo para perpetuar uma imagem de sua doutrina que está muito longe de fazer jus à sua complexidade. De acordo com a interpretação tradicional, a filosofia de Mill estaria eivada de tensões, ou mesmo de contradições, em geral caudatárias de uma personalidade altamente influenciável que, preocupada em acolher as mais variadas escolas de pensamento, não teria conseguido compaginá-las em um sistema coerente, quiçá até mesmo por faltar-lhe competência intelectual para levar a efeito um empreendimento de tal porte. Segundo esta visão oficial, a influência de correntes estranhas ao espírito do Utilitarismo teria exercido um papel tão avassalador sobre a fraca personalidade de Mil!, que este chega mesmo a romper com o Utilitarismo, sem, contudo, dar-se conta dos compromissos tacitamente assumidos com sua adesão a outros credos, nem vislumbrado o alcance de sua heterodoxia.2 A recepção do pensamento millea2
Cf John Gray, Mil/ on liberty: a defence, p. 2. C/ também Ana de Miguel Alvarez, Elites y participación politica en la obra de John Stuart Mi/1, pp. 6-7. Entre os representantes mais influentes da interpretação tradicional, está James Fitzjames Stephen, autor de Liberty, Equality, Fraternity [1873], Cambridge University Press, 1967. Na época contemporânea destacam-se: H. J. McCioskey, John Stuart Mil/: a criticai study, Londres, Macmillan, 197 1; lsaiah Berlin, "John Stuart Mill and the
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no que tem se seguido à publicação de suas obras completas não deixou inalterada a imagem que se tinha deste autor. Os novos intérpretes procuram, em primeiro lugar, divulgar a obra de Mill, pondo em evidência aspectos até então amplamente negligenciados ou simplesmente desconhecidos, convidando o leitor a uma (re)descoberta da filosofia milleana. Em segundo lugar, propugnam por uma interpretação que eles consideram mais adequada do pensamento deste filósofo. Sem desconhecer a presença de tensões na filosofia miUeana, os novos intérpretes buscam uma reconstrução da qual deve emergir uma filosofia coerente e vigorosa. Aos poucos aquele tom depreciativo que marcara a interpretação tradicional de Mill deixa de ser dominante e as reconstruções recentes de sua filosofia prática permitem que aflorem suas qualidades; em geral, procuram mostrar ainda que suas teses sobre o utilitarismo, a liberdade e o governo representativo, longe de conflitarem umas com as outras, se apoiam e se fortalecem mutuamente.
2. O legado utilitarista e o despertar de John Stuart Mill Mm é herdeiro do movimento utilitarista britânico, fundado por Jeremy Bentham e desenvolvido por seu pai, James Mill. O utilitarismo, como se sabe, é uma vertente da filosofia prática que apregoa como teste para se avaliar a qualidade moral de ações/regras/instituições sua potencial eficácia para contribuir para o bem-estar geral ou para promover o maior saldo líquido de felicidade ou bem-estar para o maior número de indivíduos. O Utilitarismo assume que o ser humano possui desejos, interesses, preferências, necessidades, que devem ser contemplados pelo simples fato de fazerem parte da natureza humana. Não apenas o Utilitarismo, mas, de um modo geral, a filosofia moral britânica é, como se costuma dizer, tradicionalmente naturalista, no sentido de que se estriba em uma concepção acerca da natureza humana, e tacitamente assume que a ética não pode ignorá-la. O utilitarismo não foge à regra. As versões de Bentham e de James Mill apoiavamse, contudo, "numa visão clara, porém, restrita e Jimitada" 3 da natureza humana. Os seres humanos eram vistos como objetos naturais que, a despeito de sua maior complexidade face aos demais habitantes do mundo da natureza, não deixam todavia de pertencer a ele, com tudo o que isso tem de limicnds of life", in: Four essays on liberty. Oxford University Press, 1969; Gertrud Himrnelfarb. On liberty and liberalismus. The case of John Stuart Mil/, San Francisco, 1990 3 John GTay. "John Stuart Mill: a crise do liberalismo". In Brian Redhcad (org.). O pensamento político de Platão à Otan. p.l54
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tante. Ademais; sua passividade mental era realçada; seu psiquismo estaria submetido a uma lei de associação de idéias, e suas ações/abstenções visavam o objetivo precípuo de alcançar o prazer e evitar a dor. Trata-se de uma concepção de ser humano que pode ser tida por essencialista, dado que atribuía ao homem uma natureza a-histórica e a-social, na medida em que negligenciava a formação da personalidade através da interação social e da herança cultural. Cabia ao legislador utilitarista criar instituições sociais de forma a possibilitar que o interesse de cada um na busca de seu próprio prazer se ajustasse harmoniosamente aos interesses de outros indivíduos, servindo assim ao interesse geral. Os utilitaristas acreditavam poder remodelar os seres humanos através da educação para melhor se ajustarem a uma sociedade organizada com vistas à consecução da felicidade suprema. 4 John Stuart Mill parece ter sido cobaia de um experimento pedagógico utilitarista, patrocinado por seu pai. Recebeu uma educação rígida, rigorosamente moldada com a fmalidade de prover-lhe os recursos mentais destinados a capacitá-lo a fomentar a felicidade individual e geral. Todavia, não por acaso, Mill não conseguiu ser uma pessoa feliz, pelo menos enquanto durou a influência paterna. Na juventude, enfrentou crises mentais e colapsos nervosos, tendo suportado longo período de melancolia e depressão. Essa experiência existencial o levou a repensar o legado utilitarista que recebera do pai. Nesse contexto de revisão e ajuste de contas, foi importante seu despertar para o valor da poesia e dos sentimentos que o utilitarismo até então infravalorara. Inspirado por alguns poetas, como Wordsworth, Coleridge e Shelley, e também pela filosofia alemã, John Stuart Mill remodelou a visão utilitarista clássica acerca do ser humano, procurando ver em cada indivíduo um ser ativo e criativo, dotado de uma personalidade a ser desenvolvida. Seu despertar para os sentimentos o levou a se afastar daquela concepção que reduzia o ser humano a um mecanismo movido pelo binômio prazer/dor e lhe descortinou uma nova perspectiva acerca da felicidade humana. O resultado deste renascer pode ter sido uma filosofia híbrida, que não deixa, entretanto, de ser altamente instigante. O foco do presente trabalho incidirá sobre a concepção milleana de felicidade, a qual constitui a pedra angular da filosofia moral e social de Mill. Com efeito, sobre o conceito de felicidade é que se alicerçam as idéias do filósofo acerca da liberdade, da justiça, da virtude. No esforço de reconstruir a filosofia prática milleana como um sistema consistente, os novos intérpretes parecem querer sugerir que as tensões que ele .abriga podem se atenuar quando vistas através da lente fornecida por uma concepção complexa e re4
Cf Idem, ibidem, p. 154
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finada de felicidade, que é geradora de direitos e que impõe deveres. Enquanto que a interpretação clássica ou tradicional se caracterizava por imputar à filosofia milleana urna série de incoerências- por exemplo, entre as demandas de felicidade e de liberdade, assim como entre as exigências de felicidade e de justiça, de felicidade e virtude, os novos intérpretes acreditam ter encontrado na idéia de felicidade a chave para dissolver tais contradições e enxergar as demandas de liberdade e de justiça como pré-requisitos ou condições para uma felicidade, que não se opõe a uma vida virtuosa, mas a pressupõe. O ensaio de J. S. Mil! sobre o Utilitarismo é iluminador sob vários aspectos. Nele Mill faz valer que a felicidade humana não é algo que se conquiste faciLmente; ela é, antes, o coroamento de uma vida marcada pelo desenvolvimento e mobilização de uma série de qualidades morais. O conceito de fel icidade perfilhado por Mill tem forte conotação moral e pouco ou nada tem a ver com as sensações prazerosas passíveis de serem partilhadas também por suínos, ou com os deleites de um néscio. Segundo E. Guisán, poucas vezes um filósofo moral mostrou-se tão sensível ao que se costuma denominar "dimensão espirituaL" do ser humano. Raramente um autor exigiu o acesso a um elevado nível de aprimoramento moral para a conquista da felicidade. No entender de Mill, uma felicidade genuína só é alcançável por aqueles indivíduos que foram previamente educados e que atingiram um alto grau de aprimoramento morais.
3. A peculiaridade da concepção milleana de felicidade. Jobn S. Mill versus J. Bentham Para os autores do que se convencionou chamar de Utilitarismo Clássico representado sobretudo por J. Bentham e J. S. Mill - as ações humanas devem se guiar pelo princípio da máxima felicidade. Embora fundamental para o Utilitarismo, John Stuart Mill parece ter sido o primeiro filósofo a dispensar atenção crítica ao conceito de felicidade. 6 Premido pela urgência de defender a posição utilitarista contra o que considerou serem equívocos e ma l-
s Cf Esperanza Guisán. In: "Introducción" a E/ utilitarismo de John Stuart Mill; ver sobretudo p. 16. 6 O. Hõtfe lembra que J. Bentham só esporadicamente tece considerações sobre a felicidade. Excetuando-se as passagens em que ele equipara a felicidade ao prazer, ao lucro, à vantagem ou ao bem, e aquelas onde esboça seu cálculo felicífico, não se encontra em Bcntham uma análise mais detida do conceito de felicidade, o que só teria sido recuperado por J. S. Mil!. Cf O. Hõffe. "Zur Theorie des Glücks im klassischen Utilitarismus". ln: Ethik und Politik, p. 120.
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entendidos, enfrentou com disposição o desafio de apresentar uma caracterização mais acurada de um conceito complexo, não desconhecendo a necessidade de dar legitimidade à sua concepção. Seu utilitarismo resulta inquestionavelmente mais sutil e refinado que o de Bentham. Pode-se dizer com Esperanza Guisán que a ética milleana representa o mais alto grau de refinamento das éticas teleológicas do bem-estar, seja pela sutileza de suas reflexões, seja pela extrema sensibilidade moral aí revelada. 7 É claro que tal não deve nos eximir de averiguar se a maior sofisticação de sua posição não foi adquirida ao preço de sacrificar-lhe a coerência interna. Não cabe dúvida de que o utilitarismo esposado por Mill difere em aspectos não-irrisórios daquela versão mais primitiva do utilitarismo professada por J. Bentham. Para este, a qualidade moral de uma ação é função de sua tendência para aumentar ou diminuir a felicidade dos indivíduos concernidos, sendo esta entendida substantivamente como prazer e/ou ausência de dor. O Princípio de Utilidade para Bentham prescreve a escolha daquele curso de ação cujas conseqüências promovem o maior saldo líquido de felicidade, vale dizer, a maior soma de prazer, descontada a dor eventualmente engendrada. Tal princípio fora estatuído por Bentham para orientar tanto as ações dos indivíduos no seu dia-a-dia, como também para nortear a ação legiferante de governantes, destinado, portanto, a reger tanto a ética individual como a ética social. Segundo Bentham, o ser humano está por natureza determinado a escolher o prazer e a evitar a dor. É conhecida a afirmação benthamita, segundo a qual a natureza teria colocado a humanidade sob o domínio implacável de dois senhores soberanos, a dor e o prazer. Pode-se dizer que para Bentham o Princípio de Utilidade é não apenas um princípio descritivo, que daria conta de como os seres humanos de fato se comportam ~ buscando o prazer e evitando a dor - mas também um principio normativb, na medida em que prescreve como ideal moral a busca do prazer e a fuga da dor. John Stuart Mill distancia-se da concepção segundo a qual o ser humano seria como um mecanismo determinado pela busca do prazer e fuga da dor: para Mill o homem é um ser dotado de faculdades elevadas, de ordem intelectual, moral e afetiva, e capaz de permanente progresso moral. Entende que a existência de faculdades elevadas gera a exigência de que a felicidade humana esteja em consonância com tais faculdades e que não possa se identificar com o mero contentamento. Felicidade não se confunde com o simples sentir-se satisfeito ou saciado. Mill defende a distinção entre felicidade e satisfação, felicidade e contentamento, lembrando que nenhum ser humano 7
Cf Esperanza Guisán, lntroducción a la ética, p. 153.
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inteligente concordaria em converter-se em um néscio, ainda que, em troca, desfrutasse de maior satisfação. Outra diferença importante em relação a Bentham é que, para este, os prazeres são todos igualmente valiosos. 8 Em contrapartida, John Stuart Mill defende um utilitarismo qualificado, que emerge como a resultante de um processo de severa auto-crítica e de distanciamento daquele "utilitarismo ingênuo" a que ele aderira em sua juventude. Por "utilitarismo ingênuo" se entende a postura reducionista e simplificadora que pretende que todos os conceitos morais sejam reconstrutíveis utilitaristicamente ou definíveis em termos de prazer/utilidade. O Utilitarismo de Mill, ao contrário, procura contemplar a complexidade das experiências morais e a multiplicidade de valores e normas. Afasta-se em muitos aspectos da versão benthamita da utilidade, a ponto de alguns intérpretes entenderem que ele ultrapassa as fronteiras deste modelo de reflexão ético-política. Pode-se dizer que o utilitarismo de Mill é perfectibilista, pois se apóia no suposto de que o ser humano é suscetível de aprimoramento e deve aspirar seu desenvolvimento e aperfeiçoamento. Não se trata, por conseguinte, de uma ética que se paute por inte~ resses cegos ou por desejos facticamente acolhidos, passíveis, portanto, de serem objeto de levantamento empírico. Como herdeiro da Ilustração, Mill estimula no ser humano o ideal de transcendência e superação das próprias limitações, rumo ao aprimoramento moral. No ensaio Utilitarianism Mill se 8
A este respeito pode-se lembrar que também a obra de Bentham foi alvo de malentendidos e de interpretações equivocadas. A tese da equiparação de todos os prazeres deve - como salientou acertadamente Ana de Miguel AJvarez - ser entendida no contexto do projeto reformista c democrático acalentado por Bentham. A exigência de que todos os prazeres fossem vistos como igualmente valiosos, - ou, como disse Bentham, desde que a quantidade de prazer seja a mesma, fazer poesia ou jogar " pushpin" tem o mesmo valor - assim como aquela declaração, atribuída a Bentham, de que cada um conta como um c ninguém como mais do que um - devem ser entendidas no contexto de sua preocupação em denunciar a existência de iniqüidades e de interesses sinistros de uma minoria em detrimento da maioria da população, com vistas a promover uma profunda reforma social e jurídica. Bentham estava fortemente interessado em que o povo fosse ouvido c tivesse seus desejos atendidos. A maioria da população está obviamente mais afeita a prazeres simples, que exigem menos esforço para serem vivenciados, e é menos sensível à beleza da poesia, cuja apreciação requer um gosto educado. A radicalidade com que Bcntham defendia a democracia o levou a insistir em que nenhum interesse fosse excluído do cálculo utilitarista, nenhum prazer fosse considerado menos nobre ou valioso do que outros. Daí seu famoso dictum : "quantitity of pleasurc being equal, pushpin is as good as poetry." Cf. Ana de Miguel AJvarez, Cómo leer a John Stuart Mil/, pp. 25-26.
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empenha em elucidar o conteúdo da teoria utilitarista, contra supostos preconceitos dos críticos, procurando dirimir equívocos que estariam denegrindo esta filosofia. Como assinala E. Guisán 9, as doutrinas morais que proclamam a desejabilidade da felicidade humana têm sido alvo de múltiplos ataques. Estes repousam por vezes em teses e pressupostos pouco defensáveis, como o de que uma ética que prescreva a busca da felicidade nos equipararia aos porcos, ou o de que a norma que tem por conteúdo o dever de buscar a felicidade seria ociosa, uma vez que todos estamos já empenhados na conquista da felicidade, razão por que não necessitaríamos de conselhos, exortações ou deveres que nos instem a agir hedonisticamente. Ademais, muitos crêem que as inclinações hedonistas são perniciosas e estão a exigir um freio, e não um encorajamento. Em suma, o hedonismo utilitarista rebaixaria o ser humano ao nível de porcos, não estando, por conseguinte, à altura de seres humanos. Uma filosofia que exalta o prazer incorreria no grave erro de equiparar o ser humano aos animais irracionais, o que equivaleria, em última análise a uma degradação do ser humano. Em defesa do utilitarismo, e contra todos os que criticaram a Epicuro ou que condenaram o hedonismo como uma doutrina tosca e à altura tão-somente de porcos, Mill escreve: Resulta degradante a comparação da vida epicúrea com a dos animais precisamente porque os prazeres de um animal não satisfazem à concepção de felicidade de um ser humano. Os seres humanos possuem tàculdades mais elevadas que os apetites animais e uma vez que são conscientes de sua existência não consideram como felicidade nada que não inclua a gratificação daquelas faculdades. 10
Ademais, segundo Mill, não há por que restringir o significado da palavra prazer, como se esta só pudesse se aplicar apropriadamente à sensação positiva que acompanha a satisfação dos instintos. Para Mill, não só é possível discriminar entre prazeres, mas tal discriminação é perfeitamente consistente com o Princípio de Utilidade. Considera 9
Cf Esperanza Guisán, "lntroducción" escrita para a tradução espanhola da obra de J. S. Mill. El Utilitarismo, p. 07 10 Mill, John Stuart, E/ Utilitarismo, p. 47. No original lê-se: "The comparison ofthe Epicurean life to that of beasts is felt as dcgrading, prcciscly because a beasrs pleasures do not satisfy a human being's conceptions o f happiness. Human beings have facuJties more elevated than the animal appetites, and, whcn once made conscious of thcm, do not regard any thing as happiness which does not include their gratification"(J. S. Mill, "Utilitarianism", p. 331).
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( ...) de todo compatível com o principio de utilidade o reconhecimento do fato de que alguns tipos de prazer são mais desejáveis e valiosos do que outros."
Mill reconhece que o utilitarismo benthamita não é infcnso a uma hierarquização entre os prazeres, sendo compatível com a afirmação de que alguns são mais valiosos do que outros; ressalta, porém, que em Bentham tal discriminação se funda em critérios meramente quantitativos. Não sendo possível nenhuma distinção intrínseca entre prazeres, qualquer hierarquização resulta meramente contingencial. À diferença de Bentbam, Mil! introduz um padrão de ordem qualitativa para possibilitar sua discriminação para além da quantidade. Assim, aqueles q ue derivam da gratificação das faculdades mais elevadas são mais valiosos do que os que resultam da satisfação dos sentidos. Naturalmente que o recurso à categoria de qualidade introduz pelo menos dois complicadores na teoria milleana. O primeiro diz respeito ao fato de que havendo diferenças intrínsecas entre prazeres, as quais determinariam que alguns são intrinsecamente mais nobres ou desejáveis do que outros, a teoria parece se comprometer com algum valor - irredutível ao prazer - que lhe adentraria sorrateiramente, ameaçando implodir seu hedonismo. A segunda dificuldade resulta do fato de a distinção qualitativa entre prazeres afustar a teoria milleana da possibilidade de ofertar um procedimento de decisão que nos habilitasse a escolher entre cursos alternativos de ação. Se Bentbam dispunha do cálculo fel icífico que, pelo menos em tese, tornava operacionalizável a exigência de decidibilidade entre cursos de ação alternativos, Mill inviabiliza o cálculo e se vê compelido a buscar um substituto para ele; para satisfazer a tal demanda, imposta pelo seu hedonismo qualitativo, introduz a categoria dos juízes competentes, formada pelo conjunto das pessoas mais experimentadas, que teriam fam iliaridade com os diversos tipos de prazer. A preferência deste colegiado de pessoas competentes substitui - na filosofia milleana - o cálculo felicífico da doutrina benthamita, e se constitui no critério a ser !evado em conta em nossas decisões. Para Mill, é um fato inquestionável que aqueles que estão familiarizados tanto com os prazeres animais ou inferiores como com os que resultam das qualidades humanas mais elevadas sempre assinalam serem os últimos os mais valiosos para a felicidade humana. 12 E, nesse contexto, Mill assevera: 11
Idem, ibidem. No original: "It is quite compatiblc with the principie of utility to rccognize thc fact, that some kinds o f pleasure are more dcsirablc and more valuablc thanothers" (Op. cit., p. 331). 12 Cf Idem, ibidem, pp. 48-49.
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é melhor ser um ser humano insatisfeito que um porco satisfeito; melhor ser um Sócrates insatisfeito que um néscio satisfeito. E se o néscio ou o porco opinam diferentemente é em virtude de conhecerem apenas um lado da questão. 13
De acordo com a visão tradicional, Mill introduzira diferenças qualitativas entre os prazeres, no intuito desesperado de recuperar a credibilidade de um utilitarismo para o qual o único valor era o prazer. Tal monismo axiol6gico, embora substantivamente inaceitável, era, pelo menos, coerente com o hedonismo professado. Em contrapartida, ao tentar livrar o utilitarismo dos ataques que o vituperavam, Mil! apelara para uma distinção qualitativa entre prazeres, sem perceber que tal fato o afastava do hedonismo que ele, no entanto, nunca abjurou. Se esta reflexão estiver correta, a teoria de Mil!, a despeito de que possa denotar o elevado sentido moral de seu autor, estaria contaminada por uma irremediável contradição. Os novos intérpretes da obra de Mil! são de opinião que algumas passagens do ensaio Utilitarianism, isoladas do contexto maior da obra milleana, fomentaram uma série de erros de interpretação do corpus milleano. Uma leitura que se pretenda mais adequada requer que se leve em conta o conjunto de sua obra. Sobretudo não se pode negligenciar o ensaio Sobre a liberdade (On Liberty, 1859), onde seu autor afirma : Encaro a utilidade como a última instância em todas as questões éticas; mas é preciso que se trate da utilidade em seu mais amplo sentido, da utilidade fundada nos interesses permanentes do homem como ser capaz de progresso.L4
O texto Sobre a Liberdade nos dá importantes pistas para uma reconstrução da filosofia moral de Mill, pois aí se acha exposta com nitidez sua concepção acerca do ser humano, alicerce de sua ética. Embora nesta obra a felicidade desponte como o único fim da existência humana, nela Mil! aponta para outros ingredientes da felicidade, quais sejam, a liberdade e a 13 Cf Idem, ibidem, p. 51. No original: "It is bctter to be a human being dissatisfied, than a pig satisfied; bctter to bc a human bcing dissatisficd. that a fool satisfied. And if the fool or the pig are o f a difJcrent opinion, it is bccause thcy only know their own si de ofthe question." (Op. cil., p 333). 14 Mill, J. S. Sobre a liberdade, p. 54. No original: " I regard utility as the ultimate appeal on ali ethical qucstions; but it must be utility in the largest sensc, grounded on the permanent intcrests ofman as a progrcssive being'' (J.S. Mill, "On liberty'', p.
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individualidade. Também neste ensaio a peculiaridade de Mill frente aos utilitaristas que o precederam não se deixa ocultar: ela se mostra sobretudo no imenso valor atribuído à diversidade, à plenitude da vida, à espontaneidade, à singularidade do individuo e no desprezo que nutria pela mesquinhez, pela uniformidade, por tudo aqui lo que oprimia a criatividade, pela tirania da opinião pública, do costume, da autoridade. Mill enaltece a novidade, a dissidência, a independência, os pensadores que desafiam o estabelecido. Foi durante toda sua vida o defensor dos hereges, dos apóstatas e blasfemos, permanecendo seu comportamento em plena harmonia com seu pensamento. •~ Para Mill o ser humano se distingue dos animais não-humanos por sua capacidade de conceber fins, os quais podem ser buscados e realizados de múltiplas maneiras. Se existissem pílulas de felicidade, ou técnicas que proporcionassem às pessoas prazer duradouro, Mill não endossaria seu uso por considerá-lo degradante, indigno do ser humano. A felicidade para Mill nada tem a ver com um estado prazeroso de passividade, mas há de ser uma conquista humana, algo que só se alcança através das opções que são feitas ao longo da vida. Também no ensaio sobre o Utilitarismo há passagens que permitem afirmar que Mill não identificava a felicidade com o prazer ou com o prazer não qualificado. 16 Mill rompe de vez com o hedonismo vulgar que equiparava felicidade ao prazer tout court.
4. O nexo felicidade - justiça - liberdade Como ressalta Ana de Miguel Alvarez17, apoiando-se em Fred Berger e John 15
Cf Isaiah Berlin. Cuatro ensayos sobre la libertad. Madrid, Alianza Universidad, 1996 16 Mill escreve: " To give a clear view of the moral standard sct up by the thcory. much more requires to be said; in particular, what things it includes in the idcas of pain and pleasure, and to what extent this is left an open question" (J. S. Mill, " Utilitarianism", p. 330). Traduzindo: "Para se oferecer uma idéia clara do critério moral que esta teoria estabelece é necessário q ue se indique muito mais: em especial que coisas inclui nas idéias de dor e de prazer e em que medida é esta uma questão a ser debatida." (C/ J. S. Mill, E! Utilitarismo, p. 47). Parece claro, como sublinha Berger, que se Mill pretendesse identificar a felicidade com o prazer não assinalaria a necessidade de que se "indique muito mais" a este respeito. Cf. Berger, op. cit., pp. 37-38. 17 Cf Ana de Miguel Alvarez, op. cit., p. 30. Bergcr escreve:" human happiness is not an open concept in the sense that it consists of plcasures completely unspecified. Milrs concept ofhappiness is partly determinate in the sense that there are particu-
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Gray - a obra conjunta de Mil! apresenta um conceito de felicidade unificado e consistente, que é não-hedonista, plural e hierárquico. A felicidade de que fala Mill não é hedonista no sentido de que valorize qualquer tipo de prazer; por outro lado, dai não se segue que seja anti-hedonista. Se a felicidade não é um simples agregado de prazeres, ela não se encontra na ausência de prazer ou na presença de dor. Trata-se outrossim de um conceito plural e hierárquico, no sentido de a felicidade - como diz Mil! - ser um todo concreto que se compõe de diferentes partes ou elementos. Mil! não chega a apresentar uma lista com todos estes componentes; há que se percorrer sua obra a fim de encontrá-los. Cumpre notar que tais elementos não possuem todos o mesmo grau na hierarquia. Alguns são considerados por Mil! mais valiosos do que outros para a conquista da felicidade. Para Berger, o conceito de felicidade é em parte aberto, em parte fechado. Está parcialmente fechado, na medida em que determinados elementos são um requisito da felicidade, não sendo, pois, negociáveis; acha-se parcialmente aberto porque há um número indeterminado de coisas que podem chegar a formar parte da felicidade de cada pessoa. Os elementos ou condições necessárias da felicidade humana seriam a autonomia ou liberdade e a segurança. A liberdade está relacionada com a dignidade pessoal e com o direito que uma pessoa tem de plasmar e desenvolver seu projeto de vida; a segurança tem a ver com a necessidade de podermos confiar nas expectativas erguidas; nós nos sentiríamos inseguros se não pudéssemos confiar nos outros, na palavra empenhada, nas promessas e acordos tácitos; o interesse em segurança é às vezes qualificado por Mil! como o mais vital : "nenhum ser humano pode prescindir de segurança." 18 Se tais condições são indispensáveis para a felicidade, então esta não se concebe sem uma teoria da justiça que eleve à categoria de direitos humanos ou direitos morais exatamente aqueles requisitos na ausência dos quais a felicidade não passaria de uma quimera. Para Mill existe uma relação íntima enlar elements requisite to it. It is partially open in the sense that an indeterminate number ofthings can come to be seen as elements in a person's happiness. Human well-being- given human capacities - rcquires some particular elements, and may come to require many others which cannot be specified ahead of time. (Recall that in the paragraph in which Mill first described the Greatest Happiness Principie, he indicated that to some extent what is included 'in the ideas of pain and plcausre' is left 'an open question')". (F. Berger, op. cit., pp. 39-40). Para J. Gray "Mill's conception o f happiness was avowedly indi vidualist and pluralist. According to Mill, each man possesses a quiddity or peculiar endowment, the development of which is indispensable to his happiness". (Gray, J. Mil/ on liberty: a defence, p. 45). •s Cf J. S. Mill, E/utilitarismo, p. 118. " ( ...) security no human being can possibly do without" (J. S. Mill "Utilitarianism", p. 385).
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tre felicidade, liberdade, virtude e justiça. Felicidade permanece um ideal, inalcançável sem liberdade ou sem justiça. No último capítulo do ensaio sobre o Utilitarismo Mill situa a felicidade em um patamar acima da justiça; seu intuito todavia não foi o de anular ou amesquinhar a justiça, mas o de elucidar a ordem de razões. A promoção da justiça se afiguraria, pois, destituída de uma razão de ser e insuscetível de ser entendida como algo imprescindível para a vida humana, estivesse ela desvinculada da busca de uma sociedade melhor e mais feliz. Nesse sentido, segundo Mill, é a felicidade que torna inteligível e exigível todo esforço para se dar realidade ao ideal de justiça.
5. Liberdade e individualidade como ingredientes da felicidade Obra esclarecedora, porém, não menos polêmica para se aceder ao conceito milleano de felicidade é o ensaio On Liberty, sobretudo o capítulo Ill que tem como título ''Da individualidade como um dos elementos do bem-estar." É no mínimo ousada a pretensão de Mill de que sua radical defesa da liberdade e da individualidade possa se estribar em seu Utilitarismo. Que a afirmação da individualidade e a promoção da liberdade tenham como conseqUência um incremento de felicidade coletiva é uma das teses de Mill que ainda enfrentam grande resistência, a despeito do empenho dos estudiosos em convencer os críticos do contráriQ. Em apoio a Mill, pode~se dizer que não convém obscurecer o fato de que tanto o desenvolvimento da individualidade como a defesa das liberdades despontam como exigências de sua peculiar concepção de felicidade. De acordo com Mill, ela é certamente inacessível a indivíduos fracos, desprovidos de vontade própria, que se limitam a seguir costumes e tradições, a reproduzir as opiniões majoritárias. Para Mill, as concepções hegemônicas exercem sua tirania sobre os indivíduos, que precisam mantê-las sob controle sob pena de se verem asfixiados por elas. Onde a norma de conduta não é o próprio caráter da pessoa, mas as tradições e costumes alheios, aí está faltando um dos principais ingredientes da felicidade humana, e, certamente, o principal ingrediente do progresso individual e social. 19
,Mas, afinal, que individualidade é essa, de que fala Mill, como um dos 19 Mill, J. S. "On Liberty'', p. 250:" Where, not the person's own character, but the traditions or customs of other pcople are the rui c of conduct, there is wanting one of the principal ingredients of human happiness, and quite the chie f ingredient o f individual and social progress."
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elementos do bem-estar? E que liberdades ele considera imperioso proteger? A individualidade é o contrário da passividade e da submissão; ela é atividade, energia. Não é portanto algo dado, com o qual já se nasce, mas uma conquista, que supõe esforço e desenvolvimento de um "caráter ativo."2tl Outros elementos constitutivos da individualidade são a autodeterminação e o autodesenvolvimento. Autodeterminação quer dizer autonomia, capacidade de escolha entre modos alternativos de vida, que envolve também a capacidade de uma pessoa projetar e dar realidade ao seu próprio plano de vida. Mil! considera obviamente que a autodeterminação não está à altura de crianças e de deficientes mentais, posto que requer o desenvolvimento das capacidades mais elevadas do ser hum ano. A individualidade conclama à audácia de se pensar e agir por conta própria. Para Mill o ma is grave na tirania exercida pela opinião majoritária não é tanto o fato de as individualidades serem esmagadas, mas o de as pessoas se mostrarem satisfeitas dentro de um tal cárcere. A força da censura para modelar as personalidades é poderosa, sendo dificil sua demolição. A despeito da pouca importância que se dá à individualidade como autodeterminação, para Mill ela é uma das fontes d e progresso humano.21 Ao lado da autodeterminação, a individualidade, como a entende Mill, requer o desenvolvimento das potencialidades individuais. Todavia, nem sempre Mill se defme claramente no que respeita ao ponto "autodesenvolvimento." A questão para a qual parece não haver uma resposta inequívoca nos textos é a de saber se existe uma direção a ser privilegiada pelo desenvolvimento individual ou se Mill estaria disposto a valorizar qual-
°
2 Cf Ana de Miguel Alvarez. Cómo leer a John Stuart MUI, p. 71. Cf Mill "On Liberty", p. 252. 21 Cf Idem, ibidem, p. 73. Alvarez rebate as acusações de que Mill identifica a individualidade com excentricidade c genialidade e a de que e le sustenta uma concepção clitista da individualidade, a qual faria exigências excessivas ao indivíduo comum. Reconhece que Mill concede espaço à excentricidade e à genialidade de alguns, que atuariam como urna espécie de compensação ao acomodamento c ao bem-estar medíocre da maioria. Todavia, isso não significa que todos os indivíduos devam ser excêntricos, geniais ou inconformistas. Mi 11 entende que é preciso que se criem condições para que as individualidades possam allorar; trata-se de um requisito destinado a possibilitar a emergência de caracteres notáveis ou originais. Para Mill o importante não é querer ser original pelo simples prazer de ser diferente, de se remar contra a corrente. O importante para Mill é que as pessoas sejam capazes de fazer autênticas opções; no caso de se acolherem crenças ou valores correntes, o fundamental é que eles sejam acolhidos criticamente, conhecendo-lhe os fundamentos. Cf Idem, ibidem, pp. 72-73.
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quer perfil que resulte do desenvolvimento pessoal, contanto que tal perfil emerja da autodeterminação. De um lado, levando-se em conta que o autor tem uma concepção exigente do que vem a ser a felicidade humana, salientando que esta não se confunde com quaisquer prazeres, mas supõe a gratificação das faculdades elevadas, ele não pode ser indiferente à substância que se queira dar ao desenvolvimento individual. Parece mais compatível com a concepção de felicidade milleana supor que há um modelo a ser seguido, um padrão para se ajuizar o grau de desenvolvimento ou a excelência de uma forma de vida. Há todavia passagens que fazem supor o contrário, ou seja, que o desenvolvimento individual de que fala Mill é incompatível com modelos pré-fixados. Vejamos, por exemplo, a seguinte passagem: Supondo-se obter que máquinas - autômatos com forma humana - construíssem as casas, cultivassem o trigo, pelejassem as batalhas, processassem as causas, erigissem as igrejas, fizessem as orações, muito se perderia em trocar por elas mesmo os homens e as mulheres que habitam, hoje, as partes mais civilizadas do mundo, e que são, seguramente tão-só miseráveis espécimes do que a natureza é capaz de produzir e produzirá. A natureza humana não é uma máquina a ser construída segundo modelo, e destinada a realizar exatamente a tarefa a ela prescrita, e sim uma árvore que necessita crescer e desenvolver-se de todos os lados, na conformidade da tendência das forças internas que a tornam uma coisa viva.22
Mil! parece valorizar o caráter enérgico, que defende sua individualidade como diferença. Contrapõe o caráter ativo ao passivo e considera a posse de impulsos enérgicos como desejável em si m esmo. Não é porque sejam fortes os desejos que os homens agem mal, e sim porque as consciências são fracas. Não há conexão natural entre o impulso forte e a consciência fraca ( ...). A energia pode voltar-se para maus usos, pode-se sempre, contudo, praticar maior bem com uma natureza enérgica do que com uma indolente e impassíve1. 23
Cabe, portanto, à sociedade não apenas tolerar, mas fomentar a diversidade de modos de vida. O indivíduo deve ser o soberano absoluto sobre seu destino, desde que não ocasione dano a terceiros. O pensamento de Mill acerca do valor da individualidade permanece todavia, impregnado de uma tensão: de um lado, parece ser indiferente a 22
23
J. S. Mill, Sobre a Liberdade, p. IOI. J.S. Mill, idem, ibidem.
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direção tomada pelo desenvolvimento humano; desde que resulte da autodeterminação e não fira interesses alheios, a afirmação da individualidade é sempre desejável. De outro lado, sua adesão ao utilitarismo o compromete com valores morais, tais como nobreza de caráter e virtude. Não resulta claro como se há de harmonizar ambos os apelos com os recursos teóricos colocados à disposição pela filosofia,m illeana. Mm pretende fundar seu liberalismo sobre os alicerces de seu utilitarismo. Recusa explicitamente qualquer apelo a direitos naturais e a um contrato social. Daí seu interesse em mostrar que as liberdades individuais, que seu Princípio de Liberdade deve proteger, favorecem o bem-estar social e são úteis, portanto, à felicidade coletiva, só podendo sofrer restrição se causarem dano a terceiros. O Princípio de Liberdade tem a função precípua de subsidiar a decidibilidade sobre que classes de ação podem permanecer sujeitas ao controle legal e/ou moral da sociedade e quais as que concernem exclusivamente ao indivíduo, devendo este guardar a soberania sobre elas. O Principio estatui que somente aquelas ações que causem dano a terceiros podem ser sancionadas. A única razão justificadora de uma restrição da liberdade individual é a prevenção do dano a outrem. A promoção do bem-estar ou felicidade, ainda que para um grande número de indivíduos, assim como a prevenção de um dano ao próprio agente, não constituem razões que justifiquem uma restrição da li herdade. 24 No capítulo V de On Liberty, Mill escreve que ( ...) o indivíduo não responde perante a sociedade pelas ações que não digam respeito aos interesses de ninguém a não ser dele próprio ( ...). ( ...) por aquelas ações prejudiciais aos interesses alheios o indivíduo é responsável, e pode ser sujeito à punição social ou legal, se a sociedade for de opinião que uma ou outra é requerida para sua proteção. 25
24
Em "On Libcrty." Mill escreve que "the sole end for which mankind are warranted, individually or collcctivcly, in interfering with the liberty o f action of any of their numbcr, is self-protection. That the only purpose for which powcr can be rightfully exercised over any member of a civilised community, against his will, is to prevent harm to othcrs. His own good, either physical of moral, is not a sufficient warrant", p. 197. 2 s Mill, J. S. Sobre a liberdade, p. 137. (trad. minha). No original lê-se: "The maxims are, first, that the individual is not accountable to society for his actions, in so fàr as thesc concem the intercsts of no person but himself. ( ...). Secondly, that for such actions as are prejudicial to the intcrests of others, the individual is account-
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O alcance do Princípio de Liberdade depende, ao que parece, do conceito de dano, que, por sua vez, procede do conceito de interesse legítimo. Uma ação proscrita pelo Princípio de Liberdade é, pois, aquela que causa dano a terceiros por ferir seus interesses legítimos. A definição do que venha a ser interesse legítimo não é, obviamente, neutra, mas supõe algumas opções. Mill repudia tanto o moralismo como o paternalismo na determinação dos interesses a serem protegidos, dado que tais posturas implicariam um intolerável cerceamento das liberdades individuais. Por conseguinte, Mill não inclui a ofensa como ação que fira interesses legítimos de uma pessoa - como quer o moralismo. Noutros termos, ninguém que se sinta indignado, escandalizado ou ofendido com o posicionamento político, religioso ou com o comportamento de terceiros pode alegar que teve seus interesses legítimos violados. Recusa também o paternalismo, vale dizer, não endossa o cerceamento da liberdade de urna pessoa, com o intuito de protegê-la contra si própria, ou qualquer restrição de sua liberdade em nome de um suposto bem que viria ao encontro de seus interesses. Como Mi ll, por outro lado, recusa o apelo ao jusnaturalismo26 para dar legitimidade a interesses e, dado que considera a Utilidade o princípio axiológico supremo de sua filosofia prática, é este princípio que deverá balizar a noção de interesse legítimo. Que uma defesa da liberdade seja compatível com o Utilitarismo ou possa ser fundada sobre premissas utilitárias é uma das teses mais questionadas na literatura. John Gray defende a pretensão milleana de fundar o Princípio de Liberdade no âmbito de seu utilitarismo, fazendo valer que a valorização milleana da liberdade individual está em perfeita consonância com seu hedonismo qualitativo. Argumenta ainda que o argumento de On liberty só pode ser devidamente avaliado em conexão com a defesa da justiça e dos direitos morais empreendida por Mil! no último capítulo de seu ensaio sobre o Utilitarismo. 27 6. Felicidade e virtude Se o desenvolvimento da individualidade é um dos ingredientes da felicidade able, and may be subjected cither to social or to legal punishments, if society is of opinion that one or thc other is requisite for its protection". p. 294. 26 Cf J. S. Mill "On Liberty" onde se lê: ''lt is proper to state that I forcgo any advantage which could be derivcd to my argument from the idea of abstract right, as a thing indepcndent of utility. I regard utility as the ultimate appeal on ali cthical qucstions", p. 198. 27 C/ John Gray, Mil/ on liberty: a def ence, pp. !Oss.
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humana - como Mill afirma em On Liberty - não menos importante parece ser o cultivo da virtude. Entende por virtude o interesse pelo bem público, o empenho de uma pessoa em favor dos interesses alheios. O cultivo da virtude pode até não tomar mais feliz o agente que a cultiva, mas certamente serão mais felizes os que tiverem o privilégio de conviver com pessoas virtuosas. Nesse sentido, a virtude é elemento constitutivo da felicidade humana, sendo requerida para a produção da maior felicidade do maior número. Em várias passagens, Mill reitera que o egoísmo é uma das principais causas de infortúnio. Pessoas voltadas para si próprias, despreocupadas com a sorte dos demais, costumam ser infelizes, ainda que acumulem posses. Na ausência de desvelo para com os demais, dificilmente uma pessoa pode ser genuinamente feliz. O interesse pelos outros, a solidariedade, a preocupação com o bemcomum, são verdadeiras fontes de felicidade. Não passa de preconceito a idéia de que o utilitarismo é incompatível com a virtude. Em nossa tradição ocidental, a idéia de virtude costuma ser associada às idéias de ascese, de renúncia, de sacrificio. O altruísmo, a virtude são concebidos como autocontrole, domínio da natureza animal, sacrifício dos instintos e dos desejos. Essa é a razão de ser tão arraigada a idéia de que o utilitarismo não contempla adequadamente a moralidade, que a virtude não cabe dentro do utilitarismo, sendo este o outro da justiça, da virtude, da dignidade humana 28• A suposta incompatibilidade entre virtude e utilitarismo tem sua raiz no fato de que na tradição a vida moral tem sido sempre associada a certo grau de abstinência, renúncia, sacrifício. Ademais, como que para fomentar a tese de que o utilitarismo seria avesso à virtude, Bentham recusa explicitamente a moral ascética. E John Stuart Mill não poupa críticas ao Calvinismo, bem como a todas as religiões e cosmovisões que exaltam uma visão mutilada do ser humano. Como o conceito de virtude sempre esteve ligado à ascese, o Utilitarismo prontamente adquiriu a imagem de ser contrário à virtude e favorável a uma vida devassa, aspecto que os críticos do Utilitarismo têm se empenhado em promover. Os equívocos de interpretação que envolvem a doutrina utilitarista existem desde sempre. Há muito que os utilitaristas precisaram se defender contra mal-entendidos, involuntários ou não. Mill se perguntava: será que a doutrina utilitarista nega que as pessoas desejem a virtude ou sustenta que ela não é desejável?29 É claro que não. O Utilitarismo não apenas afirma a 23 Cf a respeito a interessante a análise de J. M. Bermudo. Eficacia y Justicia. Possibi/idad de un utilitarismo moral, p. 204. 29 Cf. J. S. Mill, E/ Utilitarismo, p. 91
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desejabilidade da virtude, mas exige que ela seja desejada desinteressadamente. Mill faz uma apologia da virtude, atribui-lhe até mesmo valor intrínseco. Concebe a felicidade como um complexo agregado de partes, sendo cada uma delas desejável por si mesma. A virtude faz parte da felicidade, é um ingrediente da mesma. Quem duvida disso é porque ou bem confunde felicidade e contentamento, ou não compreende que a virtude possa gerar felicidade e até prazer; tal incompreensão está certamente associada ao preconceito que produz identificação entre virtude e ascese. Para Mill, Se pode haver alguma dúvida possível acerca de que uma pessoa nobre possa ser mais feliz em razão de sua nobreza, o que não pode ser posto em dúvida é o fato de que toma mais felizes aos demais e que o mundo em geral ganha imensamente com isso." 30
A razão da maior idoneidade dos prazeres elevados reside no fato de que a utilidade não é um critério egoísta que prescreva a máxima felicidade do próprio agente, porém, a máxima felicidade para o maior número. Mill passa a declarar abertamente que o Utilitarismo só poderá alcançar seus objetivos mediante o cultivo geral da nobreza das pessoas. Opõe-se, todavia, àqueles que afirmam que a virtude, enquanto ascese, renúncia, é em si mesma o fim mais nobre da vida humana; àqueles que consideram o ser humano imerecedor da felicidade, ou que entendem ser a renúncia a ela o ponto de partida ou a condição necessária para uma vida virtuosa. Mill busca demonstrar a suposta irracionalidade desta postura recorrendo a um caso extremo: o sacriflcio dos heróis e dos mártires. O comportamento de quem sacrifica sua vida lutando por mudar uma sociedade injusta é a "maior virtude, que pode ser encontrada em um ser humano."31 Todavia, um sacriflcio desta grandeza somente se toma compreensível e racionalmente defensável, quando suportado para evitar que outros tenham que passar pelo mesmo. Neste sentido, pode-se dizer que não é um fim em si mesmo, senão um meio para melhorar o mundo, em última instância, para que as pessoas sejam ou possam cbegar a ser mais felizes. Mill afirm a que "quem faz isso ou afirma fazê-lo com alguma outra finalidade não merece mais admiração que o asceta alçado em seu pedestal.'.n A utopia milleana- para dizer com E. Guisán- inclui o sonho de que os 30
Mill. J..S .. op. cil., p. 53. Idem. ibidem, p. 61. JZ Idem, ibidem, p. 60.
31
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indivíduos alcançarão um dia um patamar tão elevado que seu interesse pessoal coincidirá com o bem alheio, e a preocupação de cada um para com o bem dos demais chegará a ser tão espontânea como o é a de atender às necessidades físicas mais prementes da vida. 33
7. A justiça como ingrediente da felicidade No que tange a este ponto permitir-me-ei ser breve, pois tratei alhures34 das relações entre justiça e utilidade sob a ótica milleana. A despeito das notórias dificuldades enfrentadas pelo Utilitarismo em conciliar as demandas por justiça com aquelas ditadas pelo Princípio da maior felicidade, John Stuart Mill não pode ser acusado de insensibilidade com relação ao problema. Ele demonstra conhecer as objeções ao Utilitarismo feitas a partir do horizonte da justiça e busca oferecer-lhes uma resposta no âmbito de seu utilitarismo. Suas análises contidas no ensaio ''Utilitarianism" visam mostrar que a Utilidade é a "ratio", o fundamento, que dá sentido e legitimidade às demandas por justiça. Considera que o termo 'justiça" é ambíguo, obscuro e, portanto, insuficiente para orientar nossas decisões. Tais dificuldades só seriam sanadas se recorrêssemos ao conceito de utilidade. Aquelas objeções tradicionais, como a de que o utilitarismo justificaria o castigo de inocentes, a de que ele seria compatível com um Estado totalitário e supressor dos direitos e garantias individuais, se assim exigir a felicidade do maior número, são rechaçadas por Mill. Seu conceito de felicidade exclui um Estado totalitário que viole as liberdades e desrespeite o bem-estar de minorias em nome de um suposto beneficio para as maiorias. Nada mais distante de Mill que um utilitarismo que transigisse em questões de justiça ou permitisse um tratamento leviano dos chamados direitos morais; ademais, suas reflexões têm o condão de sugerir que a justiça não pode ser insensível às exigências derivadas da utilidade; a despeito disso e, não obstante o empenho de Mill em mostrar a compatibilidade entre justiça e utilidade, bem como a subordinação daquela a esta, parece que justiça e utilidade, se não são conceitos antagônicos, são parcialmente distintos: justiça parece ter a ver com o bem de cada um, enquanto a utilidade se refere ao bem entendido coletivamente. Destarte, a tese milleana da subsunção da justiça sob a utilidade não resiste a um exame 33
C/ Esperanza Guisán, Jntroducción a la ética, p. 157. Cf M. C. M. de Carvalho, " John Stu.art Mill acerca das relações entre justiça e utilidade." Comunicação apresentada na Mesa-Redonda sobre "Justiça, Utilitarismo e Política" no 1° Simpósio Internacional sobre a Justiça, realizado em Florianópolis no período de 18 a 22 de agosto de 1997, inédita. 34
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mais acurado, do que resulta continuar sendo a demanda por justiça a pedra de toque das éticas utilitaristas e um dos grandes desafios a serem ainda enfrentados por este modelo de investigação ética.
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mcccilia@zeus.puccamp.br
"DE RERUM NATURA": OBSERVAÇÕES SOBRE A MORAL EPICURISTA E ALGUNS DESDOBRAMENTOS RITA DE CÁSSIA L ANA
Mestranda em Filosofia na PUC-Campinas
Apresentarei neste trabalho uma pesquisa sobre algumas noções que estão presentes em dois autores, Tito Lucrécio Caro e David Hume, e que parecem ser de importância para compreendermos algumas características que estão embutidas nos problemas morais, como por exemplo, que princípios estão pressupostos em urna teoria ética, ou por que deve existir fundamento teórico válido para que se possa extrair obrigação moral para determinadas ações e comportamentos sociais. A relevância de se recuperar um texto clássico em suas peculiaridades lingüísticas e conjunturais está na possibilidade de examinar fontes filosóficas que serviram a outras vertentes teóricas posteriores; pois, ao apreciarmos o deslocamento de alguns conceitos que ocorreu entre a antigüidade clássica e o século xvm, poderemos observar o que se preservou e o que foi descartado, se ficaram intactos os pressupostos teóricos, ou qual alteração sofreram. Isto nos permite compreender melhor o naturalismo e o empirismo da Idade Moderna e, em última análise, nossos próprios problemas contemporâneos, já que constantemente utilizamos conceitos extraídos de correntes filosóficas do passado para embasar as atuais teorias do conhecimento. Considero, pois, que a partir do texto lucreciano estabelecido por Ernout (responsável pela versão erudita do texto, usada em estudos acadêmicos), pode-se realizar um exame de alguns conceitos fundamentais para a moral epicurista, buscando problematizar, em um segundo momento, a apropriação que o empirismo inglês 1 logrou sobre esse corpo teórico; a questão que permanece como pano de fundo desse estudo é o problema da possibilidade de atingir um conhecimento confiável e passível de ser demonstrado. Esta consideração sobre os fundamentos do conhecimento é bastante I Para essa finalidade e dado o espaço restrito desta monografia, limitei o estudo apenas a David Hume, o que não invalida a proposição do trabalho, dada a representatividade e influência das teses desse autor. Mortari, C. A. & Dutra, L H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 211-21.
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atual, e a única pretensão do presente texto é resgatar posições teóricas dos autores que venham elucidar o caminho percorrido em direção ao ceticismo e suas conseqüências para uma teoria moral. I. Sobre a noção de útil e moral no "De Rerum Natura"
O epicurismo, embora seja uma corrente filosófica nascida na antigüidade greco-latina, provou e tem provado ser um corpo de idéias de notável fecundidade conceitual e longevidade. E, por séculos, muitos dos preceitos hedonistas e das idéias defendidas no Jardim têm alimentado o intelecto de outros pensadores, e até mesmo servido como ponto de partida para novas investigações filosóficas. No entanto, em virtude das contingências históricas, muito pouco restou em termos de material escrito pelos fundadores do epicurismo, que tenha chegado até nossos dias. Do próprio Epicuro, nada além de cartas, algumas de autoria duvidosa, e aforismos registrados por seus discípulos. Se há algum escrito comprovadamente fidedigno e que se constitua em corpus doutrinário de razoável extensão, é a obra de Tito Lucrécio Caro, o "De Rerum Natura." Trata-se de um longo poema, composto de seis livros que abrangem os principais aspectos do pensamento epicurista: a física, a canônica e a ética. O texto estabelecido na edição erudita de Alfred Emout2, se apoia nos manuscritos de Leyden (Oblongus e Quadratus), do século LX, nos fragmentos de Viena e Copenhague e nos manuscritos italianos; essas cópias medievais, segundo pesquisas de estudiosos do assunto, derivam de um suposto manuscrito em latim vulgar, aproximadamente do século VIl d.C. Por sua vez, este seria uma cópia de um manuscrito em maiúsculas, que supõe-se ter sido feita no século IV ou V d.C. Apesar de lacunas no texto, do extravio de algumas partes do poema, da repetição de versos feita pelo descuido de alguns copistas e da ausência de revisão, sabe-se que esta obra atravessou os séculos relativamente incólume, em comparação com o destino que atingiu outros importantes manuscritos clássicos. De fato, Ernout chega a compará-la aos mais célebres manuscritos em minúsculas, como o Mediceus, de Virgílio, ou o Ambrosianus, de Plauto. Pouco se sabe sobre a vida de Lucrécio, e nada se afirma com certeza; a suposta doença mental da qual padecia, o suicídio presumido, as confusões acerca das iniciais de seu nome com as de um cônsul romano, tudo isso são apenas conjecturas; de concreto, apenas seu poema e o comentário que Cíce2 Ernout. A. De La Natw·e. Cf bibliografia deste trabalho.
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rol enviou a seu irmão sobre a obra, observando a arte e o espírito que brotavam do texto. Supõe-se, pelo tria nomine do autor, que fosse patrício; no entanto, ainda que esses dados biográficos sejam pouêo exatos, a importância da obra transcende a questão da informação sobre a autoria; e o impacto das idéias contidas em seu bojo é o que nos interessa. Em conformidade com Epicuro, a quem elogia por diversas vezes ao longo do poema, Lucrécio vê na filosofia um objetivo central: libertar o homem de seus temores e superstições, conduzindo-o a uma serenidade intelectual e espiritual4 que superaria as vicissitudes da vida humana. Este t eÃ.oÇ (telos) do epicurista ressalta que o valor da filosofia repousa no que ela tem de útil. Oferecer respostas aos problemas que afligem os homens no cotidiano, prescindir daquilo que provoque o agitar das paixões e ambições humanas, suportar os infortúnios apoiado na amizade de outros homens que também busquem essa finalidade, eis o que propõe Lucrécio a Mêmio. É verdade que há uma versão rasteira das teses de Epicuro, que enfatiza os prazeres sensuais e que constitui a face mais difundida do hedonismo; raramente se encontra uma crítica que ultrapasse essa casca externa da teoria e procure discutir as normas de bem viver com sobriedade de recursos, preconizada pelos hedonistas da antigüidade. Mas a pretensão aqui é ir além desse senso comum sobre o hedonismo, e explorar algumas categorias que embasam essa noção de utilidade, qual seja, aquela que Lucrécio assume. Assim, para convencer Mêmio (e o leitor do poema) das teses epicuristas, Lucrécio apresenta sua compreensão de como funcionam a natureza e o universo, em outras palavras, sua fisica. Nessa cosmologia de Lucrécio, a sua versão do atomismo é apresentada como modelo explicativo para a existência de tudo que há no universo, para o surgimento dos corpos mais simples e mais complexos que formam a natureza. Tudo que existe é formado por partículas indivisíveis, que se agregam e se separam, constituindo o universo. Nada acontece pela vontade dos deuses, mas apenas por efeito de forças naturais; para Lucrécio, os deuses existem, mas habitam os intermundos e são completamente alheios aos homens e ao que ocoiTe na natureza. 3 "Lucreti poemata, ut scribis, ita sunt ..." Cícero, Marco Túlio, apud Emout, A. De La Nature. lntroduction. p. lX, opus cit. 4 Trata-se da noção de ataraxia, o estado em que se encontraria o sábio após terem cessado as agitações do espírito causadas pelas preocupações mundanas.
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A vida humana é produto da combinação de átomos, que formam tanto a alma quanto o corpo, e que se degeneram, destruindo a ambos; assim, nada há após a morte, que é apenas o desagregar atômico do corpo e do espírito, retornando ao mesmo estado de pré-nascimento. E da mesma forma, tudo que existe no universo. Daí a completa inutilidade da religião, que apenas induziria o homem ao temor e à superstição, o que significa conduzir ao afastamento da verdade, ao erro; pois se a causa dos fenômenos naturais independe de qualquer entidade metafisica, a crença nos deuses não tem utilidade alguma para auxiliar os indivíduos em sua luta pela manutenção da existência. E também está aí a certeza de que o mundo que conhecemos está fadado a desaparecer, destruído por esse movimento incessante dos átomos, que tendem a se degenerar. Encontramos aqui um primeiro ponto de sustentação da ética epicurista. Se a vida se reduz ao que conhecemos durante nossa permanência no mundo, se após a morte nada subsiste a lém de átomos, o sentido da vida não pode estar senão na existência material. Lucrécio não chega a dizer que não há uma causa última no universo; o que ele recusa é a possibilidade de existir uma causa final para a humanidade. Ele assim se expressa sobre o assunto: Imaginar que o interesse dos mortais guiou os deuses na criação do mundo, ao que parece, é desviar-se para bem longe da verdade. Eu, mesmo que ignorasse quais são os princípios das coisas, ousaria contudo, pelo simples estudo dos fenômenos celestes e sobre outros fatos ainda, sustentar e demonstrar que o mundo não foi feito em absoluto para nós por urna vontade divina: tanto se apresenta corrompido por defeitos. 5
Nesse trecho, Lucrécio nos dá o exemplo da via pela qual podemos conhecer verdadeiramente as coisas: a observação escorada pelo intelecto e pela doutrina epicurista. E para explicar o surgimento do universo, Lucrécio oferece a noção de acaso. Quanto à questão da liberdade em Lucrécio, ela está atrelada a uma identificação entre acaso e necessidade. Conforme a explicação lucreciana, a 5 "Quorum ominia causa constituísse deos cum fingunt, ominibu rebus magno opere a uera lapsi ratione uidentur. Nam quarnuis rerum ignorem primordia quae sint, hoc tamem ex isis caeli/rationibus ausim confirmare, aliisque ex rebus reddere multis, nequaquam nobis diuinitus esse creatam naturam mundi: tanta stat praedita culpa." Lucrécio, De Rerum Natura. Livro ll, versos 174-181. Cf. bibliografia.
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forma pela qual acontecem os movimentos dos átomos explica também os movimentos de todos os corpos. O poeta explica que se os átomos não se desviassem 6 ligeiramente em sua trajetória ao cair, não se dariam os choques que produzem tudo que existe no universo; conseqüentemente, trata-se de um movimento necessário para explicar a existência do mundo e de tudo que há nele. No entanto, Lucrécio afirma que esse movimento é fruto do acaso, estabelecendo essa identidade entre o que é aleatório e imprevisível e aquilo que não pode ser de outra forma, ou seja, há uma necessidade de que as coisas aconteçam na natureza por acaso. É sabido que, ao contrário de outras escolas filosóficas, os epicuristas desprezavam o conhecimento que não apresentasse utilidade prática; sabe-se inclusive que o próprio Epicuro não considerava ser necessário o aprendizado da matemática e da geometria se isto não resultasse em algo útil para o individuo solucionar seus problemas de sobrevivência e bem-estar. A pura especulação sem finalidade prática era desaconselhada pelo epicurismo. Lucrécio parece, então, desejar reabilitar os conhecimentos de física, atribuindo-lhes uma utilidade: dissipar os terrores religiosos e o medo da morte7 e fortalecer o homem moralmente perante as agruras da existência material. Distinguir a verdadeira causa dos fenômenos, compreendendo que nada é eterno, além dos átomos que compõem os corpos, e aceitar serenamente a existência material, buscando evitar a dor e alcançar a paz espiritual, eis a relação proposta por Lucrécio entre a física e a ética, que é marcadamente ~povecnÇ (phronesis), norma prática e prudencial para a vida humana. Parece que o mais interessante a observar nessa teoria é a associação, ou até mesmo a correspondência entre a Qoção de acaso e necessidade; o nexo entre causa e conseqllência é necessariamente causal; cabe aqui um parênteses para uma rápida lembrança sobre o que dirá Hume acerca do problema da relação causa e efeito: "É o costume e não outra coisa que leva os animais a inferir, de cada objeto que lhes impressiona os sentidos, seu acompanhante usual, e conduz sua ímâginação, pelo aspecto de um deles, a conceber o outro dessa maneira particular que denominamos crençd' (grifo do autor). 8 6 O chamado clinãmen, ou "declinação", que os átomos sofreriam em seu movimento no éter e que os levaria a se agregarem .. 7 Para Lucrécio, o temor da morte era um dos principais motivos que conduzia à agitação das paixões e da ambição, como forma de afirmar a vida face à ignorância das verdadeiras causas do universo. 8 Hume, O. Investigação sobre o Entendimento Humano. Seção IX, parágrafo 84. Cf bibliografia.
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Também cumpre lembrar que justamente essa noção de desvio ou declinação é o aspecto mais criticado da teoria Jucreciana, pois, de outra maneira, não haveria como explicar o surgimento do universo. Mas apesar dessas estreitas conexões entre a fisica e a ética, em alguns pontos de seu texto, o poeta deixou de explorar as conseqüências de suas proposições até o fim; o exemplo que utilizaremos aqui é o de como (na opinião de Lucrécio), nossos sentidos apreendem os fenômenos, e dos possíveis enganos a que estamos sujeitos por causa dessa maneira de perceber o mundo e seus acontecimentos. Lucrécio fala-nos a respeito dos simulacros (&tôoÃ.ov I eidolon), os quais se desprendem dos corpos e impressionam nossos sentidos; e explica como podem se chocar diferentes simulacros ou imagens, como surgem as ilusões de óptica, etc. No entanto, para ele, os sentidos não se enganavam; o erro era cometido pelo espírito9; não se podendo atribuír aos olhos, por exemplo, o erro cometido pelo intelecto. Essa afirmação abre uma lacuna na teoria do conhecimento lucreciana, para que os céticos critiquem sua explicação do mundo e dos fenômenos, pois se não há segurança na percepção advinda dos sentidos, nada se pode conhecer com certeza absoluta, o conhecimento não é algo passível de demonstração cabal. A isto Lucrécio respondia que se o cético dizia nada saber, então nem isso ele poderia afirmar, ou seja, se podia ou não saber, uma vez que afirmava nada saber. 10 Esta questão sobre a possibilidade do conhecimento confiável evoluiu desde então, e vamos encontrá-la no coração da filosofia empirista de Hume, que é nosso próximo ponto de análise neste trabalho. 2. Empirismo, ceticismo e ética Séculos mais tarde, David Hume fará sua apreciação das teses epicuristas; e embora tenha recuperado e ampliado o papel da utilidade para a moral, sua fundamentação é bastante diferente daquela de Lucrécio. Para Hume, o conhecimento pelos sentidos não é responsável pela produção de conhecimento confiável e livre de enganos. A experiência, para ele, não implicava na produção de exatidão ao conhecer, nem de um saber que pretenderia atingír o status de episteme. Segundo o autor, Parece evidente que, se todas as cenas da natureza fossem constantemente mudadas, de tal modo que não houvesse dois acontecimentos semelhantes 9 Lucrécio. op. cit. Livro IV, versos 380-386. I O Vide os versos citados na nota anterior, e também os versos 470-477.
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um ao outro, mas cada objeto fosse inteiramente novo, sem nenhuma parecença com o que quer que eu ti vesse visto antes, nunca chegaríamos a conceber a menor idéia de necessidade ou de uma conexão entre esses objetos. li
Certamente, se Hume desprezou a física e a canomca de Lucrécio, o mesmo não fez com os ensinamentos éticos dos epicuristas. Apesar de escrito um ensaio chamado "O Epicurista" 12, além de outros ensaios que se referem a doutrinas de escolas filosóficas greco-latinas, Hume é mais explícito sobre sua adesão à utilidade como critério moral em outra obra 13, " Uma investigação sobre os princípios da moral." A grande divergência entre Hume e modelos explicativos como o de Epicuro está colocada no terreno da fundamentação do conhecimento; para Hume, o campo da ética e a matéria moral não constituem objeto de escrutínio para o entendimento racional. Em seus "Ensaios Morais, Políticos e Literários", ele diz: "Os princípios morais não estão no mesmo caso que os princípios especulativos de qualquer espécie" (p. 326, Do Padrão do Gosto) 14 e completa: "A Moral e a Crítica são, propriamente, menos objetos de entendimento que de gosto e sentimento."ll De fato, ele se aplica a demonstrar por que razão não tem como levar a cabo a tarefa de buscar o melhoramento ético do homem ou fundamentar essa busca. A moral é matéria de sentimento e gosto, como ele já diz ao final da Investigação sobre o Entendimento Humano. 16 Hume coloca sua investigação sobre a moral no campo do empírico; é observando o comportamento dos homens, comparando os casos particulares e extraindo a partir disso regras gerais, que obteremos algum sucesso em produzir conhecimento no campo da ética. Ainda que na opinião do autor haja pouco mérito em se buscar princípios universais para a ética; como ele mesmo diz: "é inegavelmente muito pequeno o mérito de estabelecer em ética autênticos preceitos gerais. Quem recomenda quaisquer virtudes morais na realidade não faz mais do que o que está implicado nos próprios ter-
li Hume, O. Opus cit. , pág. 166, seção Vlll, parágrafo 64. l2 Cf bibliogra1ia ao final deste trabalho. !3 E cita muito vários epicuristas como exemplo. Vide a re ferência bibliográfica completa no final deste trabalho. 14 Humc. O. Cf bibliografia 15 Hume, David. Investigação sobre o Entendimento i lwnano. p. 202. 16 Idem. p. 202.
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mos.'' 17 Deve-se notar que esse conhecimento possui o estatuto de convicção, de verossimilhança; ou seja; acreditamos que é assim, mas não possuímos maneira de provar cabalmente. É bem conhecida a forma como Hume critica o princípio de indução e abala o edificio do conhecimento. Aqui aparece de forma explícita a divergência entre a teoria do conhecimento de Hume e as teses de Lucrécio, pois se para o último a identificação de acaso e necessidade eram condição sine qua non para o funcionamento da física epicurista, para o primeiro, nada garante sequer que possamos demonstrar a existência de causas efetivas. Assim diz Hume: ... nossa idéia de necessidade e causação provém inteiramente da uniformidade que se pode observar nas operações da natureza, onde objetos semelhantes aparecem constantemente juntos e o intelecto é levado pelo costume a inferir um deles do aparecimento do outro. Nestas duas circunstâncias consiste toda aquela necessidade que atribuímos à matéria. Além da conjunção constante de objetos similares e da conseqüente inferência de um a outro, não temos a menor noção de qualquer necessidade ou conexão. 18
Sua argumentação contra a maneira indutiva de tentar alcançar a verdade última sobre as coisas foi tão devastadora que acabou por conduzir o próprio autor a uma busca de condições para sustentar satisfatoriamente as teses morais que defendia. Não se deve desprezar, portanto, a própria contemporização que Hume
faz: E, contudo, devo confessar que esta enumeração coloca o assunto em uma perspectiva tão iluminadora que não posso, presentemente, estar mais seguro de qualquer verdade à qual chego pelo raciocínio e pela argumentação do que o estou sobre o fato de que o mérito pessoal consiste inteiramente no caráter útil ou agradável das qualidades, seja para a pessoa que as possui, seja para os outros que têm algum relacionamento com ela. Mas quando reflito que, embora se tenha medido e delineado o tamanho e a forma da Terra, explicado os movimentos das marés, submetido a ordem e a organização dos corpos celestiais a leis que lhe são peculiares, e reduzido o próprio infinito a um cálculo, ainda persistem as disputas entre os homens relativas ao fundamento de seus deveres morais; quando considero isto, eu dizia, volto a cair na des17 l·lume, D. Ensaios Morais, Políticos e Literários. p. 318. 18 Hume, D. Opus cit. , p. 166, seção VUI, parágrafo 64. Grifo do autor.
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confiança e no ceticismo, e a suspeitar que, se fosse verdadeira esta hipótese tão óbvia, ela teria jâ hâ muito tempo recebido o sufrágio e a aceitação unânimes da humanidade.t9
Tentando salvaguardar um mínimo racional para o campo da ética, propõe que os sentimentos e o gosto sejam auxiliados pela razão para decidir problemas morais; para tanto, Hume se reporta a diversos autores da antigUidade clássica além de Lucrécio. 3. Conclusão Na introdução deste trabalho, propusemos um resgate do percurso filosófico sobre alguns conceitos próprios da corrente epicurista, e sobre como Hume apropriou-se da noção de utilidade para critério moral, descartando com seu empirismo e ceticismo a física e a canônica próprias de Epicuro e Lucrécio. Portanto, em primeiro lugar, note-se que dados todos os avanços tecnológico-científicos contemporâneos, muito pouco da física e da canônica lucredana resistem; já à época de Hume era assim, e hoje apenas os preceitos éticos, em sua sabedoria prática é que sobrevivem, talvez porque respondam a questões centrais para a humanidade. Nesse sentido, não causa estranheza que tenha sido justamente a ética tão fecunda; os avanços tecnológico-científicos que derrubaram as idéias de Epicuro e Lucrécio sobre como entender o universo foram incapazes de responder a questões como: o que é viver bem? Qual é o sentido da existência humana? Quais são os deveres do homem? Estas questões acompanham a humanidade deste tempos imemoriais e há uma resposta positiva para elas em Lucrécio; podemos discordar da resposta, mas não podemos negar que ela exista. Esta resposta é o epicurismo, conforme já foi descrito neste trabalho. Em segundo lugar, quanto à fundamentação, o não-cognitivismo, em que pesem todos os desdobramentos que possam advir dele, não tem nenhum efeito mais devastador do que sobre a ética, pois se tudo é opinião (????) e hábito em matéria de moral, mesmo a tentativa de socorro que Hum e intenta não constitui base suficiente para sustentar uma ética utilitarista, ou qualquer outra ética que tenha pretensões de validade universal, pois a própria possibilidade de um conhecimento confiável está em jogo, através da crítica ao método indutivo. 19 Hume, D. Investigação sobre os Princípios da Moral. Seção XIX, Conclusão, parte I, p. I 64.
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O problema pode ser descrito da seguinte forma: se de premissas particulares não se pode extrair conclusões universalizáveis, com pretensões de certeza e racionalidade e, segundo o autor, a moral é matéria de hábito, produto da contínua observação de comportamentos particulares, como fica a tentativa de fundamentar a ética através da razão, de lhe outorgar um estatuto epistêmico? O critério de utilidade parec~ resultar muito frágil diante de uma teoria do conhecimento nos moldes de Hume. Mesmo tentativas contemporâneas de recuperar alguma validade racional para o método indutivo, sejam elas conforme Carnap ou mesmo Reichenbach, acabam transferindo o problema para outro patamar, sem obter solução satisfatória, como bem apontou Popper; pois enquanto Reichenbach propõe a racionalidade da indução como método de validação, Popper afirmará a inexistência de justificativa racional ou de qualquer função lógica para o método indutivo, já que conforme sua teoria, o contexto da descoberta possui um aspecto especulativo, tentativo, prescindindo da inferência indutiva. E q·uanto à justificação última, ela não existe com relação às hipóteses científicas, já que o teste para falsear uma teoria apoia-se em regras lógicas dedutivas. Finalizando, o que parece ser oportuno questionar aqui é o quanto se perde ou se ganha, em termos de confiabilidade para as teorias éticas, quando nos deparamos com uma teoria moral more Hume (que se inscreve em uma teoria do conhecimento em franca abertura para o ceticismo); abrir mão da racionalidade como condição para fundamentar a moral, em favor de sentimentos morais (a)racionais não representa uma abertura em direção ao irracionalismo, por mais que se queira colocar o princípio de utilidade como freio? Aliás, caberia aqui uma pergunta: sem a pretensão de validade universal ainda podemos falar em moral? E neste caso, ou seja, se admitirmos que podemos, de onde vamos extrair obrigatoriedade para recomendar a ação ou autoridade para penalizar os atos indevidos? O empirismo/naturalismo de Hume não parece responder essas perguntas de modo consistente.
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HEGEL E A CRÍTICA AO HISTORICISMO JUlúDICO ALCINO EDUARDO BONELLA
Universidade Federal de Uberlândia
Neste trabalho, comentaremos alguns aspectos da crítica de Hegel à escola histórica do direito e da noção de racionalidade ética em Hegel. Por um lado, Hegel contesta o principal argumento do historicismo jurídico, segundo o qual da mera gênese histórica de uma lei ou norma se possa extrair sua validade normativa. Por outro, Hegel elabora uma forma complexa de racionalidade ética, que inclui elementos históricos (assim como jurídicos e sociais). 1. A Filosofia do Direito de Hegel
A filosofia de Hegel, especialmente suas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito 1, representou um grande esforço de compreensão do desenvolvimento do Estado Moderno. Diferentemente do contratualismo e do liberalismo de sua época, Hegel operou com um registro conceitual e político mais complexo, em que os dois pilares principais do pensamento político moderno - a defesa da autonomia individual e a exigência de um estado de direito são analisados coletivamente e institucionalmente. A justificação racional das instituições é encontrada na natureza social do envolvimento das pessoas com instituições efetivas da vida política moderna. Para Hegel, os indivíduos jogam um papel decisivo na determinação do conteúdo das leis, mas não de forma imediata ou plebiscitária. Eles atuam mantendo ou modificando práticas sociais vinculadas a sua liberdade. Neste sentido mais complexo, podemos dizer que Hegel se insere na grande tradição política do liberalismo. Hegel, ao buscar compreender o direito, não quis elaborar uma fi losofia moral do dever, e não é este o sentido da sua filosofia normativa. Ele não 1
Hegel, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do estado em Compêndio. (Tradu.ção de Marcos Lutz Müller, em preparação para publicação, Campinas, Unicamp, 1997). Citaremos "FD" e o parágrafo respectivo. Quando citarmos somente a nota utilizaremos o número do parágrafo acompanhado de "n" (por exemplo, ao citarmos a nota do parágrafo 258, usaremos FD 258 n). Quando nos reportarmos ao parágrafo e à nota, separaremos os dois com vírgula (por exemplo, FD 258, n). Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 222-31.
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moral do dever, e não é este o sentido da sua filosofia normativa. Ele não acreditou que pudesse haver um direito natural auto-evidente, capaz de servir para resultados teóricos e práticos coerentes e convergentes. Ele não acreditou que tivesse existido um contrato original de indivíduos naturais, produzindo o Estado, como se a vida política fosse contingente e associativa. Ele não aceitou que um critério de utilidade geral avaliasse bem a autonomia humana realizada historicamente nas instituições modernas. Ele criticou a abordagem do imperativo moral do tipo kantiano, um imperativo categórico de universalização, incapaz de gerar qualquer dever concreto e substantivo. Esses deveres são gerados pelos compromissos sociais e políticos que as pessoas desenvolvem em uma dada comunidade histórica. As abordagens liberais disponíveis (direito natural, contratualismo, utilitarismo, moral kantiana), que poderiam fundar a exigência de liberdade do homem, são abstratas, e são elas que precisam ser compreendidas pela cultura política moderna, desenvolvida a partir das mudanças religiosas, políticas e intelectuais na história européia. Por isso, Hegel pode ser visto como o fundador de um tipo de argumento em filosofia política que hoje chamamos de "comunitarista", e que tem no historicismo um ingrediente fundamental. No debate atual em ética e filosofia política, o comunitarismo é uma abordagem que prioriza a comunidade e a vida política, e critica como abstrato o individualismo liberal. Uma das críticas de um tipo de comunitarismo a Rawls, por exemplo, é que o individuo liberal, sujeito principal de um contrato social, é uma ficção metafisica e política. O indivíduo não existiria fora das relações sociais e históricas que o engendram. A comunidade e seus valores modelaria o caráter individual (Sandel, 1982). Nestes termos amplos, podemos considerar Hegel um dos fundadores do comunitarismo moderno: ele se dedicou a renovar a filosofia clássica de Platão e Aristóteles dentro da filosofia moderna, e sua ética é o exemplo mais cabal deste projeto, articulando uma compreensão e justificação coletiva da vida social e política com a necessidade da individualidade livre e da crítica racional. Em Hegel, não há indivíduo sem comunjdade, nem comunidade racional sem indivíduo livre. Ao destacar os aspectos históricos e sociais e valorizar a vida política institucional e suas tradições, Hegel e os comunitaristas em geral estão sujeitos à crítica de convencionalismo. Uma formulação filosófica desta crítica sustenta que a abordagem comunitarista, ao se opor ao liberalismo, se comprometeria com duas teses "organicistas": uma sustentando que o indivíduo depende da sociedade em que vive, outra que, por causa daquela dependência, o indivíduo não poderia desenvolver uma identidade separada da do grupo social a que pertence, nem criticar os padrões de avaliação do seu
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grupo social a que pertence, nem criticar os padrões de avaliação do seu grupo com critérios não-sociais e pré-estatais. Claro está que, se o comunitarismo sustenta de fato a tese dois, ele estará comprometendo seu relativismo (a noção de historicidade das normas) com alguma forma de convencionalismo social (a noção de que é o grupo social o responsável último pelas leis e exigências morais), um tipo de tradicionalismo. Hegel defende, a seu modo, a tese um. Para ele, o indivíduo é um agente social envolto por práticas institucionais da sua sociedade, formado no contexto de práticas inter-subjetivas que propiciam o material de sua cultura. Mas dificilmente se pode dizer que ele defende a tese dois. Para Hegel, o indivíduo não está enclausurado em sua cultura ou sociedade, nem lhe é subserviente, se tal sociedade for racional. Assim como não há indivíduo sem práticas sociais mais abrangentes, também não há prática social sem agentes individuais que participam de algum modo da vida política. Um modelo histórico da crítica de convencionalismo tradicional, endereçada a Hegel, é a imagem, consolidada no século dezenove, de um Hegel aliado da grande "Restauração Prussiana", um Hegel ideólogo do Estado autoritário. Para muitos comentadores, tal crítica não se sustenta, nem historicamente, nem filosoficamente. Westphal (1995) sustenta que a estilização de um Hegel da Restauração Prussiana, com um pensamento conservador e reacionário choca-se: a) com o embate e ataque frontal de Hegel tanto com Von Haller, principal formulador daquele movimento, como também com a escola histórica do direito, defensora de um tipo clássico de organicismo jurídico2 ; b) com a defesa 2
Segundo 1-lirscheberger, 1967, a Escola Histórica do Direito é influenciada pelo movimento Romântico (um amplo movimento filosófico e cultural que, reunindo poetas e filósofos, exprime uma predileção pela dimensão mística e simbólica, criticando o iluminismo racionalista europeu, especialmente, o francês). Entre os principais participantes do Romantismo, estão Novalis (1772-1801), Schelegel (17721829) e Hõlderlin (1770-1843). Já na Filosofia do Direito do movimento romântico, destacam-se Adam Müller (1779-1829) e Karl Ludwig von Haller ( 1768-1854). O primeiro critica Adam Smith e a concepção utilitária de Estado (com sua Economia Política liberal). Para Müller, o Estado deveria ser visto como um indivíduo que abarca a todos os indivíduos, a lei estatal estaria manifesta na vida, valores morais e princípios religiosos tradicionais da comunidade. Müller influenciou também a Friedrich K. Savigny (1779-1861), defensor da idéia de formação ogânica do direito, em oposição às correntes do direito natural. Von Haller também combateu a concepção racionalista (contratualismo) de Estado. Este teria uma origem orgânica na tradição, advindo da célula primitiva da sociedade, a família. Hirscheberger diz que ele e Schelling deram a orientação teórica para Friedrich Julius Stahl (1802-1862), o autor
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hegeliana da relevância e necessidade dos códigos legais, principalmente, em função dos d ireitos dos cidadãos e da liberdade3 ; c) com a associação de Hegel ao movimento de reformas liberais da Prússia no início do século dezenove, elaborando uma filosofia politica claramente, de cunho liberal e reformista, pensa Westphal. Para Westphal, Hegel é um teórico liberal e reformista que baseou sua filosofia política na análise da liberdade humana. E é também um liberal complexo, que compreende a autonomia individual somente dentro de um contexto comunitário e político. De fato, da leitura atenta da FD, vemos que Hegel sempre entendeu o Estado como parte de urna vida ética que garantiria direitos e deveres para todos os integrantes da comunidade social e política. Ele, ao contrário de vários pensadores do século XIX e XX, quis compreender a eticidade da (e na) esfera política, e sempre vinculou a teoria do Estado à reflexão sobre a liberdade. Neste sentido, sua abordagem retomou aspectos relevantes das teorias do direito natural dos séculos XVII e XVITI, reinterpretados criticamente. Por exemplo, Hegel sempre defendeu que ser cidadão e obedecer ao Estado requeria uma ')ustificação racional". Com a preocupação ética de compreender como a cultura moderna e o Estado moderno desenvolvem-se, ampliando a liberdade subjetiva e efetivando instituições vinculadas às conquistas de direitos fundamentais, Hegel está formulando uma filosofia política normativa. Nas palavras de Rawls, um ideal que oferece embasamento aos direitos constitucionais. Hegel se opõe à escola histórica do direito, contestando seu principal argumento, segundo a qual da gênese histórica de uma dada norma ou le i poderíamos extrair sua validade positiva e sua legitimidade ética. Esse tipo de argumento é muito comum mesmo em outras formas de historicismo. Como há uma negação da possibilidade de conhecimento objetivo fora da história, que seria sempre relativa e contingente, o que resta ao teórico seria
Schelling deram a orientação teórica para Friedrich Julius Stahl ( 1802-1862), o autor do programa do velho conservadorismo de Frederico Guilherme TV. Cremos que a identificação de Hegel com este tipo de abordagem (tradicionalista-organicista) pode dever-se a sua concordância com a crítica romântica ao iluminismo. Mas para reforçar seu embate com esta corrente, basta comparar os titulos da principal obra de von Haller (Restauração da Ciência do Estado) com a principal, sobre política e direito, de Hegel (Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, ou Direito Natural e Ciência do Estado em compêndio). 3 Ou seja, Hegel se afasta de um tipo de positivismo jurídico, como será elaborado mais tarde por Kelzen.
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a compreensão da gênese dos fatos e de sua interpretação. 2. Filosofia Normativa Complexa e Crítica ao Historicismo
Como Hegel entende seu próprio empreendimento de elaborar uma Filosofia do Direito? Entre os vários aspectos importantes que uma resposta completa implica, o aspecto normativo merece ser ressaltado. Seja porque a leitura tradicional de Hegel não deu suficiente peso a esta dimensão, seja porque, apesar do risco de deturparmos uma das principais intenções do autor, aquela de evitar uma filosofia abstrata do dever, cremos que a Filosofia do Direito de Hegel só pode ser bem compreendida se apreendemos seu ideal normativo complexo. Por aspecto normativo podemos compreender dois elementos: a presença de uma forma de racionalidade ética, ou seja, uma forma de avaliação da correção moral (nas palavras de Hegel, ética) das instituições e práticas sociais, e a exigência de uma forma de justiça pública. Hegel não quer apenas explicar os fatos sociais, ou esclarecer teoricamente uma disciplina filosófica (a ética teórica). Sua compreensão do direito, da moral e da vida ética é uma forma complexa de justificar os direitos do homem e defender certas exigências jurídico-políticas do mundo moderno. Ele compreende, como salienta Rawls, a tarefa da Filosofia Politica como uma tarefa prática de reconciliação dos indivíduos com a racionalidade da tradição política em que vivem. Para Hegel, a expressão e justificação da liberdade como direito racional é matéria de um suporte mútuo de considerações jurídicas, morais e éticas, complexamente articuladas numa rede de instituições e práticas sociais, e somente em tal conjunto institucional e social, o Estado Moderno, com sua cultura moderna desenvolvida a partir da Reforma Protestante, da Revolução Francesa e do Iluminismo, pode-se pensar e garantir adequadamente o Direito em sentido amplo. Não o direito entendido como direito jurídico limitado, "mas como abrangendo o ser-aí de todas as determinações da liberdade" (Enciclopédia, 486t. Um Adendo5 muito significativo nos dá uma noção muito clara de como Hegel entendia sua elaboração de uma Filosofia do Direito. Podemos dividir 4
Hegel, G. W. F. 1995. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio (1830): vol. 3: A Filosofia do Espírito. (Trad. de Paulo Meneses) São Paulo: Loyola. Citaremos E, seguido do parágrafo definido por Hegel. 5 Cf Hegel. Prefácios. Trad. Manuel J. C. Ferreira. Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 188-192.
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o Adendo em três momentos. Primeiro, uma Filosofia do Direito começa como estudo imediato das leis em um dado Estado. Para saber o que é o direito, nos voltamos primeiro para o que é de direito legalmente. Mas, por aprofundamento filosófico-jurídico, e este é o segundo momento, ela apreende a distinção entre as leis naturais e as positivas. Enquanto as primeiras são exatas e externas à vontade humana, as leis jurídicas não são absolutas e são postas pelo homem. Depreende-se, então, que o solo do direito não é a natureza, mas a liberdade. Esta separação entre natureza e "espírito" prepara o terreno para a superação tanto do apelo "tradicionalista" aos costumes quanto do apelo ''positivista" à jurisprudência. Porém, o direito nasce do "espírito", ou seja, da liberdade; então não teríamos um sólo muito inseguro, o arbítrio das opiniões e o bel-prazer de cada um um, para o basearmos? Dizer que o solo é a liberdade não geraria discórdia e conflito? Para Hegel, não. Nesta oposição entre natureza e liberdade, reside a necessidade de um outro aprofundamento: apreender e conhecer o que é o direito fundamentalmente, considerar a racionalidade do direito. Esta racionalidade é a "coisa" da ciência especulativa chamada Filosofia do Direito, e a diferencia da jurisprudência, que pressupõe a lei positiva e sua autoridade. No Adendo, argumenta-se, e este é o seu terceiro momento, em favor de tal racionalidade como uma "necessidade da época" e como uma "necessidade conceitual", uma manifestação do pensamento crítico. Vejamos. Conhecer a racionalidade do direito é uma necessidade de todos os tempos, mas a época atual (de Hegel) teria uma necessidade mais imediata. Antes (hã uns 30 ou 40 anos), valia ainda o apelo à tradição (com a veneração, temor e respeito que ela suscitava nas pessoas). Neste ambiente tradicional em que as leis se baseiam no costume, a reflexão sobre o direito podia ser histórica e jurisprudencial, ou seja, conhecer as condições históricas em que nasciam as leis. Tais circunstâncias em si eram sem necessidade, e a filosofia do direito era um tipo de particu Iaridade dos direitos. Agora, sustenta-se no Adendo, ergueu-se o pensamento e um critério superior de direito: temos de respeitar o homem porque ele é homem, e não porque ele pertence a esta ou aquela comunidade, com algum "status cultural" definido. Numa nova época, novos princípios se erguem . Esta nova época gera uma crise de justificação. Se os religiosos iam ao Corão e os juristas à legislação, agora o tempo os ultrapassou. A manifestação conceitual desta nova época considera o pensamento como pertencente à natureza do direito. Pensar livremente é o que converte o homem em homem. Apreendemos o direito pensando, ou seja, pensando livremente sobre a liberdade. Um dos sentidos em que o solo do direito não
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fica preso ao arbítrio das opiniões e ao bel-prazer de cada um, está em considerarmos a liberdade em suas manifestações institucionais. O verdadeiro conceito do direito é a unidade do conceito da liberdade do homem em si com a realização deste na existência, na realidade. "Quando nós então consideramos a liberdade, não ficamos no conceito, mas passamos a sua realização, passamos, portanto, à consideração da realização efetiva da liberdade, ao mundo que o espírito edifica para si" (p. 192). Esta forma de racionalidade ética fica mais ressaltada em outras passagens em que Hegel critica a abordagem puramente histórica e puramente jurídica, seja da lei, seja do Estado. Por exemplo, Hegel sustenta (FD, nota do § 3) que o trabalho puramente histórico (a análise das circunstâncias que originam a lei) e jurídico (a análise da coerência lógico-formal das leis entre si) são investigações de valor e de interesse, mas ficam à margem da investigação filosófica do direito. Hegel escreve que uma disposição jurídica pode apresentar-se plenamente fundamentada e coerente com as circunstâncias existentes e com as instituições jurídicas vigentes, como uma multidão de disposições do Direito Privado Romano, e ser, no entanto, "em si e por si injusta e irracional". É desse modo que Hegel pode dizer que a escravidão é injusta, não para esta ou aquela sociedade, mas em si e por si, assim como certos costumes de mutilar e matar devedores ou de tornar as crianças propriedades absolutas de seus pais. Mesmo que uma disposição jurídica seja justa e racional, mostrar isso não equivale a mostrar como ela surgiu historicamente, as circunstâncias, os casos, as necessidades de seu estabelecimento. Isso nós usamos para explicar ou mesmo conceber, mas não para justificar. Numa justificação baseada exclusivamente na história ou na jurisprudência em sentido estrito, escamoteia-se a questão da verdadeira justificação, ou seja, dos pressupostos usados como parte de um argumento normativo, como as circunstâncias e as leis. As circunstâncias podem já ter sido modificadas, ou podem sê-lo pela ação humana, como as leis. Além disto, a resposta normativa a uma dada circunstância pode não ser a única, nem a melhor. Metodologicamente, está em questão a distinção entre pensar a gênese de uma instituição, lei ou costume vigente, e pensar a validade disto. Porém, Hegel não sustenta a possibilidade de uma forma simples e fácil de justificar eticamente. E ele também se refere à verdadeira abordagem histórica, que não considera a lei isolada e abstratamente, mas a compreende como elemento condicionado de uma totalidade, correlacionada com outras determinações do caráter de um povo e de uma época. Nisso adquirem sua significação c sua justificação (!). Ele também sustenta que seria um mal-entendido opor o direito natural (reinterpretado por ele como direito racional à liberda-
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de) ao direito positivo, como se estivessem necessariamente numa relação de contraposição e conflito. Vimos antes que a reflexão sobre o direito começa com as leis vigentes em cada Estado, e que a representação liberal abstrata é insuficiente. Repete-se um certo padrão do que podemos chamar de filosofia normativa complexa em Hegel: critérios abstratos (e Hegel defende a não oposição entre direito natural ou filosófico e direito positivo criticando os que contrapõe à lei "o sentimento do coração, a inclinação e o arbítrio") não podem apreender bem a realidade político-jurídica existente historicamente, mas isso não significa que não exjsta nenhum padrão de racionalidade ética, e que a reflexão sobre o direito fique presa a algum tipo comum de relativismo. Hegel combate o principal argumento da escola histórica do direito, que também será o principal do positivismo jurídico posterior, a da origem histórica relativa das leis como critério para a validade normativa delas. lsso nos faz compreender melhor a defesa insistente que Hegel faz da codificação das leis. A escola histórica do direito e von 1-Jaller menosprezavam essa necessidade porque ela romperia com a tradição "natural" dos costumes jurídicos da comunidade. Ora, o positivismo jurídico posterior também será defensor intransigente da necessidade de padrões codificados para a aplicação do direito, e nisso parece Hegel pôr-se de acordo. Mas as razões de Hegel são sobretudo éticas. Uma codificação das leis garante o direito dos indivíduos saberem o conteúdo das normas que regulamentam suas práticas, na linguagem de Hegel, passam a existir como pensamento e, assim, serem conhecidas. "O que é em si o direito, está posto (gesetzt) no seu ser-aí objetivo, isto é, determinado pelo pensamento para a consciência, e conhecido como o que é direito e vale como tal, é a lei (Gesetz); e o direito graças a essa determinação é direito positivo em geral" (FD, 211). Estes aspectos esclarecem o debate de Hegel com von Haller. Este último seria o maior exemplo da omissão da racionalidade e da eliminação do pensamento na abordagem das leis e do Estado (FD, 258 n). Hegel lamenta que ele destile seu ódio e mau humor azedo contra tudo que seja legislação e direito formalmente codificados. Para Hegel, tal ódio é a porta de entrada para o fanatismo e a hipocrisia das boas intenções. Enquanto Hegel valoriza a codificação dos direitos e a garantia constitucional para o cidadão como conquistas importantes do mundo moderno, von Haller tomaria posição pela tese de que tais conquistas são favores dispensáveis dados pelas autoridades, um tipo de presente dos poderosos (FD, 258 n). Ao serem conhecidas, as leis codificadas garantem aos cidadãos que .eles não serão lesados pelo abuso da autoridade pública (FD, 219 n), garantem
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realização do direito subjetivo ao processo e à publicidade da jurisprudência (FD, 222, 224). Hegel, inaugurador de um tipo de aristotelismo ou comunitarismo moderno, pode ser lido aqui como um defensor de uma ética de direitos. Vemos, então, como a Filosofia do Direito busca uma racionalidade ética fundada na liberdade, e, neste sentido, além de normativa, pode ser dita liberal, em sentido amplo de uma ética e filosofia política baseada na liberdade do homem. Mas a efetividade da liberdade no direito não pode ficar presa ao arbítrio e ao bel-prazer de cada um, nem representar o direito como posse e satisfação do instinto, sacrificando, em função disto, uma parte da nossa liberdade. Neste sentido mais simples, trata-se da representação liberal tradicional da liberdade como arbítrio individual, e do direito como restrição e acomodação dos arbítrios que se inter-relacionam. "Deve-se abandonar esta representação porque a liberdade, o espiritual, recebe o seu ser-aí por intermédio do direito, e não deverá ser limitada pelo mesmo" (Prefácio, p. 192). Aqui Hegel pode ser dito um liberal complexo. Sua ética busca superar o tradicionalismo e o ''positivismo jurídico" numa especulação históricoepocal e lógico-conceitual da liberdade do homem em suas instituições. Segundo Wood (1995), uma dada ordem social somente conta como ética, em Hegel, por causa de sua racionalidade. Um critério ético desta racionalidade requer o reconhecimento da individualidade humana como um valor. Por exemplo, a Grécia antiga, ainda que primeira forma de vida ética, é menos desenvolvida que a modernidade européia, onde se expandiu a noção de valor do direito individual de cada homem. Wood reforça que a ética, para Hegel, não é, por um lado, uma reflexão abstrata e fora da cultura de uma dada sociedade, nem é, por outro, a aceitação de qualquer ordem existente somente por ser real. O ponto de vista ético seria um tipo de auto-compreensão da ordem social e política efetiva, uma reflexão crítica sobre a ordem existente, que, na sua origem histórica e no desenvolvimento de valores culturais, forneceria o subsídio para uma forma de compreensão racional. Assim, o ponto de vista ético se distinguiria do ponto de vista social relativo de uma dada comunidade e também do ponto de vista da moralidade abstrata. O Estado, por exemplo, que conta para Hegel como a forma mais alta e mais completa de realização da liberdade do indivíduo, não é qualquer Estado existente, mas aquele que tem como característica distintiva o modo pelo qual suas instituições integram e permitem a liberdade subjetiva, incluindo certa arbitrariedade e auto-satisfação pessoal (cf. FD 124 n, 185 n, 206 n), a santidade da consciência moral e religiosa (Cf FD 139), a universalidade da personalidade (209, n) e garantias constitucionais (270).
Hegel e a crítica ao historicismo jurídico
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0 PROBLEMA ONTOLÓGICO DA INTERSUBJETIVIDADE: CONTRA O SOLIPSISMO SOCIAL RENATO SCHAEFFER
Departamento de Filosofia da UFJF
Estou chamando aqui de "solipsismo social" aquele pressuposto amplamente predominante, paradigmático mesmo, em disciplinas como a filosofia da mente e a filosofia social, que aparece criticado nas seguintes palavras de John Dewey, em Teoria da vida moral: A idéia de que os indivíduos nascem separados e isolados, c são trazidos à sociedade por meio de algum processo artificial, é puro mito. Os laços e ligações sociais são tão naturais quanto os físicos. ( ...) É louvável a independência de caráter e julgamento. Mas é independência que não significa separação; é algo que se manifesta em relação aos outros. ( ...) o ser humano é "individuo" por causa de suas relações com outros e de seus relacionamentos para com estes. Caso contrário, é somente indivíduo como o é um pedaço de pau, isto é, espacial e numericamente separado (p.253).
Solipsismo social é a própria "filosofia social do pedaço de pau." É possível, quero me perguntar, conciliar o "individualismo metodológico" com a rejeição categórica do solipsismo social? Dito de outra forma: conciliar a noção intuitiva de uma causalidade atrelada ao agente humano individual, com a noção, nem tão intuitiva, de uma socialidade ontológica, de algum modo intrínseca ao indivíduo, por detrás da comunicação, da participação intersubjetiva? O que significará, ontologicamente - se rejeitamos a "ontologia social do pedaço de pau" - dizer que a individualidade pessoal depende das relações e relacionamentos sociais? O sociólogo Norbert Elias ataca o mesmo problema em A sociedade dos indivíduos: A relação entre as pessoas é comumente imaginada como a que existe entre as bolas de bilhar: elas se chocam e rolam em direções diferentes. Mas a interação entre as pessoas e os "fenômenos reticulares" que elas produzem são essencialmente diferentes das interações puramente somatórias das substâncias fisicas. Tomemos, por exemplo, uma forma relativamente simples de Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Ana/Itica. Florianópolis: NEL, pp. 232-47.
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relação humana, a conversa. ( ...) Se considerarmos não apenas as observações e contra-observações isoladas, mas o rumo tomado pela conversa como um todo, a seqüência de idéias entremeadas, carreando uma às outras numa interdependência contínua, estaremos lidando com um fenômeno que não pode ser satisfatoriamente representado nem pelo modelo físico da ação e reação das bolas nem pelo modelo fisiológico da relação entre estímulo e resposta (p. 29).
Continua Elias, pouco adiante: Por mais certo que seja que cada pessoa é uma entidade completa em si mesma, um indivíduo que se controla c que não poderá ser controlado ou regulado por mais ninguém se ele próprio não o fizer, não menos certo é que toda a estrutura de seu autocontrolc, consciente e inconsciente, constitui um produto reticular formado numa interação contínua de relacionamentos com outras pessoas, c que a forma individual do adulto é uma forma específica de toda a sociedade. ( ...) Não existe um grau zero da vinculabilidade social do indivíduo, um "começo" ou ruptura nítida em que ele ingressa na sociedade como que vindo de fora ... (p.3 1).
Infelizmente, todavia, em momento algum é abordada pelo autor a questão propriamente ontológica da socialidade radical intrínseca à intersubjetividade, como fundamento para rejeitarmos uma ''filosofia social de bolas de bilhar." Elias escreve ainda o seguinte: Poderíamos indagar como e por que a estrutura da rede humana e a estrutura do indivíduo se modificam ao mesmo tempo de uma certa maneira. como na transição da sociedade guerreira para a sociedade nobiliárquica, ou desta para a sociedade trabalhadora de classe média, quando os desejos dos indivíduos, sua estrutura instintiva e de pensamento, c até o tipo de individualidades, também se modificam. Então se constata - ao se adotar um ponto de vista dinâmico mais amplo, em vez de uma concepção estática - que a visão de um muro intransponível entre um ser humano c todos os demais, entre os mundos interno e externo, evapora-se c é substituída pela visão de um entrelaçamento incessante e irredutível de seres individuais, na qual tudo o que confere a sua substância animal a qualidade de seres humanos, principalmente seu autocontrole psíquico e seu caráter individual, assume a forma que lhe é específica dentro e através de relações com os outros (p. 34-35).
Mas, infelizmente, repito, nada nos é esclarecido acerca das condições ontológicas de possibilidade de um tal "entrelaçamento incessante e irreduti-
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vel" das pessoas numa estrutura social essencialmente reticular. Para que o referido " ponto de vista dinâmico mais amplo" fosse esclarecedor, teríamos que saber como a estrutura motivacional-temporal da ação humana é determinada por uma socialidade imanente. A questão que estou colocando - a da explicação da socialidade da intersubjetividade enquanto fenômeno real, causalmente produtivo, motor do cotidiano e da história - não é sequer tocada, nem de leve, pelo conceito de "subjetividade coletiva", conforme recentemente defendido pelo sociológo José Maurício Domingues, no artigo "Sistemas sociais e subjetividade coletiva." Domingues pretende ultrapassar a exclusividade do sujeito individual autoconsciente na causação social, questionar sua "primazia ontológica" (26, n. 10). Para superar as limitações teóricas da tradicional bipolaridade "indivíduo" e "sociedade" - atrelada a esta outra, "ação" e "estrutura" (5, 6) -, ele propõe um "modelo causal" onde as noções básicas são o ''nível de centramento" (da subjetividade coletiva) e o "nível de intencionalidade coletiva" (20, 2 1). São suas palavras: "A teoria da subjetividade coletiva propõese como uma nova abordagem geral do tema dos sistemas sociais, a qual não os reifica ..." (p. 25). Confesso que sou incapaz de ver como é possível retirar a "primazia ontológica" do indivíduo sem, de alguma forma, ''reificar os sistemas sociais." A única hipótese alternativa viável seria, no meu entender, supor algum tipo de canal de comunicação intersubjetiva ontologicamente efetivo, capaz de permitir a interpenetração ontológica do agente individual por conteúdos essencialmente sociais. Apenas uma tal hipótese poderia justificar o que diz Dewey, em "O público e seus problemas": "vontades, escolhas e propósitos têm seu locus em seres singulares," embora o conteúdo intencional não seja "algo puramente pessoal" (p. 330). John Searle, no artigo ''Intenções e ações coletivas", apresenta um interessante encaminhamento para nosso problema, ao defender que o conteúdo da intencionalidade individual de um agente engajado numa ação humana conjunta possui um componente intrínseco irredutivelmente coletivo. Isto é: a intencionalidade mental do indivíduo é já também, de modo intrínseco, uma intenção coletiva (que ele também chama de "we-intention"). O que quer isso dizer? Tomemos dois sujeitos A e B, empenhados na ação coletiva de compor uma canção, A sendo o letrista e B o compositor. Se em determinado momento tivéssemos apenas os conteúdos intencionais INTENÇÃO-A (escrever um verso) e INTENÇÃO-B (compor uma frase musical), onde estaria afmal a intenção coletiva propriamente dita, intrínseca a cada agente -no caso, a intenção de compor uma canção? Como distinguir, empregando essas fórmulas para INTENÇÃO-A e INTENÇÃO-B, o caso em questão de um outro, em que simplesmente o poeta A estivesse fuzendo um verso e o
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músico B uma melodia, sem qualquer intenção de compor uma canção em cooperação? Por outro lado, não parece correto descrever as intenções individuais direta e simplesmente como intenções coletivas: afinal, independentemente da efetividade motivacional do conteúdo da intencionalidade cooperativa, a intenção de escrever os versos não deixa de ser uma intenção individual por excelência, dependente de um cérebro particular com seus neurônios. A estrutura proposta por Searle para o conteúdo da intencionalidade cooperativa pode ser sintetizada pela seguinte fórmula, inteiramente geral: MINHA INTENÇÃO COLETIVA X POR MEIO DE MINHA INTENÇÃO INDIVIDUAL Y (em contraste com MlNHA INTENÇÃO INDIVIDUAL X, numa ação individual não-social). Voltando a nosso exemplo: haveria nas mentes individuais do letrista e do compositor intenções com as seguintes formas, respectivamente: MINHA INTENÇÃO COLETIVA DE FAZER UMA CANÇÃO POR MEIO DE MINHA INTENÇÃO INDIVIDUAL DE FAZER UMA LETRA e MINHA INTENÇÃO COLETIVA DE FAZER UMA CANÇÃO POR MEIO DE MINHA INTENÇÃO INDIVIDUAL DE FAZER UMA :MELODIA. Searle argumenta como segue: Por que tantos filósofos estão convencidos de que a intencionalidade coletiva deve ser redutível à intencionalidade individual? Por que eles não estão dispostos a reconhecer a intencionalidade coletiva como um fenômeno primitivo? Creio que a razão é que eles aceitam um argumento que parece atraente, mas é falacioso. O argumento é que, como toda intencionalidade existe nas cabeças de seres humanos individuais, a forma dessa intencionalidade só pode fàzer referência aos indivíduos em cujas cabeças ela existe. Assim, parece que qualquer um que reconheça a intencionalidade coletiva como uma forma primitiva de vida mental deve estar comprometido com a idéia de que há algum espírito mundial hegeliano, uma consciência coletiva, ou algo igualmente implausível. Os requisitos do individualismo metodológico parecem nos forçar a reduzir a intencionalidade coletiva à individual. Parece, em resumo, que temos que escolher entre o reducionismo, de um lado, ou uma supermente flutuando sobre as mentes individuais, de outro. Quero afirmar, pelo contrário, que o argumento contém urna falácia e que o dilema é falso. É de fato verdade que toda minha vida mental está dentro do meu cérebro, e toda sua vida mental está dentro do seu cérebro, e assim por diante para todo o mundo. Mas daí não se segue que toda minha vida mental deva ser expressa na forma de um pronome referindo-se a mim.(...) A intencionalidade [coletiva] que existe em cada cabeça individual tem a forma "nós intencionamos." (p. 25-26).
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Do ponto de vista ontológico, porém, a posição de Searle me parece inteiramente problemática. Ele pretende conciliar um "senso pré-in tencional acerca 'do outro"' como um parceiro "atual ou potencial" (p. 413) mais do que como mero agente consciente, por um lado, com sua noção de Background biológico intracerebral, por outro. Dito de outra forma: o que atualiza, quando se dá a ação co1etiva, o senso pré-intenciona l do outro como meu parceiro potencial, tornando-o meu parceiro atual, efetivo, parece ser uma representação dele dentro de meu cérebro, e não sua presença em carne e osso à minha frente. Pasmem, meu parceiro na ação cooperativa é, do ponto de vista epistemológico, não mais que uma minúscula imagem psiconeurocortical! O modelo de Searle tem, contudo, o mérito de apontar para o que há de especificamente humano na ação coletiva - em contraste com os conhecidos fenômenos de contágio afetivo, comuns em multidões, mas ocorrendo também entre poucas pessoas (mesmo entre os animais superiores há algo como o contágio afetivo). Pois a ação coletiva situa-se no âmbito da vontade enquanto tal. Em Psicologia da sociedade, Morris Ginsberg considera os três níveis de comportamento: instinto, desejo e vontade como estruturas cognitivo-afetivas de complexidade ascendente. Assim, enquanto que, para o instinto, o objeto é uma presença sensorial imediata e "há um sentimento que mantém a cadeia de atos", para o desejo há já " idéias livres", ligadas a passado e futuro, à recordação e à previsão de situações, e emoções devidas à "lacuna entre o impulso e sua realização." A vontade, cuja "estrutura cognitiva é a da comparação analftica, dos conceitos e dos princípios gerais" e cuja estrutura afetiva é a dos sentimentos, envolve " a ação do eu como uma identidade permanente, tendo continuidade e identidade, dotada de capacidade de formar ou aceitar as regras gerais de ação" (p. I0). De acordo com esse quadro, apenas a estrutura complexa do eu capaz de vontade seria capaz de abrigar uma intenção coletiva no âmago da própria intencionalidade individual. Parece sensato, então, considerar justamente tal estrutura do eu como reduto ontológico da socialidade enquanto possibilidade das relações intersubjetivas reais. Tal socialidade ontológica responderia não só pela capacidade de formular intenções coletivas, mas pela própria capacidade que tem o eu de viver na esfera do pensamento. A obra de George Herbert Mead é o locus clássico da investigação genética da relação entre pensamento e intersubjetividade. Em Mente, se/f e sociedade, Mead apresenta o conhecido modelo segundo o qual a existência da personalidade e do pensamento têm como condição de possibilidade a internalização por parte do sujeito social do que este autor chama de " outro generalizado" - as expectativas e a imagem que os demais membros da
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sociedade têm do indivíduo. A estabilidade estrutural da personalidade depende de um processo dialético de auto-organização entre as tendências expressivas centrífugas naturais do individuo e os conteúdos provenientes da precipitação centrípeta da humanidade dentro da sua subjetividade. Diz Mead que deve a linguagem ser concebida segundo um " behaviorismo social", isto é, "não do ponto de vista de significados internos a serem expressos, mas em seu contexto mais largo de cooperação no grupo" (p. 6). Opõe-se ao modelo da comunicação do "prisioneiro na cela", que se dirige a outro prisioneiro em situação semelhante através de pancadas na parede: " cada um de nós, nessa visão, está confinado na cela de sua própria consciência, e sabendo que há outras pessoas assim confinadas" (p. 6 nota 6). Mead distingue a auto-consciência da mera vida consciente subjetiva; é apenas em conexão com a objetividade essencialmente social da auto-consciência que surge a possibilidade de compartilhamento do significado simbólico abstrato, lingüístico. Ele defende que é "desempenhando o papel" do adulto - isto é, despertando nela própria a mesma resposta expressiva que sua ação lingüística desperta no adulto - que a criança gradativamente passa da mera comunicação afetivo-expressiva para a linguagem plenamente s imbólica. Mas nada é explicado por Mead acerca da ontologia do encontro intersubjetivo criança-adulto que permite a introjeção do "outro generalizado" na subjetividade - e o surgimento da auto-consciência através da conversação objetiva com a humanidade assim intemalizada no indivíduo social. Mais recentemente, Vincent M. Colapietro, em A abordagem de Peirce ao se/f uma perspectiva semiótica da subjetividade humana, detalhou o processo de conversação interna da auto-consciência em termos da equiparação das tríades eu-mim-você e signo-objeto-interpretante. O eu, ou self-presente, é signo, ou seja, fala do objeto que é o mim, ou self-passado, para o interpretante você, ou self-futuro. Aquil, é correto dizer que a auto-consciência só é "constituída" pela linguagem em sentido fraco, isto é, no sentido de se expressar essencialmente pela conversação simbólica interior, mas não em sentido forte, já que tal possibilidade, por sua vez, reside na estrutura ontológica de tipo essencialmente semiótico da própria organização mental. Mead associa o " mim" ao "outro gener alizado"; empregando a distinção lógica determinável-determinado, podemos dizer que tal "mim" é o determinado a partir de um determináve l estrutural. A questão é: a introjeção do "outro generalizado" - a passagem do determinável ao determinado - não permite supor uma comunicação ontológica mais radical que a do solipsismo social, isto é, do modelo da filosofia social do " pedaço de pau", ou das " bolas I Conforme enfatizado por Norbert Wilcy, em O se/fsemiótico.
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de bilhar", ou do "prisioneiro na cela"? Em Psicologia das situações vitais, Eduardo Nicol escreve o seguinte: Dizemos que o outro geral e o outro particular fazem parte da situação, não porque sejam estranhos ao eu e o demarquem, como as águas do mar demarcam a terra de uma ilha que elas rodeiam por todos os lados como algo estranho à terra. O sujeito não está rodeado pelo trans-subjetivo. O sujeito é propriamente sujeito, ou está sujeito ao trans-subjetivo, porque o incorpora na sua própria vida (p. 105).
É uma tal compreensão do trans-subjetivo como algo ontologicamente sui generis que nos permite interpretar as seguintes duas afirmações de Maurice Nédoncelle, em A reciprocidade das consciências: (1) que outrem, conforme me é dado na experiência, não pode a rigor ser incluído sob o conceito geral de ''não-eu", que abrange a mera alteridade perceptual do objeto intencional do mundo natural (pp. 43-44); e (2) que a reciprocidade transubjetiva só pode ser apreendida empiricamente sob a forma da relação interpessoal diádica (p. 27), isto é, no encontro face a face. Nédoncelle insiste que a socialidade essencial à díade intersubjetiva, enquanto experiência real, não pode jamais ser ampliada, estendida para englobar outros indivíduos: o ato social legítimo- isto é, real - é inapelavelmente diádico, eu-você. Isso talvez não seja, empiricamente falando, inteiramente evidente ou indiscutível - como no caso em que um jogador de futebol disputa uma bola com dois adversários simultaneamente. Talvez possamos dizer que o problema ontológico da intersubjetividade apresenta, então, três aspectos ou níveis: (1) o da relação do sujeito social com a socialidade abstrata do "outro generalizado; (2) o da ação coletiva concreta de diversos parceiros humanos; e (3) o da relação existencial essencialmente diádica de um sujeito social com outro, no encontro face a face. Em Conhecimento e política, o filósofo político Roberto Mangabeira Unger argumenta (mais ou menos à la Hegel) que o fenômeno social enquanto tal se baseia na existência, na natureza humana, de uma dimensão universal - o se/f abstrato - e uma dimensão particular - o se/f concreto. Este autor fala da tendência de pensar no sujeito como um indivíduo, cuja participação em grupos é um aspecto secundário de sua existência ( ...) Claramente, contudo, os traços mais marcantes e pervasivos da vida social não podem ser explicados como criações de indivíduos particulares. Enquanto insistirmos em ver o sujeito como um indivíduo isolado, os arranjos fundamentais da sociedade, seus
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modos de organizar a vida, a linguagem que seus membros falam e as crenças morais ou políticas que eles adotam, tudo parecerá pertencer à ordem natural das coisas. Serão conhecidos apenas como os fenômenos naturais são conhecidos, e o entendimento do universal continuará a ser separado da percepção do particular (p. 211 ). Unger defende que a correta concepção da cultura como criação humana realmente - e não apenas nominalmente - social depende de uma compreensão da personalidade como estrutura complexa que abriga a universalidade de um self abstrato e o que ele chama de parcialidade de um self concreto. "O animal é particular, mas não é parcial. Os homens podem ser parciais apenas porque têm o traço da universalidade" (p. 223). O autor continua: Todo homem é tanto um indivíduo particular, com um lugar definido no sistema das relações sociais, quanto um exemplar da humanidade universal. (...) nenhum homem está satisfeito até que possa conectar a particular posição que ocupa e o trabalho particular que produz com sua humanidade universal. Ele quer que sua vida, em suas limitações e em sua brevidade, seja uma expressão e não um sacrifício da multiplicidade que ele partilha com a humanidade (p. 222). Parece lícito depreender que o problema ontológico da socialidade intrínseca do indivíduo passa necessariamente pela elucidação do sentido ontológico da imanência de uma humanidade universal no indivíduo particular. Em certo sentido, temos aqui talvez apenas uma instância do clássico problema dos universais. Considero o realismo extremo perfeitamente defensável: uma lei da natureza, por exemplo, como insistia Peirce, embora não exista no sentido em que um corpo existe, é no entanto perfeitamente real, real como virtualidade, latência, potencialidade efetiva. Neste sentido, a humanidade universal tampouco existe como o indivíduo existe, mas é real. Essa "parcialidade" do indivíduo, devida à sua universalidade imanente, essa incompletude ontológica na forma de abertura transubjetiva deve, além disso, ser algo de certo modo empiricamente verificável, dado na experiência cotidiana, não algo meramente concebido e postulado, nos moldes da velha metafisica. E não é mais ou menos isso o que está por trás das seguintes palavras do jurista Dalmo Dallari? [O] uso e o gozo de todos os direitos fundamentais da pessoa humana ocorre na convivência, ou seja, as pessoas não se isolam das outras no momento de fazer uso de um direito, não sendo correto dizer, como é hábito, que os di-
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reitos de um terminam onde começam os de outro. Os direitos, na prática, estão sempre entrelaçados e muitos são gozados ao mesmo tempo e no mesmo lugar por pessoas diferentes. Assim, por exemplo, o direito de andar livremente nas ruas cabe igualmente a todos e é exercido ao mesmo tempo por muitas pessoas, como acontece, na realidade. com todos os outros direitos fundamentais.
Ou seja, a experiência do direito, o meu e o dos outros - a experiência da própria humanidade universal -, mais que mera concepção abstrata, é dada numa situação vital, mundana. Como diz Cornelius Castoriadis, em A instituição imaginária da sociedade: quando falamos da práxis como "ação de uma liberdade sobre outra liberdade" (p. 129), "[o] sujeito em questão não é pois o momento abstrato da subjetividade filosófica, ele é o sujeito efetivo totalmente penetrado pelo mundo e pelos outros" (p. 128). Enquanto possivelmente apenas na relação diádica por excelência a plena particularidade do indivíduo me é dada, na ação coletiva em geral o que é experimentado é a inter-humanidade universal - através da presença em carne e osso, é certo, de meus parceiros humanos aqui e agora no mundo. No que pode ser considerado uma elaboração da velha noção humeana da relação intersubjetiva de simpatia, Raymond Ruyer, em Os alimentos psíquicos: a política da felicidade, escreve que, além da nutrição fisiológica - "à base de moléculas de proteína, de açúcar e de gordura" da nutrição simbólica, espiritual ou ideológica -"à base de idéias, supostamente verdadeiras," é essencial ao ser humano a nutrição psíquica - "à base de sensações enriquecedoras, de espetáculos ( ...) de informações expressivas ... " (p. 10). São pródigos de nutrientes psíquicos, nos diz Ruyer, os jogos, os esportes, o camping, as viagens, a vida social enquanto que ela traz ocasiões de contatos, de espetáculos, de manifestações do maravilhoso, de comédias ou dramas, de luxos e catástrofes, a vista e o contato dos outros, os terraços de cafés, as revistas com suas sensações, indiscrições, escândalos, confidências, o rádio e a televisão ... (p.ll).
Perguntemo-nos, então: como entender o fenômeno da alimentação psíquica do ponto de vista ontológico? Não seria lícito igualar muito simplesmente a carência psíquica do indivíduo humano pela expressividade existencial encarnada do seu semelhante - tanto quanto a carência fisiológica por moléculas de proteína, açúcar e gordura - a uma incompletude ontológica essencial e natural? Não é essa mesma incompletude inter-humana que permite à criança chegar finalmente à linguagem simbólica, quer dizer, chegar
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a desempenhar o papel do outro generalizado, como diz Mead, a partir de encontros iniciais meramente afetivo-expressivos com o adulto? No meu entender, a incompletude ontológica do individuo com relação à humanidade universal se mostra empiricamente, na criança, no impressionante grau de permeabilidade afetivo-expressiva. Isso fica bem conceituado por Daniel Stern, em O mundo interpessoal do bebê, com seu modelo de regulação externa (por parte do cuidador) da auto-experiência do bebê de poucos meses de idade: estados como os de excitação, afeto, segurança e apego podem receber um feedback positivo ou negativo, em sua intensidade ou em sua qualidade. O que atestaria, porém, de modo ainda mais notável a permeabilidade do bebê ao inter-humano seria a confirmação da hipótese de Stem de ser ''provável(... ) que as experiências de redução da fome e de outras regulações do estado somático sejam experiências das principalmente como transformações dramáticas no auto-estado que requerem a mediação física de outrem" (p. 92). É interessante supor que este caso - da alimentação psíquica - se situa de certa forma entre a extrema particularidade da relação intersubjetiva face a face eminentemente diádica e a participação na inter-humanidade universal. Talvez seja mesmo o caso de propor a hipótese de que o relacionamento humano apresenta sempre, empiricamente falando, uma determinada dosagem, indefinidamente variável a cada caso, entre dois elementos categorialmente distintos - que eu chamaria de intersubjetividade e inter-humanidade. O primeiro diria respeito ao nivel da permeabilidade ontológica que se traduz nas interações que constituem o campo dos afetos positivos e negativos dos fenômenos da simpatia; o segundo diria respeito ao nível da permeabilidade ontológica que precisa ser postulada, creio eu, para dar conta - de modo eminentemente realista, isto é, não-nominalista- da validade objetiva da comunicação lógico-lingüística. A flagrante separação entre os indivíduos teria que ser concebida ontologicamente como uma mera "ponta do iceberg": além dos corpos físicos propriamente ditos- o que quer que seja um corpo flSico - , o atributo da separatividade se aplicaria, então, também apenas ao nível do psiquismo vital-somático (pois é sabido que não existe a possibilidade de uma experiência de simpatia para com a "dor fisica" de outrem enquanto tal, nos moldes da simpatia para com seu sofrimento psicológico-existencial - não há comunicação experiencial da fome de uma criança, por exemplo, por terrível que esta seja, mas há tal comunicação no caso do sofrimento do pai ou mãe que não pode mitigar a fome do filho). 2 Parece inteiramente possível qualificar a partir deste modelo dual inter2 Cf o clássico Natureza e formas da simpatia, de Scheler.
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subjetividade/inter-humanidade (com o adendo de separatividade do psiquismo vital) a aplicação que faz Peirce de seu "sinequismo" (a doutrina de um radical continuísmo ontológico subjacente às interações fenomênicas) à socialidade humana. Diz o pai da semiótica e do pragmatismo: Mas estamos confinados numa caixa. de carne e sangue? Quando comunico meu pensamento e meus sentimentos a um amigo com o qual estou em plena simpatia, de modo que meus sentimentos passam para dentro dele e eu estou consciente do que ele sente, não estou eu vivendo em seu cérebro tanto quanto em meu próprio- bem literalmente? Em verdade, minha vida animal lá não está; mas minha alma, meu. sentimento, pensamento, atenção estão...(p. 7.591) (...) seus vizinhos são, em certa medida, você, e numa medida bem maior do que, sem estudos profundos em psicologia, você poderia crer.(...) todos os homens que se assemelham a você e estão em circunstâncias análogas são, em certa medida, você, embora não exatamente do mesmo modo em que seus vizinhos são você (p.7.571).
Assim, insisto em que faz todo o sentido abraçar a hipótese segundo a qual o "substrato" da experiência social empírica, em geral, é como que uma combinação de dois ingredientes ontológicos apenas idealmente distintos - o pólo mais particular da intersubjetividade, de um lado, e o pólo mais universal da inter-humanidade, de outro. É interessante especular, ainda, que, a rigor, a esfera da inter-humanidade possui um raio tão grande quanto se queira. É nesse sentido que eu interpretaria o que o grande compositor Stravinsky declara a respeito da tradição musical: O artista impõe uma cultura a si mesmo e acaba impondo-a aos outros. É assim que a tradição se estabelece. A tradição é inteiramente distinta do hábito, mesmo de um excelente hábito, já que o hábito é por definição uma aquisição inconsciente, e tende a tomar-se mecânica, ao passo que a tradição resulta de uma aceitação consciente e deliberada. A tradição autêntica não é a relíquia de um passado irremediavelmente transcorrido; é uma força viva que anima e condiciona o presente. Nesse sentido, o paradoxo segundo o qual tudo o que não é tradição é plágio tem sua razão de ser... (...) Esse senso de tradição, que é uma necessidade natural, não deve ser confundido com o desejo plausível do compositor de afirmar o parentesco que sente, através dos séculos, com algum mestre do passado (pp. 58-59).
Isto é: sou inclinado a considerar segundo o mais estrito nãonominalismo a realidade, em termos da noção de inter-humanidade, dos
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liames atemporais - e contudo efetivos! - da tradição musical, no sentido descrito por Stravinsky - que cuidadosamente a distingue do hábito e, enquanto algo dotado da objetividade de uma ''necessidade natural", também de um mero "desejo" tingido de subjetividade. Tomando a noção de tradição em seu sentido cultural mais amplo, somos levados ao problema básico da relação entre história e mente humana. Cito as profundas palavras de Collingwood, de seu A idéia de história: ( ...) seria sofistico argüir que, como o processo histórico é um processo de pensamento, deve haver pensamento já presente, como sua pressuposição, em seu princípio, e que uma explicação do que esse pensamento é originalmente e em si mesmo tem que ser uma explicação não-histórica. A história não pressupõe a mente; é a vida mesma da mente, a qual não é mente exceto enquanto vive o processo histórico e se conhece como vivendo dessa maneira {p. 221).
Seria, portanto, na consideração da dimensão propriamente histórica que a verdadeira natureza da inter-humanidade, mais do que nunca, se revelaria: pois dizer que a operação da mente é essencialmente histórica é apontar de modo inequívoco para além dos limites da vida do próprio indivíduo - isto é, limites que demarcam sua história fisiológica, digamos assim. Como diz ainda Collingwood, na mesma obra: Definiu-se o homem como animal capaz de aproveitar a experiência de outros. Isso seria totalmente falso no que toca a sua vida corporal: ele não se nutre porque outro tenha comido, nem descansa porque outro tenha dormido. Mas, sim, é certo no que coneeme a sua vida mental: e a maneira como se realiza esse aproveitamento é por meio do conhecimento histórico. O conjunto do pensamento o da atividade mental humana é uma possessão comunitária, e quase todas as operações que nossas mentes executam são operações que aprendemos de outros que já as executaram. Como a mente é o faz, e a natureza humana (se essa denominação designa algo real) não passa de um nome para as atividades humanas, esse adquirir a habilidade para fuzer determinadas operações equivale a adquirir uma natureza humana determinada. Desse modo, o processo histórico é um processo em que o homem cria para si este ou aquele tipo de natureza humana ao recriar em seu próprio pensamento o passado do qual é herdeiro (pp. 220-221 ).
Se aceitarmos tais colocações dentro de um espírito não-nominalista, não vejo como fugir de um modelo da dimensão histórica da inter-humanidade
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como interpenetração ontológica. Um ponto fundamental para a filosofia social seria a tematização do cruzamento entre inter-humanidade e intersubjetividade- ou seja, o cruzamento do pólo da universalidade com o pólo da particularidade. Pois é indubitável e inevitável o fato de o pensamentohistória (no sentido de Collingwood, acima) adquirir uma infinita variedade de colorações quando "passa" pelas mentes-cérebros individuais - a mentecérebro de que trata, com toda razão (nos limites obviamente impostos por seu método), o individualismo metodológico. Uma pista valiosa, dentro de um tal empreendimento teórico, para distinguir os dois pólos da permeabilidade ontológica - inter-humanidade e intersubjetividade - é a fornecida por Ruyer no já citado Os alimentos psiquicos. Este autor compara os três níveis de nutrição humana - material, psíquica, mental -, afirmando que a diferença entre eles "prende-se sobretudo à importância relativa variável do organismo nutrido e do alimento. Na nutrição material, o organismo mantém sua arquitetura própria" (p. 15). O caso da nutrição psíquica - isto é, lembrando, o nível dos afetos positivos e negativos ligados à simpatia intersubjetiva representaria uma espécie de meio tenno, em que a estrutura do organismo não permanece sempre rigorosamente invulnerável às influências mais ou menos metamorfoseantes do alimento psíquico. Assim, nesse segundo caso, por um lado, instintos e necessidades fundamentais resistem também, em sua forma, aos regimes psíquicos. ( ...) Mas já, sobretudo na infãncia, um mau regime psíquico, uma carência alimentar psíquica, produz deformações irreversíveis. A psique é como que modelada pelo ai imento cultural, que aporta estruturas fundamentais ao caráter, se não ao temperamento. A assimilação psicológica de uma língua materna é mal denominada. Não é uma assimilação como a de carne de boi ou carneiro, que não torna quem come boi ou carneiro- ao passo que a língua francesa faz o senegalês francófono ficar um pouco francês, ou o inglês, o nigeriano anglófono um pouco inglês (pp.IS-16).
Utilizando o meu jargão, diríamos que, para a assimilação do falante pela língua, mais do que, até certo ponto, da língua pelo falante, como sugere Ruyer, concorrem tanto intersubjetividade quanto inter-humanidadee não parece falso dizer que a dosagem exata desses elementos pode variar de individuo e - por que não? - de língua para língua, conforme o predomínio do elemento psíquico-simpático ou do elemento ideal-mental. No extremo desse pólo ideal-mental, o nutriente, diz Ruyer, pelo núcleo de verdade lógica e científica que contém, impõe sua ordem própria à mente. É agora a mente, não o alimento, que é assimilada, que se do-
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bra à ordem das razões e das leis, e que não as assimila, o que quer que digam sofistas, céticos e convencionalistas, que dão a impressão de crerem que as vontades, os desejos, as categorias humanas e sociais, podem fazer que dois e dois não perfaçam quatro (p.l6).
Essa me parece a maneira adequada de encaminhar o problema de avaliar a dosagem dos dois tipos de comunicação ontológica- intersubjetiva, em que prevalece o elemento da particularidade psicológico-simpática, e interhumana, em que prevalece o elemento da universalidade histórico-mental. Seria também o caso de a filosofia social pensar seriamente em adotaradaptar o modelo semiótico de Peirce: desenvolver uma concepção de semiose social como (entre outras coisas) geração encadeada e auto-sustentada de sucessivos "interpretantes" energéticos, emocionais e lógicos, interpretantes esses que, por um lado, como quer o individualismo metodológico, dependem de cérebros-mentes perfeitamente individuais, mas que, por outro, pertencem à ordem ontológica propriamente lógica ou semiótica da propagação de tais interpretantes - ações, emoções e pensamentos humanos. O jogo de tais interpretantes, sugiro, reflete (possivelmente entre outras coisas) a dosagem entre intersubjetividade e inter-humanidade, entre a particularidade humana e sua universalidade. Como quer que seja, quero finalizar propondo que o primeiro passo na crítica ao solipsismo social - a filosofia socia l do "pedaço de pau", da "bola de bilhar", da "cela do prisioneiro" - deve ser a rejeição categórica de qualquer modelo intracerebralista da intencionalidade perceptual, tanto para a percepção estritamente sensorial do mundo natural quanto - e principalmente - para a percepção pensante de outros seres humanos. O solipsismo social assenta antes de mais nada sobre a tão ingênua ontologia neurofisicalista, que confina a mente ao cérebro; e, de fato, se cada mente está em seu cérebro, e não diretamente no mundo e em parceria, potencial ou atual, com outras mentes, a socialidade inter-humana imanente bem como a comunicação intersubjetiva efetiva são impossíveis. Pois outrem não poderia me comunicar inter-humanidade - universal ou particular - através de dutos neuronais.3
3 Penso ser perfeitamente lícito interpretar o problema neuropsicológico do reconhecimento facial como evidência de um nível básico de comunicação ontológica intersubjetiva. É sabido que bebês muito pequenos são altamente sensíveis a rostos humanos- a princípio apenas a rostos ao vivo, mas logo depois, também, a representações de rostos em geral - , sendo que nada no mundo desperta mais o interesse cognitivo-afetivo de bebês do que a visão de um rosto humano. Vale a pena mencionar
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SOBRE
"0 PENSAMENTO" la PARTE
LUlZ HEBECHE Universidade Federal de Santa Catarina
Um espanto inevitável surge quando se trata de pensar o pensamento, quando o que se torna assunto do pensàmento, o que é o pensado pelo pensamento, é o próprio pensamento. O espanto se deve a que o pensamento, ao confrontar-se consigo mesmo, permanece oculto para si mesmo. Temos então que afastar o espanto de que o pensamento, ao pensar o pensamento, possa dar conta de si mesmo, pois isso levaria a um outro nível em que se teria de pensar o pensamento que tem como objeto o pensamento que pensa o que é pensado pelo pensamento, e assim por diante. E como se pode afastar o espanto invocando o que espanta? Para afastarmos o espanto, trataremos não de invocar uma superentidade, mas simplesmente de descrever as circunstâncias em que se usa esta palavra, pois quando tratamos o pensamento adentramos na impaciência do interior, porquanto pensar o pensamento só é possível desde que se tenha presente o cenário do interior, e o interior não é uma coisa qualquer, mas a vida. O conceito de pensamento é central para o interior e chega mesmo a ser confundido com ele, pois participa da multiplicidade dos modos do seu vir ao encontro, uma vez que a sua complexa rede conceitual diz respeito ao que é distintivamente humano no mundo. Não que o pensamento, como qualquer conceito do interior, seja algum processo levado a cabo às ocultas, nem como um proceder meramente mecânico, mas como uma habilidade para levar a cabo certas atividades e uma espécie de dar conta dessas ações e intenções e, portanto, de dar-lhes um rumo novo. Porém uma vez que o conceito de interior é vago, a atmosfera difusa em que operam seus conceitos toma sua discriminação uma tarefa dificil, pois muitos deles tem uma variabilidade de aplicação maior e, portanto, parecem mais imprecisos do que outros. Mas já podemos ir considerando que a indeterminação é uma marca das vivências do interior e, que, portanto, a própria análise do interior sempre se dará sob o signo da intransparência, oriunda não de um fundo intangível, mas porque esses conceitos permeiam e se confundem com a vida. E assim, como parte do conceito de Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Analítica. Florianópolis: NEL, pp. 248-62.
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interior, resulta fácil para o conceito de pensamento; por um lado, desviar-se para o misterioso ou o sublime; de outro lado, provoca a busca de explicações teóricas capazes de desfazer os enigmas do processo do pensar, como a psicologia comportamental ou a neurologia. A tentativa de dissolver o mistério que envolve o pensamento por uma teoria - seja científica ou filosófica é precisamente constituída desde a ilusão de compreender a natureza do pensamento sem atentar para o uso deste conceito, isto é, para como ele já desde sempre toma parte na nossa vida, de como e em que condições ele é usado. Desfazer o mistério é, portanto, dar conta da nova superstição de que podemos tudo explicar teoricamente, como se o mistério que envolve o conceito de pensamento fosse eliminado pela exposição de sua estrutura ou processo oculto. Não é o mistério que provoca a confusão, mas a confusão é que origina o mistério do que se oculta. Não se trata, porém, de simplesmente eliminar o mistério, substituindo-o pela claridade da explicações, mas de mostrar que ele se origina da vagueza dos conceitos, e não, o contrário. E vagueza aqui não é sinônimo de caos, isto é, que não se possam distinguir os múltiplos modos de como o interior se faz presente, e que o distinguem do exterior, desde a relação lógica entre esses conceitos. A vagueza se deve a que nenhum superconceito pode ser tomado como fundamento. Afastamos a cortina para ver o efetivo uso do conceito de interior e nos deparamos com uma atmosfera carregada por uma fina névoa que circunda cada trecho do cenário. E Wittgenstein mesmo reconhece que aqui seu esforço não é pela exatidão, mas pela visão panorâmica (Übersichtlichkeit) (RPP, 1, § 895). No desenvolvimento de seus estudos esboçou vários planos para a classificação dos conceitos ou vivências psicológicos e sempre os foi alterando à medida que sua própria compreensão da maior ou menor similaridade entre esses conceitos ia também se alterando; e isso se deve a dificuldade de se ter uma visão panorâmica precisa e suficientemente clara do "mundo da consciência". Já na primeira tentativa de classificação- RPP, 1, § 836 - ele inicia perguntando se deveria chamar todo o campo psicológico de vivência (Erlebens), e, desse modo, se considerariam todos os verbos psicológicos como conceitos de vivência. A partir do reconhecimento da vivência como conceito central para o conjunto da filosofia da psicologia, ele passa a dividilos em classes e sub-classes. Em outras oportunidades ele revisará a posição dos conceitos psicológicos, mas o que continuará sempre imprecisa é a posição e a verdadeira natureza do conceito de pensar. É uma dificuldade saber se o pensamento é uma subclasse de vivências, ou se sequer faça parte do campo psicológico, ou ainda se não seria um domínio em separado, mas ainda adjacente ao âmbito das vivências (Schulte, 1993, pp. 28-30). Sabemos que o substrato da vivência é o domínio de uma técnica, e que só quem
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tem esse poder, essa habilidade, é que pode afirmar efetivamente ter vivenciado um determinado âmbito do mundo. Mas a vivência que constitui um objeto não é mesma de quem tem ciúmes, dor de cabeça, ou tem expectativas em relação a seu futuro. Se por um lado é necessário comparar vivências e, portanto, estabelecer critério para aquilo que vem ao encontro, de outro, tem-se de reconhecer a dificuldade de, no mundo interior, precisar tais critérios, pois a significação de um conceito psicológico estará sempre demasiado próximo de sua vivência. É por isso que esse conceito é central no conjunto da filosofia da psicologia. De qualquer modo, o "mundo da consciência" se apresenta desde a trama de seus fragmentos, em que cada fragmento é definido na "regra" ou "padrão" como seu modo peculiar de vir ao encontro, e algo só vem ao encontro dentro do jogo de linguagem. Por isso, se não se pode aceitar que o pensar seja um fenômeno (Erscheinung), embora possamos falar do "fenômeno do pensar" (RPP, 2, § 31), pois ainda que haja uma diferença intransponível entre o pensar e os outros conceitos internos como as sensações e as emoções (eu me reEaciono com minha dor de cabeça ou minha dor de cotovelo de modo diferente de como me relaciono com meu pensamento), pois se também se pode "observá-las" no corpo, na fisionomia, na expressão pela linguagem, ou por gemido ou grito, o pensamento, ao contrário, parece algo que se desdobra sempre "dentro de nós". Isso, todavia, não quer dizer que o pensamento não venha ao encontro de algum modo. A "profundidade" do pensamento se deve ao que há de áspero na superficie. Ou melhor: como se pode pensar a natureza do pensamento se a principio ela estivesse oculta? É nos jogos de linguagens que o conceito de pensamento pode ser discriminado. E como os jogos de linguagem vão se alterando no curso da vida, ou melhor, vão imiscuindo seus limites, o "ver como" se deve ao caráter incerto do modo como cada jogo se relaciona com outro, numa situação em que se toma difícil precisar claramente esses limites. Pois o interior é como uma rede de conceitos e ao se tocar num deles os seus efeitos repercutem sobre toda a extensão da rede. No entanto, se o pensamento se distingue dos outros conceitos do interior por ser o mais imune às vivências, isso recoloca a questão: como localizar aí um conceito puro de pensamento, se o interior mesmo é vago? "O interior está oculto para mim", não é igualmente tão vago como o conceito de " interior"? Pois considere então: o interior é, no fim das contas, sensações + pensamentos + representações + disposições + intenções, etc.
(LWPP, I,§ 959).
Nessa descrição nos deparamos com a diversidade do interior. Mas -
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diferentemente da sensações e dos sentimentos - ao tentarmos descrever o pensamento, não corremos o risco de transformá-lo num super-conceito do interior? O conceito de pensar está para o interior como o conceito de corpo está para o exterior. Pois a diversidade do interior parece também confundirse com a diversidade do pensar. É por isso que o conceito de pensar é duro. A diversidade de seu emprego parece abranger toda a "árvore genealógica" dos conceitos psicológicos, ao mesmo tempo que participa da sua indeterminação. É também por isso que a tentativa de compreender o pensar de modo simples faria perder a variedade de seus aspectos, ou ainda pior, correr-se-ia o risco de tomar o "mundo do pensamento" como uma visada unilateral dos aspectos, pois aqui de nada adianta a noção de que seguir a regra seja "isto", pois o conceito pode também ser "aquilo" . Uma resposta simples ao significado do pensar a partir da idéia que basta observarmos como o pensamento ocorre em nós mesmos para que desde aí pudéssemos, desde logo, encontrar sua verdadeira natureza. Seria semelhante a alguém que, sem conhecer o jogo de xadrez, quisesse, vendo o último lance da partida, descobrir o signifi cado da expressão "xeque-mate" (PU, § 316). Trata-se então de compreender que o conceito de pensar participa de jogos de linguagens distintos, mas afins, e, desse modo, não há um modo unilateral do pensar, mas semelhanças que constituem este " fenômeno". E para o esclarecimento do modo do pensamento vir ao encontro, convém desde logo desfazer o paralelo enganador de que a proposição seja uma expressão do pensamento, assim como o grito é uma expressão da dor, como se a proposição pudesse comunicar a alguém o que ocorre em seu aparelho mental, como o grito de alguém exterioriza uma dor no estômago (PU,§ 317-318). A idéia de que o pensamento seja expresso diz respeito à sua relação com seu meio mais freqUente de expressão - a linguagem - e à questão de se é possível falar sem pensar ou pensar sem falar, pois se um ou outro fosse o caso, então o pensamento seria entendido como um processo interno independente de seus meios de expressão, como, alíás, no caso de Platão, os meios de expressão seriam obstáculos ao pensamento. A verdade é o resultado do diálogo silencioso da alma consigo mesma, isto é, só se conquista o mundo do pensamento puro pela abolição da linguagem, e toda tentativa de expressar o pensamento não poderá ser feita sem perda para o pensamento. Porém a questão de se é possível pensar sem falar é semelhante a de se se pode falar sem respirar (Hacker, 1990, p. 346), pois se a dor dá vida ao grito, já não se pode dizer que a proposição seja uma mera manifestação externa do pensar, pois isto dá a idéia de que o pensamento é algo etéreo e que necessita de algum meio ou recurso para se fazer presente, e que a linguagem seja esse meio de transportar o que ocorre no interior para o exterior. A proposição, porém, não é um veículo que
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transporta o pensamento e que pode, a qualquer momento, ser requisitado ou abandonado no fim do percurso. O veículo e o veiculado são um só. De modo que o conceito de pensamento, tornado como processo ou como algo instantâneo que pode já estar pronto antes mesmo de sua manifestação, só seria compreendido desde a descrição de seu emprego, pois se e le não é um processo misterioso interno, se ele também não se manifesta corno um processo externo, como se numa frase se fosse acompanhando-o palavra por palavra para, no fim, ter-se o pensamento por inteiro. A concepção de que o pensamento vai se ordenando através de imagens ou palavras está ainda presa à noção de processo oculto que, através dessas imagens, se faz presente, guardando todavia o segredo deste fazer-se presente, ou melhor de que o pensamento viria ao encontro desde um âmbito não totalmente discernível. Isto é, o pensamento viria ao encontro desde um fundo que escaparia ao próprio pensamento, de modo que a condição de todo ato de pensar é o que não poderia ser pensado. Em outros termos: para compreender-se o pensamento, para pensar o pensamento, ter-se-ia de dar conta do âmbito secreto de onde ele emerge, mas esse âmbito oculto e misterioso seria irresistível para toda compreensão. Causa mais espanto, todavia, que o pensamento não possa radicalmente dar conta de si mesmo, que tenha como obstáculo insuperável a condição de seu vir ao encontro, pois então a raiz do pensável seria o impensável - mas como pode ser obscuro aquilo que esclarece? Nossa maior dificuldade ainda continua sendo a de que o pensamento é freqüentemente concebido como um processo oculto que, às vezes, se desdobra lenta e dificultosamente, outras vezes, ocorre de modo instantâneo, e que ainda se pode dar de modo voluntário ou involuntário. A concepção do pensamento como processo, aliás, é associada à noção de que parece haver solução de continuidade entre o pensamento e sua expressão, como geralmente acontece quando escrevemos e falamos pensando, como se nossas palavras inibissem o caráter espontâneo do pensar. De outro modo, há também a noção - como no cálculo de cabeça - do pensamento instantâneo, isto é, daquele pensar que assume um modo extremamente rápido e que parece atropelar nossas palavras. A noção de pensamento - como um raio que atravessa instantaneamente minha mente - reforça a imagem de que o pensamento é algo irnponderável, o que o distingue dos modos em que pode ser expresso, ou de que ele seja um processo interno que acompanha ou não as atividades externas, e que, freqüentemente, se debate contra elas, como se o seu modo de expressão fosse uma barreira ou uma amarra. Pois quando, tal como na velocidade de um raio, tenho em minha mente surpreendido um pensamento por inteiro, sinto-me então incapacitado de expressá-lo, porquanto ele é sustado pela limitação dos meios de expressão. Isso parece indicar que o
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pensamento independe da linguagem ou de qualquer meio de transmissão. Teríamos então um caso típico da angústia gerada pelo choque do pensamento com os limites da linguagem. No entanto, o que poderia ser uma angústia que fosse apenas angústia e um pensamento que fosse apenas pensamento fora dos modos específicos do seu vir ao encontro? O que não vem ao encontro é o não tematizável. No caso do pensamento como raio, que é apreendido num instante, como se pode saber do que se trata? Como se pode saber o que foi apreendido de modo instantâneo? A idéia de atividade do pensamento também se confunde com a do falar ou do imaginar interior, e, portanto, de que ele se vincula a imagens, embora isso não dê conta de sua verdadeira natureza, pois o pensar é dinâmico, enquanto as imagens tendem a permanecer. Mesmo se pudéssemos ver uma sucessão de imagens na mente de a lguém, ainda assim seus pensamentos nos escapariam, pois não poderíamos saber como ele ordena essas imagens no processo do pensar; as imagens não se confundem precisamente com o pensar, pois, neste caso, é o pensar que daria vida às imagens. Isso é o que ressalta no conceito de pensar seu caráter inefável semelhante ao da ocultação do interior que operaria por detrás da linguagem. Essa concepção falsa também é própria da associação do pensar e da fala interior como contraposta à fala externa, quando em determinadas circunstâncias nos perguntamos se nosso interlocutor não está fingindo, e se suas palavras são apenas um disfarce para ocultar o que realmente pensa. E mais ainda: que as palavras que recorre na conversação são animadas e direcionadas pelo pensamento. Esta é a noção de que o pensamento é um espécie de divisor de águas entre o falar pensante e o falar que não resulta do pensar. Exemplos disso podem ser encontrados no conhecido caso do "pensar em voz alta", isto é, de quando se toma urna sentença como expressão de um pensamento, e nos perguntamos em que condições isso realmente ocorr e, pois, afinal, muitas vezes parece não haver correspondência entre o que se diz e o que efetivamente se pensa, ou de que o que se diz parece não estar determinado pelo pensamento, e então as palavras seriam vazias e inconsistentes, ou ainda, quando não se consegue atingir o cerne do que se pensa, dizendo-se: "ainda preciso pensar melhor sobre isto" ou "não consigo acompanhar o curso de teu pensamento". E isso também está a indicar que o pensamento é um processo às ocultas de modo que constantemente nos escapa, um processo que ocorre de modo independente e paralelo às próprias palavras. É o caso de quando se aprende uma lingua estrangeira, e o professor nos diz que temos de aprender a pensar nessa nova lingua, como se o pensamento como processo interno tivesse agora que ser transferido para uma nova situação, tivesse de manipular de modo distinto uma outra sintaxe e ortografia, como se o pensamento, ao as-
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sumir a nova língua, trocasse de endereço junto com seu portador; poder-seia, portanto, sem alterar o pensamento, dar-lhe outras formas de expressão, trocar-se-ia de lingua como se troca de roupa. Quando se diz que só se pode filosofar em alemão ou em grego, não se estaria aí defendendo que o pensamento mais profundo só pode ser expresso nessas línguas, pois trata-se unicamente de duas tradições filosóficas que marcaram a cultura do ocidente. O que importa não é que o pensamento possa ser melhor expresso em uma ou outra língua, mas que o pensamento venha sempre ao encontro em alguma delas, seja o alemão ou o português, que o pensamento não seja ele mesmo uma atividade secreta e misteriosa que - per moto proprio - lance mão de algum modo privilegiado de vir ao encontro, tendo ele mesmo de ser ''traduzido" para a linguagem. Esta é a mesma concepção que separa o pensamento do seu modo de vir-ao-encontro; é a que também, freqüentemente, leva a dizer-se que fulano agiu ou falou sem refletir, ou que não mediu suas palavras, que apenas sofismou, isto é, que suas palavras carecem de espírito ou de conteúdo que só o pensamento originalmente pode ter. O pensamento mesmo se toma uma super-entidade interna, uma espécie de vulcão que expele o mundo. O professor de fisica aconselha seus alunos a não se limitarem a decorar as fórmulas ou a recorrerem apenas às maquinas de calcular, mas a pensarem no que se constitui como a efetiva solução do problema. Sem a força do pensar, as fórmulas da fisica seríam como que entidades vazias. Assim como para as imagens da memória, também o pensamento seria uma espécie de "sopro vital", e sem ele as palavras seriam apenas uma reunião casual de letras mortas. O conceito de pensamento tem, desse modo, uma aura de algo inefável que se distingue das coisas mais terrenas como, por exemplo, comer ou beber, de modo que freqüentemente se costuma tomá-lo como um ''processo incorpóreo" para distinguir sua gramática da do comer ou beber, pois o que poderia ser mais distinto? No entanto, esta posição também resulta do engano de se considerar o pensamento como processo incorpóreo que se contrapõe a um processo corpóreo, assemelhando-se este engano à idéia de que apenas os signos numéricos são reais, mas os números não são reais. Tomamos um determinado modo de expressão inadequado e não somos capazes de reconhecer o seu defeito de origem. A gramática do pensamento é distinta do comer ou beber, mas não porque o pensamento é, ao contrário destes, um processo imaterial que se desenrolasse distintamente do processo material (PU, § 328). Nosso engano já estava, portanto, na falsa imagem que condicionou a noção de pensamento incorpóreo, cuja terapia nos possibilitará uma visão geral dos vários modos do pensamento vir-aoencontro, ou melhor, dos vários usos desse conceito ou das circunstâncias em que ele é empregado, e para fazer isso não se necessita nenhuma teoria,
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pois trata-se apenas de descrever o que já desde sempre está à mão. Dessa forma, a natureza do pensamento é concebida como um processo oculto e inefável, condição dos meios de expressão, mas inacessível a esses meios, e que, por isso mesmo, como algo resistente à analise, é agora substituído pela concepção de que a essência de urna palavra - o pensamento, no caso - está no uso da mesma, pois, ao contrário, da concepção llo processo incorpóreo que se desenrola às ocultas no espírito ou numa mente. Não podemos adivinhar qual é o funcionamento de uma palavra, temos de visualisar o seu emprego e aprender a operar com ele, só isso indica que compreendemos uma palavra (PU, §340). E não se trata apenas de distinguir uma palavra da outra, mas o uso de cada uma delas. O mundo não é um superconceito, porque é forjado desde os âmbitos desses distintos usos. Essa perda da aura do conceito de pensamento, porém, não ocorre sem resistência. É preciso vencer o preconceito que vê o recurso ao uso como algo "repulsivo". O conceito de pensamento não é mais entendido a partir de uma essência interna que lhe dá univocidade, mas pelo aglomerado de atividades afins, pois se o pensamento se distingue do andar ou do comer, ele mesmo não vem ao encontro de um único modo. Mas é precisamente a ilusão de que a relação entre o pensamento e as palavras seja um processo duplo que ainda tem de ser desfeita, uma vez que ela introduziria um âmbito vazio entre o pensamento e o seu conteúdo, como se a emergência do pensamento fosse independente do pensado. Uma vez que o pensamento tem de vir ao encontro para que, de a lgum modo, possa ser tematizado, isso não quer dizer que seja um processo semelhante ao virar a esmo as páginas de um livro, ou que, ·c omo na fulguração de sua imediatez, viesse ao encontro bruscamente, distinguindo-se do vazio do seu entorno, pois o pensamento coincide com o mundo, e não há espaços vazios no seu vir ao encontro. E só se pode falar do conteúdo de um pensamento, desde que haja harmonia entre o pensamento e a realidade. É essa harmonia que originalmente impede que o pensamento seja algo imponderável ou que opere no vazio. Ele não vem ao encontro para preencher o âmbito em que ainda não chegou. A rejeição de que o pensamento seja um processo feito às ocultas significa que não se trata de uma duração que possa ser cronometrada, como se o pensamento fosse com maior ou menor velocidade o que é pensado, como se o pensamento, como os tentáculos de um polvo, pudesse agarrar algo de fora e trazer para junto de si. O pensamento já sempre coincide com o pensado, o que não quer dizer que o pensamento seja algo imutável, pois a ação do pensar envolve simultaneamente o que pode ou não ser pensado. O pensar não procede num único viés, ele implica o domínio de uma técnica de variação, isto é, ele implica uma autocorreção à medida que avança, poden-
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do alterar os seus conceitos, pois a relação entre regra e caso não está congelada como num céu platônico, mas, ao contrário, a sua práxis abre a possibilidade de alterar a regra, de modo que a mudança aqui não diz respeito apenas ao falar, mas também ao fazer (Tun) (RPP, I, § 910). Isso também quer dizer que o querer já está sempre envolvido com o dominar uma técnica, pois não haveria como discernir urna que fosse apenas um querer independente do jogo de linguagem em que vem ao encontro. A ambigüidade do algo como algo estabelece a essência do conceito como um aglomerado de seus empregos, pois, de um lado, se opera com a intencionalidade que permite dizer o que é dito, de outro, atenta para a própria expressividade do pensar, regido por jogos de linguagem aparentados, os quais são em geral chamados de atos do pensar cuja ramificação é tão vasta quanto a do conceito de pensamento. No entanto, esses dois conceitos não podem ser confundidos, isto é, conceber a intenção apenas sob o modelo do pensamento, embora a gramática do pensar se assemelhe a dos verbos intencionais- querer, intentar, desejar, esperar, ordenar etc. - pois do mesmo modo que um pensamento pode estar correto ou não, também um desejo pode ser satisfeito ou não, uma expectativa pode ser efetivada ou frustrada, e uma ordem pode ser obedecida ou descumprida. A pergunta é como se relacionam esses verbos com a realidade, pois à primeira vista dão a idéia de que um espaço vazio se abre entre eles e a sua realização, como se minha expectativa que p, para ser realizada a contento, tenha de ser preenchida pelo estado de coisas que p, como o bloco do êmbulo preenche o vazio do tubo, porém não se explica a realização de uma expectativa recorrendo às noções causais ou comportamentais, em que a relação entre o conteúdo da expectativa fosse preenchido por um evento ou estado de coisas, pois trata-se de uma relação intrínseca entre a expectativa e o que é esperado. A harmonia entre os verbos intencionais e a realidade deve ser encontrada na gramática da linguagem (Z, § 55), e, como consideramos neste caso que é na linguagem que o pensamento ou a expectativa vem ao encontro, é precisamente porque é na linguagem que expectativa e realização se tocam (PU, § 445). Isso quer dizer que os verbos intencionais já têm um conteúdo; e seria então um erro tomar tais verbos "como se eles tivessem a virtude de antecipar figurativamente um estado de coisas, de modo que a intenção se realizaria pelo preenchimento (Erfülung) de "!ma forma oca graças aos dados fornecidos pela sensibilidade" (Giannotti, 1995, p. 2 11 e p. 221 ). E isso, aliás, seria, desde o conceito de pensamento, uma retomada do modelo objeto-designação, como se o pensamento pudesse ser comparado com algo que, desde fora, viesse ao encontro. Mas aqui qualquer explicação fenomênica ou psicológica não dá conta da questão lógica que aí está em jogo, pois o sentido de uma palavra só vem
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originalmente ao encontro no jogo de linguagem específico, e é precisamente esta possiblidade de discriminar ou comparar jogos de linguagem que aponta sempre para um "como", e, desse modo, permite pensar o que não é o caso, sem que se venha a perder a harmonia entre pensamento e realidade, pois O acordo (Obereinstimmung), a harmonia do pensamento com a realidade reside em que ao dizer falsamente que algo é vermelho, não é por isso que é vermelho. E se quero explicar a alguém a palavra vermelho na proposição " Isto não é vermelho", aponto com este intuito para algo vermelho. (PU, § 429).
E isso tocaria - segundo Giannotti (ibid. p. 220) - o ponto nevrálgico de que a proposição se tome um pensamento intencional, pois então é possível pensar o que não é o caso, isto é, pensar isto assim e assim, sem que esteja assim, pois assim como "-p" é uma operação sobre p, também o sentido de uma proposição negativa só pode ser entendido nessa frase se se explicar o significado de vermelho. E isso envolve o modo com que já sempre operamos com o sistema das cores, a forma de vida onde a gramática das cores é constituída. Em outras palavras, a expressão "ter a intenção de... " é enganosa, se entendida como algo que se antecipa ao seu modo de vir ao encontro, corno algo que antes de ser efetivado paira em meu espírito, tornando-me previamente ciente daquilo que é projetado na expressão da minha intenção, isto é, a noção de intenção presta-se a forjar o engano de que pudéssemos saber o que fazemos antes de sua expressão lingüística, e, portanto, recria o paralelismo entre o pensamento e o seu modo de vir ao encontro. O conceito de pensamento intencional, porém, nada tem a ver com o conteúdo interno da mente ou algo a que a consciência tivesse acesso imediato e privilegiado, corno se eu tivesse em minha mente significações muito vagas à margem de sua expressão linguística. Podemos aí recolocar a questão de um outro modo: uma vez que podemos, na linguagem, expressar o pensamento, como podemos tratar do conteúdo aí expresso? Ou ainda: como especificar este conteúdo sem o descolamento entre o que se expressa e o que é expressado, uma vez que se aceita a tese de que só se pode falar de conteúdo de um pensamento se há uma harmonia interna entre ele e a realidade? Há, como veremos, vários modos do pensamento vir ao encontro, e nem todos são verbais. E, se já somos sempre cientes do modo como veiculamos nossos pensamentos nas palavras, então o que ocorre para que eles sejam veiculados sem que tenhamos de recorrer à noção de processo interno? Noção esta que é, aliás, reforçada pelos casos em que pensamos algo, mas não o expressamos, como se o pensamento fosse sustentado num circuito interno ou num veículo in-
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terno consciente que, apesar da interrupção do ato de pensar é capaz de dar conta do pensamento todo. No entanto, essa é precisamente a imagem do processo interno que procuramos desfazer. A imagem do veículo interno consciente que, à primeira vista, se contrapõe ao exterior, ou é decalcada de seu modelo tal como a noção de objeto privado interno é concebida desde o objeto externo. Segundo esta concepção errônea, sou ciente de meu pensamento de modo semelhante ao que sou ciente do pensamento de outrem, à medida que sou capaz de compreender o que ele expressa lingilisticamente. Mas se tenho meu pensamento interrompido, isto é, quando já não o expresso em palavras, como quando repentinamente vejo o leite ferver e derramar, e apago o fogo, ou quando um programa me aborrece, e eu troco de canal sem expressar lingüisticamente o meu pensamento, isso está a indicar que a consciência legitima para mim o pensamento, mesmo quando as palavras faltam, pois então elas são apenas um modo de o pensamento expressar-se, mas não a condição do seu vir ao encontro; não seriam, portanto, as palavras, mas o estar ciente do conteúdo expresso nelas o que, nesse caso, realmente importaria; este "estar ciente" seria um intermediário entre as palavras e os fatos, o pensamento, portanto, t~ria de atravessar minha mente para abarcar seu objeto, e a coisa sobre a qual eu penso dependeria de um terceiro elemento, uma espécie de "olho da mente". Mas se isso é assim, então a pergunta inevitável - corretamente posta por Malcolm Budd - é a de como se relaciona o estar ciente de um pensamento e o conteúdo dele, ou melhor "como pode o conteúdo de meu pensamento ser derivável do evento que constitui a ocorrência do pensamento? É possível para mim não estar ciente do que ocorre quando eu penso um pensamento e, portanto, não estar ciente deste pensamento, ou estar ciente da natureza da ocorrência, mas não estar ciente do conteúdo do pensamento ou ainda derivar um conteúdo errado (como no caso da terceira pessoa)?" (Budd, l989,p. 129). Essa dificuldade aponta para a insuficiência da noção de que apenas um veículo consciente interno dê, tomando os moldes do estar ciente do pensamento de outrem, condições para que um pensamento tenha direito de cidadania no mundo, como se, ao dizer "Eu penso que p", eu estivesse especificando com ''p" um conteúdo que já não estivesse expresso na linguagem. "A esta palavra, ambos pensamos nele." Suponhamos que cada um de nós tivesse dito a mesma palavra para si próprio, em silêncio, - e MAIS que isto não pode significar, - Mas estas palavras não estariam apenas em germe (Keim)? Elas devem, contudo, pertencer a uma linguagem e a um contexto, para ser realmente a expressão do pensamento naqueles homens.
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Se Deus tivesse olhado em nossas almas, não poderia ter visto lá de quem falávamos. (PU, § 558)
A noção de intenção - e de todos os verbos intencionais - está como que embebida no seus modos de vir ao encontro: nos costumes e nas instituições. Os modos de vir ao encontro, portanto, não dependem de um sujeito monológico, mas situam-se na trama da vida. Só nesses modos de vir ao encontro é que podemos reconhecer o sucesso e as vicissitudes das intenções. E como só se efetiva a intenção de dançar, se se domina a técnica da dança, de pescar se se apreendeu a pescar, também só pode pensar quem domina as técnicas ou práticas em que o pensar está envolvido. A dificuldade do exercício do pensamento não se deve a que ele seja algo profundo, e por isso freqüentente nos escapa, mas à tensão entre o pensado e o ainda não pensado, o domínio de um âmbito de mundo que ainda não se alcançou. Há, portanto, uma constante inclinação para separar o pensamento e a linguagem. Mas, ainda que a proposição seja sempre um veículo do pensar, isso não significa, como vimos, que a proposição e o pensar sejam externos um ao outro, como se a linguagem pudesse ser uma espécie de vestimenta de um processo interno e secreto. O caso da leitura de uma passagem dificil igualmente parece reforçar esta idéia, de que o pensar e o texto duro que resiste à compreensão são procedimentos distintos e paralelos. No entanto, de que modo ele vem ao encontro? Como conferir se o pensamento diz respeito ao que se encontra no texto? Não há uma resposta específica para isto. A vagueza do interior se expressa também na diversidade do conceito de pensamento. E Wittgenstein chega a compará-la a alguém que atravessa uma rua, lançando olhares à esquerda e à direita, tentando abranger os aspectos da circunvizinhança (RPP, 2, § 208). Assim é que a atividade do pensamento só poderá ser testada em relação à leitura do texto dificil quando puder publicamente explicar o que apreendeu na leitura citando e comentando um trecho, chamando a atenção para este ou aquele detalhe, comparandoo com outras passagens do autor, etc. Esses pequenos recursos e habilidades publicamente partilhadas dão a dimensão possível do ato de pensar, o que não quer dizer que o pensamento se confunda apenas com a linguagem predicativa. Pode-se também pensar sem falar ou escrever. E isso novamente indica que o pensar não é um conceito unívoco, que não tem - entre seus vários usos - um uso que seja mais genuíno do que outro. Habitualmente operamos com o conceito de pensar de modo diverso; às vezes ele se assemelha ao meditar ou ao ponderar e temos então uma maior ênfase no elemento reflexivo. A ênfase no reflexivo é resultante de inclinação errônea em tomar o pensamento como um processo mental. Ela pode ser um empecilho
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à compreensão da pluralidade do conceito de pensamento, pois há também elementos práticos no pensar. E deve-se evitar a confusão nos respectivos jogos de linguagem. Tome-se alguém que monta um quebra cabeça ou conserta uma máquina; esse é um caso típico em que está presente o caráter prático em detrimento do elemento reflexivo. Alguém procura reparar num defeito da máquina e atua fazendo escolhas entre as ferramentas de que dispõe, procurando a mais adequada para sua tarefa, rejeitando uma, tentando outra que lhe parece mais eficaz, ora limitando-se apenas a manifestar suas vicissitudes, através de murmúrios ou ruídos guturais, suas hesitações, decepções, surpresas, decisões, satisfações (hum-hum, ahã), ou então dizendo coisas, como: ''Não, este é muito estreito, talvez seja melhor usar este outro" ou "Agora deu!" ou "Apanhei-o!", ou "Este não ficou tão mal", e assim por diante. Desse modo, não se pode separar o pensamento da atividade de consertar a máquina, como também não se pode tomá-lo como um processo paralelo que acompanha o conserto da peça; e, nesse caso, ainda se pode distingui-lo de uma atividade meramente mecânica (RPP, 2, § 183- 184). Além dos elementos reflexivos e práticos do conceito de pensamento, pode-se considerar um componente emotivo do pensamento, de cuja análise Wittgenstein deixou apenas alguns indícios (Budd, 1989, p. 155). A gramática do pensamento, por confi.mdir-se com a complexidade do conceito de interior, parece ter mais a ver com as emoções do que com as sensações. O uso desse conceito, à primeira vista, pode, em certas situações, estar como que contagiado pelas emoções, porquanto se pode falar de um pensamento triste, de um pensamento alegre ou jovial, de um pensamento assustador ou esperançoso; pois se um pensamento pode originar essas emoções, ele não pode fazer o mesmo com uma dor qualquer, dor de dente ou de cabeça. Posso me livrar de uma dor tornando uma aspirina, mas que medicamento me afastaria de pensamentos tristes ou repugnantes? Qual a relação entre estas duas instâncias conceituais? Não estaríamos assim confundindo dois conceitos distintos, tomando o uso de um pelo de outro, como se o pensamento fosse uma ocorrência paralela às emoções, ou como se se pudesse mesmo ser açambarcado por elas, como se fosse vulnerável a emoções como o medo ou o temor. Esse tipo de engano origina questões, como: o pensamento é vulnerável ao medo ou o medo é vulnerável ao pensamento? O engano deve-se novamente a que uma emoção pudesse ser a causa de um pensamento, que um pensamento agradável se devesse a uma emoção que, desde fora, afetasse o pensamento e o afastasse do tédio ou da amargura. Novamente estamos às voltas com o modelo objeto-designação, em que a relação conceitual é externa; ou o pensamento dirige-se para a emoção, ou a emoção contamina o pensamento, ou simplesmente o acompanha. Neste caso o elemento emocional é parte
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integrante dele. Um pensamento temeroso ou assustador é algo que diz respeito ao modo de ser do pensamento mesmo, e, como tal, não poderia ser alterado por emoções alegres ou prazeirosas. Um pensamento assustador pode ser alterado, dando um rumo distinto ao pensamento, ou substituindo-o por um pensamento mais agradável. Uma expressão como "Não posso pensar sobre isto sem medo" pode ser contornada com por outra "Não há razões (Grund) para ter medo, veja que..." (RPP, 2, § 161). O medo é vulnerável ao pensamento, mas no sentido em que um pensamento com medo pode ser substituído por um pensamento mais tranqüilizador ou mais audacioso que, ao se articular de um outro modo, rompe a barreira do medo incrustada no próprio pensamento. Por ora, temos condições de compreender o conceito de pensamento I) fora da aura de sublime ou de imponderável à medida que ele é agora, ao contrário, compreendido desde a noção "repulsiva" de uso (RPP, I, § 548) a essência do pensamento encontra-se na gramática; 2) o pensamento não é uma atividade mental ou cerebral; 3) o pensamento não é "atividade auxiliar", com a qual se alcançaria um objetivo externo, ou pela qual algo emergiria na superficie do mundo; 4) a linguagem não é um meio através do qual se revela o pensamento; 5) o pensamento não é um enigma que pode ser resolvido por a lguma teoria, e, 6) o conceito de pensamento é plw-ívoco. Referências bibiográficas e abreviaturas Budd, M. 1989. Wittgensteins 's Philosoplry o.f Psychology. Londres: Routledge. Gianotti, J. A. 1995. Apresentação do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras. Hacker, P. M. S. I 990. Wittgenstein: Meaning and Mind; An Analytical Commentaty on the Philosophical lnvestigations. Oxford: Blackwell. vol. 3. Schulte, J. 1993. Experience and Expression: Wittgenstein 's Philosophy of Psycho/ogy. Oxford: Clarendon Press. Wittgentsein, L. 1984. Werkausgabe. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 8 vols. - -. 1984. Phi/osophische Untersuchungen (PU). Band I, Frankfurt am Main: Suhrkamp. - - . 1980. Remarks on the Phi/osophy of Psychology. (RPP, l) Oxford: Blackwell, vol. I.
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1980. Remarlcs on the Phi/osophy of Psychology. (RPP, 2), Oxford: Blackwell, vol. 2.
--.1982. Last Writings on the Phi/osophy of Psycho/ogy: Preliminary Studies for Part li of Philosophica/ Investigations. vol. I (LWPP, 1), Oxford: Blackwell. - - . 1992. Last Writings on the Phi/osophy of Psychology: The Inner and the Outer, vol. 2 (LWPP, 2), Oxford: Blackwell.
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MODELO DETERMINISTA DO UNIVERSO NA FILOSOFIA MODERNA SARA ALBIERI
Universidade Federal de Santa Catarina
A metáfora que melhor representa o modelo dos pensadores modernos é a do relógio. Ela alude a um mostrador e um mecanismo: do lado externo, visíveis, os fenômenos da natureza; por trás deles, ocultas, as engrenagens que os impulsionam, suas causas. O que o mostrador apresenta é movimento; é ele que precisa ser explicado. A chave que decifra suas proporções, que permite seu cálculo é mecanismo: o funcionamento regular de engrenagens internas, uniforme, regido por leis. Se o mostrador nos aparecer confuso, desregulado, não será devido ao acaso: um exame do mecanismo apontará as causas interferentes da disjunção. E também o modo de corrigi-la. Porque a explicação mecânica da ação está também na origem da intervenção: o relógio do universo envolve os teóricos que explicam os seus movimentos, e os técnicos que efetuam consertos, substituições e aprimoramentos em suas partes. Tanto é possível decifrar as leis que regem o mecanismo, como intervir nele, para reparos ou aprimorá-lo. Ciência moderna, mas também técnica moderna. O relógio da natureza confere dignidade e importância aos artesãos que constroem seu análogo, o relógio mecânico, tanto quanto aos que, a partir deste, desenvolverem os sofisticados instrumentos que servem aos seus observadores e teóricos. Vale notar que durante os séculos XVI e XVII os grupos intelectuais que contribuíram para o desenvolvimento da saber científico tinham um caráter amplo e heterogêneo, incluindo desde professores de matemática, astronomia e medicina nas universidades, até a médicos, engenheiros, construtores de instrumentos, óticos, viajantes. Foi um intervalo entre o mestre artesão medieval e o doutor universitário da Idade Moderna, em que, para se tomar "cientista", não era preciso latim ou matemática. "As publicações nos anais das academias e o ingresso nas sociedades cientificas estavam abertos a todos- professores, experimentadores, artesãos, curiosos e diletantes" 1• As 1
Rossi, P., Os Filósofos e as Máquinas, p. 10.
Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de Filosofia Anafftica. Florianópolis: NEL, pp. 263-76.
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universidades parecem ter-se mantido, durante o século XVII, fechadas às doutrinas da nova filosofia mecânica experimental. Esta era principalmente difundida nos anais e periódicos das academias e das várias sociedades cientificas. Os cientistas "cultos" nos moldes tradicionais passam a levar em consideração os grandes progressos da técnica empírica, relatados nas publicações que polemizam com as teorias ministradas nas universidades, e de alguma forma a incorporar para a nova ciência o ideal de submeter a natureza, antes exclusivo das artes e oficios. Era natural, então, que os produtos dessas mesmas artes fornecessem às ciências suas metáforas. A metáfora do relógio é uma espécie de lugar comum nos autores do século XVII; ela está presente em Descartes, Locke, Newton e Boyle, apenas para citar os maiores nomes. Ela parece adequar-se à doutrina corpuscularista, comum a todos, na medida em que as partes diminutas que constituem a tessitura última do real se ocultam à vista tal como as engrenagens de um relógio sob o mostrador. Podemos citar Descartes: "Para o que o exemplo de diversos objetos construídos pelo artifício dos homens me serviu bastante: pois não reconheço diferença alguma entre as máquinas que os artesãos constróem e os diversos corpos que só a natureza constrói, exceto que os efeitos da máquinas só dependem da ação de certos tubos ou peças ou outros instrumentos que, tendo que guardar alguma proporção com as mãos daqueles que os fabricam, são sempre tão grandes que suas formas e movimentos podem ser vistos, enquanto os tubos ou peças que causam os efeitos dos corpos naturais são de ordinário pequenos demais para serem percebidos por nossos sentidos. E é certo que todas as regras da mecânica pertencem à física, de modo que todas as coisas que são artificiais são por isso naturais. Pois, por exemplo, enquanto um relógio marca as horas por meio das engrenagens de que é feito, isto é tão natural quanto para uma árvoreproduzir seus 1Tutos."2 O corpuscularista Locke também recorre ao mesmo artificio textual: Nossas Faculdades não nos conduzem mais longe no conhecimento e distinção de Substâncias do que em uma coleção daquelas Idéias sensíveis que nelas observamos; a qual, embora feita com maior diligência e exatidão de que somos capazes, contudo está mais distante da constituição interna de onde partem tais qualidades do que, como disse, está a idéia de um campo-
2
Descartes. CEuvres, vol. ill, iv, Príncipes..., p. 520.
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onde partem tais qualidades do que, como disse, está a idéia de um camponês do mecanismo interno daquele famoso relógio de Estrasburgo, do qual só vê a figura externa e os movimentos. 3
A referência ao mecanismo da natureza se encontra também em Hume, em geral, porém, aludindo à necessidade das leis que regem os fenômenos da natureza: "Tudo é certamente governado por leis estáveis, invioláveis" diz Fílon nos Diálogos. "Em vez de admirar a orde m dos seres da natureza, deveriamos ver claramente que seria absolutamente impossivel para eles, no menor aspecto, admitir qualquer outra disposição."4
Hurne fala também dos princípios da natureza humana a serem descobertos por sua ciência, como as molas de um mecanismo- "descobrir, pelo menos em certo grau, as molas e princípios secretos pelos quais a mente humana é guiada nas suas operações" (EHU, I, 9). O interessante disto tudo é que mecanismo está sempre associado a determinismo. O relógio dos modernos é sempre interpretado como urna metáfora determinista no sentido forte. A cadeia causal que move o mecanismo da natureza é um sistema preciso onde não há lugar para o acaso. Se se altera, se se detém, novas causas interferiram: quando desvendadas e conhecidas, reestruturam nosso modelo mecânico numa nova ordem. Em qualquer caso, um determinismo otimista: a completa explicação do mecanismo é um questão de tempo e de instrumentos. Quando as partes diminutas se tomarem visíveis nas poderosas lentes dos microscópios, confirmaremos o que agora só podemos conjeturar acerca das causas ocultas dos fenômenos. O determinismo mecanicista - e seu símbolo, o relógio - assim foi lido pela posteridade. No artigo "De Nuvens e relóg ios" 5 , Popper procura situar a metáfora do determinismo clássico perante as teorias fisicas indeterministas. Assim, o relógio de precisão representa sistemas fisicos que são regulares, ordenados, e de comportamento altamente previsível. Já as nuvens representam sistemas fisicos que, tal qual gases, são irregulares, desordenados e mais ou menos imprevisíveis. Popper toma o determinismo físico como uma conseqüência da dinâmica de Newton que afU111a um mundo de precisão matemática absoluta. A metáfora do relógio é entendida da maneira mais radical: como um Locke. Essay on Human Understanding, m, vi, 9. Hume. Dialogues Concerning Natural Religion, p. 420. 5 Popper, K., De Nuvens e Relógios, in: Conhecimento Objetivo, p. 193s. 3
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mecanismo completamente auto-suficiente, sem intervenções externas nem acaso. O que a teoria de Newton fez valer para o movimento dos planetas, marés e balas de canhão, passou a valer para todo o universo. O que não nos parecia preciso como relógios - mas errático como nuvens, na metáfora de Popper - assim o era apenas devido ao estado atual de nossos conhecimentos, ou nossa ignorância. O avanço das descobertas acabaria por mostrar que nuvens gasosas ou organismos têm mecanismos tão precisos quanto o "relógio" que é o sistema solar newtoniano. Talvez, porém, o modelo determinista não tenha uma aplicação tão pacifica e sem ambigOidade nos autores desse período. Talvez a metáfora do relógio permita mais de uma interpretação. Em defesa de uma leitura diferente do determinismo cartesiano, Laudan 6 transcreve o seguinte trecho: Assim como um relojoeiro engenhoso pode fazer dois relógios que marquem as horas igualmente bem e sem nenhuma diferença em sua aparência externa, e contudo sem nenhuma semelhança na composição de suas engrenagens, assim é certo que Deus trabalha de modos infinitamente diversos, cada um dos quais lhe permite fazer tudo no mundo aparecer como é, sem tomar possível à mente humana conhecer qual dessas maneiras decidiu utilizar. E creio ter feito o suficiente se as causas que listei sejam tais que os efeitos que possam produzir forem semelhantes àqueles que vemos no mundo, sem sermos informados se há outros modos pelos quais são produzidos." 7
Trata-se de um texto revelador não só do mecanicismo de Descartes, já bem conhecido e reconhecido pelas interpretações clássicas, mas que apontam para um Descartes formulador de hipóteses. É tese de Laudan que, embora Descartes afirme constantemente a dedutibilidade dos fatos da física a partir dos Primeiros Princípios, nenhuma dedução por ele oferecida para algum fato particular parece ser única ou exaustiva. Na verdade, em sua obra científica, ele cairia constantemente em afirmações hipotéticas. O método hipotético é o único método coerente com a fi losofia corpuscularista, e com a metáfora do relógio. Se as "partes diminutas" - o mecanismo - estão para sempre ocultas à nossa investigação e nosso conhecimento delas será sempre conjecturai. No texto de Descartes, a metáfora do relógio adquire o valor de uma analogia. É possível falar das coisas imperceptíveis por analogia com as sensíveis. É possível confiar em que os processos insensíveis sejam análogos 6 7
Laudan. L., The Clock Metaphor and Hypotesis, in: Science and Hypothesis. Descartes, CEuvres, vol. ill, i v, Pricipes..., p. 521.
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aos sensíveis, e que é possível conhecê-los estendendo hipoteticamente esta similitude. Se é esta a leitura privilegiada da metáfora do relógio, o mesmo vale para Locke e sua aceitação da hipótese corpuscularista em ciência. Esta leitura, evidentemente, contraria a versão tradicional do empirismo de Locke. Intérpretes como Yost, por exemplo, afirmam que o empirismo de Locke se opunha claramente a toda teoria científica que fizesse hipóteses a respeito de inobserváveis. Se recorria a elas, "eram hipóteses sobre correlações entre qualidades observáveis, e não se referiam a mecanismos submicroscópicos. " 8 Contudo, há textos de Locke que apontam para a aceitação do método de hipóteses como método científico. Por exemplo, referindo-se à limitação de nosso conhecimento da co-existência de poderes nos corpos, defende a ''hipótese corpuscularista como a que mais avança numa explicação inteligível daquelas qualidades dos corpos." Mas admite que nenhuma hipótese permitirá o conhecimento pleno daquelas qualidades; duvida que '"'com as faculdades que temos sejamos um dia capazes de conduzir muito mais adiante nosso conhecimento sobre isso."9 Como Descartes, ele admite o caráter definitivamente oculto do mecanismo apenas para consagrar o caráter conjecturai e probabilístico de nossa ciência da natureza. A aceitação do método de hipótese, segundo Laudan, parece ter enfraquecido à medida que aumentava a fé no microscópio, a ponto de, por volta da metade do século XVIII, já perder francamente terreno para a observação e a experiência. A metáfora do relógio ainda é utilizada, mas com um novo significado: ela agora simboliza o otimismo frente aos mecanismos ocultos da natureza, confiando que, através de instrumentos adequados, poderão ser escrutinados por uma observação cuidadosa, estabelecendo ou refutando por fim a teoria corpuscular. Henry Power confia em que, com a ajuda do microscópio seremos capazes de eventualmente ver corpúsculos e "determinar seus mecanismos precisos." Ele prevê a construção de uma "filosofia verdadeira e permanente", baseada na devassa microscópica da natureza e nas "demonstrações infalíveis da mecânica." Neste outro texto Power defende não somente uma base sólida para a filosofia experimental como apresenta a síntese acabada do teórico e do instrumental.
8
Yost, R , 1951. pp. 111-30.
9
Essay ••• Iv, iii, 19.
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Pois os antigos dogmáticos e cspeculadores de noções, que somente viam os efeitos visíveis c os resultados últimos das coisas, não entendiam mais da natureza do que um rude camponês entende do mecanjsmo interno de um relógio, de que somente vê os números e o círculo horário, e quem sabe ouve o alarme soar nele. Mas quem der conta satisfatoriamente dos fenômenos, deve ser de fato um artlfice, e um especializado nas engrenagens e artefatos internos de tais engenhos anatômicos" 10•
E 1-fooke escreve: " ... e com a ajuda dos microscópios, nada há tão pequeno que possa escapar à nossa investigação. Parece provável que com a ajuda destes [instrumentos óticos] a sutHcza da composição dos corpos, a estrutura de suas partes, a textura variada de sua matéria, os instrumentos e o modo de seus movimentos internos, e todas as aparências posslveis das coisas, poderão ser mais plenamente descobertas ..." 11
Assim, aos poucos, a metáfora que Descartes e os filósofos sistemáticos ajudaram a criar volta-se contra eles. Antes o relógio representava o teor do conhecimento da natureza, feita de macanismos e regularidades, mas também o seu limite, seu caráter hipotético e conjecturai diante do permanentemente oculto. Tratava-se de um "determinismo pessimista". Agora, a fé na capacidade dos instrumentos óticos compara essa renúncia ao conhecimento cabal dos mecanismos à atitude simplória do leigo, ao temor do homem rude diante das sutilezas que o observador treinado está preparado para desvendar, dispondo de instrumentos adequados. As hipóteses recuam diante do avanço da técnica. Se é verdadeira a descrição dessa evolução histórica, Hume, enquanto autor do século XVIII, deveria compartilhar desse novo "otimismo" metodológico; em vez de lançar hipóteses para "salvar as aparências", deveria tentar descobrir realidades. No entanto, este otimismo parece estar bem longe de Hume. Por exemplo, embora se refira às molas e princípios que produzem os fenômenos, através de um "mecanismo regular e constante", nunca conta com a possibilidade de termos delas um conhecimento pleno. Podemos até nos orientar pelo horizonte de wna ciência perfeita, ou a "mais 10
Power, H., 1664. Experimental Philosophy, Prefácio, citado por Laudan in 'The Metaphor and Hypothesis", p. 48. 11 Micrografia, London, I 665, prefácio, citado por Laudan, The Clock Metaphor..., p. 56,
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inteligível filosofia"; contudo, ela não interfere na construção de nossa ciência hoje, que, para fins operacionais, não pode guiar-se por essa esperança. As qualidades últimas e originais da natureza, incluindo a natureza humana, que residem "na textura e estrutura particular das partes diminutas" dos homens, animais e das coisas, estão totalmente escondidas dos nossos olhos e dos microscópios: a idéia reguladora de Hume é que seu conhecimento se encontra indefinidamente fora de nosso alcance. 12 Deve-se admitir que a natureza nos manteve a grande distância de seus segredos, e apenas nos pennitiu o conhecimento de algumas qualidades superficiais dos objetos, enquanto nos oculta aqueles poderes e princípios dos quais depende inteiramente a influência desses objetos." 13
Os textos da teoria do conhecimento de Hume são inequívocos a respeito do processo de descoberta de causas: a partir da experiência dos efeitos, podemos inferir as causas, quer sejam apenas inobservadas ou inobserváveis. É assim que chegamos ao conhecimento das leis das operações dos corpos bem como dos princípios da natureza humana. Mas não é possível à especulação filosófica apontar a causa última de qualquer dessas operações. Reconhece-se que o supremo esforço da razão humana é reduzir os princípios causadores dos fenômenos naturais a uma maior simplicidade e reportar os numerosos efeitos particulares a umas poucas causas gerais por meio de raciocínios baseados na analogia, na experiência e na observação. Mas, quanto às causas dessas causas gerais, seria em vão que tentaríamos descobri-las; e tampouco encontraremos jamais uma explicação delas que nos convença plenamente. Essas origens e princípios primeiros são completamente fechados à curiosidade e à investigação humanas." 14
Levando-se em conta esses textos Hume parece ser tão cético a respeito da explicação causal plena do universo quanto o é no célebre argumento contra a fundamentação racional da indução. E no entanto outros textos afirmam a tese da causação universal estendida igualmente a fenômenos naturais e humanos. 12
Hume. O. NHR, ID, p. 316. Sobre a presença do método de hipóteses na filosofia dde Hume. ver J. P. Monteiro, ''A Teoria e o Inobservável", in: Hume e a Epistemo-
logia. 13 EHU, IV, ii, 29. 14 EHU, IV, i, 26.
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Admite-se universalmente que a matéria é atuada em todas as suas operações por uma força necessária e que todo efeito natural é determinado com tal precisão pela energia de sua causa, que, nas mesmas circunstâncias dadas, não seria possível resultar dela nenhum outro efeito. (...) Admite-se universalmente que existe uma grande uniformidade entre as ações dos homens em todas as nações e idades, e que a natureza humana permanece sempre a mesma em seus principios e operações." 15
Na verdade, a tese determinista humeana é a de que os fenômenos constituem uma só cadeia causal e de que não há ruptura que separe em dois universos de conhecimento diferentes as operações dos corpos e as operações da mente. "E em verdade, quando consideramos a afinidade com que a evidência natural e a moral se ajustam uma à outra, e formam uma só cadeia de argumentação, não hesitamos em admitir que elas são da mesma natureza e derivam dos mesmos princípios." Dessa forma, nenhum fenômeno, quer pertença à esfera da natureza, quer seja da ordem das ações dos homens, escapa à "cadeia conexa de causas naturais e ações voluntárias" que não ~á margem à intrusão do acaso16• Todos os fenômenos, morais ou naturais, estão ligados por relações de causalidade, observáveis ou não, conhecidas ou não, e por elas devem ser explicados. Apoiado em tal rede de relações, o conhecimento das ações dos homens não é menos seguro que o dos fenômenos da natureza. Apenas é possível distinguir graus em nossas certezas morais, como nas naturais. Assim, "existem algumas causas que são inteiramente uniformes e constantes na produção de um efeito particular, e até hoje não se observou 17 um só exemplo de fallia ou irregularidade na sua operação" • Que o fogo queima e a água sufoca a criatura humana são causas dessa ordem, assim 1 como que todos os homens são mortais. De resto 'pareceria ridículo dizer 18 que é somente provável que o sol nascerá amanhã." Do mesmo grau de certeza partilha a seguinte afirmação: "um homem que ao meio-dia deixa a sua bolsa cheia de ouro no passeio de Charing Cross, tão facilmente pode esperar que ela crie asas e levante vôo dali como que a encontrará intata uma hora depois." 19
EIID, vm, 64-65. EIID, vm. 10. 17 EHU, VI, 47.
15
16
18 19
THN, I, iii, 11, p.l24. EIID, vm, i, 10.
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A tais inferências Hume atribui o valor de provas - "argumentos extraídos da experiência que não deixam lugar a dúvida ou contestação."20 Muitas vezes, porém, atribuímos a nossas inferências sobre questões de fato graus inferiores de certeza, sempre que estas se referem a causas que se têm mostrado mais irregulares e incertas: "o ruibarbo nem sempre age como um purgativo ou o ópio como um soporífero para todos os que ingerem esses medicamentos." Nesses casos em que "efeitos diferentes" parecem decorrer de "causas aparentemente idênticas", nossos argumentos têm o valor de probabilidades. Costumamos esperar como mais provável, portanto como acompanhado de maior certeza, o evento "mais usual", que no passado ocorreu um maior número de vezes, sem contudo deixar de levar em conta os vários outros efeitos já ocorridos dando "a cada um deles um peso e autoridade particular, conforme se haja mostrado mais ou menos freqüente no passado."21 Nesse âmbito em que toda experiência do mundo é repartida entre provas e probalidades, não há lugar para o acaso. Hume estende sua idéia de determinação e de necessidade para as questões de fato, não apenas quando se trata de provas; também no caso das probalidades, tem que haver cadeias causais necessárias, no sentido de que a cada efeito corresponde sempre uma causa proporcional. Apenas, no caso destas últimas, nosso exame experimental das causas falhou em distingui-ias adequadamente, e por isso é que apenas aparentemente efeitos diferentes podem decorrer de causas idênticas. O que pode parecer um fenômeno acidental não é senão um efeito cuja causa nos é desconhecida, uma irregularidade que se deve a alguma causa particular, mas que não invalida de modo algum nossa concepção de uniformidade e necessidade. Assim, "quando os medicamentos não operam com os seus poderes costumeiros", o médico nem por isso nega "a necessidade e uniformidade dos princípios que regem a economia animal." 22 Da mesma form a, o filósofo que examina as ações dos homens não se deixa enganar por irreguaridades aparentes, porque confia que os "princípios e motivos interiores poderão operar de maneira uniforme ... assim como os ventos, a chuva e as nuvens são governados, ao que se supõe, por princípios constantes, embora a sagacidade e a investigação humana não consigam descobri-los facilmente."23 Os fenômenos em geral apresentam-se irregulares, e cabe à sagacidade
20
EHU, VI, nota 9. EHU, VI, 47. 22 EHU, VII, i, 67. 23 EHU, 68. 21
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do observador descobrir sua necessidade e regularidade, no caso do médico como do astrônomo, corno também do filósofo moral.24 É deste ponto de vista que podemos entender a homogeneidade que Hume reconhece entre necessidade fisica e necessidade moral. Se é verdade que os fenômenos humanos nos parecem mais confusos, dificultando um recorte experimental que exponha com nitidez a operação uniforme das cadeias causais, nem por isso devemos concluir que são de outra ordem que os fenômenos naturais, ou que ocorram de maneira menos necessária. Se desconhecemos as causas de certos fenômenos, ou se efeitos diferentes parecem decorrer das mesmas causas, isso se deve ao desconhecimento que temos de todas as circunstâncias envolvidas na produção do evento. "As mais irregulares e inesperadas resoluções dos homens podem ser freqüentemente explicadas pelos que conhecem todas as circunstâncias particular~ de seu carát:~ e situação."2~ Portant~, o que Hume nos diz ~-~espeitot,da un~qade entre fenomenos naturaiS e mora1s nada tem a ver com 'a' recusa de-um conhecimento seguro; ao contrário, afirma que doravante as ciências do homem poderão contar com o mesmo grau de certeza sempre atribuído às ciências naturais. Mas a tese humeana da causação universal não eqüivale a uma tese determinista em sentido forte. Vimos que a explicação causal dos fenômenos tem alcance limitado, e que inúmeros textos seus nos repetem que nunca atingiremos as "causas ocultas" dos fenômenos, que os poderes pelos quais os corpos operam permanecerão sempre completamente desconhecidos, inacessíveis à nossa ciência26• E esse desconhecimento do "princípio último", que liga uma causa a seu efeito é o mesmo, tanto para as conjunções mais freqüentes, entre dois fenômenos, quanto para as mais extraordinárias.27 Nesse sentido, o ' 'relógio da natureza" de Hume não é diferente daquele de Descartes ou Locke, sobre cujo mecanismo não é possível mais que um conhecimento hipotético. Por outro lado, é preciso operar com esse conhecimento como se ele realmente desse conta desse mecanismo oculto. Diz Descartes:
24
Cf Lebrun, G., La Boutade de Charing-Cross.
2S Ibidem. 26
Por exemplo, no Tratado, Hume critica os filósofos que, para explicar qualquer fenômeno ignorado, atribuem-no a uma "fàculdade" ou "qualidade oculta". THN, I,
iv, 4, p.224. THN, I, i v, p.267.
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" ... desejo que o que cu escreva seja tomado apenas como uma hipótese, a qual está talvez bem distante da verdade; mas, mesmo que assim fosse, eu acreditava ter feito o bastante se todas as coisas que fossem delas deduzidas fossem inteiramente conformes às experitlneias: pois se assim for ela será tão útil à vida quanto se fosse· verdadeira, porque poderia servir do mesmo modo para dispor as causas naturais a produzirem os efeitos que se deseje. 28
Nada há de errado em tal procedimento. O título do § 204, parte lV dos mesmos Princípios garante que "a respeito das coisas que nossos sentidos não percebem, basta explicá-las como poderiam ser"; afinal, isto "é tudo o que Aristóteles se dispôs a fazer." Boyle, cartesiano quanto à maioria dos postulados metodológicos básicos, conforme compe_tentemente mostra Laudan, confirma a origem aristotélica dessa postura de ater-s~ ãs hipóteses que provem sua eficácia em explicar os fenômenos e operá-los, sem perguntar pela verdade última: O próprio Aristóteles (embora pareça às vezes expressar confiança) no seu primeiro livro dos Meteoros candidamente confessa que, a respeito de muitos fenômenos da natureza, julga suficiente que possam conduzir-se da forma como ele os explica." 29
A concepção hobbesiana do conhecimento científico não é menos conjecturai, e muito semelhante à linguagem cartesiana: " ... aquele que supondo um ou mais provimentos, pode deles derivar a necessidade daquele efeito cuja causa se requer, fez tudo o que se espera da ra;r..ão natural. E embora não prove que a coisa foi produzida dessa forma, contudo prova que dessa forma pode ser produzida ... o que é tão útil quanto se as causas mesmas fossem conhecidas.'' 30
Tantos exemplos para o caráter paradigmático dessa atitude metodológica frente ao uso de hipóteses e ao alcance das explicações assim produzidas. Se mostramos que Hume também faz hipóteses, ele não é exceção quanto a tomá-las por seu caráter operacional:
(Euvres, m, iii, Príncipes, p. 247. Laudan, L., The Clock Metaphor ... , p. 41. 30 Hobbes, English Works, vol. VII, pp. 3-4, London, 1845. 28
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Qualquer coisa pode produzir qualquer coisa. Criação, aniquilação, movimento, razão, volição; todas estas podem surgir umas das outras, ou de qualquer objeto que possamos imaginar. (...) Portanto, já que é possívcl1para todos os objetos tomarem-se causas ou efeitos uns dos outros, pode ser adequado estabelecer algumas regras gerais, pelas quais possamos saber quando o são de fato." 31 Esta é a introdução que Hume dá às regras para julgar as Causas e os Efeitos", que dizem respeito a procedimentos de decisão sobre relações causais e métodos para testar a procedência de relações causais. Elas propõe um guia seguro para casos duvidosos em que se insere a maioria de nossos raciocínios sobre a natureza e os homens, sobre questões de fato. Algumas dessas regras já são versões dos Métodos da Concordância, Diferença e Variações Concomitantes mais tarde tornados famosos por Mill como métodos para a avaliação da indução. Parece claro que Hume se preocupava sobretudo com a eficácia experimental das relações causais estabelecidas, e silenciava sobre o seu caráter de adequação à verdadeira natureza dos fenômenos. A metáfora do relógio refere-se também à técnica não sem propósito. Os exemplos de Hume, vimos, são do astrônomo, do médico. Descartes também defende essa aplicabilidade "... pois a Medicina, a mecânica, e em geral todas as artes às quais o conhecimento da fisica pode servir, só têm por finalidade aplicar de tal forma certos corpos sensíveis uns aos outros, que em decorrência de suas causas naturais, certos efeitos sensíveis sejam produzidos."32 A tese da determinação em ciência, quando afirmada de forma estritamente universal, não pode a rigor ser defendida como uma generalização bem fundada acerca do mundo tal como o conhecemos. Não pode ser demonstrada, porque há um conjunto talvez infmito de eventos dos quais não conhecemos as condições determinantes. Não pode ser refutada, porque fracassar em descobrir as condições determinantes de um evento não demonstra que não existam de fato tais condições. Ela é uma tese frutífera quando utilizada como princípio operativo, regulador, o qual, tal como o principio da causalidade, constitui um dos principais objetivos da ciência, isto é, a descoberta dos determinantes dos eventos.33 31
THN, I, iii, 15, p. 173. Principes, p. 522. 33 Nagel. E., La Structura de La Ciência, p. 543. 32
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É este o estatuto do determinismo em Hume: o de um princípio regulador que ajuda a operar recortes experimentais. Nos dois campos, natural e moral, acaso e necessidade perdem sua dimensão ontológica e passam a designar a passagem contínua que vai do regular ao extraordinário, distinções de grau acessíveis ao observador sagaz, ao experimentador. Os diversos graus de conexão causal entre os fenômenos só podem ser estabelecidos pela ciência experimental que doravante se posicionará diante do "acaso" ou do "acidente" como o cientista diante do ''fracasso" de um experimento, perguntando-se: "Qual a outra série descontínua cuja intrusão provocou a in:egularidade aparente?" 34 Há dois sentidos, portanto, na metáfora do relógio, que correspondem a dois tipos de determinismo. O determinismo em sentido forte, otimista, vê o relógio como símbolo da regularidade da natureza que é missão da ciência decifrar; com o avanço da técnica e dos instrumentos de observação, ela acabará por fazê-lo. É esse o relógio que Popper critica em favor das nuvens. O determinismo em sentido fraco é pessimista; sabe que a única evidência sobre o mecanismo oculto do relógio é o mostrador. Este é apenas um indício da regularidade, da uniformidade. As hipóteses explicativas são eficazes na medida em que levam em conta essa regularidade. Mas só valem por essa eficácia, e por ela são avaliadas. É esse o mecanismo misterioso do relógio para os pensadores modernos, de Descartes a Hume. Estes, ao mesmo tempo que constróem suas hipóteses tendo como horizonte teórico a regularidade e a uniformidade da causação universal, restringem seu alcance à explicação dos fenômenos, aceitando que os segredos da natureza permanecerão inacessíveis a qualquer investigação.
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34
Lebrun, G., La Boutade de Charing-Cross, p. 75.
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- - . 1957. An Enquiry Concerntng the Principies of Mora/s. (EPM), Oxford: Clarendon Press.
Laudan, L., 1981. Science and Hipothesis. Histtorical Essays on Scientific Methodology. Boston : D. Reidel. Locke, J., 1959. An Essay Concerning Human Understanding. New York: Dover. Monteiro, J. P. 1984. Hume e a Epistemologia. Lisboa: lmprensaNacional Casa da Moeda. Popper, K. R. 1975. Conhecimento Objetivo. São Paulo: Editora da USP. Rossi, P. 1989. Os Filósofos e as Máquinas. ·São Paulo: Companhia das Letras. Yost, R 1951. ''Locke' s Rejection of Hypotesis About Sub-Microscopic Events." Journa/ ofthe History ofideas, 12: 111-30.
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CONFECCIONADO NAS OFICINAS GRÁFICAS DA IMPRENSA UNIVERSITÁRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA ABRIU99 FLORIANÓPOLIS- SANTA CATARINA- BRASIL
O IV Encontro de Filosofia Analítica realizou-se em Florianópolis, SC, de 6 a 9 de outubro de 1997, em homenagem a Thomas S. Kuhn. Foi promovido pela Sociedade Brasileira de Análise Filosófica c pelo NEL- Núcleo de Epistemologia e Lógica, UFSC. Os textos publicados neste volume são parte dos trabalhos apresentados.
SOCIEDADE BRASILEIRA DE ANÁLISE FILOSÓFICA