FILOSOFIA PARA TODOS Projeto de Extensão Universidade Federal do Pampa Organizadores Alexandre Denes Arruda Erich Engels e Silva Luciana Machado Rodrigues Marcilio Machado Morais Autores Alexandre Teles, Álvaro José Camargo Vieira, Cristiano Junta, Erich Engels e Silva, Everton Miguel Puhl Maciel, Jorge Garcia, Moacir Ferreira Ribeiro, Sérgio Fernando M. Corrêa, Tulipa Meireles, Vani Letícia Fonseca dos Santos
Bagé 2016
Dados de catalogação na fonte: Daiana Paiva Bezerra CRB - 10/1784
F488
Filosofia para todos : encontros filosóficos 2012 2013 / Organizado por Alexandre Denes Arruda...[et.al.]. – Bagé, RS, 2016. 130p. Vários autores 1.Filosofia . 2.Encontros Filosóficos . 3.Ética. . I.Arruda, Denes Alexandre, org. II. Título. CDD
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Agradecimentos Agradecemos aos colaboradores do projeto de Extensão Filosofia para Todos nos anos de 2012 e 2013, Sdnei Almeida Pestano, Vanessa Rosseto, Bianca da Graça Coelho de Almeida, Juliana Leal Wagner e Camille Biron pelo empenho constante, participação e suporte na divulgação e organização das palestras.
Sumário
PREFÁCIO
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INTRODUÇÃO
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Introdução à filosofia
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Da imortalidade da alma segundo Platão
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Filosofia: história e problematização de mundo
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Os princípios liberais e o problema da sujeição feminina em John Stuart Mill
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O sentido de uma ilusão: considerações sobre a Austin ao “argumento da ilusão”
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A pobreza da experiência moderna e a limitação da percepção
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O Psiquismo Primitivo e a Gênese da Moralidade
68
Hibridismo cultural na contemporaneidade
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A questão dos animais: Singer e a refutação utilitarista ao especismo
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Um trajeto para a ética no pensamento de Michel Foucault: o “cuidado de si”
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Ética aplicada: a relação entre ciência, linguagem e filosofia
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Nietzsche e a vontade de verdade
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Prefácio Gostaria que um livro não se atribuísse a si mesmo essa condição de texto ao qual a pedagogia ou a crítica saberão reduzi-lo, mas que tivesse a desenvoltura de apresentar-se como discurso: simultaneamente batalha e arma, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível. (Michel Foucault)
Ao escrever o prefácio da edição reeditada da sua obra História da Loucura, fruto da pesquisa realizada durante a tese principal de doutoramento, defendida em 1961, sob o título original Folie et déraison Histoire de la folie à l’âge classique, Foucault lamenta que um livro tenha como “primeiro simulacro” o prefácio, uma espécie de atribuição de valor. Ao que parece, Foucault procura nos alertar acerca da importância do livro constituir-se num discurso, remetendo à epígrafe: uma escrita que se mantenha sustentada por si só, sem nenhum texto inicial que busque a legitimar, um texto que fique em pé sozinho... Um pouco neste sentido segue este prefácio, não há uma necessidade aqui de convencer os leitores acerca da importância da obra Filosofia para Todos, como fruto do projeto de extensão organizado por professores da Unipampa Campus Bagé. Esta obra apresenta um leque de questões que podem ser problematizadas a luz da Filosofia, sua história e seus conceitos. Diz à lenda que a palavra filosofia (philos=amor; sophia=saber, donde “amor pela sabedoria”) teria sido utilizada, pela primeira vez, por Pitágoras. A Filosofia, em suma, busca compreender o homem e o mundo, contribuindo para resolver os obstáculos, advindos da realidade cotidiana. Os organizadores percebem o poder do discernimento filosófico para ajudar-nos a viver melhor as nossas vidas, ou seja, a filosofia comprometida com uma educação formadora. A obra Filosofia para todos é o reflexo do entendimento de que os filósofos são autoridades nos assuntos mais importantes, e também mais corriqueiros, da vida. O pensamento dos filósofos se desdobra em várias correntes e, inevitavelmente, chamamnos a resolver adversidades que podem afetar a todos. Por este, e outros motivos, sem muitas delongas, sugiro a leitura desta obra a todos que, de uma forma ou de outra, permitiram-se olhar mais uma vez, procurando
outros sentidos e outras combinações possíveis para as articulações conceituais que continuam a nos provocar estranhamento, almejando a abertura de novas formas de se pensar e de se fazer pesquisa em Filosofia. Filosofia para todos, é uma estratégia de democratização do ensino, é a prova da utilidade prática da Filosofia! Kelin Valeirão Pelotas, 5 de agosto de 2015.
Introdução Quando se fala em Filosofia, surgem na mente das pessoas pelo menos duas ideias: ou que a Filosofia é algo muito difícil e abstrato, ou que a Filosofia é um tipo de ferramenta que serve para tudo. De fato, na história da Filosofia há filósofos que são mais fáceis de compreender do que outros, e que os filósofos, em geral, investigam vários aspectos da existência humana. Os filósofos, na verdade, se ocupam de assuntos comuns a todas as pessoas: como devo agir, o que posso saber, o que posso esperar, como me tornar uma pessoa melhor, o mundo é realmente o que eu vejo, qual é a verdadeira natureza das coisas? O que difere uma pessoa comum de um filósofo é que o filósofo se dedica, exclusiva e metodicamente, tanto a responder a estas questões como a formular novos questionamentos, sem perder a visão do todo. As ciências delimitam o seu universo de estudo, apresentando uma visão segmentada segundo um método. Assim, da necessidade de ampliar seus horizontes, dada a abordagem dos conhecimentos de forma segmentada e de um maior contato com a área das Humanidades, surge na comunidade acadêmica da área das Engenharias, especificamente da Engenharia Química, o Projeto de Extensão “Filosofia para Todos”. Encontrou-se na Filosofia, berço da racionalidade ocidental, tanto na parte científica, quanto cultural, uma ferramenta poderosa para atender esta demanda. Tal projeto consiste em ciclos de palestras proferidos por especialistas em Filosofia das mais diversas áreas de estudo como ética, política, estética, metafísica, entre outras; A diversidade de temas abordados dentro de uma visão filosófica respondeu aos anseios da comunidade em geral e da comunidade acadêmica em particular, pois fomentou reflexões e questionamentos sobre tópicos específicos, quotidianos ou não, utilizando idéias e conceitos amparados nos pensamentos e nos métodos desenvolvidos pelos filósofos. Este livro é o resultado das palestras realizadas nos dois primeiros anos de vigência do Projeto em 2012/2013. A Filosofia pressupõe uma dialética, ou seja, suas reflexões resultam de um diálogo, da alma consigo mesma, como escreveu Platão, ou até mesmo de discussões na praça do mercado, como fazia Sócrates. A partir destes pressupostos é importante enfatizar que o livro não se reduz meramente a transcrição das palestras, e sim é o resultado do movimento causado pela interação entre o palestrante e a audiência. Espera-se que este movimento dialético seja levado adiante, ampliado, por aqueles que tenham contato com este livro. Todos já devem ter ouvido a expressão “Filosofia de boteco ou Psicologia de boteco”, como algo pejorativo. Tanto no caso da Filosofia como no da Psicologia isso não é verdade. As inquietações humanas, os males da alma, os questionamentos estão ao alcance de
todos. A Filosofia oferece um método conforme o filósofo e o período histórico. Por isso a Filosofia sempre é para todos. Organizadores do livro
Introdução à filosofia Erich Engels e Silva 1 A Grécia Antiga Berço da civilização ocidental, origem da democracia, pilar da civilização judaico-cristã, berço da racionalidade ocidental. Todas essas são expressões, entre outras, que vem à mente das pessoas quando se fala em Grécia Antiga. Uma das razões para tal fato é que essa civilização atingiu o apogeu no desenvolvimento do espírito humano, em áreas como, artes, ciência, tecnologia, direito, estratégia, política, e etc., de maneira a influenciar não só toda a cultura ocidental, mas também, boa parte da cultura oriental. Lembremos que na Idade Média, devemos a reintrodução do pensamento platônico e aristotélico na Europa, a filósofos árabes ou europeus muçulmanos, que traduziram os textos de Platão e Aristóteles do grego para o árabe e do árabe para o latim. A vida na Grécia antiga se dava na pólis, Aristóteles definiu o homem como um animal político, pois em sua visão, a felicidade só era possível dentro da pólis, na vida em sociedade. Pense no município onde você reside, agora imagine que esse município fosse um país, isso era a pólis grega. O que se convencionou chamar de cidade-estado, autosuficiente, independente, com suas próprias leis e com seu próprio exército. A vida na pólis grega, em Atenas particularmente, era muito boa, se você fosse homem, livre, maior de idade e tivesse posses. Nessas condições, você tinha como obrigação participar da vida política da cidade, política nesse período, era a administração do bem comum. Quem não se interessasse por este assunto era considerado idiota, pessoa que só se preocupava com seus assuntos privados. Os rumos da cidade eram discutidos em praça pública, na chamada Ágora. Participavam das decisões os homens livres, maiores de idade e naturais de Atenas. Mulheres, escravos, estrangeiros e pobres, mesmo que atenienses, não participavam da vida política. Ainda assim, apesar de tão restritivo, o conceito grego de democracia foi o que influenciou as democracias modernas. 1
Texto escrito por Erich Engels e Silva. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. email e.engels@bol.com.br. Palestra proferida na Unipampa, Bagé em 12 de janeiro de 2012. 13
A mitologia grega influencia profundamente a cultura ocidental há pelo menos 3.000 anos. Serviram-se das fábulas dos poetas, profissionais variados como os cientistas e militares, que levaram o homem à Lua através da missão Apolo (Deus do Sol), como o médico e psicanalista Sigmund Freud que descreveu a relação do menino com sua mãe a partir do protagonista da tragédia de Sófocles, Édipo. Outro aspecto importante a se ressaltar sobre a Grécia Antiga é o seu desenvolvimento material, o pleno desenvolvimento cultural, só foi possível depois de atingido o conforto material e tecnológico: a agricultura, a arquitetura, a medicina, a matemática. A dedicação às coisas do espírito, como a arte e a filosofia, passam a ser possíveis a partir do momento em que se tem um mínimo conforto material. Começando pelo começo A filosofia é fruto do gênio grego. Isso significa dizer que ela tem uma origem em um tempo, lugar e no seio de uma determinada cultura. O tempo é aproximadamente século VI a.C. O lugar é o que se convencionou chamar Grécia Antiga. Quando falamos em Grécia Antiga cometemos um anacronismo, imaginamos um Estado nacional como o que se tem contemporaneamente, porém, o que se tinha no período era várias cidadesestado, cada uma com suas leis e constituição. Essas cidades-estado que compunham o mundo grego compartilhavam de hábitos culturais, principalmente a língua, mais ou menos comuns. Pois bem, a cultura de origem da filosofia é a situada nesse mundo grego. O nascimento da filosofia está ligado a uma mudança de paradigma, há um rompimento com a escola de pensamento anterior. De uma maneira geral, e até um pouco grosseira, a escola de pensamento anterior, por assim dizer, explicava os fenômenos a partir das vontades dos deuses: a calmaria ou a tempestade dependiam dos humores de Poseidon, a atenção de um amante dependia da simpatia de Afrodite, o sucesso na caça era conseguido através da boa vontade de Artemis. A grande mudança se dá quando a explicação dos fenômenos naturais passa a ser buscada na própria natureza. A partir dessa mudança se origina não só a filosofia, mas também o método científico e o modelo de racionalidade ocidental.
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Tomemos emprestadas as palavras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche: “A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: Tudo é um". Segundo os gregos, no princípio era o caos (usaremos os termos já transliterados) e do caos adveio o cosmos ou physis (natureza), podemos pensar esses conceitos como sinônimos de universo. O cosmos significa um todo ordenado, essa ordem é inteligível podendo ser conhecida através do nosso intelecto. A melhor maneira de ter acesso a esse conhecimento é observar a natureza. Por isso os primeiros filósofos são chamados fisicalistas, naturalistas e, ainda, présocráticos, sobre o que falaremos adiante nesse texto. Os Primeiros Filósofos Considera-se que o pai da filosofia é Tales de Mileto (624-548 a.C), que propôs que tudo tem origem na água. Tales também é o arquétipo do filósofo, uma anedota histórica diz que Tales observava o céu e o movimento dos ventos enquanto era observado por uma jovem da Trácia. Tales se descuidou e caiu em um buraco, a jovem riu e disse: “Filósofo te preocupas com as coisas do céu e te esqueces das coisas da Terra”. Desde então, uma expressão que se usa para descrever um filósofo é alguém que vive no mundo da lua, alguém que não tem aptidão para as coisas práticas da vida. Contudo, diz a história, que Tales a partir das suas observações da natureza previu que certo ano seria favorável à colheita das azeitonas. O filósofo então arrendou todos os lagares (locais de beneficiamento de azeitona) e se tornou um homem rico. Desse modo, mostrou que a filosofia tem uma dimensão especulativa (atividade reflexiva) e outra, prática. As perguntas que orientam a especulação dos primeiros filósofos são, basicamente, de onde vem as coisas, e do que elas são feitas. Criou-se o conceito de arché: substância que está na origem, no desenvolvimento, e no fim de tudo o que existe, existiu e existirá. Tales propôs que a arché era a água e chegou a esta conclusão observando a natureza. Diz a história que Tales chega a sua arché após estudar os 15
períodos de cheia e vazante do rio Nilo, constatando que após a vazante, as margens do rio se tornavam propícias à agricultura. Anaxímenes de Mileto (588-524 a.C) conheceu o trabalho de Tales. Possuía um entendimento diferente de Tales, para ele a arché era o ar. Tudo que existe, existiu e existirá, ou como diziam os gregos antigos: a geração e a corrupção das coisas se davam a partir dos fenômenos de condensação e rarefação do ar. Anaxímenes possivelmente observou o comportamento do vento e suas características como umidade e temperatura, para propor sua arché. Para Xenófanes de Colofon (Séc. VI a.C) a arché era a terra. Observou que o fundo do mar era composto por terra. Heráclito de Éfeso (540-476 a.C) era tido como obscuro, escrevia em forma de enigmas, viveu na colônia de Éfeso na Ásia Menor. A arché de Heráclito era o fogo. Postulava que a mudança constante ou o fluxo era a característica mais elementar da natureza. Um fragmento famoso da obra de Heráclito é: “Não entramos duas vezes no mesmo rio. Quando entramos no rio pela segunda vez, nem nós e nem o rio somos os mesmos”. Para Empédocles (484-421 a.C) as escolas que propunham como arché a água, o ar, a terra e o fogo, não estariam erradas. Propõe que tudo que existe, existiu e existirá, que a geração e corrupção das coisas ocorrem pela combinação dos quatro elementos originais, que se combinam e se separam através de duas forças, amor e ódio. Amor como força de atração e ódio como força de repulsão. Demócrito (460-370 a.C) propõe a primeira teoria atômica, acreditava que todas as coisas eram formadas por átomos: “pedrinhas minúsculas, invisíveis, cada uma delas sendo eterna, imutável e indivisível.” Átomo é uma palavra de origem grega que significa sem partes. O modelo atômico de Rutherford-Bohr tem sua origem nesta teoria, de aproximadamente 2.500 anos. Os filósofos citados não foram os únicos da filosofia nascente. Pitágoras (570495 a.C), por exemplo, pensava que a arché era o número. Para Anaximandro (610-546 a.C.) tudo provem do que ele chamou de o ilimitado, algo indeterminado e infinito, que ele definiu como apeiron. Para Parmênides (530-460 a.C.): “nada nasce do nada e nada do que existe se transforma em nada”. Com isso quis dizer que: “Tudo que existe sempre existiu”, ou ainda, “o ser é o não ser não é”. Por se voltarem para a Natureza, 16
compreendida como Physis ou Cosmos, o primeiro período da filosofia nascente é classificado como cosmológico. Outra Mudança de Paradigma Com Sócrates (aproximadamente 469-399 a.C.) o objeto de estudo da filosofia é deslocado da Natureza para as coisas humanas, inicia-se o período da filosofia chamado de antropológico. Vale lembrar que a partir deste deslocamento de objeto de estudo os filósofos anteriores, e até alguns contemporâneos de Sócrates, passam a ser chamados de pré-socráticos. Esse “pré” não indica uma anterioridade necessariamente temporal, e sim, uma anterioridade de objeto de estudo. Sócrates não deixou nada escrito, o que sabemos sobre ele e sua filosofia é a partir de seu discípulo Platão, que imortalizou seu mestre em seus diálogos. Os diálogos platônicos, principalmente os da mocidade, tem Sócrates como protagonista, de tal maneira que muitas vezes, no meio acadêmico, fala-se em pensamento socráticoplatônico. As coisas humanas estão no centro de investigação: o bom, o belo, o amor, o certo, o errado, o que podemos saber, o que é o conhecimento. No período antropológico, a filosofia se desdobrará em suas seis grandes áreas de investigação. A metafísica ou ontologia que se ocupa das primeiras causas e dos primeiros princípios da realidade. A lógica que investiga as regras de inferência, de demonstração e do pensamento correto. A epistemologia que trata da natureza do conhecimento, o que ele é, o que seres como nós podem saber. A ética que se ocupa com o bom, o mau, o bem, o mal, como se deve agir para se ter uma vida boa. A política que se ocupa da administração da pólis, do estudo do bem comum. A estética que trata do belo e o feio, de um tipo de conhecimento pelos sentidos. A Alegoria da Caverna No livro sete da República (Politéia), diálogo mais célebre de Platão (428-348 a.C), encontra-se a metáfora mais famosa da filosofia, conhecida como O Mito da Caverna. Sócrates através da pena de Platão descreve a seguinte situação: “No interior da caverna permanecem seres humanos, que nasceram e cresceram ali. Ficam de costas para a entrada, acorrentados, sem poder mover-se, forçados a olhar somente a parede do 17
fundo da caverna, sem se poder ver uns aos outros ou a si próprios.
Atrás dos
prisioneiros há uma fogueira, separada deles por uma parede baixa, por detrás da qual passam pessoas carregando objetos que representam "homens e outras coisas viventes". As pessoas caminham por detrás da parede de modo que os seus corpos não projetam sombras, mas sim os objetos que carregam. Os prisioneiros não podem ver o que se passa atrás deles, e vêm apenas as sombras que são projetadas na parede em frente deles. Pelas paredes da caverna também ecoam os sons que vêm de fora, de modo que os prisioneiros, associando-os, com certa razão, às sombras, pensam ser eles as falas das mesmas. Desse modo, os prisioneiros julgam que essas sombras sejam a realidade.” Na continuação do diálogo, um prisioneiro consegue se libertar e sair da caverna. A luminosidade ofusca sua visão, lhe doem os olhos, leva tempo para que ele se habitue à luz. Depois de superadas as dificuldades, o prisioneiro percebe que viveu uma vida de ilusão, que a vida na caverna não era a realidade como um todo. Ele então decide voltar à caverna e alertar seus companheiros de infortúnio. O resumo é que os prisioneiros não acreditam no colega que se libertou, viu o mundo e voltou. Ele é hostilizado, ridicularizado e morto pelos companheiros. Uma primeira interpretação da alegoria nos remete ao próprio Sócrates, que procurou resgatar seus concidadãos atenienses das trevas da ignorância e foi condenado à morte por isso. Outra interpretação é que o caminho do conhecimento é difícil e, muitas vezes, traz dissabores para quem o trilha. Contudo, o objetivo da metáfora é descrever a filosofia socrático-platônica, principalmente sua metafísica e sua epistemologia. O contraste entre a escuridão da caverna, que representa a ignorância, e a luz do lado de fora, que representa o conhecimento, indicam o dualismo platônico. A concepção do mundo a partir de duas realidades distintas e separadas, o mundo sensível e o mundo supra-sensível, mundo das idéias ou formas perfeitas. O mundo sensível é o mundo da ilusão, do engano, do erro, é a caverna. É uma cópia imperfeita do mundo das idéias, essas sim, perfeitas. O mundo sensível é o lugar da transitoriedade, da multiplicidade, do erro. O mundo supra-sensível é o lugar da perenidade, da unidade, do conhecimento. O ser humano é também um ser dual, ele participa do mundo sensível com seu corpo e seus sentidos e do mundo das idéias com sua alma (que podemos tomar como sinônimo de intelecto, nesse contexto).
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Essa é a descrição, um tanto geral, da metafísica socrático-platônica. A epistemologia a qual a alegoria aponta consiste na idéia de que o corpo é fonte de erro, é uma prisão para a alma. Platão afirma que o corpo com suas constantes necessidades desvia a alma do caminho do conhecimento. A dicotomia entre corpo e alma, a alma entendida como sinônimo de intelecto e fonte (ou fundamento) do conhecimento, inaugura a corrente de pensamento idealista. Só o cultivo das coisas do espírito pode libertar os seres humanos da caverna, das trevas da ignorância. Não poderíamos deixar de mencionar, ainda que de maneira breve, o filósofo de Estagira, Aristóteles (384-322 a.C). Segundo alguns, a mente mais poderosa já gerada pela humanidade. Aristóteles foi discípulo de Platão durante quase vinte anos, para alguns estudiosos ele se opõe ao seu mestre, para outros ele harmoniza as idéias de Platão com suas próprias idéias. Contudo, cabe aqui apontar que a metafísica e a epistemologia aristotélica divergem da platônica. Para Aristóteles não há dualismo, a realidade é uma e a sensibilidade é fonte (ou fundamento) do conhecimento, o que inaugura a escola de pensamento empirista. As duas teorias epistemológicas, idealista e empirista, influenciarão toda a filosofia, da antiguidade até a contemporaneidade. Mas o que é afinal a filosofia? A resposta mais honesta a esta pergunta seria depende. No sentido de que para se definir o objeto filosofia se faz necessário trazer em si uma pré-concepção do que ela deva ser. Nas aulas de filosofia, a maneira mais fácil de começar a responder esta pergunta é pela etimologia, é uma palavra composta do prefixo philia e do sufixo sophia. É normalmente traduzida como amor à sabedoria, amizade à sabedoria, e ainda, como proximidade à sabedoria. Como vimos até aqui, ela nasce do desejo humano de compreender o mundo que o cerca e depois se volta para a compreensão das próprias coisas humanas. Ela é considerada a mãe da ciência, embora não seja ela própria uma ciência. Uma definição possível consiste em dizer que a filosofia é: “estudo de problemas fundamentais relacionados à existência, ao conhecimento, à verdade, aos valores morais e estéticos, à mente e à linguagem. Ao abordar esses problemas, a filosofia se distingue da mitologia e da religião por sua ênfase em argumentos racionais; por outro lado, diferencia-se das pesquisas científicas por geralmente não recorrer a 19
procedimentos empíricos em suas investigações.” Outra concepção seria ver a filosofia como uma busca verdadeiramente honesta, sistemática, meticulosa e apaixonada pelo saber. Referências Bibliográficas CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Vol. 1 – Dos Pré-Socráticos a Aristóteles. Cia. das Letras, 560p, 2002. PLATÃO. Os Pensadores: A República de Platão. Nova Cultural, 352p., 1999. TEICHMAN, Jenny; Evans, Katherine C. Philosophy: A Beginners Guide. Third Edition. John Wiley & Sons., 288p, 1999. Vários Autores. Os Pensadores: Pré-Socráticos. Nova Cultural, 320p., 1999.
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Da imortalidade da alma segundo Platão Erich Engels e Silva 1 Introdução No diálogo Fédon, Platão narra os últimos dias de Sócrates. Ele está preso e aguarda o momento em que deverá tomar a cicuta. Até o dia de sua morte Sócrates recebe a visita de seus amigos e discípulos, com uma disposição de humor de alguém que vai para uma festa e não a de que terá a própria existência extinta, o que provoca espanto em seus amigos. Nesse diálogo nos é apresentada de modo mais minucioso a metafísica e a epistemologia socrático-platônica, para as quais a tese da imortalidade da alma é fundamental. Na nossa palestra procuramos expor de maneira geral, os principais argumentos contra e a favor da imortalidade da alma. Teoria dos Contrários É importante lembrar que o chamado dualismo platônico compatibiliza o pensamento de Heráclito e o de Parmênides. Para Heráclito a única constante no mundo, lei geral da Natureza, é a mudança, tudo flui, tudo passa. Já para Parmênides as coisas são como sempre foram, o que existe sempre existiu, há uma imobilidade e unidade do ser. Grosso modo o dualismo platônico situa a realidade de Heráclito no mundo sensível e a realidade de Parmênides no mundo supra-sensível. A lei geral da Natureza, o devir de Heráclito, mostra que todo o contrário surge do seu contrário: o feio do belo, o pequeno do grande, as trevas da luz, o prazer da dor, etc. Para ser coerente com o fluxo de Heráclito, a vida sucede a morte e a morte sucede a vida. Se não fosse dessa maneira não haveria mobilidade na Natureza. Contudo, para a sucessão eterna de vida e morte, a alma deve preexistir em algum lugar. O mundo das ideias, realidade de Parmênides, é imutável e eterno. As ideias são eternas, são realidades inteligíveis. A alma participa dessa realidade. Teoria das Reminiscências 1
Texto escrito por Erich Engels e Silva. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. email e.engels@bol.com.br. Palestra proferida na Unipampa, Bagé em 2012. 21
Na epistemologia platônica conhecimento é reconhecimento. Quando a alma se liberta do corpo, ela entra em contato direto com as ideias eternas as quais ela já havia contemplado. A sensibilidade é afetada pelos objetos do mundo, a coisas do mundo são cópias imperfeitas das ideias ou formas (estas sim perfeitas). A alma, a partir dessa afecção do corpo, recorda as ideias ou formas perfeitas que já houvera comtemplado. A ideia não deriva do objeto, ela lhe é anterior. A presença do objeto desperta a ideia, não a gera. A alma contempla as ideias antes de sua ligação com o corpo, e depois da extinção do corpo, quando volta ao seu lugar de origem. Simplicidade das ideias e sua identificação com a alma Há dois tipos de seres, os compostos, que são visíveis (perceptíveis pelos sentidos), estão sujeitos à mudança e perecimento, e os simples, que são invisíveis (perceptíveis pela alma ou intelecto), imutáveis e eternos. O corpo e o mundo sensível são da natureza do primeiro tipo de ser. A alma e as ideias têm a natureza do segundo tipo de ser. Dito de outra forma, o corpo é composto e perece, a alma é simples e é eterna. A existência no mundo sensível se dá pela união entre corpo e alma. A morte consiste na decomposição do composto, corpo; e na libertação do simples, alma. O corpo percebe aquilo que lhe é semelhante: as coisas sensíveis, cópias imperfeitas das ideias perfeitas; a alma percebe o que lhe é semelhante: as ideias perfeitas. Esse raciocínio vem da epistemologia de Empédocles que postula que semelhante só por semelhante pode ser conhecido. O corpo é a prisão da alma O mundo sensível é fonte de engano, erro e ilusão. Lembremo-nos da Alegoria da Caverna, os objetos sensíveis são meras sombras projetadas no fundo da caverna. Os objetos reais, o mundo fora da caverna, corresponde às ideias ou formas perfeitas. O cultivo das coisas do espírito (intelecto) nos ajuda na ascensão ao conhecimento e nos liberta da escravidão a qual o corpo nos sujeita.
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O filosofar consiste em se desprender das coisas do corpo, este com suas necessidades e apetites desvia a alma do caminho do conhecimento e da verdade. O filósofo deve praticar o mais possível, a ascese para chegar à verdade. Contudo, a contemplação da verdade em sua plenitude e totalidade só é possível após a separação entre corpo e alma. Por isso o filosofar é visto como uma preparação para a morte, e esta a libertação da alma, que se reunirá com os seres que lhe são semelhantes. Por conseguinte, o filósofo também não deve temer a morte, pois terá o caminho livre rumo ao conhecimento, à verdade, às formas perfeitas. Argumento da Lira Símias argumenta que a alma é produto da matéria. De modo que deixará de existir se a matéria for destruída. Para ilustrar seu pensamento, Símias recorre à comparação entre uma lira (instrumento musical) e a harmonia, a lira sendo a matéria e a alma (ou intelecto) sendo a harmonia. Para Símias se a lira for destruída a harmonia também perecerá, cessando a matéria cessa-se a alma. Em sua resposta Sócrates diz que a lira é o fundamento da harmonia, a lira é anterior à harmonia. De maneira que a comparação de Símias não espelha o que se passa com a alma em relação ao corpo. A alma, para Sócrates, é anterior ao corpo e não pode ser causada por ele. Uma pequena reflexão A teoria platônica da imortalidade da alma recebeu influência da antiga religião órfica. Contempla elementos como metempsicose ou transmigração das almas, o que pode ser mais bem compreendido por nós, contemporâneos, se fizermos uma aproximação ao conceito de reencarnação. Platão recorre também à mitologia, fala nos deuses, nos mitos, como o mito de Er. Então qual diferença haveria entre o pensamento platônico e a religião? Fundamentalmente, a resposta consiste em observar que Platão procura se afastar do dogma, elemento constitutivo da religião. O filósofo se baseia nos pensadores que o antecederam e erige seu pensamento a partir da dedução lógica, verificando o tempo todo se não há contradição e inconsistência entre suas proposições.
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Sujeita sua argumentação à refutação de colegas e discípulos valorizando o movimento dialético. A estrutura metafísica platônica influencia profundamente o cristianismo, que concebe também um dualismo do homem e do mundo. No cristianismo esse dualismo se reflete na concepção de que o homem possui duas naturezas: uma natural e outra sobrenatural. A natureza natural do homem implica que ele é como as coisas do mundo, feito de matéria, a qual perecerá. Já sua natureza sobrenatural indica que ele traz em si algo de divino, sua alma, a qual é eterna. Se hoje essas concepções são senso comum no ocidente, devemos isso ao filósofo da Academia, que influenciou grandes mentes como Santo Agostinho, entre outros pensadores. Identificar a luz com o conhecimento e as trevas com a ignorância, como fizeram os iluministas do século XIII e fazemos até hoje, também é uma influência platônica. Domínio da mente sobre o corpo, cultivo do pensamento abstrato, concentração, foco. Todos esses preceitos são derivados da ascese que Platão propunha para se alcançar a verdade. Ele teve detratores, opositores, sim, muitos, alguns brilhantes, geniais mesmo, como Aristóteles e Friedrich Nietzsche. E isso apenas prova a importância de seu pensamento. Como já disseram uma vez: "toda a história do pensamento ocidental não é nada mais que um conjunto de notas de rodapé a Platão e Aristóteles". Sócrates, mestre de Platão, foi considerado o homem mais sábio de Atenas por saber apenas uma coisa: que não sabia nada. Isso significa que ele estava em vantagem ao reconhecer sua própria ignorância, a partir daí, com um método e humildade seria possível partir rumo ao conhecimento. Por isso o filósofo é um modesto por definição, ele não detém a sabedoria (sophia), ele tem amor à sabedoria, é seu amigo e busca por ela, procura lhe estar próximo (philia). Referências Bibliográficas CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Vol. 1 – Dos Pré-Socráticos a Aristóteles. Cia. das Letras, 560p, 2002. LOVEJOY, Arthur Oncken. Essays in the History of Ideas. The Johns Hopkins Press, 376p, 1948. 24
PLATÃO. Fédon - Diálogo Sobre a Alma e Morte de Sócrates. - Coleção A Obraprima de Cada Autor. Martin Claret, 200p, 2002.
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Filosofia: história e problematização de mundo Jorge Garcia 1 A proposta do seguinte escrito, como apresentado no título, é uma exposição breve e geral pela história da filosofia e uma discussão quanto à mesma – isto é, uma modesta proposta a uma filosofia da história da filosofia – buscando trazer para a realidade que nos rodeia essa temática; e partindo de tais pressupostos, de certa forma, fazer uma apologia ao esquecido amor à Sabedoria no sentido primordial da expressão: a transformação do humano, do mundo humano e sua humanidade em essência – se é que podemos ainda trabalhar com esse termo em seu sentido comum. Iniciemos então nosso percurso. Voltemos aos antigos; mais especificamente aos poetas e trovadores que cantaram as primeiras tentativas de explicação do mundo o qual fazem parte. Mitos: eis aí sua forma de representação da realidade. Sendo eles ligados diretamente aos deuses, usavam deste privilégio como sua ferramenta de legitimação da verdade, isto é, um modo pelo qual não lhes fossem apresentadas contestações – uma vez que fossem suas palavras, ainda que humanas, divinas. Trovões não eram apenas fenômenos da natureza, mas a voz do próprio Zeus que queria se fazer ouvir – interpretada por estes nobres escolhidos senhores de muitas previsões, os poetas – bem como o eclipse solar, a fertilidade da terra, as tempestades no mar... daí temos ainda hoje os mitos que sustentam muitas de nossas interpretações mundanas de forma consistente, concreta: o fogo aos homens entregue por Prometheus (a descoberta da técnica), Pandora e a libertação dos males do mundo (incógnita sobre a positividade e negatividade do sentimento que conhecemos por esperança), o rapto de Sileno pelo Rei Midas (representação da natureza gananciosa do homem), o nascimento de Eros (fruto do romance entre o desejo que não sacia e a estratégia – discurso sobre o amor), enfim... incontáveis foram os modos pelos quais, desde muito antes de nossa geração, se buscava uma explicação – ainda que 1
Texto escrito por Jorge Garcia. Bacharel em Filosofia Universidade Católica de Pelotas, UCPel, especialista em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense (PPGEDU/IFSul), e mestrando do Curso de Mestrado Profissional em Educação e Tecnologia do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense – Campus Pelotas (MPET-IFSul). e-mail:sapo.rs@hotmail.com. Palestra proferida na Unipampa-Bagé em 12 de julho de 2012. 26
metafísica, como exposto anteriormente – à totalidade da natureza do humano, compreendido no seu meio e marcado pelo fatalismo da existência, que na maioria das vezes era o que incitava tais cantos e presságios; era seu modo de fazer valer a vida naqueles tempos imemoriais. Mais próximo da era socrática – a qual servirá como fundamental pilar ao decorrer da exposição – encontramos Tales de Mileto, considerado por Aristóteles e, posteriormente, por toda a história da filosofia, como o primeiro filósofo; o primeiro que ousou fazer uso de sua razão e buscar a ruptura com essa explicação teocêntrica do cosmos – ele baseia então seus pressupostos em que, hoje, após estudos e teorias, se reflete em sua própria realidade diária (morador do porto de Mileto, agricultor, matemático...); teoriza a origem de todo cosmos num único princípio, a água. Iniciativa esta que incitará seus posteriores a ideias semelhantes – Anaximandro e o apeíron, Anaxágoras e o ar, Heráclito e o devir (movimento), Pitágoras e os números; os filósofos eleatas e seus princípios baseados no repouso do que conhecemos pela realidade do Ser enquanto Ser; e os filósofos pluralistas, que agora não mais se baseiam numa única explicação de realidade, mas sintetizam as filosofias Jônicas e Eleatas para dar fundamento à sua escola filosófica – Anaxágoras e as homeomerias, Empédocles e as quatro raízes, Lêucipo e Demócrito e o átomo... Todos esses dizeres para sustentar uma única afirmação: o homem passou a não mais depender das divindades para situar-se no mundo e buscar explicá-lo; agora ele mesmo em uso de sua razão, de seu logos, pode fazê-lo. Dando seguimento à História, chegamos ao período denominado socrático, marcado pela secularização da Filosofia, isto é, do fato de serem tiradas das esferas celestes e do cosmos as discussões eruditas. Sócrates, precursor desse período juntamente com seu discípulo mais fiel, Platão, passa a exigir uma maior atenção aos princípios ordenadores da organização social e de todo meio que compreende o que para os gregos antigos representava o espírito cultural (em um sentido apresentado por Hegel e seu Geist), à formação de sua humanidade baseada em pressupostos que se encontravam externos à própria sensibilidade da qual tentavam tratar: a pólis e o sujeito virtuoso ideal apresentado segundo a realidade perfeita sobre a qual Sócrates e Platão baseiam todo seu pensamento. No entanto, ainda que seja esta uma apresentação que busque, além de uma explanação geral sobre a história da filosofia, tratar da crítica a esse formalismo “problemático” que se
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encontra em germe nesse período, não podemos deixar, é claro, de considerar os muitos benefícios do pensamento teórico apresentado – como, por exemplo, o mito da caverna, o mais conhecido mito de Platão que retrata, nas palavras de Sócrates, os objetivos que são buscados pela filosofia enquanto ferramenta de emancipação do pensamento e condição de alcance às coisas mesmas – nesse contexto, à própria virtuosidade. Mas ainda assim, e essa é a crítica na qual trabalharemos no decorrer da discussão, mantendo-se em um terreno abstrato, isto é, ainda no campo ideal que apresenta apenas um modelo a ser seguido lembremos no entanto o contexto da época: o fato de escravos e estrangeiros, mulheres e crianças não serem considerados cidadãos de fato, a hierarquia composta na polis a ser respeitada (filósofo e político, parte superior da pirâmide social; guerreiros, o corpo, a parte do meio da pirâmide; e os escravos e castas como sendo os pés e apoio que sustentam os demais). Entra em cena então uma filosofia mais empírica e ligada às ações políticas de forma mais direta: é o que nos transmite Aristóteles em sua Ética – “a política é a mais nobre das ciências, uma vez que seja ela o que permite a harmonia na polis.” O que se observa, porém, é que o mesmo parte ainda dos pressupostos que são pouco percebidos na filosofia de seu predecessor e mestre Platão, que é a pirâmide social. Fato interessante para nós, modernos eruditos, é a concepção de liberdade que defendemos, fruto de um liberalismo trazido desde a filosofia do cogito cartesiana, e bem mais aprofundada por Kant e suas autonomias do sujeito individual. Abrindo parêntese então, façamos um breve esclarecimento do que se quer apresentar: sobre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. Num primeiro momento, na Grécia clássica como a conhecemos, o conceito de liberdade pode nos parecer de certa forma estranho, pelo fato de que ser livre era ter o direito de interferência nas decisões concernentes à responsabilidade política, isto é, o direito à fala na Ágora e a possibilidade de ter para si um fim (thelos) pelo qual fosse possível se fazer útil na cidade-estado respeitando o anteriormente comentado espírito de cultura e fortaleza que deveriam simbolizar a erudita formação humanística do período helenístico. Hoje, entretanto, refletimos a autonomia individual como a expressão maior da liberdade enquanto tal – fato esse gerado a partir do início da era moderna, representando a fragmentação que encontramos hoje no meio acadêmico e científico da especialização, do pensamento baconiano de que “saber é poder”, a ideia positivista de
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progresso no mesmo sentido de desenvolvimento, a tripartição dos poderes no período iluminista e o poder da democracia como tomadas individuais ao bem comum, enfim... Qualquer fato que reflita o pensamento do indivíduo como externo ao meio que de fato se encontra – ora, escolhemos políticos para representarem nossas vozes no senado, não? Usamos a frase com frequência de “salvar o meu primeiro”... Passou-se a fazer uso do outro como ferramenta às felicidades individuais não mais respeitando o espírito de nação fortemente defendido na antiguidade e pelo qual não mais se apresenta de forma patriota como aos olhos das gerações que percebemos vindouras: Em teu seio, ó liberdade. Desafia o nosso peito a própria morte Ó pátria amada, idolatrada, salve, salve... (Hino do Brasil, Joaquim Osório Duque Estrada. 1º/2º estrofe) Entendidas as tensões sobre os conceitos de liberdade entre as idades clássica e moderna, passemos ao período em que se aparece mais explicitamente o germe desse segundo sentido e vejamos de que forma tem se desenvolvido isso até nosso tempo. Sempre considerando a iniciativa socrática de secularização do espírito filosófico, é no resgate do humanismo clássico, na abertura do período denominado por Hegel como moderno em sua sistematização da história da filosofia, juntamente com a reforma luterana e, grosso modo, a garantia da autonomia do sujeito frente às instituições, a revolução científica e o resgate ao ceticismo antigo, como marco do germe da crise que estava por se desenvolver no ventre dos pequenos burgos que se emancipavam, já era possível profetizar o nosso atual posicionamento fragmentário e limitado, frente a uma realidade construída por nós mesmos e um sistema no qual nos encontramos presos e fadados a certos fatalismos que dificilmente são passíveis de se tornar diferentes. Descartes é o grande nome desse modernismo, partindo das premissas de seu método como busca de um caminho seguro à verdade, fazendo bom uso de argumentos logicamente válidos e baseando-se na matemática, na qual se destaca. Mas não nos foquemos em Descartes, vamos mais adiante – uma vez que o que nos interessa mesmo é a discussão ética enquanto problematização de mundo – nos adiantemos à Alemanha do século XVIII e o pensamento de Immanuel Kant, marcante ícone no que diz respeito aos temas éticos atuais uma vez que garanta um sistema 29
moral baseado no dever e na responsabilidade individuais de forma a abarcar toda uma universalidade de problemas – partimos daí ao seu Imperativo Categórico: Fórmula Geral: “Age em conformidade apenas com aquela máxima pela qual possas querer ao mesmo tempo em que ela se torne uma lei universal” Desta fórmula Kant deduz três outras máximas morais: “Age como se a máxima de tua ação devesse ser exigida por tua vontade em lei universal da natureza”; “Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio”; “Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais”. Desse modo, Kant projeta não uma lei baseada em valores, mas sim normas formais a serem seguidas e respeitadas para que se possa de fato agir eticamente fazendo pleno uso das faculdades do intelecto do sujeito racional – no qual Kant baseia todos os seus pressupostos. Criticando principalmente o excesso formal e a falta da consciência histórica do sujeito transcendental kantiano, e partindo de fundamentos tomados sistematicamente, entra em cena Hegel, pretendendo investigar a fundamentação do conhecimento através da auto-reflexão, considerando cada um dos fenômenos interpretados como puros em si mesmos, uma vez que se apresentem a cada sujeito tais como são para cada um. Trata-se de uma subjetividade coletiva, de certa forma o que caracterizará, mais tarde, a crítica a certo relativismo apoiado nessa teoria. Não se trata mais, com essa consciência histórica apresentada por Hegel e resgatada em grande parte dos românticos de seu tempo, de uma iniciativa puramente especulativa da realidade. De fato, com Hegel passa a ser possível ao homem olhar a si mesmo e repensar, a partir de uma análise de sua própria história, sua formação e consciência refletindo as próprias ações e, o que em Kant relacionava-se a crítica à razão, agora se torna uma crítica ao próprio sujeito histórico. E é nessa linha de pensamento histórico que se baseia Marx, ainda que critique a questão da ideologia e a teoria do Estado de seu predecessor; defendendo como plano de fundo e sua filosofia transformadora a antiga noção de práxis - desenvolvida nos últimos
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dois séculos como uma deformação horrível do que a práxis é em realidade. “Em todos os debates do último século, a práxis foi entendida como aplicação da ciência a tarefas técnicas” (Gadamer. 1975, pg. 312); Nesse sentido é que se entende o comportamento humano, por exemplo, frente às leis do Estado, das instituições de ensino e trabalho, nos próprios discursos... Como mero positivismo jurídico (herança do já comentado espírito kantiano racional e frio), o que subentende nada mais do que uma aplicação mecânica da lei por ela mesma – lembrando que a ideia de práxis compreende três pontos chave: a phonesis ou o conhecimento moral que implica deliberação e aplicação a uma situação prática, a razão teórica e a razão prática. É justamente esse o aspecto falho em nossa filosofia contemporânea – não há mais amor à sabedoria; passou-se a amar aquilo ao qual chegamos fazendo o uso da mesma. De que forma transformar o mundo? Que reação expressar frente à criança de rua que nos pede alimento? E aos cães que tremem de frio sob a chuva forte de invernos rigorosos? E nossa consciência, onde está? O que pode oferecer a nós um suporte que nos possibilite construir algo firme e consistente e que dê conta de abarcar toda uma totalidade tão fragmentada que já não mais se consegue juntar suas partes? Como pensar ao mesmo tempo no idoso e na criança? E os problemas ecológicos, são conspirações? Como podemos agir frente a isso? E as gerações futuras? E nossa crise existencial que não faz mais do que nos oferecer medo e angústia frente a um destino certo do qual todos estamos fadados? Tendo em vista o que foi apresentado até aqui, penso ter sido possível demonstrar e ao mesmo tempo oferecer uma posição crítica da História da Filosofia; de fato, uma presunçosa e modesta Filosofia da História da Filosofia, através da qual é possível que nos situemos e entendamos a triste crítica sofrida por essa mãe de todas as ciências – enquanto princípio que induz ao conhecimento científico – no contexto atual. É provável que o equivoco seja justamente este: buscar novos valores – talvez seja pelo resgate dos antigos que devamos primar. “Os filósofos até hoje se preocuparam em especular o mundo; quando na realidade o necessário é transformá-lo” (11º tese sobre Feuerbach).
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Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Editora Martin Claret. São Paulo. 1 ed. 2001. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997. MARX, Karl.; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 4 ed. São Paulo. MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: Dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. - 13.ed. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
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Os princípios liberais e o problema da sujeição feminina em John Stuart Mill Everton Miguel Puhl Maciel 1 Céu e inferno supõem duas espécies distintas de homens: os bons e os maus. A maior parte da humanidade, entretanto, flutua entre o vício e a virtude, David Hume, Da Imortalidade da Alma. John Stuart Mill não se preocupou apenas em apontar a submissão escravocrata de um sexo frente ao outro, ainda buscou compreender como a exigência da obediência vinha acompanhada de uma perturbável reclamação por afeição. No coração do séc. XIX, as mudanças econômicas e urbanas da revolução industrial foram apenas lentamente acompanhadas por mudanças culturais. Com a abolição definitiva da escravidão na França e nas suas colônias2, foram as mulheres inglesas quem primeiro compreenderam a importância humanitária de acabar com o trabalho escravo nas colônias que a Europa mantinha na América e nas Índias. Diferente daquilo genericamente apontado por grande parte dos responsáveis pela confecção dos livros didáticos de História no Brasil3, não foi apenas um interesse capitalista comercial vago que motivou o fim da escravidão no nosso país em 1888. Donas de casa e confeiteiras inglesas, motivadas pelas posições abolicionistas da rainha Vitória e pela posição liberal de intelectuais da época, iniciaram uma forte panfletagem e um boicote ao açúcar produzido por nações escravocratas. O florescimento de movimentos que apregoavam os direitos humanos e a expectativa de levar em consideração um leque mais abrangente de interesses estava em discussão. Como jornalista, o próprio Mill publicou artigos defendendo a abolição4 da escravidão e o direito dos negros africanos. Mas, muito antes disso, devemos agradecer o fim da escravidão na América especialmente às mulheres inglesas que sacrificaram o açúcar do chá das cinco5. 1
Texto escrito por Everton Miguel Puhl Maciel. Doutorando pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS. e-mail jornalistamaciel@gmail.com. Palestra proferida na Unipampa, Bagé em 09 de agosto de 2012. 2 Em 1794, a Declaração dos Direitos do Homem o do Cidadão foi colocada em prática acabando com a escravidão Em 1802, Napoleão restituiu legalmente a prática. Apenas em 1948 a abolição definitiva foi aplicada. 3 FRANCISCO; CANHA, 2006, pp.83-95. 4 “Occasional Discourse on the Negro Question”, 1849. In Essays On Equality, Law, and Education. ROBSON, John (org.), 1984, pp.85-95. 5 NARLOCH, 2011, p.105. 33
Engajado na luta política deste contexto, Mill visualizava nas mulheres do seu tempo a esperança da manutenção do progresso social permanente. O autor não conseguia admitir a submissão das mulheres como algo natural, nem sequer moral, e se aproveitou da capacidade de rápido esclarecimento de suas conterrâneas para professar um manual contra a sujeição do sexo fisicamente frágil. Neste trabalho, vamos estudar o The Subjection of Women (1869) a partir de quatro pontos específicos: (i) observaremos as questões motivacionais que levaram à redação do ensaio do ponto de vista da legislação da Inglaterra do período de Mill; em seguida, (ii) vamos estudar os argumentos contra a exclusão das mulheres da vida pública; por último, (iii) trataremos da relação de intimidade do casal, estabelecendo o princípio da igualdade como fundamental para a manutenção do matrimônio. Esses argumentos são expressos respectivamente nos capítulos II, III e IV da obra, sendo que subjaz a eles o (iv) princípio da igualdade, explicado pelo autor no capítulo I, pelo qual iniciaremos. (iv) Mill não é um autor de tradição na filosofia política crítica. Suas principais e mais estudadas obras, On Liberty (1859) e Utilitarianism (1861), tem um caráter construtivo e buscam alicerçar as bases da filosofia política e moral do liberalismo contemporâneo. On Liberty tem a pretensão de estabelecer o princípio da liberdade pela argumentação de que não podemos tolher a liberdade alheia sem uma justificativa calcada no princípio da utilidade. Por sua vez, Utilitarianism pretende estabelecer uma teoria ética fundamental para o ajuizamento das ações morais, tornando o princípio da utilidade um critério indispensável na tentativa permanente de potencializar a felicidade do gênero humano. No entanto, grande parte das publicações do autor em jornais e revistas da época foi negativa, crítica aos sistemas legais e aos modelos culturais da Europa industrializada com hábitos ainda feudais. The Subjection of Women é uma dessas publicações. Mill não pretende reclamar a igualdade legal para o sexo feminino com argumentos positivos em prol de uma perfeita igualdade de direitos e deveres. Pelo contrário, busca fazer com que o ônus da prova recaia sobre aqueles que são contra os princípios da liberdade e da igualdade. O autor considerava que, se precisamos de alguma pressuposição a priori, ela deve ser à favor da liberdade e da imparcialidade:
supõem-se que o peso da prova seja de quem é contra a liberdade: quem luta por alguma restrição ou proibição – alguma limitação da liberdade de ação humana em geral, ou alguma desqualificação qualquer ou disparate de privilégios que atinge uma pessoa ou um tipo de pessoas, quando comparadas com 34
outras. A pressuposição a priori é a favor da liberdade e da imparcialidade. Assegura-se que não se deve restringir nada que não seja contrário ao bem comum, e que a lei não deve restringir as pessoas, e sim deve tratá-las todas como iguais, salvo quando a diferença de tratamento é requerida por razões positivas, seja de justiça ou de política6. Devemos compreender uma pressuposição como a da liberdade política e da imparcialidade judicial como necessárias para a manutenção do ambiente público. Como fica claro em uma das suas obras mais estudadas, o autor não reclama a imparcialidade nas relações pessoais. A imparcialidade nada mais é do que a igualdade elevada ao domínio público. Seria curioso se déssemos igual tratamento a estranhos e a familiares em caso de assistência, como nota o próprio Mill: “uma pessoa pode ser mais censurada que elogiada por não prestar a sua família ou amigos uma preferência superior que a um estranho, quando puder fazê-lo apenas sem violar algum outro dever”7. A imparcialidade da qual Mill fala envolve direitos e obrigações que devem se reclamados em casos públicos. O autor considera, por exemplo, que o sufrágio feminino ou a igualdade de direitos e deveres frente aos filhos de um casal representa casos desse tipo. Confrontado com a legislação herdada do período feudal, pré-revolução industrial, Mill observa que não existem argumentos em prol do despotismo familiar que não possam ser utilizados também no despotismo político8. Independente da instituição política que está se defendendo ser escravocrata ou a de uma “cabeça de família”, sempre são apresentados os quadros mais amáveis do exercício da autoridade. Seja pela benevolência dos tiranos ou pelo afeto daquele que é submetido à dependência, Mill não duvida que possa haver uma relação feliz entre governo e governado. Apenas precisamos reconhecer que as instituições e a legislação precisam ser moldadas não para os homens bons, mas para frear o ímpeto dos maus 9. Este tipo de 6
“[…] the burthen of proof is supposed to be with those who are against liberty: who contend for any restriction or prohibition, either any limitation of the general freedom of human action, or an) disqualification or disparity of privilege affecting one person or kind of persons, as compared with others. The à priori presumption is in favour of freedom and impartiality. It is held that there should be no restraint not required by the general good, and that the law should be no respecter of persons, but should treat all alike, save where dissimilarity of treatment is required by positive reasons, either of justice or of policy” (CW XXI:262). (Traduções nossas) 7 “A person would be more likely to be blamed than applauded for giving his family or friends no superiority in good offices over strangers, when he could do so without violating any other duty […]” (CW X:243) 8 CW XXI:286. 9 CW XXI:287. 35
observação confere com o projeto liberal já administrado pelas palavras do próprio autor em On Liberty. A permanente comparação entre marido e um tirano que Mill estabeleceu leva em consideração o ditado humeano de que céu e inferno foram feitos para homens bons e maus, mas a maior parte da humanidade circula permanentemente entre esses dois extremos10: virtude e vício. Nas palavras de Mill, “demônios absolutos são raros como anjos, até mais raros: selvagens furiosos, ocasionalmente abalados de humanidade, são, entretanto, muito frequentes”11. O método de elaborar filosofia prática utilizado pelo autor leva em conta o comportamento humano de uma maneira bem peculiar. Ele pensa que os problemas de ordem ética podem ser superados, acredita em um desenvolvimento moral permanente e constante, e observa o comportamento de uma geração a partir de fatos genéricos. No caso da submissão do mais frágil, o comportamento padrão é que os homens reservam seu lado mais violento para aqueles que não estão em condições de lhes contrariar. A capacidade das mulheres para se tornarem perversas, normalmente, é limitada a uma tirania reversa, e suas vítimas são os maridos com menor propensão ao cargo de tirano12. (i) Em 1851, ao se casar com Harriet Taylor, Mill fez um protesto formal contra a lei do casamento que estabelecia poder e controle legal a uma das partes da união, o marido, independente da vontade da esposa. As críticas de Mill a legislação inglesa do matrimônio da época foram recebidas com entusiasmo apenas por círculos liberais, mas sem muitos resultados práticos imediatos. Foi apenas em 1866, enquanto deputado, que o autor deu voz a petição circulada um ano antes que colheu quase 1.500 assinaturas a favor do sufrágio feminino. Ele não se dedicou a polêmica reforma parlamentar da época justamente porque estava preocupado com questões que seus colegas julgavam marginais. A filiação de Mill às chamadas “minorias” lhe custou o fracasso da reeleição como membro da Câmara dos Comuns. Mill foi ridicularizado por políticos e intelectuais da época; e as mulheres só foram ter o direito de votar na Inglaterra ao final da Primeira Guerra Mundial, em 1919. Hoje, o vanguardismo de Mill é saudado. Considerado o pai do feminismo ele foi o primeiro político de uma democracia moderna a advogar em prol da causa feminina. Na sua Autobiography, publicada postumamente,
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2006, p.26. “Absolute fiends are as rare as angels, perhaps rarer: ferocious savages, with occasional touches of humanity, are however very frequent” (CW XXI:288). 12 CW XXI:289. 11
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o autor se refere ao período em que lutou pelo sufrágio feminino e salienta a pertinência da discussão naquele momento histórico:
minha luta pelo sufrágio feminino e pela representação pessoal, foi vista como um mero capricho individual, mas o grande progresso, desde então, feito por essas opiniões e especialmente a reação motivada, em quase todas as partes do Reino, pela demanda do sufrágio às mulheres, justificam completamente a oportunidade daquelas declarações, e se tornaram um empreendimento pessoal, tomado como um dever moral e social13. As relações entre os sexos podem ser reguladas de diversas formas: pela submissão física, intelectual e teórica ou mesmo pela subordinação legal. Era esse último princípio que vigia no período em que Mill viveu. A comentadora Mery Lyndon Shanley observa que a diferença legal está alicerçada antes na manutenção da submissão que em uma diferença natural entre os dois sexos: “a desigualdade legal tem criado não apenas recursos e campos de ação diferentes para homens e mulheres, mas também uma relação de atividade dominadora na qual as mulheres têm de se confrontar por si mesmas com o poder dos homens14”. O paralelo inicial que estabelecemos com a escravidão, direta e indiretamente, permeia todo The Subjection of Women. Essa referência só deixava de ser apropriada quando a relação escravocrata do matrimônio conseguia superar em nível de tirania a relação de submissão política a qual os afrodescendentes foram submetidos historicamente. Mill buscou estabelecer um novo modelo, alheio e independente da legislação vigente, que norteasse as relações matrimoniais. O princípio da igualdade no matrimônio seguia um critério semelhante ao princípio da igualdade entre os cidadãos. Trata-se da tentativa de conjugar as noções de liberdade, felicidade e progresso social. “Liberdade de escolha não tem apenas conduzido à felicidade individual, mas também provido a melhor esperança ao progresso humano”, como destaca Shanley15. É este espaço que o princípio da igualdade ocupa. Dando iguais condições de liberdade para homens e mulheres, o melhoramento 13
My advocacy of women's suffrage, and of Personal Representation, were at the time looked upon by many as whims of my own, but the great progress since made by those opinions, and especially the zealous response made from almost all parts of the kingdom to the demand for women's suffrage, fully justified the timeliness of those movements, and have made what was undertaken as a moral and social duty, a personal success (CW I:275s). 14 1998, p.399. 15 1998, p.400. 37
das relações domésticas e públicas é inevitável. A relação escravocrata entre maridos e esposas não é apenas injustificável, ela é prejudicial à sociedade. As relações matrimoniais baseadas no princípio da igualdade corroborariam a compreensão política de equidade, tanto do ponto de vista doméstico quanto público, e serviriam de modelo para crianças que poderiam se comportar tendo em vista, desde cedo, um modelo de respeito mútuo. A posição das mulheres daquele período era de inteira submissão, quando não ao marido, ao sistema social e econômico da época. O resultado é a ausência prática de alternativas para a condução das suas vidas do ponto de vista individual e público. As mulheres eram marginais ao sistema educacional da época e sua instrução era restrita às atividades básicas necessárias para a administração do lar. Por vezes, uma maior instrução era oferecida apenas para que a esposa pudesse representar bem o marido publicamente e em círculos sociais. Jamais, no entanto, se imaginava uma mulher desempenhando um papel intelectual respeitável no meio acadêmico ou político. Um dos principais elementos que levou Mill a advogar pelo sufrágio feminino na Inglaterra foi a esperança de que o direito de voto oferecesse a elas a oportunidade de garantir publicamente direitos e reivindicar na legislação elementos punitivos contra a violência doméstica. Assim, notamos como os capítulos de The Subjection of Women estão interligados, pois o autor passa da discussão legal aos contra-argumentos que reclamam à inserção das mulheres na vida pública. Isso autentica, por exemplos, os discursos feitos no parlamento britânico em 1867. (ii) Um dos argumentos pelo direito de voto das mulheres residia no fato delas poderem lutar publicamente contra a violência dos seus “protetores”, com lobbies junto ao parlamento e a magistratura: nós poderíamos ter uma estimativa aritmética do valor [da pena] estipulada por um homem legislador e por um tribunal de homens referente ao assassinato de uma mulher, muitas vezes torturada através dos anos, que, se existe alguma vergonha em nós, poderia nos fazer cortarmos nossas cabeças. [...] antes, afirma-se que as mulheres não sofrem de seus interesses, como mulheres, por lhes negarmos um voto; isso poderia ser considerado se as mulheres não tivessem queixas, se as leis e as práticas a que podem chegar fossem em todos os casos favoráveis às mulheres como aos homens16. 16
“We should then have an arithmetical estimate of the value set by a male legislature and male tribunals on the murder of a woman, often by torture continued through years, which, if there is any shame in us, would make us hang our heads. [...] before it is affirmed that women do not suffer in their 38
A prerrogativa que busca estabelecer a igualdade das mulheres na família ultrapassa a preocupação com a violência doméstica e as portas de cada lar atingido. Mill sabe que a mulheres são influentes no que se refere às finanças familiares, à educação dos filhos e possuem grande flexibilidade e capacidade administrativa em suas residências. O ponto é que essa influência não tem reflexo legal ou político fora dos lares e as mulheres, em última análise, não possuem voz em decisões cruciais da sociedade. Elas não têm ao seu alcance também as ferramentas mínimas para evitar discrepâncias na busca por uma colocação no mercado de trabalho, ficando reféns de poucas alternativas:
ou se filiando a um homem e constituindo uma família, ou
buscando a vida religiosa. Este fenômeno retumba uma ideia impossível de ser comprovada e inexistente enquanto fato. Admitimos, sem nenhum questionamento, que as mulheres não possuem, desde o momento em que nascem, a capacidade de assumir determinadas funções que estão disponíveis aos mais boçais indivíduos do sexo oposto17. É pela enorme quantidade de impedimentos internos à família, aliados à escravidão doméstica, que Mill busca alternativas externas a ela, advogando pela maior prerrogativa das mulheres no âmbito externo ao lar. Ele sabia que uma maior flexibilidade de alternativas nos campos do trabalho, política e economia poderia diminuir as indisposições domésticas no âmbito dos direitos e deveres. Justamente por isso, o autor espera que os homens de maior esclarecimento de seu tempo possam se aliar às mulheres para o rompimento das amarras que as mantêm presas ao lar; mesmo que inicie o capítulo III de sua obra sem muitas esperanças de que esse momento esteja próximo: “acredito que essa incapacidade para outras tarefas, apresentada como argumento, busque apenas manter as mulheres subordinadas à vida doméstica; porque os homens em geral não podem ainda tolerar a ideia de viver com um indivíduo igual”18. Os argumentos de Mill não são dirigidos aos que concordam com a plena igualdade das mulheres na família, mas aqueles que admitem isso e nada fazem para concretizar essa igualdade na vida pública. A exclusão das mulheres do ambiente público é o principal responsável pela sua subordinação nos lares. O autor sabe que interests, as women, by the denial of a vote, it should be considered whether women have no grievances; whether the laws, and those practices which laws can reach, are in every way as favourable to women as to men” (CW XXVIII:158s). 17 CW XXI:299. 18 “I believe that their disabilities elsewhere are only clung to in order to maintain their subordination in domestic life: because the generality of the male sex cannot vet tolerate the idea of living with an equal” (CW XXI:299). 39
apenas persuadindo parte dos homens a filiarem-se a causa feminina pela igualdade, ele poderá encontrar um caminho concreto na busca por emancipação. Os argumentos intermediários que Mill propôs no séc. XIX são praticamente incontestáveis nos dias de hoje. Dizem respeito a um conjunto de capacidades intelectuais que opera tanto em mulheres quanto em homens. Quando o sexo feminino não está em pé de igualdade com o masculino para o desempenho de funções intelectuais, Mill se dá ao trabalho de ressaltar as atividades práticas onde as mulheres conseguem superar os homens em capacidade. Em seu período, era comum o argumento de que as mulheres tinham baixa capacidade para a concentração em atividades especiais específicas. Para ele, no entanto, isso não representava necessariamente uma desvantagem:
na prática, dos departamentos mais importantes aos mais irrelevantes, a capacidade de percorrer de um assunto a outro, sem deixar que a flexibilidade do intelecto se perca entre os dois, é um poder de mais valor; e esse poder as mulheres possuem preeminentemente, em virtude da maior mobilidade da qual são acusadas19. Enquanto utilitarista, Mill visualizava os efeitos práticos e benéficos da inserção das mulheres na vida pública. Os reflexos imediatos seriam vistos justamente no ambiente doméstico, onde acontecem as maiores submissões de um sexo frente ao outro. O princípio da igualdade precisaria respeitar a noção de liberdade política que residia, na teoria liberal do autor, especialmente a partir das questões suscitadas em On Liberty, ponto que fugiria o escopo desse trabalho. A reclamação pela inclusão das mulheres na vida pública busca, ao mesmo tempo, propagar o princípio da igualdade e fazer com que se cumpra aquilo pressuposto no seio do próprio liberalismo, a saber: é responsabilidade daqueles que não admitem a presença das mulheres no ambiente público o ônus da prova da manutenção delas em suas prisões domiciliares, conventos religiosos ou meretrícios. Em meio ao conturbado século XIX, a (iii) igualdade no matrimônio era uma emergência social. A Inglaterra da Revolução Industrial vivia um período de forte aglomeração urbana e o casamento com características feudais ainda era uma realidade.
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[…] “of practice, from its highest to its humblest departments, the capacity of passing promptly from one subject of consideration to another, without letting the active spring of the intellect run down between the two, is a power far more valuable: and this power women pre-eminently possess, by virtue of the very mobility of which they are accused” (CW XXI:310). 40
Apenas os casos envolvendo discrepâncias mais sérias chamavam a atenção do público. Antes de a sujeição envolver sofrimentos extremos, ela era considerada moralmente admissível. Os casos de extrema violência, com alguma possibilidade de chocar o público, eram vistos como mera exceção à regra geral:
pessoas irracionais ou hipócritas, que consideram apenas os casos extremos, podem dizer que os males são excepcionais; mas ninguém pode ignorar a sua existência, nem, em muitos casos, sua intensidade; é perfeitamente óbvio que o abuso de poder não pode ser realmente controlado, ao menos enquanto o poder permanece20. A proposta de Mill envolvia um preceito de plena igualdade no casamento em virtude da desigualdade não possuir justificativa alguma. Mas o autor estava permanentemente preocupado com a maleficência prática da desigualdade e a ligava imediatamente à injustiça no contexto das relações. Para ele, o casamento é a forma mais difundida de relacionamento humano e as vantagens de regular o matrimônio por um preceito de justiça, em detrimento da injustiça, eram evidentes. Havia benefícios claros na ideia de que um rapaz poderia se tornar adulto buscando elogios pelos seus próprios méritos e esforços ou sabendo que se fosse uma pessoa com comportamentos frívolos seria censurado, independente da sua condição ao nascer. Os únicos elementos proeminentes capazes de conferir direitos e respeito dizem respeito ao comportamento. Não se trata do que os homens são; mas do que eles fazem. Só isso pode autorizar sua pretensão à consideração dos seus iguais21. Como aponta Shanley, “Mill insiste mais que a sujeição da mulher não pode encerrar apenas por lei, mas somente por lei e a reforma da educação, opinião, da inculcação social, dos hábitos e, finalmente, da conduta da própria vida familiar”22. Apenas nesse sentido, é possível reverter comportamentos praticamente patológicos, como aquele que apontamos na primeira frase desse texto: é impossível compreender uma forma de alterar drasticamente tanto a
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“Unthinking or uncandid persons, counting those cases alone which are extreme, or which attain publicity, may say that the evils are exceptional: but no one can be blind to their existence, nor, many cases, to their intensity. And perfectly obvious that the abuse of the power cannot be very much checked while the power remains” (CW XXI:323). 21 CW XXI:325. 22 “Mill further insisted that the subjection of women could not be ended by law alone, but only by law and the reformation of education, of opinion, of social inculcation, of habits, and finally of the conduct of family life itself” (1998, p.410). 41
sujeição feminina, quanto a sujeição dos sentimentos reclamados por muitos opressores, no sentido de “ame-me, enquanto te maltrato”. No caso da união entre casais, admitindo uma propensão espontânea entre os pares de estabelecer relacionamento, existe um ditado geral de que as diferenças são responsáveis pela aproximação. A ideia de que os opostos se atraem não pode ser responsável pela legitimação da diferença permanente entre marido e esposa. Mesmo que personalidades diferentes sejam atrativas entre si, a manutenção da sanidade na relação depende da igualdade. As diferenças inevitáveis de caráter, temperamento e mesmo as diferenças físicas não devem representar uma desigualdade de poder que só tende a potencializar injustiças. Se os opostos se atraem, é a igualdade que mantém a união. “Uma sociedade íntima entre pessoas radicalmente dissimilares uma da outra é um sonho vão. Diferenças podem atrair, mas é semelhança que conserva: e na proporção das semelhanças está a adequação dos indivíduos para dar a cada outro uma vida feliz23”, assevera Mill. A profunda liberdade de associação que Mill pregou em On Liberty já previa que as semelhanças são responsáveis pela verdadeira identidade na busca de interesses comuns. Nas questões envolvendo o matrimônio o princípio da associação não é especial ou diferente. É nas identificações que os interesses se convergem. As pessoas não se casam esperando por tolerância mútua, mas visualizam um projeto comum de vida. Referências Bibliográficas MILL, John Stuart. The Subjection of Women. In Collected Works, v.21. Toronto: Toronto University Press; ROBSON, John (Ed.), 1984. ___________. Autobiography. In Collected Works, v.1. Toronto: Toronto University Press; ROBSON, John (Ed.), 1981. ___________. Utilitarianism / Three Essays on Religion et al. In Collected Works, v.10. Toronto: Toronto University Press; ROBSON, John (Ed.), 1969.
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“Intimate society between people radically dissimilar to one another, is an idle dream. Unlikeness may attract, but it is likeness which retains: and in proportion to the likeness is the suitability of the individuals to give each other a happy life” (CW XXI:333). 42
___________.
Publicand Parliamentary Speeches. In Collected Works, v.28.
Toronto: Toronto University Press; ROBSON, John (Ed.), 1988. ___________. A Liberdade; Utilitarismo. Tradução: Eurice Ostrensky. Introdução: Isaiah Berlin. São Paulo: Martins Fontes, 2000. VASCONCELOS, Bernardo de. (Des)igualdade em The Subjection of Women de John Stuart Mill. Introdução in MILL, John Stuart. A Sujeição das Mulheres. Tradução: Benedita Bettencourt. Almedina: Coimbra, 2006, pp.7-31. FRANCISCO, Marli; CANHA, Vanderleia. Relações de Trabalho: transição do trabalho escravo para o trabalho livre... In História. Secretaria de Estado da Educação do Paraná Curitiba, 2006. pp.83-95. SHANLEY, Mary Lyndon. The Subjection of Women. In SKORUPSKI, John (org.). Cambridge Companion to Mill. Cambridge: 1998, pp.396-422. NARLOCH, Leandro. Negros: agradeçam aos ingleses. In Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil. 2ªed. rev. amp. Leya: São Paulo, 2011, pp.79-109. Petition circulated by the Women's Suffrage Petition Committee, 1865. Living Heritage Women and the Vote. London: Parliament. Acessado em 30 de março de 2012: http://www.parliament.uk/about/livingheritage/transformingsociety/electionsvoting/womenvote/unesco/petition-1865/
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O sentido de uma ilusão: considerações sobre a Austin ao “argumento da ilusão”. Cristiano Junta 1 1. Introdução Nosso objetivo nesse estudo é compreender o impacto da discussão de John Austin em Sense and Sensibilia sobre certas discussões no terreno da filosofia da percepção. Nosso interesse nesse tema específico poderia ser enunciado como, apropriando-nos de uma expressão de Stanley Cavell, de que temos a sensação de que a filosofia de Austin ainda espera por ser recebida.2 Dessa maneira, é preciso notar que há uma dificuldade em estabelecer as posições de Austin. Dificuldade essa advinda em especial das características típicas de seu estilo filosófico. Assim, poderíamos apresentar esse pequeno texto como uma investigação preliminar que visa contribuir, a partir de uma discussão tópica, para a constituição de uma visão ampla da postura filosófica de Austin sobre o “argumento da ilusão”. Pretendemos defender, em particular que a posição de Austin em grande medida ecoa posições de cunho realista apresentadas anteriormente na tradição filosófica. Travis (2008), apontaram com perspicácia isso ao localizar a familiaridade de Austin com as posições desenvolvidas por John Cook Wilson. A crítica de Austin, que conhecemos por suas posições desenvolvidas no livro Sense and Sensibilia, tem como algo a teoria dos dados sensoriais (sense-date theory), pode-se ler já nas páginas iniciais do livro os propósitos declarados do autor (Austin, 1964, p.3): My general opinion about this doctrine [dos dados sensoriais] is that it is a typically scholastic view, attributable, first, to an obsession with a few particular words, the uses of which are over-simplified, not really understood or carefully studied or correctly described; and second, to an obsession with a few (and nearly always the same) half-studied 'facts'. (I say 'scholastic', but I might just as well have said 'philosophical'; oversimplification, schematization, and constant obsessive repetition of the same small range of jejune 'examples' are not only not 1
Texto escrito por Cristiano Junta, Doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS. email: cristiano.junta@gmail.com. Palestra proferida na Unipampa, Bagé em 11 de outubro de 2012. 2 Cavell, 1976, pp 44-72. 44
peculiar to this case, but far too common to be dismissed as an occasional weakness of philosophers.) The fact is, as I shall try to make clear, that our ordinary words are much subtler in their uses, and mark many more distinctions, than philosophers have realized; and that the facts of perception, as discovered by, for instance, psychologists but also as noted by common mortals, are much more diverse and complicated than has been allowed for. It is essential, here as elsewhere, to abandon old habits of Gleichschaltung, the deeply ingrained worship of tidy-looking dichotomies. Nosso esforço consistirá basicamente em mostrar a ligação intima entre a crítica de Austin e sua aversão ao emprego dicotômico e simplista da terminologia dos dados sensoriais na teoria de Ayer. Algo que Austin alhures define como uma “fraqueza dos filósofos” que tendem a simplificar excessivamente, esquematizar e promover uma “repetição obsessiva” de uma série de exemplos. Argumentaremos que, para Austin, o ponto central não reside em saber se essas discussões são capazes de justificar o emprego de uma terminologia capaz de dar referência apropriada a um aspecto meramente sensório dos objetos próprio da experiência perceptiva. Aspecto que seria distinguível de alguma maneira das próprias propriedades físicas dos objetos. De outro modo, para Austin o problema consiste, de maneira completamente diversa, na observação de que o emprego do vocabulário da teoria dos dados sensoriais guia a investigação filosófica sobre a natureza da percepção para uma imagem, por assim dizer, sistematicamente enganadora. 2. Três modos de interpretar a crítica de Austin O que aqui seria enganador, entretanto, não é facilmente compreendido. Em parte, por que não parece evidente em que, exatamente, consistiria a “fraqueza dos filósofos”. Em nosso modo de ver a questão, parece haver três possíveis interpretações para isso. Em primeiro lugar, poderíamos pensar que o que seria enganador é a própria demanda de que seja necessário uma teoria da informação sensorial. Uma posição que advém da percepção de que o objetivo de Austin nesse texto era meramente “negativo” ou mesmo “anti-teórico” (Martin, 2007, p.2 e Warnock, 1991, p.8). Posição que é reforçada quando se considera a posição singular no debate filosófico contemporâneo de Sense and Sensibilia. Segundo Warnock, ele é mesmo um texto estranho (1991, p. 9). 45
Especialmente devido ao fato de que suas considerações não produzem da maneira usual em uma discussão filosófica uma refutação da teoria da confrontada.3 Ao mesmo tempo, mesmo assumindo que a crítica de Austin contra a teoria da informação sensorial seja eficiente, o texto parece não apresentar uma visão alternativa à problemática que ele se endereça. Em segundo lugar, podemos pensar que a “fraqueza” estaria em uma certa visão de como a linguagem funciona. Essa interpretação esta associada a recusa de Austin em tratar o sentido de uma proposição, per se, como um objeto (ou um algo) que esteja imbuído de alguma maneira na forma da proposição, pace Russell (e.g. 1972). Consequentemente, ele recusa que as proposições possam ser classificadas per se como “provedoras de verdade (1962, p.123-4). Notoriamente em How to Do Thing With Words Austin (1964) ele introduz a distinção entre constantivo e performativo com o paralelo entre afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas (tipicamente descrições de coisas ou fatos) e performativos como enunciados que podem ter sucesso ou falharem (e.g. promessas, ordens, etc.). Em um ponto crucial dessa discussão Austin inverte esse paralelo. Isso mostrar que devemos concluir que a distinção constantivo/performativo esboçada sobre a distinção valor-de-verdade/sucesso-deenunciações colapsa, como bem notou Searle (1976, p. 14 e 1968, p.412, dentre outros). De fato, em Sense a crítica a informação sensorial se baseia na ideia de que verbos descritivos (como ver, olhar e aparecer) não funcionam sempre para referir-se à aspectos da realidade. A partir dessa interpretação o ponto central da crítica reside em saber se somos capazes de justificar o emprego de uma terminologia especial capaz de referir às experiências subjetivas na percepção sensorial. Isso remete à ideia de que nem sempre enunciados descritivos devam ser analisados de acordo com a determinação de suas referencias e, consequentemente, em termos de valores de verdade. Uma exigência que parece estar na raiz da justificação de Ayer para a introdução da teoria da informação sensorial. Essa ideia é subsidiária na filosofia positivismo lógico (locus classicus Russell, 1972; Carnap, 1967; Ayer, 1952) à ideia de que os enunciados com sentido devam poder ser verificados. Em terceiro lugar, podemos interpretar o ponto de Austin como Travis e Kalderon (2013) no desenvolvimento de uma ideia já presente na obra de Cook Wilson 3
Mesmo Alfred Ayer, um dos principais alvos da crítica de Austin, reconhece o sucesso público de seu antagonista (1967, p.XX). É preciso notar, sem jamais ter deixado de defender sua posição. 46
(1926). Este afirmou de maneira muito semelhante a Austin que tinha uma “aversão instintiva com a própria expressão 'teoria do conhecimento'.” A raiz dessa afirmação encontra-se na ideia de que o ato de conhecer não é analisável em termos de crer ou ter evidencia, ou qualquer outra coisa (Travis & Kalderon, 2013, p. 500). Para Cook Wilson aquele que diz que conhece P esta em um estado de espírito (frame of mind) muito distinto de crer em P (1926, p.100). Basicamente, a ideia de Cook Wilson se fundamenta em se S diz conhecer P nas circunstâncias em que ele disso isso ele deve poder reconhecer que conhece isso (Travis & Kalderon, 2013, p.503). A esta ideia Travis & Kalderon chama de “o acúmulo” (the accretion). Sob essa perspectiva a posição de Austin pode ser retratada como um desenvolvimento e correção dessa ideia. Na discussão de Austin (em especial em Others Mind) a questão parece da seguinte forma. Se S enuncia “Conheço P” a correção desse enunciado depende da circunstância em que ele é feito. No caso em que nós reconhecemos sua correção dizer que “S conhece P” não requer qualquer outra afirmação sobre as evidências para P ou as crenças de S, simplesmente não há espaço para uma análise subsequente disso nesses ou em nenhum outro termo. Inversamente, nos contextos onde isso é disputado nós falhamos (ou negamos) o reconhecimento de que é correto afirmar que “Conheço P” enunciado por S nessa circunstancia. Nesse caso é a autoridade (ou correção) de S na performance desse enunciado que é disputada, não a significação daquilo que ele deseja expressar dizendo “Conheço S”. Em Sense isso esta intimamente ligado a recusa de Austin de que algo como “S vê P” é uma proposição que requer, para a compreensão do seu sentido, de uma análise posterior sobre o que ou mesmo se S possui os apropriados dados sensoriais de P, assumindo-se que se trata do conhecimento de um objeto. Analogamente à discussão de Other Minds disputar a afirmação de S “Vejo P” é disputar a correção do uso de S dessas palavras ao pronunciar isso nessa circunstância e não disputar alguma espécie de fato em relação aos estados internos de S. 3. As justificativas de Ayer para a teoria dos dados sensoriais Creio que sera util aos nossos interlocutores expor algumas observações gerais sobre a “teoria dos dados sensoriais”. Em primeiro, lugar notar o caráter um tanto perculiar de usar aqui a palavra “teoria”. Assim é, se consideramos dois fatos. Por um lado, há uma grande variedade de posições filosóficas, com características muito 47
distintas, que se agrupam sob essa denominação. Certos autores consideram que a expressão dados sensoriais (sense data) tenha sido introduzido nos debates em filosofia da percepção, com a função mais ou menos típica que ela veio a desempenhar, em contraste com as propriedades atribuídas aos objetos materiais por Bertrand Russel em 1912 em seu The Problems of Philosophy. De fato, as características básicas da posição de Ayer pode ser vista como desenvolvimentos dessa discussão. Sobre o contexto particular de nossa discussão hoje, a posição de Ayer em The Foudantion, podemos considerar que a introdução da expressão “informação sensorial” visaria capacitar, na discussão filosófica, um refinamento terminológico capaz de descrever com mais precisão os fatos da nossa experiência perceptiva em oposição ao modo “ordinário” de expressá-los (Ayer, 1963, p.20).
Nesse contexto podemos
observar que a primeira distinção relevante a ser considerada no argumento de Ayer em favor da terminologia da informação sensorial. Ela seria designada para distinguir-se do modo ordinário de expressão, definido vagamente como se “nós percebemos diretamente objetos materiais”. Portanto, para Ayer, é um aspecto importante a determinação de uma distinção entre o modo “filosófico” de se referir as experiências perceptivas e o modo “ordinário” de fazê-lo. A defesa da “conveniência” dessa expressão em filosofia é feita, como notoriamente notou-se, a partir do “argumento da ilusão”. Tal argumento seria, mui simplesmente, a enunciação de exemplos de ilusão perceptiva com o objetivo de induzir o interlocutor a aceitar a conclusão de que todas as nossas percepções são percepções diretas de “dados sensoriais”. O argumento da ilusão pode ser construído, acredito, como um argumento que pode ser descrito da seguinte forma:
(a) As percepções verdadeiras ocorrem quando objetos materiais estão presentes aos órgão sensoriais. (b) Nas ilusões temos uma experiência perceptiva na ausência de objetos materiais presentes aos órgão sensoriais. (c) Se não somos capazes de distinguir entre ilusões e percepções verdadeiras, então não há distinção qualitativa entre ilusões e percepções verdadeiras. 48
(d) Há casos em que “somos enganados pelos nossos sentidos” e não podemos distinguir entre ilusões e percepções verdadeiras. ____________________________________________________________ Conclusão, não há distinção qualitativa entre ilusões e percepções verdadeiras. Uma vez introduzido esse argumento Ayer passa a argumentar em favor de um uso generalizado do termo dado sensorial para a descrição de todas as experiências perceptivas sob a argumentação que, do ponto de vista do sujeito, a experiência perceptiva de uma ilusão e de uma percepção verdadeira não é qualitativamente distinguivel. Pois, não haveria, de fato, distinção qualitativa entre esses dois tipos de experiência (Ayer, 1963, p.24-5). Em um sentido bastante claro, o argumento de Ayer parece ser inválido. Ora, se admitimos que a verdade das premissas a conclusão não se segue. Pois, mesmo que posso reconhecer que há casos onde uma experiência perceptiva verdadeira é indistinguível de uma ilusória, não se segue disso que em todos os casos isso aconteceria. Ayer mesmo admite isso em seu texto The Fundaments. Assim sendo, Ayer conclui que a mera possibilidade de erro é suficiente para por em alerta os filósofos sobre a questão. Ayer, no The Fundaments é cuidado em pontuar que a expressão dado sensorial não fundamenta-se numa espécie de deficiência da linguagem ordinária (Ayer, 1963, p.25). Antes ela constituir-se-ia em um instrumento útil na discussão sobre a natureza da experiência perceptiva (Ayer, 1963, p.26). Assim o ganho específico para a discussão filosófica seira que é “ useful for us to have a terminology that enables us to refer to the contents of our experiences independently of the material things that they are taken to present.” (idem). Já que exite, pelo menos a possibilidade de estamos equivocados quanto a determinar uma experiência perceptiva com ilusória ou verídica. De fato, assumindo que o argumento não é conclusivo Ayer apresenta a questão meramente em termos de saber se a terminologia dos dados sensoriais é uma boa ou má ferramenta investigativa na filosofia da percepção. Resta, portanto, apenas a consideração da sua utilidade para dissipar confusões verbais em sua defesa (Ayer, 1963, p.28).
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4. Crítica de Austin em Sense and Sensibilia Desde a introdução, caracterizamos como uma tarefa difícil a caracterização do que consiste a posição filosófica de Austin. Para avançar para uma melhor compreensão da crítica de Austin, façamos algumas observações sobre seus pontos principais. Em primeiro lugar, consideremos, que Austin reivindica que o problema colocado por Ayer é, de certa maneira artificial. Austin não acredita que há uma oposição clara entre os dados sensoriais e os “objetos materiais”. Este último o que seria, para Ayer, aquilo que percebemos diretamente segundo o pensamento ordinário. Para criticar essa oposição Austin considera, primeiramente, que a própria expressão “objetos materiais” não é uma expressão ordinária, (Austin, 1964, p.7). Haverá uma diversidade de casos ordinários em que não consideraríamos de nenhuma maneira correto dizer que o que é percebido seja algo classificável em qualquer definição coerente de “objetos materiais”, (Austin, 1964, p.8): We may think, for instance, of people, people's voices, rivers, mountains, flames, rainbows, shadows, pictures on the screen at the cinema, pictures in books or hung on walls, vapours, gasesall of which people say that they see or (in some cases) hear or smell, i.e. 'perceive'. Are these all 'material things' ? If not, exactly which are not, and exactly why? No answer is vouchsafed. A linha de ataque de Austin nesse contexto concentra-se sobre a artificialidade, por assim dizer, do par de expressões opostas “objeto material” e “dados sensoriais”. Se observamos que não podemos encontrar nenhum emprego ordinário para a expressão “objetos materiais” , então, não poderia jamais ter ocorrido a ninguém “try to represent as some single kind of things the things which the ordinary man says that he „perceives‟” ( idem). Logo, Austin conclui que “The trouble is that the expression 'material thing' is functioning already, from the very beginning, simply as a foil for 'sense-datum' […]”. Em segundo lugar, é importante notar que a própria distinção, fundamentada sobre o assim chamado “argumento da ilusão” é tão artificial, em relação aos referidos “fatos” da percepção, quanto a própria dicotomia que ela introduz. Uma das discussão de Austin a esse respeito é feita quando ele discuti os possíveis sentido em que podemos 50
falar que fomos “enganados pelos nossos sentidos” (deceived by our sense). Pode-se ler, (Austin, 1964, p.11): . Now first, though the phrase 'deceived by our senses' is a common metaphor, it is a metaphor; and this is worth noting, for in what follows the same metaphor is frequently taken up by the expression 'veridical' and taken very seriously. In fact, of course, our senses are dumb-though Descartes and others speak of 'the testimony of the senses', our senses do not tell us anything, true or false. The case is made much worse here by the unexplained introduction of a quite new creation, our 'sense-perceptions'. These entities, which of course don't really figure at all in the plain man's language or among his beliefs, are brought in with the implication that whenever we 'perceive' there is an intermediate entity always present and informing us about something else - the question is, can we or can't we trust what it says? Is it 'veridical' ? But of course to state the case in this way is simply to soften up the plain man's alleged views for the subsequent treatment; it is preparing the way for, by practically attributing to him, the so-called philosophers' view Nesse trecho Austin, expõem a questão de que não podemos considerar os sentidos, per se, como evidências para qualquer de tipo proposições. De fato, para Austin, os sentidos não poderiam desempenhar um papel de “testemunho”, ou mesmo como “evidência”, para quais quer afirmações. Como Chales Travis coloca em uma bela frase, os sentidos são silenciosos. A fundamentação para essa posição de Austin deve ser encontra, segundo Travis (2008) em sua posição sobre a natureza do conhecimento. De fato, a posição de Ayer fundamenta-se na consideração de que para uma pessoa S em uma experiência perceptiva P, sentenças como “S vê P” ou “parece à S que P”, podem ser afirmadas por S erroneamente. A saber, no caso onde S tenha uma ilusão do objeto P. Ao contrário, “S possui os dados sensoriais de um P”, será verdadeira mesmo que P seja uma ilusão. Nesse contexto o argumento de Ayer em favor da terminologia dos dados sensoriais sustenta (ou pelo menos inclina o leitor a pensar) que a referência de afirmações como “S vê P” é a experiência sensorial interna de S, aquilo que são seus “dados sensoriais” o conteúdo de sua experiência perceptiva. Efetivamente Ayer propõem que sentenças como “S vê P” devem ser analisadas como “S possui a dados sensoriais de P”. Assim, como já dissemos anteriormente a terminologia especial dos dados sensoriais é designada para distingui o modo ordinário 51
de expressão, onde “S vê P” e tomado como referindo-se diretamente ao objeto material P, do modo “filosófico” onde a referência direta de “S vê P” é as experiências perceptivas internas de S. Diante disso podemos ver que a crítica de Austin aparece meramente como se ele nos revelasse a simplificação excessiva que essa argumentação opera. Ora, Ayer toma como irrestritamente intercambiável o uso de de “ver” (see), “aparece” (look) e “parece” (appear), dentre outras expressões correlacionadas. Porém, não é verdadeiro que em seu uso ordinário essas expressões tenha o mesmo uso. Consideremos a distinção entre: (1)
Ele aparece culpado (He looks guilty)
(2)
Ele parece culpado (He appears guilty)
(3)
Vê-se sua culpa (He seems guilty)
Uma diferença ressalta-se nessas construções. Em (1) a enunciação remete ao aspecto da pessoa em questão, ele tem o aspecto da culpa (em nossa tradução “aparece culpado”). Em (2) a alguma particularidade da circunstancia como esse sujeito apresenta-se nesse momento. O que remete algo como “quando ele evita responder essas perguntas ele parece culpado, mas em outras circunstancias seu comportamento é de alguém inocente”. Já em (3) há uma clara referência a “matéria probatória que diz respeito em saber se ele é culpado” (Austin, 1962, p.37/1993, p.53-4). Ora, claramente no uso ordinário de “ver” e “parecer” (seem/appear) nem sempre almeja-se dar referência às coisas (ou aos seus aspectos). As construções de enunciados com essas palavras são usadas com sentidos muito distintos e de maneira suficientemente clara nos contextos em que elas são usadas ordinariamente. Quando vemos que alguém é culpado não há pouco espaço para uma atenuação, diferentemente de quanto afirmamos de que alguém parece (ou aparece) culpado. Assim, a discussão de Austin mostra que não são esses enunciados (utterances) que se comportam de maneira ambígua, como Ayer supõem, mas é o “argumento da ilusão” que nos induz a ideia – errônea – de que eles devam sempre ser usados referencialmente. Mas, podemos nos perguntar, diante disso o quanto é efetiva a crítica de Austin para refutar a argumentação de Ayer em favor dos emprego clarificador do vocabulário dos dados sensoriais. 52
5. “Austin refutou a teoria dos dados sensoriais?” Alfred Ayer publicou um texto em 1967 chamado “Has Austin Refuted the sense-datum Theory?” (algo como “Austin refutou a teoria dos dados sensoriais?”). Nesse texto ele considera morosamente sobre o estado da teoria da dados sensoriais após as críticas de Austin: “My reason for taking up the subject is that it is widely believed that the sense-datum theory succumbed to Austin's attack.” (Ayer, 1967, p.117). O objetivo central de Ayer nesse texto, que anuncia-se desde o título, é mostrar que Austin não teria conseguido refutação a teoria dos dados sensoeriais. No texto Ayer lista 17 pontos em que Sense and Sensibilia teria falhado em refutar sua teoria. Obviamente o espaço que dispomos aqui não nos permite repassar cada um desses pontos, por isso, consideraremos apenas alguns aspectos mais relevantes para nossa discussão de hoje. Em primeiro lugar, consideremos a defesa de Ayer para a distinção entre objeto materiais e dados sensoriais. Ayer argumenta (Ayer, 1967, p.118-9): As I see it, this point is a purely logical one. It is that in any such situation as that described by Austin the occurrence of the experience which gives rise to the perceptual judgement is logically consistent with the judgement's being false. Even if we have a use for the word 'certain' which makes it proper to say, in these circumstances, that it is certain that the chair exists, its existence is still not logically deducible from that of the experience: the certainty in question is not based on a logical entailment. Em resumo, sua posição consiste em defender que a distinção restaria apenas sobre uma consideração lógica. A saber, que a existência (e.g de uma cadeira) não pode ser deduzida logicamente da experiência perceptiva de um sujeito qualquer (e.g. a visão de uma cadeira). Logo, a expressão “Vejo uma cadeira” não pode ser tomada com tendo o mesmo sentido que a expressão “Me parece que há uma cadeira”. Algo, que é substancialmente enfatizado pelo próprio Austin, como vimos acima. Entretanto, para Ayer, a última expressão é a única que pode ser afirmada com certeza por um sujeito que tem uma experiência perceptiva de ver uma cadeira. Vimos que a exposição de Ayer em The Foundantions sobre a introdução do termo técnico “dados sensoriais” 53
remete apenas a uma precisão linguística. Nesse sentido , a crítica de Austin, ao mostra a “simplificação excessiva” que a dicotomia entre dados sensoriais/objetos materiais impõe, em relação a diversidade e riqueza do vocabulário ordinário, efetivamente põem em cheque a “utilidade” desse vocabulário técnico. A defesa de Ayer da distinção em “Has Austin Refuted Sense-Data Theory?” passa ao largo da questão central levantada pela crítica de Austin. Ayer insiste que a questão resta “apenas” num ponto lógico – a saber a não implicação entre ver a cadeira e ter uma experiência sensorial da cadeira. Nesse sentido Charles Travis contribuiu, creio, de maneira importante para clarificar um ponto importante da discussão (Travis, 2009, p.14).4 Segundo Travis, Austin tem um desacordo de princípio com a posição epistemológica de Ayer. Esse desacordo reside na consideração de que não podemos construir uma teoria do conhecimento a partir da concepção de que certas proposições, por assim dizer, possui a propriedade de ser incorrigíveis. Uma vez que, a verdade de uma sentença não pode ser determinada independentemente da ocasião da sua enunciação, tão logo, nada nos asseguraria, desde o começo, que haverá sentenças certas em quaisquer ocasiões. Este é um ponto que Austin, enfatiza bastante em seu texto Truth. Apesar de considerar a posição de Travis consistente com a visão de Austin sobre a natureza dos enunciados, acredito que uma explicação mais precisa sobre a função que a crítica de Austin tem diante das considerações de Ayer, pode ser dada se observamos a posição de Austin em relação a introdução de vocabulário técnico na filosofia. Algo que se relaciona com sua concepção do método filosófico. Hampshire
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“But there is an incorrigible judgment that Sid can make in both cases, a judgment about how things appear to Sid in his experience. (For Ayer, this a judgment about sense data, but even philosophers who deny that there are sense data can, and do, accept the more general claim.) And this incorrigible knowledge of appearances constitutes the evidence for the truth of material object sentences. Austin regards this reasoning as simply confused. Ayer is supposing that there is a type of sentence, an observation sentence that represents how things appear in Sid’s experience, that can be incorrigibly known to be true by Sid independently of the occasion of his expressing this knowledge. Against the claim that, independent of an occasion of utterance, there is a sentence about how things appear in Sid’s experience that can be incorrigibly known to be true, Austin insists that the truth of a claim is only determined by the standards in play on the occasion of utterance. Specifically, if as Austin maintains, a sentence is only true when uttered on an occasion, there could be no sentence, independent of an occasion of utterance, that is true. And if there could be no sentence that is true independent of the occasion of utterance, then no such sentence could be incorrigibly known to be true.” 54
(1992) constata que Austin retirou de sua visão da natureza da linguagem ordinária duas teses sobre o método filosófico que coordena seu estilo filosófico. Segundo Hampshire (1992, p.240) uma dessas teses é “forte” e afirma que qualquer distinção linguística ordinária que podemos encontrar através de um estudo acurado do usos dessas expressões, de alguma forma repousa em uma “razão”. Ou seja, toda a distinção linguística ordinária possui uma razão para a sua existência. Complementarmente a tese “fraca” afirmaria que as distinções e vocábulos técnicos da filosofia só podem ser claros e inteligíveis quando são refinamentos do uso estabelecido (comum, ordinário) das palavras (1992, p. 242). Assim, segundo Hampshire (1992, p. 242), as teorias filosóficas só podem ser erigidas após o recolhimento de “todos os fatos” linguísticos relevantes sobre a área investigada. Certamente a um grão de verdade na consideração de Hampshire e é certo também, como Cavell reconhece, a dificuldade que existe em caracterizar o método filosófico de Austin. Para dar uma resposta intermediária a essa questão, podemos enfatizar que o ponto para Austin, parece semelhante ao diálogo de Alice Através do Espelho quando confronta os usos e abusos das palavras por Humpty-Dumpty recebe a seguinte resposta: - 'Quando eu uso uma palavra', disse Humpty Dumpty em tom bastante desdenhoso, 'ela significa o que eu quiser que ela signifique . Nem mais nem menos.' - 'A questão é', disse Alice, 'se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.' - 'A questão é', disse Humpty-Dumpty, 'quem é o mestre, isso é tudo.' Referências Bibliográficas AYER, Alfred. The Foundations of Empirical Knowledge. Lodon: Macmillan, 1963. AYER, Alfred. Has Austin Refuted the sense-datum Theory? Synthese, n° 17 117-140, 1967.
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AUSTIN, John. 1964. Sense and Sensibilia. Oxford: Oxford University Press, 1964. CAVELL, Stanley. Must we mean what we say? Cambridge: Cambridge University Press, 1976. COOK WILSON, Statement and Inference: with other philosophical papers. Oxford: Clarendom Press, 1926. HAMPSHARE, Stuart. J. L. Austin in ROTH, R. The Linguistic Turn. Chicago: University of Chicago Press, 1992. TRAVIS,
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Oxford
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2009.
Disponivel
em:
http://mlag.up.pt/wp-content/uploads/2011/10/NewOxReal.pdf
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A pobreza da experiência moderna e a limitação da percepção Álvaro José Camargo Vieira 1 Introdução Este estudo faz parte das reflexões sobre o significado da experiência social contemporânea. Não trata especificamente da experiência científica, focaliza o modo como os indivíduos, na sociedade moderna, passam a viver a partir de uma lógica estabelecida pelo trabalho industrial. Marcuse chamou de sociedade administrada o controle e o direcionamento da vida em função da produção e do consumo, o que ele explicou do seguinte modo (MARCUSE, 1998, p. 82): O comportamento humano se reveste da racionalidade do processo da máquina, e esta racionalidade tem um conteúdo social definido. O processo da máquina opera de acordo com as leis da ciência física, mas da mesma forma opera com as leis da produção de massa. (...) A “mecânica da submissão” se propaga da ordem tecnológica para a ordem social; ela governa o desempenho não apenas nas fábricas e lojas, mas também nos escritórios, escolas, juntas legislativas e, finalmente, na esfera do descanso e do lazer. Os indivíduos são despidos de sua individualidade, não pela coerção externa, mas pela própria racionalidade sob a qual vivem. A administração da produção é condição intrínseca da sociedade capitalista, a produção de mercadorias não pode ser abundante ao ponto de baixar os preços, nem escassa, o que inviabilizaria as vendas. É preciso calcular também o uso das máquinas e o número de trabalhadores necessários para operá-las, a logística de distribuição, armazenagem e venda. Os homens, como bem observou Marx (1982), tornam-se apêndices das máquinas, números a serem contabilizados no processo produtivo. As escolas, os escritórios, as casas de família, as esferas do lazer são elementos da administração da produção. Os indivíduos devem ser controlados para trabalharem, consumirem, reproduzirem-se e até criticarem, desde que a crítica não afete a produção, podendo até promovê-la. A organização da vida pela racionalidade moderna provoca a
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Texto escrito por Álvaro José Camargo Vieira, Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUCSP. e-mail: alvarocamargo4@yahoo.com.br. Palestra proferida na Unipampa-Bagé em 08 de novembro de 2012. 57
regressão da percepção e, portanto, das possibilidades de uma experiência autêntica dos indivíduos. A reflexão sobre a pobreza da experiência apresenta-se como crítica ao controle ou a administração do pensamento dos indivíduos e como possibilidade de uma experiência social que permita a aproximação do homem de seu mundo e, ao mesmo tempo, um distanciamento radical dele. Experiência para Benjamin (1989): significa compartilhar conhecimentos passados e presentes capazes de direcionarem a cada momento as possibilidades de ação. Nas sociedades pré-capitalistas a narrativa era a forma artesanal de comunicar a experiência da tradição cultural. O narrador como um artesão, que conhece todas as etapas da produção, tecia com os fios da memória histórias que ofereciam um sentido para as relações sociais e para a vida em comunidade. Para Benjamin (1985), nas sociedades capitalistas foi perdida esta forma de comunicar como explica Ferrari (1991, p.6): Em lugar da narrativa surge o romance, lido pelo indivíduo solitário, que já não se comunica. A matéria de que trata o romance nada tem a ver com a experiência e sua transmissão. O ritmo de vida na sociedade pré-capitalista permitia ainda o tempo para experimentar e contar. A assimilação da narrativa à experiência do ouvinte exige um estado de distensão. O habitante das grandes cidades, premido pelo relógio, não atinge esse estado de distensão, o ócio. Além disso, ao homem moderno não é mais possível receber ou dar conselhos. A experiência, portanto, torna-se possível sob certas condições: tempo para o ócio e para a reflexão, tempo para experimentar e contar. O tempo é pleno no sentido que torna possível uma vivência múltipla dos fatos e acontecimentos permitindo inserilos na experiência individual e coletiva. A experiência está ligada à tradição e à memória comum, é experiência transmitida oralmente a partir daquilo que é comum a quem conta e a quem ouve. A memória é que possibilita a relação entre a experiência presente e aquela da tradição, pois, estabelece a relação entre as imagens do passado e do presente. Mas ao lado dessa memória, que tece a rede em que todas as histórias constituem-se entre si, a modernidade estimulou a memória voluntária, auxiliada pela técnica, mas contrária á experiência em sentido pleno - ligada às possibilidades
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múltiplas de interpretação - por trazer do passado somente aquilo que o esforço consciente conseguiu apreender. É a memória do romance individual que se ocupa com fatos e heróis exemplares (FERRARI, 1991). Com o desenvolvimento do capitalismo, este segundo tipo de lembrança prevaleceu em detrimento do primeiro. A memória e a tradição começam a declinar, e a lembrança passa a ser exclusiva do sujeito isolado, solitário: a rememoração. A experiência propiciada pela memória voluntária Em seu trabalho Matéria e memória, Bergson citado por Benjamin (1989, p. 105) demonstra que a estrutura da memória é considerada decisiva para a estrutura filosófica da experiência. Ele considera que as imagens do passado só se conservam para se tornarem úteis: completam e enriquecem a experiência presente com a experiência adquirida. A atualização do passado tem lugar por meio da inteligência; essa atualização da duração (durée) significa a possibilidade de podermos agarrar momentos múltiplos, o que nos tira para fora do tempo (tempo do relógio), como explica Ferrari (1991, p.12): A „durée‟ não tem relação com o espaço. É diferente do tempo matemático, mensurável; dividir o movimento é uma ilusão. O mesmo acontece com a „durée‟, o que torna impossível o instante. Mas a „durée‟ pode, no entanto, ser conhecida como experiência vivida (...) é um tempo heterogêneo, qualitativo, contínuo e ininterrupto. Além disso, é irreversível, tem um caráter de imprevisibilidade e de liberdade: imprevisível, pois heterogêneo, e livre, pois é o devir que pode ser modificado pela ação voluntária. A função da memória, portanto, é a de evocar as imagens do passado semelhantes à percepção do presente, indicando os fatos que a antecederam e os que vieram depois, possibilitando uma decisão mais útil, por permitir apreender, em uma intuição única, momentos múltiplos da duração. Desse modo, a memória retira o indivíduo do movimento do transcorrer (ecoulement) das coisas, do ritmo da necessidade premente. Benjamin (1989), embora reconheça o esforço pioneiro de Bergson de estabelecer as condições de continuidade da experiência coletiva, considera insuficiente as suas formulações, porque a duração bergsoniana – movimento contínuo, ininterrupto, 59
acessível à memória – não existe mais, desde o século XIX, sob as condições de desenvolvimento do capitalismo. O tempo é agora fragmentado e linear, homogêneo e vazio análogo à linha de montagem. Para Benjamin, portanto, a inteligência “moldada” pela lógica capitalista não pode servir à atualização do passado ou à possibilidade de uma experiência autêntica, pois, o que memória voluntária traz é uma representação do passado de acordo com o que a percepção do presente seleciona, e não o que esse fato ou objeto do passado tem a revelar nesse momento e que não foi revelado no passado. Ela, portanto, é insuficiente para propiciar o afastamento do indivíduo do vivido em uma sociedade industrial, pois, opera como as mesmas leis: acumula e cataloga dados, o que inviabiliza uma experiência autêntica. Benjamin (1989) aponta a fotografia e outras técnicas como ampliadoras do espaço da memória voluntária e da consequente redução da memória involuntária. Proust, a memória involuntária como possibilidade de experiência A sensação do passado que irrompe no presente é o que traz a memória involuntária, é a possibilidade de escapar do tempo buscada por Proust, como explica Ferrari (1991, p.15): Em Proust, o desejo de viver fora do tempo e a alegria proporcionada pelos momentos em que escapa ao fluxo irreversível, estão ligados à percepção de uma essência comum. (...) O que nos interessa é o fato dessas semelhanças entre o passado e o presente, e com as quais nos deparamos – por acaso ou não – fazerem com que o passado ilumine o presente com seu brilho. Não se trata de repetir ou recuperar o passado, pois, Proust sabe que não consegue repetir a sensação de felicidade produzida pelo gosto da madalena com o chá e percebe, nessa impossibilidade, que não se trata somente de um trabalho de busca, mas de criação, como revela Ferrari (1991, p.16): Se a imagem do passado não permanece, o odor e o sabor sentidos nesses momentos subsistem como pequenas portas que se abrem para revelar o passado escondido. Esses sons, odores e sabores permitem recuperar fios perdidos do tecido da existência, verdades que foram comunicadas e que vêm à luz porque são comuns ao passado e ao presente. (...) Os acontecimentos passados trazidos ao presente pela memória 60
involuntária revelam o seu sentido quando confrontados com ele. A criação é, ao mesmo tempo, busca, descoberta, desvelamento, mediante a relação do presente com o passado - cuja essência permanece nas coisas - e com o futuro. A criação artística de Proust é inusitada em uma época que perdeu o recurso à rememoração, pois, de acordo com a psicanálise, a rememoração e a transmissão da experiência deixam de ser fenômenos coletivos. Os fenômenos comuns a todos os homens só podem ser verificados e comprovados quando encarnados em casos particulares. Freud citado por Ferrari (1991, p 22) levanta a hipótese de que a memória e consciência são incompatíveis, isto é, o armazenamento das impressões ocorre no inconsciente, enquanto o que permanece na consciência não deixa marcas duradouras. A consciência para a psicanálise, devido ao excesso de estímulos, se transformou em um sistema de defesa contra os choques a que está submetido o habitante das grandes cidades. As excitações exteriores que conseguem atravessar essa proteção produzirão os traumas. Benjamin (1985) considera que a recepção do choque tornou-se regra para o homem moderno. Isso significa que a recepção não está limitada a um indivíduo, mas que a massa dos cidadãos da grande cidade está submetida à recepção do choque, e é essa situação que tem influencia decisiva sobre a experiência coletiva e também sobre a experiência poética. O fato de a consciência somente trabalhar para aparar os choques dá ao acontecimento o caráter de vivência, sendo por isso incorporado ao inventário da lembrança consciente. Proust, ao lado das vivências que caracterizam os fatos vividos, em uma vida comum e limitada, descobre, por obra da memória involuntária, a possibilidade de escapar do fluxo inexorável do tempo. O que significará para Benjamim (1989) libertar o indivíduo dos limites da vida burguesa, indicando a possibilidade de um reencontro coletivo com o passado, essencial para a constituição da experiência histórica. A grande lição da criação proustiana, portanto, não é a de resgatar uma experiência e uma memória que já não tem possibilidade de existir, não se trata, portanto, de repetir as imagens do passado, mas de interpretá-las. Benjamin (1989), ao contrário de Proust, busca reconhecer no passado lembrado sinais de uma vida futura. Ele não quer fugir ao tempo, mas reconhecer, nos objetos, os sinais do tempo, as promessas e os sonhos não realizados. Benjamin procura o futuro no 61
passado. O passado para ele não é fonte de acontecimentos exemplares para serem imitados, repetidos, mas de acontecimentos perdidos na lembrança e que retornam enquanto possibilidades a serem cumpridas no presente. (FERRARI, 1991, p.29) A lembrança do passado, a percepção da semelhança entre presente e passado é o reconhecimento de uma experiência, que é histórica, é um caminho em direção à origem. Mas esse caminho é um caminho para trás em direção a um futuro, pois, a origem, e com ela o esquecido, não pode ser totalmente recuperado enquanto fato histórico, mas enquanto experiência e conhecimento. A importância da rememoração está, portanto, na possibilidade de levar a reconhecer as inúmeras possibilidades fracassadas e as inúmeras possibilidades que o próprio presente comporta. Baudelaire a experiência como relação, correspondência, analogia. Em Proust e Baudelaire o presente se liga ao passado através das correspondências. Em Proust as correspondências se manifestam na rememoração através do aroma, sabor e sons, colocando um acontecimento passado em relação com o presente. Em Baudelaire, as correspondências se manifestam na “concepção da natureza como floresta de símbolos” (FERRARI, 1991, p 27-27). As correspondências em Baudelaire interessam para Benjamin (1989) enquanto oposição ao tempo que impõe seu ritmo alucinante ao indivíduo das grandes cidades. A experiência das correspondências se encontra fora do tempo, fora da história e só é acessível ao domínio cultural. As datas das lembranças são dias de festa, de celebração, que Baudelaire “reuniu em um ano espiritual”. As correspondências estão impregnadas de lembranças de uma vida anterior (vie antérieure), mas as semelhanças expressas por elas estão na natureza. É nela que o poeta busca os sinais de uma vida anterior em que tudo era harmonia e o tempo que regia a vida humana não era o tempo marcado pelos ponteiros do relógio. Percorrendo a natureza, o poeta se depara com uma floresta de símbolos, e a lembrança da vida anterior que lhe trazem esses símbolos denota a presença da eternidade por trás das coisas (FERRARI, 1991). A imaginação é a faculdade que percebe as relações íntimas e secretas das coisas, as correspondências e analogias, mas, ao lado das lembranças pelas correspondências, Baudelaire expressa, usando a alegoria, o tédio resultante da catástrofe permanente, o lamento pela perda da experiência e da eternidade, como explica Ferrari (1991, p.31): 62
As correspondências constroem de modo elucidativo a contrapartida da alegoria. Essa contrapartida é ilustrada pela divisão do tempo em Baudelaire. Os dias significativos da rememoração, que se destacam do tempo em que não há vivência têm como conteúdo as correspondências. Nos outros dias predomina o tédio, “os minutos cobrem o homem como flocos de neve” e a consciência se encontra “em guarda” para aparar os choques. Para Ferrari (1991) a alegoria – o tédio - funciona em Baudelaire como um “antídoto” contra o mito. Benjamin não se refere ao mito como histórias que explicam o mundo ao homem primitivo, não se trata de uma história original perdida, mas ao seu ressurgimento no capitalismo sob a forma da ilusão de uma vida harmoniosa. O princípio do mito é a transformação da história em natureza, privando o homem e o objeto de sua história. A uma ideia de sociedade que caminha inexoravelmente em direção ao progresso prometido pelo desenvolvimento tecnológico corresponde a imagem de uma humanidade em repouso definida por uma identidade infinitamente recomeçada. O tempo mítico é o tédio, a interminável sequencia de segundos vazios e uniformes em que o homem (burguês) realiza sua ilimitada tarefa de transformar a natureza. No mito a relação entre significante e significado está dada. A alegoria, pelo contrário, atribui significados. Ela é a imagem fragmentada que só poderá formar o todo se combinada com outra imagem que lhe completa. A alegoria expressa em Baudelaire o retrato das condições de vida do indivíduo moderno. Os cadáveres e blasfêmias em suas poesias revelam que não é tão harmoniosa a fachada do mundo que o cerca. (FERRARI, 1991) As correspondências revelam, tanto para Baudelaire como para Benjamin, o caráter ambíguo da modernidade, pois, ao mesmo tempo, em que propõe libertar o homem das forças do destino, ela o aprisiona na interminável cadeia dos segundos; ao mesmo tempo em que a fugacidade do moderno impede qualquer experiência no sentido pleno, ela também permite entrever outras estruturas para além de sua instabilidade. Sérgio Paulo Ruanet (1987) enfatiza o caráter ambíguo das correspondências: a sociedade capitalista regida por correspondências diabólicas impede o homem de ter uma relação durável com as coisas; mas a correspondência, também pode estabelecer uma relação com o passado tornando possível a verdadeira experiência.
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Baudelaire transforma a vivência do choque em experiência. Ele se dedica a transformar a vivência, e faz isso provocando espanto em quem está ao seu redor. O espanto, como vimos, é segundo Freud citado Ferrari (1991), a reação à falta de proteção contra os estímulos: contra o tédio e a angústia o espanto. Baudelaire não se entrega ao tédio. A experiência do choque se relaciona com o conceito de experiência histórica nas Teses sobre o conceito de história, pela possibilidade de interrupção do continuum histórico por uma militância no presente (ROUANET, 1987). Para Benjamin, voltar-se para o passado não significa fugir do presente, pois é nele que se encontram as pistas deixadas pelo passado e que levam a compreensão do próprio presente. Desse modo, o encontro com o passado representa o elo com a tradição, mas esse elo tem agora uma perspectiva crítica, pois está vinculado à experiência do presente, à experiência do choque. Com isso não se rompe com a tradição e a história, mas se estabelece uma relação com elas que permite ver a tradição da história dos oprimidos como descontínua, como história que nunca foi (ROUANET, 1987). Trata-se de ao desmistificar a história apontar para uma nova história. O sentido da experiência e do vínculo do homem com a tradição é o de um novo começo. Para isso, é preciso admitir uma nova forma de miséria da experiência, produzida pelo próprio desenvolvimento da técnica. O desenvolvimento da técnica, a sufocante riqueza de ideias e a miséria da experiência: “Uma miséria totalmente nova se abateu sobre o homem com esse desenvolvimento monstruoso da técnica. E o reverso dessa miséria é a sufocante riqueza de idéias que se difundiu entre as pessoas ou, melhor ainda, se abateu sobre elas – ao se reavivar a astrologia e a sabedoria da ioga, a Christian Science e a quiromancia, o vegetarismo e a gnose, a escolástica e o espiritismo. Aliás, não é um reavivar autentico que acontece, mas uma galvanização. (BENJAMIN, 1995, p. 196) Empobrecidos por essa abundância não estamos mais preparados para ler os sinais do tempo e interpretar suas mensagens, e, portanto, impossibilitados de agir na transformação do presente. Benjamin considera “prova de honradez” reconhecer a pobreza. Pobreza da experiência uma face da grande pobreza, a ocupação total do pensamento: Aqui se evidencia claramente: nossa pobreza de experiência nada mais é que uma parte da grande 64
pobreza que ganhou novamente um rosto – tão nítido e exato como o mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural se a experiência não o vincula a nós? Sim, admitamos: essa pobreza de experiência não é uma pobreza particular, mas uma pobreza de toda a humanidade. Trata-se de uma espécie de nova barbárie. (BENJAMIN, 1995, p. 196) Nós somos os novos bárbaros que ao reconhecermos a perda de vínculo com a tradição temos a possibilidade de estabelecer o conceito de uma história como construção. Começar de novo, a partir da tabula rasa não significa um rompimento com a história passada, mas a sua disseminação. Não significa esquecer essa história, mas destruí-la para que possa ser recontada. Para Benjamin (1995), o novo bárbaro quer escapar da cultura como instrumento de dominação e criar a partir de sua destruição. Ficamos pobres. Fomos entregando, peça por peça, o patrimônio da humanidade, muitas vezes, tivemos que empenhá-lo por um centésimo de seu valor, para receber em troca a moeda miúda do “atual”. Diante da porta está a crise econômica e atrás dela, uma sombra: a próxima guerra. A tenacidade é hoje um privilégio de um pequeno grupo de poderosos que Deus sabe, não são mais humanos que a grande maioria, geralmente são mais bárbaros, mas no bom sentido. Os demais têm que se virar, partindo do zero e do pouco. Eles são solidários dos homens que optaram pelo radicalmente novo, com lucidez e capacidade de renúncia. Em suas construções, seus quadros, suas narrativas, a humanidade se prepara para sobreviver, se for preciso à cultura. E o mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso, aqui e ali, pareça coisa de bárbaro. Ótimo, contando que o indivíduo entregue um pouco de sua humanidade àquela multidão que um dia o recompensará, com juros e com os juros de juros. (BENJAMIN, 1995, p.198) Este processo de tomada de consciência da perda não é fácil de ser atingido. Se antes era possível trazer as imagens do passado através da troca de experiências, das narrativas, hoje se deve perseguir os rastros de outra história deixados na cidade ou conservados nos objetos históricos. E se ele se refere apenas a tentativas individuais é porque o sentido da comunidade está perdido, mas na medida em que um passado assim encontrado diz respeito a um coletivo, diz respeito também á sua história passada, ao seu presente e ao que esse grupo projeta para si. A busca de possibilidades a partir desse modo de conhecer não significa um movimento na direção da superação das circunstâncias, mas uma interrupção delas.
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Uma das noções fundamentais da filosofia benjaminiana para Ferrari (1991) é o de desmitificar que vivemos diariamente em um tempo ininterrupto, contínuo, que caminha inexoravelmente em direção ao progresso. A adesão ao estabelecido ou a naturalização do que é percebido como realidade encobre a descontinuidade e a fragmentação do decorrer do tempo, esta descontinuidade é assimilada pela consciência enquanto choque, ou seja, de modo parcial sem apreensão do passado, da tradição e do coletivo. Baudelaire usa o choque para promover a experiência na modernidade, por meio da interrupção desse decorrer. A aparência do sempre igual reveste o velho e o apresenta como novo, a verdadeira experiência histórica dissolve essa aparência ao lançar um olhar destruidor para a tradição cultural. A verdadeira experiência histórica deve ser capaz de romper com o mito e com o eterno retorno. A uma concepção mítica da vida, corresponde a ideia de progresso na história: a eternidade do retorno é exatamente complementar do progresso que se constitui contra a segurança e o hábito. Ao mesmo tempo em que o homem vive a eternidade da repetição, do sempre de novo que realiza o progresso, essa repetição acontece em condições que não permitem criar hábitos. A repetição do mesmo tem lugar no terreno do esquecimento da vida e da história; num tempo que é homogêneo e vazio que impede a experiência e condena o homem a repetir. O tempo do eterno-retorno corresponde ao tempo homogêneo e vazio do trabalho racionalizado, que impõe um ritmo alucinante à vida do homem moderno da grande cidade. Esse ritmo produz, por outro lado, o tédio, a tristeza. A vida na cidade está determinada pelo ritmo da apropriação do capitalismo. O tempo, no trabalho, é contínuo, tempo em que não se termina o que se começou. Esse ritmo que impõe uma sequencia infinita de movimentos repetidos independentes uns dos outros é o da produção, o da vivência do choque das massas nas ruas das grandes cidades. O tédio foi percebido por Baudelaire como o outro lado da percepção mítica da vida. O tempo como continuidade ininterrupta leva o homem a se sentir impotente diante de sua força, a impotência é a falta de conhecimento do que fazer e do que esperar: o tédio. No entanto, o tédio é o limiar para grandes atos, pois, ao mesmo tempo em que leva a impotência ele a revela. O tempo do tédio é o tempo monótono, vazio a ele se contrapõe o tempo histórico. Se o tédio é sintoma de uma perda dramática da experiência, a consciência do significado do sintoma pode levar à percepção da causa e a retomada da experiência histórica (FERRARI, 1991).
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Esta retomada, como interrupção do ritmo capitalista, depende para Benjamin da compreensão do tempo vivido como sequencia ininterrupta de momentos que encobrem sua fragmentação; da transformação da vivência do choque em experiência, como fez Baudelaire; e, da lembrança da experiência individual como meio da experiência histórica. A experiência histórica é definida como experiência dialética, que leva à tomada de consciência, pela humanidade, de sua história para a compreensão do momento vivido. É necessário, portanto, interromper os acontecimentos para poder compreendêlos. A interrupção coloca as situações a uma distância que permite a observação, desse modo ela se transforma em instrumento de conhecimento (ROUANET, 1987). Esta interrupção será possível por meio do pensamento dialético capaz de encontrar na realidade vivida as pistas para a construção de um conceito de experiência que possibilite o despertar do sono da modernidade. Para Benjamin, somente realizando as exigências dessa realidade é que se pode superá-la (FERRARI, 1991). REFERÊNCIAS BENJAMIN, W. “Experiência e Pobreza”, pp.195-198 In: Documentos de cultura documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1985. ________. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BAUDELAIRE, C. Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. pp. 103-149. FERRARI, S.C. M. Sobre o conceito de experiência em Walter Benjamin. São Paulo: Departamento de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, (Dissertação de Mestrado), 1991. MARCUSE, H. Cultura e sociedade . São Paulo: Paz e Terra, 1998. MARX, K. A máquina e a indústria moderna. In: O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1982. ROUANET, S.P. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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O Psiquismo Primitivo e a Gênese da Moralidade Alexandre Teles 1 Tratarei de abordar aqui o jogo de emoções que fervilha no peito de um ser humano quando se trata de justiça. Mais especificamente: quando um ser humano clama por justiça, se submete e mesmo quando busca se desviar da mesma sem culpa alguma. Para tanto, evocarei alguns insights e passagens da Genealogia da Moral de Nietzsche. Eventualmente evocarei também algumas compreensões da psicanálise a respeito da gênese da moralidade que muito se aproximam das teses de Nietzsche, por sinal. Partiremos de algumas manifestações reais nas quais pudemos presenciar pessoas chegando ao extremo de exigir punições violentas a supostos criminosos. Contrastaremos isso com o sentimento moral de repúdio a linchamentos em praça pública e, em seguida, passaremos a explorar o método genealógico de Nietzsche, desenvolvido em sua Genealogia da Moral. Findaremos com reflexões a respeito de um fenômeno recente na política brasileira que poderíamos chamar de banalização do crime de desvio de verbas. Iniciemos levando em conta a manifestação pública de uma mulher adulta a respeito de um fato que chocou fortemente a comunidade gaúcha e nacional. Um vídeo que circulou na grande mídia que mostrava como se relacionava o pai de um garoto com seu filho pouco antes da morte desse menino. Trata-se do caso do menino Bernardo que, conforme o inquérito policial em curso, teria sistematicamente recebido maus tratos de seus cuidadores culminando em óbito.
Que coisa mais triste e angustiante para uma mãe ouvir o áudio do menino Bernardo. Um pai como o dele deveria ter o pinto amputado e nunca mais colocar uma criança no mundo. Pelo amor de DEUS, se é para maltratar, entregue para quem possa cuidar bem! Assistir essa reportagem acabou com a minha noite!
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Texto escrito por Alexandre Teles (www.alexandreteles.com). Mestre e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS, Especialista em Psicanálise e membro do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Clínica da Psicose da Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS e proponente da Escola de Estudos Psicanalíticos. Palestra proferida na Unipampa-Bagé em 21 de novembro de 2012. 68
Essa postagem obteve 104 curtidas e inúmeros comentários, dentre os quais, destaco duas manifestações de diferentes pessoas: Eu também estou muito triste, com tanta maldade, só Deus na causa, eles vão pagar caro, SE HÁ JUSTIÇA NESTE MUNDO, eles vão apodrecer na cadeira (...), MEU DEUS!!! Se fosse nos Estados Unidos, eles já teriam morrido na cadeira elétrica e assistindo sua própria morte....
Podemos ver que as duas falas acima clamam de forma apaixonada por justiça: exigem, no primeiro caso, a amputação de uma parte do corpo do suposto pai assassino e, no segundo caso, a pena de morte. Em outra situação recente, uma manifestação de racismo em um estádio de futebol teve forte repercussão; a ponto de podermos, no dia seguinte, encontrar esta notícia no Web Site do jornal Zero Hora:
Depois de ser ameaçada de morte e estupro pelo Whatsapp e ter a casa apedrejada, a gremista Patrícia Moreira da Silva, flagrada chamando o goleiro do Santos Aranha de macaco durante partida válida pela Copa do Brasil na Arena no final de agosto, teve a residência incendiada nesta sexta-feira. Por volta das 4h, o Corpo de Bombeiros foi chamado ao local e controlou as chamas, que atingiram principalmente o assoalho.
Evoquemos agora um trecho de uma música de Caetano Veloso a respeito desse fenômeno humano: “A mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores...”. Antecipando o que apresentarei aqui, diria que, de acordo com a leitura de Nietzsche da gênese da moralidade, que acaba por coincidir com da doutrina psicanalítica, não é apenas a mais triste nação na época mais podre que compõe-se de possíveis grupos de linchadores. Todo ser humano é um potencial linchador. A agressividade e o sentimento de vingança fazem parte de todo ser humano. No entanto, a maioria dos seres humanos civilizados acaba por soterrar sua agressividade e age de forma justa e ordeira. Sigamos nossa exposição e vejamos como essa tese pode ser sustentada.
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O sentimento de que a justiça seja feita é nosso ponto de partida. No caso de linchamento em praça pública, podemos presenciar duas manifestações desse sentimento: por um lado, os justiceiros querem fazer justiça com as próprias mãos. Por outro, pessoas como Caetano Veloso em sua música ocupam a posição de juízes racionais e imparciais, repudiando o ato dos linchadores. Reação semelhante encontramos também diante das reações agressivas frente a gremista que xingou o goleiro de macaco. Com efeito, pudemos encontrar também inúmeras reprovações às tentativas de linchamento e danos à moradia da gremista. O mesmo podemos dizer do rapaz recentemente amarrado a um poste, ou de uma moça , que, confundida com uma criminosa foi recentemente linchada. Seu linchamento foi amplamente divulgado – através de fotos e vídeos - e repudiado nas mídias sociais. O primeiro relato que eu trouxe, é um relato que interessa bastante aos psicanalistas: uma mulher que manifesta que a punição ideal para um homem seria a castração. Em verdade, todo o assunto que eu quero abordar aqui hoje interessa muito aos psicanalistas. Não só os interessa, mas, de alguma forma, é preparado sob o olhar da psicanálise: trata-se de como o ser humano domesticou-se, ou civilizou-se - ou até mesmo humanizou-se! -, passando de um momento em que a castração era real e passou a operar com a castração simbólica. Não quero entrar em polêmicas aqui com pessoas que não gostam dos termos utilizados por Freud e Lacan; por isso irei evitar esses conceitos psicanalíticos e tratarei a baila questões orientadas por essa importante transição sem dar o nome que psicanalistas dão. Assim, o conceito de castração como que orienta silenciosamente a minha fala aqui hoje. Façamos agora um experimento imaginativo e histórico e assim passemos a evocar a metodologia genealógica proposta por Nietzsche. Imaginemos que o nosso sistema penal fosse um pouco mais primitivo; como se fosse o de alguns séculos atrás. Como seria se um médico, por exemplo, ao invés de realizar inseminação artificial, tentar engravidar suas pacientes pelo método convencional enquanto elas estão sedadas? Qual seria a punição que receberia esse médico que recentemente estuprou mais de 20 mulheres se o nosso sistema penal fosse o de alguns séculos atrás? Será que não receberia ele, talvez, uma punição exemplar em praça pública? Evoco Nietzsche para colorir com sangue nossa memória histórica.
Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos 70
sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldades) – tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica. (...) Esses alemães souberam adquirir uma memória com os meios mais terríveis, para sujeitar seus instintos básicos plebeus e a brutal grosseria destes: pense-se nos velhos castigos alemães, como o apedrejamento (a lenda já fazia cair a pedra do moinho sobre a cabeça do culpado), a roda (a mais característica invenção, a especialidade do gênio alemão no reino dos castigos!), o empalamento, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos (o “esquartejamento”) a fervura do criminoso em óleo ou vinho (ainda nos séculos XIV e XV) o popular esfolamento (“corte de tiras”), a excisão da carne do peito; e também a prática de cobrir o malfeitor de mel e deixá-lo às moscas, sob o sol ardente. Com ajuda de tais imagens e procedimentos, terminou-se por reter-se na memória cinco ou seis “não quero”, com relação aos quais se fez uma promessa, a fim de viver os benefícios da sociedade – e realmente! Com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente “à razão”! Ah a, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as “coisas boas”!... (NIETZSCHE, 2012, p. 46-7)
Pois bem, vamos continuar nossa linha de raciocínio apoiados nas passagens acima. Alguns séculos atrás o Estado cumpria o papel de mediar conflitos autorizando que as vítimas fossem cruéis com seus algozes, por exemplo, autorizando a cortar partes do corpo do algoz. De forma que, em troca do dano recebido, a vítima tinha direito a uma “satisfação íntima”: o direito de ser cruel com o seu algoz. (NIETZSCHE, 2012, p. 49) O princípio psicológico que fundamenta essa metodologia seria “a mais antiga psicologia da terra”: através da dor, criar uma memória e assim forçar o homem a comportar-se a dispor-se adequadamente em sociedade. Por meio dessas punições e da ameaça implícita de aplicá-las a todos aqueles que cometerem crimes, os homens são coagidos a comportar-se de uma forma determinada. Assim instituem-se as regras de conduta. Essa teoria da memória que fundamenta a gênese da moralidade no ser humano merece, sem dúvida alguma, um estudo detalhado. Não nos ateremos a ela aqui, mas
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precisamos sinalizar que aqui Nietzsche está aplicando a teoria da memória de Schopenhauer, que é basicamente a mesma teoria de Freud.2 Chegamos num ponto em que podemos enunciar claramente um dos princípios da justiça primitiva: se alguém lhe toma, com a mão, um bem, torna-se teu direito tomar-lhe a mão. Por consequência, todo o corpo do indivíduo poderia ser mensurado em termos de crédito ou débito. Culpa e dívida foram, com efeito, as noções fundamentais do direito. De modo que a vítima que teve um bem furtado, passava a ter crédito com o estado: uma parte do corpo de seu algoz. Poderia fazer o que quisesse com essa parte do corpo. E, inclusive, como menciona Nietzsche: a vítima, ao fazer a justiça autorizada pelo Estado, não deveria ser punida caso viesse a cortar um pouco mais do que o estabelecido. (NIETZSCHE, 2012, p. 48-9) Isto é, o Estado compreendia que a fúria e crueldade poderia fazer com que o anteriormente injustiçado fizesse justiça de forma um pouco mais intensa do que o previsto. De sorte que o Estado era atento à agressividade que habita no animal homem que, naquela época, ainda estava em processo de domesticação. Comparemos agora com a situação de um cidadão politicamente correto do nosso tempo precisa se contentar: precisa se contentar que o seu algoz vá para a cadeia ou pague uma multa. Atualmente, o Estado não autoriza uma vítima a utilizar suas mãos para dar vazão ao seu sentimento de vingança. Quem o fizer, passa igualmente a ser considerado criminoso. Inclusive, manifestar publicamente que um indivíduo deveria ser punido com a castração poderia vir a ser considerado crime nos tempos de hoje. Muito bem, qual é o meu propósito com esse contraste? Quero chamar atenção, com Nietzsche, para o modo como, através do progresso do sistema punitivo, fomos, paulatinamente, convidados a dar outro destino para nossa agressividade. Para reforçar o raciocínio, imaginemos um momento em que não há lei alguma. Então, alguém mata um integrante de uma família. A família da vítima reúne forças e, como represália, não só mata o assassino, mas dizima toda sua prole, incendeia suas propriedades, e desonra todas as mulheres da família do agressor. Agora, nos voltemos a um momento intermediário. Um momento em que passa a ser vigente algo como a lei de talião3: no mesmo caso de agressão inicial – homicídio 2
Desenvolvemos um trabalho no qual examinamos a teoria da memória de Schopenhauer e de Freud e demonstramos que elas são equivalentes (TELES, 2012 e 2015). A memória para esses pensadores é uma faculdade regida por emoções em que opera em um dinamismo inconsciente. Confira esses trabalhos em 3 Ilustrativo desse cenário é a obra de ficção Abril Despedaçado de Ismail Kadaré que foi recentemente adaptada por Walter Salles para o cinema. 72
de um dos membros de uma família, passa a ser autorizado à família da vítima que cobre o sangue do assassino. É autorizado que a família vitimada vingue-se. No entanto, é estabelecido que essa família não se exceda na sua vingança. Isto é, que não dê vazão ao desmedido que há em nós e que se contente em matar apenas um membro da família do agressor. Aqui, nessa situação intermediária, já há uma contenção da agressividade forçada pela força simbólica da lei. De forma que uma tradição rege o comportamento dos indivíduos que se veem obrigados a respeitar isso que lhes é externo, mas que constrange seus atos internamente. Isto é, embora a tradição e o costume sejam recebidos da comunidade – em termos lacanianos: do Outro -, à medida que os indivíduos se sentem regidos e constrangidos por esse costume, já podemos dizer que internalizaram o costume: estão domesticados. Indo agora um pouco além na história da evolução do sistema punitivo, podemos imaginar também, um momento em que o Estado passa a tomar para si o monopólio da violência: os indivíduos não têm mais o direito sequer de tocar em seu agressor como antes. Agora, as vítimas não podem mais fazer justiça com as próprias mãos. Quem faz a justiça é o Estado. Nesse momento ainda teríamos as guilhotinas em praça pública e os enforcamentos. Embora seja apenas o Estado quem tem o direito de punir, legalmente, isso ainda é feito de modo a satisfazer, em parte, nosso psiquismo primitivo: aquela agressividade despertada pelo agressor original. De forma que, ao criar um espetáculo em praça pública, o estado satisfaz, em parte, a agressividade despertada na vítima. E também acaba por incentivar os demais a não cometer delitos semelhantes sob pena de serem punidos de forma similar. Aí está o que se chama de caráter exemplar da pena. Retomemos esquematicamente agora o que, espontaneamente acontece no animal homem antes de qualquer domesticação. Em termos Freudianos estaríamos descrevendo aqui o circuito pulsional: 1 - Sou agredido, sou vítima. 2 - Preciso revidar. Pois, ao ser agredido, tive minha agressividade desperta. 3 - O revide pode ter maior intensidade que a agressão recebida. Se me agridem na intensidade x, o revide toma a proporção 2x. Com o progresso do sistema punitivo, o Estado passa, gradativamente, a suavizar seus métodos. Na cadeira elétrica e na injeção letal já vemos que há uma certa 73
higienização da pena. O mesmo começa a se dar na restrição de publicidade do ato derradeiro: as penas de morte não são mais realizadas em praça pública. Tudo isso vai gradativamente evoluindo até o ponto em que as penas mais físicas e concretas que passamos a ter em um sistema punitivo são a restrição de liberdade; aliás, como ocorre por aqui, no Brasil, no máximo 30 anos da vida de um indivíduo – com possibilidade de progressão de regime, diga-se de passagem. Sem direito a sangue ou qualquer tipo de crueldade. Contenta-te e sublima a tua agressividade. É isso que diz a civilização contemporânea. Aliás, contenta-te também com a eventual impunidade e com a precariedade do sistema jurídico – para alguns – nas mais diferentes instâncias. Desde os processos – questionáveis – de investigação, os demorados julgamentos e as reduções de pena. Há, sem dúvida, em nossa sociedade, meios auxiliares que nos auxiliam a contentar-nos e a conter nossa agressividade. Inúmeros filmes, novelas e games nos permitem extravasar uma quantidade razoável de agressividade. Os personagens se vingam e matam por nós, mas é claro que isso não é suficiente. O que seria a depressão e o sentimento de culpa de alguém que teve um filho assassinado de maneira banal senão o retorno contra si mesmo de uma agressividade que não pôde voltar-se para fora? Podemos pensar em inúmeros casos semelhantes. Também podemos pensar recursos alternativos para sublimar essa agressividade que precisa ficar contida como se engajar em um movimento social contra a violência ou passar a frequentar um culto religioso. No entanto, foquemos agora no que sinalizamos lá no começo. O tema da passagem da castração real para a simbólica; que nada mais é do que o desenvolvimento do senso de moralidade. Do que abordamos até o momento, podemos visualizar o quanto a história da humanidade progrediu em um sentido e regrediu em outro. O sentido no qual regrediu foi justamente o da satisfação de nosso psiquismo primitivo. Nos primórdios de nossa civilização, a agressividade fluía para fora. As reflexões de Nietzsche na Genealogia da Moral revelam uma genial antecipação do que Freud desenvolveria alguns anos mais tarde: o senso de moralidade desenvolve-se à medida que a agressividade do animal homem passa a voltar-se para dentro; para si mesmo. Podemos conjeturar, com efeito, muito razoavelmente, com Nietzsche e Freud, que o animal homem que há em todos nós, ao começar a antever a ameaça de ser punido, passa a criar uma instância interna de punição. A origem da moralidade estaria justamente nesse processo mental. Cito Nietzsche: “Grava-se a fogo para que fique na 74
memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” (NIETZSCHE, 2012, p. 46). Pensemos em uma criança pequena. A vida dela é uma maravilha. Seus pais a amam. Ela é o motivo de reunião de uma família: “sua majestade o bebê” (FREUD, 1996). A criança, porém, começa a perceber, mesmo que suas capacidades cognitivas estejam engatinhando ainda, uma desaprovação quando toca em determinadas parte de seu corpo em público. Ora, não é difícil observar que em nossa sociedade as pessoas relativamente bem comportadas não expõem ou tocam suas genitálias em público4. Como teria se dado, psiquicamente, essa domesticação? (seja ela a civilidade sexual ou a que se refere à higiene pessoal) Como nos mostra Nietzsche: é através de uns cinco ou seis “não quero” que se cria uma promessa. Ou seja, o ser humano desenvolve uma disposição a ter um comportamento aceitável através de um processo educativo que passa, necessariamente, ou por censuras e punições vivenciadas na realidade, ou na imaginação. Pois, talvez seja tão educativo quanto ser punido, presenciar outra pessoa ser punida. O tal “complexo de castração” está relacionado com fantasias inconscientes que ficam soterradas em nossa mente através do processo de internalização das punições. Eu teria muito prazer em abordar os processos mentais envolvidos na criação desse complexo, mas o nosso propósito aqui é outro. Retomemos o que vimos até aqui: essa coisa que é a humanidade, ou comportamento humano civilizado, é o resultado de um animal que se domesticou e que criou a disposição de agir bem antevendo a possibilidade de receber uma punição. Como efeito colateral dessa humanização, por vezes surge um sentimento de culpa sem razão aparente, bem como o de depressão. Isso é assim porque uma punição interna é efetuada pela mente de todos aqueles que internalizam a punição. Diante dessa linha de raciocínio, alguém objetaria: “essa história está muito bem contada que até parece um conto de fadas!”. Argumentaria essa pessoa que, mesmo havendo leis que preveem punições, punições efetivas e exemplares, há criminosos. E, aliás, aos montes! Como se explica isso? Evoquemos, mais uma vez Nietzsche:
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Sabemos que em alguns casos de psicose e demência mental esse comportamento não é internalizado por seres humanos. Também podemos observar que animais não desenvolvem os pudores humanos em relação ao sexo e ao higiene. 75
O castigo teria o valor de despertar no culpado o sentimento de culpa, nele se vê o verdadeiro instrumentum dessa reação psíquica chamada (...) "remorso". Mas assim se atenta contra a realidade e contra a psicologia, mesmo para o tempo de hoje: tanto mais para a longa história do homem, a sua pré-história! Justamente entre prisioneiros e criminosos o autêntico remorso é algo raro ao extremo, as penitenciárias e casas de correção não são o viveiro onde se reproduz essa espécie de verme roedor (...). Falando de modo geral, o castigo endurece e torna frio; concentra; aguça o sentimento de distância; aumenta a força de resistência... (NIETZSCHE, 2012, p. 64-5)
Nietzsche nos dá elementos para pensarmos em dois tipos de processos mentais que ocorreriam nos seres humanos, por assim dizer. Corresponderia ao que em psicanálise atualmente se chama de dois tipos de estruturas psíquicas. Na verdade, em psicanálise, há basicamente três tipos de estruturas psíquicas. Não nos apeguemos muito aos nomes delas, mas simplesmente ao fenômeno que aqui queremos considerar. Haveria uma estrutura psíquica para a qual a punição não teria função simbólica. Esse tipo de estrutura está fora do escopo das reflexões de Nietzsche que eu estou abordando aqui hoje. Ele estaria ocupado de outras duas estruturas. Aquela para a qual a possibilidade punição exerce um grande poder psíquico, e na qual observamos o desenvolvimento da moralidade; chegando a gerar em alguns casos, patologicamente, culpa e depressão (principalmente; esses seriam os mais salientes sintomas de um “superego” demasiadamente cruel). E aquela estrutura psíquica em que a ameaça de punição acaba por ocasionar o desenvolvimento de um mecanismo psíquico no qual atos são utilizados para burlar essa ameaça. Diante disso, chamo atenção para uma situação que recentemente presenciamos em nossa realidade política. Não faz muito tempo, integrantes de um partido foram condenados pela suprema corte de nosso país por crimes ligados a desvio de verbas. A situação foi chocante e escandalosa para toda a sociedade porque tratava-se de um partido que sempre foi defensor da moralidade na política. Tal punição não foi suficiente para inibir integrantes desse partido, e alguns indivíduos em especial, de continuar a praticar o mesmo tipo de delito que hoje se revela ser o maior volume de dinheiro já desviado em um esquema de corrupção. Isso nos faz pensar que só é possível que nossos políticos não se inibam frente à possibilidade de punição e que o sentimento de culpa não seja algo que os atordoe.
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Referências Bibliográficas FREUD, S. (1996) Sobre o Narcismo: uma introdução. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago. KADARÉ, I. Abril Despedaçado, São Paulo, Companhia das Letras, 2007. NIETZSCHE, F. (2012) Genealogia da Moral, São Paulo: Companhia das Letras. TELES, A. A teoria do Inconsciente de Freud e Schopenhauer e os Fundamentos da Técnica Psicanalítica, Porto Alegre: UFRGS, 2012. __________ (2015) “O Recalque em Schopenhauer: Contribuições filosóficas à teoria psicanalítica”, in: CARVALHO, M.; DANOWSKI, D.; SALVIANO, J. O. S. (Org.) Temas de Filosofia. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 176-182.
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Hibridismo cultural na contemporaneidade Moacir Ferreira Ribeiro
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Introdução “Os historiadores menos inclinados à filosofia quase não podem evitar reflexões gerais sobre sua matéria.” Eric Hobsbawn, 1998. Quando fui convidado para ministrar uma palestra no programa Filosofia para Todos em meados de 2013, pensei sobre o que falaria num programa em que o enfoque é voltado para a filosofia, levando em consideração que sou historiador de formação. Por outro lado, desde 2010 realizo pesquisas voltadas à educação escolar indígena e sempre me deparo com situações que incidem sobre as manifestações dessas culturas e, para compreendê-las, há um trabalho de análises e reflexões que procuram se desprender de conceitos e preconceitos que podem ser lugares comuns na concepção e relação com o mundo e as pluralidades que o compõem. Essas reflexões ficam a solta, aguardando as conexões que vão se estabelecendo e interligando-as através do pensamento para além do senso comum que, nada mais é que o pensamento filosófico. Dessa forma, concluí que o meu breve entrevero entre a história e a filosofia estava resolvido e, passei à organização das informações que resultaram neste breve ensaio. Afirmo ser breve, porque jamais será possível compor uma totalidade sobre um assunto extremamente aberto para diversas entradas de análises, além de estar ligado a temporalidades variáveis, uma vez que aquilo que definimos como contemporâneo no dia de hoje, outrora foi chamado de pós-moderno e assim, sucessivamente. Portanto, a contemporaneidade sempre há de ser cíclica, mesmo porque, somos nós que lhe damos suas significações. Este ensaio discorrer-se-á sobre exemplos de homogeneização cultural, além dos processos híbridos pertinentes ao espírito de nossa época. Canclini define o hibridismo como, 1
Texto escrito por Moacir Ferreira Ribeiro, Historiador e Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUCSP. e-mail: moacirhistoria@gmail.com. Palestra proferida na Unipampa-Bagé em 08 de maio de 2013. 78
(...) estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão pelo qual não podem ser consideradas fontes puras. (CANCLINI, 2008, p.XIX).
Cultura e distinção entre natureza Em primeira instância devemos entender que a cultura não nasce e tampouco se desenvolve nas universidades ou espaços acadêmicos. Esse aspecto expressa apenas uma forma de suas manifestações. Logo, necessitamos descontruir a ideia de que o indivíduo culto é somente aquele que pratica a erudição acadêmica. A cultura se expressa nas realizações e atitudes concretas dos seres humanos pertencentes a esse ou àquele povo, numa determinada classe ou sociedade. Sendo assim, um indivíduo é principalmente, um agente de cultura, embora muitas vezes não possua essa consciência. Somos agentes de cultura o tempo todo, seja caçando para matar a fome ou frequentando um restaurante, seja recorrendo a uma divindade em oração, ouvindo ou cantando uma música, operando uma máquina ou usando determinado tipo de vestimenta. Porém, quando procuramos extrair dessas realidades um conceito único, conscientes disso ou não, instala-se a contradição. Quando afirmo, consciente ou não, quero dizer que recebemos e processamos uma série de informações explícitas ou implícitas que correspondem ao espírito de uma época. Por exemplo, atualmente pensamos e vivemos como seres humanos do século XXI. Nesse sentido, fala-se muito na sociedade informação que faz parte do nosso cotidiano e nos orienta a determinados estilos de vida. Pois bem, seria possível ter essa mesma perspectiva no inicio do século XX? Ora, um indivíduo do inicio do século XX pensava e agia como tal e, na realidade em qualquer época que possamos viver, somos condicionados à determinados contextos histórico sociais. Uma vez clarificada essa questão, também não podemos conceber a cultura sem distingui-la daquilo que é natureza.
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Ao pensar sobre natureza, imediatamente nos remetemos ao mundo exterior que está a nossa volta, especificamente o meio ambiente em que vivemos. Nesse caso existe a natureza dos diferentes seres vivos, animais e vegetais. Mas, também existe a natureza de cada ser humano com suas habilidades pessoais, mentais e psíquicas. Enfim, as singulares de cada pessoa. Em ambos aspectos é possível concluir que a natureza encontra-se imbricada à essência, ou seja, são diversas fontes de determinações que não dependem de nossa vontade ou empenho. Na essência estamos diante de um mundo natural que não elaboramos, tampouco construímos e que é determinado pelas suas próprias características. Sendo assim, no momento em que passamos a intervir nele, humanizando-o em qualquer aspecto, construímos a cultura. Logo, ela se trata da intervenção humana no mundo natural onde se promove a passagem dos seres humanos, do estado natural para o cultural. Podemos pensar em cultura como o ato de cultivar a terra num sentido que se remete à agricultura. A terra é natureza, mas o plantio e suas técnicas são culturas. As árvores são natureza, enquanto que o uso que se faz da madeira é cultura. Nesse aspecto o pensamento filosófico se dá no sentido inverso, dito de outro modo, é a natureza em sua essência que vai dando significados culturais para a humanidade. Homogeneização cultural e etnocentrismo O processo civilizatório que incide na homogeneização cultural contribuiu para que grande parcela da humanidade observasse o outro com seus próprios olhos e isso produziu o preconceito, geralmente em termos binários: romanos e bárbaros, cristãos e infiéis, capitalismo e socialismo, para citar alguns exemplos. Contudo, na contramão dessa produção cabe observar a seguinte reflexão:
Podem-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. (TODOROV, 2003, p.3)
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Tal conceito é útil para concluir que é possível olhar o outro com nossos próprios olhos, entretanto, devemos entendê-los pelos seus próprios termos pois, a heterogeneidade de culturas é muito maior e mais rica do que tudo aquilo a que estamos destinados a conhecer delas e
(...) todas estas individualidades distintas, sendo heterogêneas, não podem se fundir numa mesma série contínua, nem sobretudo numa série única. Pois a sequencia de sociedades não poderia ser figurada por uma linha geométrica; ela se parece antes com uma árvore cujos ramos se dirigem em direções divergentes. (DURKHEIM, 1966, p.18). A árvore se trata da essência humana, cujos ramos se direcionam para os processos híbridos, uma vez que, a hibridação não é uma simples fusão sem contradições e divergências. Situações essas, que nos induzem a compreender o etnocentrismo. A Bolívia, por exemplo, é um país que possui traços indígenas em grande parte de sua população, embora não descartem os aspectos da colonização espanhola. A cidade de La Paz é dividida por uma avenida onde se verifica a arquitetura moderna e colonial de um lado, enquanto que, no outro notam-se construções mais simplistas. Esse lado mais simples, no qual cerca de 90% das construções não possuem um acabamento fino nas áreas externas, se trata da parte indígena da cidade. A opção pela falta desse tipo de acabamento está relacionada à diminuição do pagamento de impostos, uma vez que o país é um dos mais pobres do continente americano. Durante uma breve estada em 2011, uma pessoa do meu grupo ficou profundamente incomodada com essa estética da parte indígena da cidade e tentava em seu íntimo encontrar soluções para que o acabamento fino fosse realizado e, aquela realidade que culturalmente nos foi transmitida como algo que remete ao feio e à pobreza, pensando num estado de miserabilidade, de fato, fosse sanada, levando em consideração que em nossa cultura o feio, o pobre e o miserável nos agridem interna e externamente. É certo que a miserabilidade, seja qual for a sua manifestação deve ser motivo de nossas rejeições, principalmente nas sociedades contemporâneas onde as disparidades entre as classes sociais são profundas e geralmente imutáveis.
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Todavia, o olhar que rejeitou a realidade apresentada nesses termos se trata do olhar etnocêntrico, muitas vezes irreconhecível para aqueles que o trazem consigo e, que possui o desejo e a sanha interna de colonizar o outro.
(...) o etnocentrismo pode ser definido como uma visão de mundo fundamentada rigidamente nos valores e modelos de uma dada cultura; por ele, o indivíduo julga e atribui valor à cultura do outro a partir de sua própria cultura. Tal situação dá margem a vários equívocos, preconceitos e hierarquias, que levam o indivíduo a considerar sua cultura a melhor ou superior. (SILVA, 2013, p.127 ) A criticidade internalizada que causou espanto no olhar da pessoa, corresponde a uma série de simbologias e significações culturais adquiridas ao longo de sua existência e, despir-se disso é um ato que requer questionamentos e reflexões. Entrementes, é possível que a experiência vivida após esse encontro transcenda os limites do observável, uma vez que, as necessidades daquele povo são mais básicas que as paredes de suas casas. Distinção entre culturas A humanidade em busca das mais diversas significações acerca de ser e estar no mundo produziu categorizações sobre as culturas. As principais se tratam da cultura erudita, popular, individualizada e das massas. A primeira é praticada no meio acadêmico e, também é chamada de cultura de elite porque o acesso a ela é direcionado a poucos. A cultura popular geralmente é produzida pelo homem do campo, pela população suburbana e pela mistura dos dois. A cultura individualizada está imbricada às produções de cineastas, cantores e compositores, além de artistas em geral. Já, a cultura de massas merece uma análise mais complexa pois, é fornecida pelos modernos sistemas de informação. Esse tipo de cultura, através da televisão, cinema, música e, até literária procura homogeneizar grandes parcelas das populações, principalmente nesses tempos de fronteiras imediatas e porosas. Dessa forma, a questão incide sobre a imposição de padrões ideológicos que estruturam a vida dos consumidores e prescrevem comportamentos e modos de percepção adequados a cada 82
situação que se deseja promover. Na realidade, trata-se de práticas de reprodução social que perpassam por uma dialética a partir do que determinados grupos se reafirmam defendendo seu status quo enquanto outros atuam na esfera oposta em busca de reconhecimento e aceitação. Sem enveredar por uma análise minuciosa acerca das relações de poder numa sociedade de classes, penso nisso num sentido macroestrutural homogeneizante e extremamente superior ao mundo romano, à expansão da cristandade, ao mundo global pós-grandes navegações etc. Ocorre que, desde o final do século XX a homogeneização encontra-se conectada nas redes dos sistemas de informação de milhares de computadores e aparelhos tecnológicos que se reproduzem numa velocidade sem limites e outrora imaginada. Mas é possível ou necessário para humanidade distinguir a informação da desinformação? Construir um filtro entre aquilo que informa e aquilo que desinforma e deforma? Enfim, aplicar o exercício da dúvida? (...) jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; (DESCARTES, 1988, p.37). Nessa direção, cito o exemplo da denominada Primavera Árabe que se iniciou no final do ano de 2010. Em termos gerais, a questão se passou por conta do descontentamento de algumas nações com seus longos governos ditatoriais. Era impossível não saber sobre isso, dada a enxurrada de informações que chegavam a todo instante nos meios de comunicação mais diversos possíveis. Num mundo desde sempre intolerante, violento e veloz, há momentos em que a sensibilidade relacionada a certos acontecimentos parece desaparecer ao ponto de nem se questionar o que de fato estava, ou ainda possa estar acontecendo entre os árabes. Por esse motivo, não sei dizer em qual estação do ano a Primavera Árabe incidiu às minhas reflexões, mas posso afirmar que chegou pela figura caricata do presidente da Líbia, Muammar Kadhafi que, na época estava no poder a 42 anos. De repente, a todo o instante os meios de comunicação informavam sobre a primavera que havia chegado à Líbia. Contudo, as informações invariavelmente eram as mesmas e se fundamentavam, ora por conta dos avanços territoriais das tropas rebeldes sobre a capital, Trípoli, ao passo que as forças leais ao governo recuavam, ou vice e versa. Isso permeou insistentemente os meios de comunicações não sei por quanto tempo, até que chegou um momento em que me perguntei: Afinal de contas o que de fato estava acontecendo na Líbia? Qual o real motivo e para quem eram destinadas aquelas informações absolutamente repetidas? 83
Sem muitas convicções, concluí que talvez o motivo fosse a sanha de criar uma ansiedade nos espíritos consumidores com relação à exclusividade do clímax final que, seria a inevitável e tão violenta derrocada, quanto fora na mesma intensidade a existência do líder Kadhafi. Em outubro de 2012, espacialmente longe da Primavera e conceitualmente perto das mazelas produtoras da desinformação, houve o caso do suposto suicídio coletivo dos indígenas Guarani Kaiowás, no estado de Mato Grosso do Sul que, aconteceria caso não houvesse um resultado favorável na demarcação das terras por eles reivindicadas. Imagens de índios enforcados proliferaram pelos sítios eletrônicos causando grande comoção por parte do público. Na realidade, eles jamais pensaram em suicídio coletivo, antes, versavam sobre a morte de um costume, de um modo de viver, enfim, de uma cultura, caso não tivessem suas necessidades atendidas. A questão dramática estava condicionada a uma interpretação semântica. Cabe destacar que, de fato, em várias ocasiões ocorreram casos de suicídios entre os indígenas, por motivos diversos que na realidade refletem a ineficácia de uma política social centrada no respeito à diversidade étnica. Citei esses exemplos para fazer um contraponto no sentido inverso, ou seja, a partir da forma como essas informações tomam corpo em todas as camadas da sociedade. Agregado a isso, leva-se em consideração que essas informações carregam consigo as relações assimétricas de poder e permitem que determinados grupos em disputas não se apresentem em igualdade de condições para fazer valer seus postulados e interesses, gerando conflitos que advêm da violência de uns sobre outros e do processo persistente de dominação social que além da indústria midiática, se expressa na economia, em termos étnicos, geracionais, sexuais, enfim, culturais. Todavia, está longe de ser unanimidade a capacidade midiática em desviar a atenção de uma determinada sociedade de sua realidade. Sempre haverá de existir a resistência à incursão dessas informações descaracterizadas e podem-se utilizar as mesmas mídias, criando seus próprios sistemas de informação que, por sua vez, encontram ecos nos mais variados sítios eletrônicos capazes de divulgar a sua cultura, perpetuar a manutenção de suas posições e coesão entre si, além de promover suas denúncias e reivindicações. Enfim, dar significação e corpo ao ato de transgredir.
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Hibridismo cultural No hibridismo cultural as estruturas e práticas discretas que se combinam tratam-se da incorporação de significações, através da socialização entre os indivíduos. Isso ocorre a todo instante. Pode ser somente no campo das ideias ou em termos mais práticos e dinâmicos. De acordo com o espírito do mundo que permeou parte da minha existência no Brasil dos governos militares, junto com a fábula perversa do milagre econômico e as riquezas geradas pelas indústrias, fui programado e criado para me tornar um engenheiro. Certamente acreditei nisso, pois era dessa maneira que o mundo se apresentava para mim. Com o tempo a frustação interna aumentava na mesma medida que os meus insucessos por essa empreitada. A falta de alternativas, decorrentes de uma essência humana que não se hibridava, trazia consigo um sentimento de culpa pela incapacidade de alcançar determinado objetivo. Levaria tempo para entender que a fábula do sucesso profissional e posição social se transformavam numa realidade para poucos e que as chances não são iguais para todos numa sociedade hierárquica, preconceituosa e de intensas lutas de classes. Outrossim, aceitei meus insucessos sem compreender que a culpa e desorientação que o espírito do mundo me imputava não era minha. “Vítimas de uma ilusão, acreditamos ser produto de nossa própria elaboração aquilo que nós é imposto do exterior.” (DURKHEIM, 1966, p.4). Permaneci na indústria por vinte anos, embora o espírito fosse inquieto e questionador. A hibridação ocorreu de maneira acidental através de uma despretensiosa licenciatura em História que me libertou da caverna de Platão. De repente o chão da fábrica passou a fazer parte de outra existência junto com a absolvição dos pecados e culpas que jamais foram minhas. “Percebemos então que não produzimos, antes muito pelo contrário, os sofremos.” (IDEM, p.5). Formado em História, um curto espaço de seis meses foi o suficiente para que eu chegasse ao grande desafio no que dizia respeito a desenvolver uma pesquisa de mestrado. Embora tenha encontrado diversas almas gentis, confesso que nessa fase conheci outro tipo de fábula e perversidade, ou seja, a própria academia e grande parcela dos acadêmicos. Exemplos disso não faltaram e, foram desde os espanto e incredulidade de alguns professores pelo fato de um mestrando não possuir determinadas informações, passando pelos processos de distinção e seleção entre prováveis sujeitos notáveis ou não, até a quase total ausência de orientação e direção daquilo que se deveria produzir 85
numa pesquisa. Hoje, a dialética me conduz igualmente ao espanto e incredulidade pelo incrível fato de constatar que estudiosos de educação, espantados e incrédulos, não saberem por que um candidato a mestre não possuía determinadas informações. Quanto às seleções e falta de orientações, afirmo que se remetem a um campo de interesses subjetivos. É certo que aprendi muito com as almas gentis. Entretanto, o autodidatismo me foi fundamental e decisivo. Minha pesquisa estava relacionada à transpor didaticamente a história dos povos indígenas no Brasil, contada por eles mesmos, para as salas de aulas das escolas da federação. Portanto, o conhecimento a ser adquirido seria de fora para dentro da academia. Para clarificar essa análise, já dentro do no meu campo de atuação, penso nas escolas no interior das comunidades indígenas. Tradicionalmente o indígena não necessita da mesma forma escolar de socialização que concebemos, uma vez que, a sua educação se imbrica num relacionamento interativo com a natureza, além de ser voltada especificamente para o seu grupo e modo de viver. Ocorre que esse sujeito deseja a escola nas suas comunidades, principalmente, para entender a nossa sociedade. É nesse espaço que acontece a hibridação pois, o indígena se propõe a estudar da mesma forma que nós. Porém, se tratando de uma escola diferenciada que respeita alguns aspectos peculiares de suas culturas, não deixam de ocorrer aquilo que não se hibrida, pois a essência e natureza permanecem e, ao concluir esse processo o sujeito não vai deixar de ser um índio, ou se tornar um índio civilizado. Por isso que a hibridação não é uma simples fusão de culturas. Exemplo disso é verificado nas escolas indígenas do Estado de São Paulo. Igualmente a todas as escolas, os materiais disponibilizados, desde didáticos até a alimentação, correspondem ao número de alunos matriculados. Muitas crianças que ainda não possuem idade escolar ficam no entorno da escola e, se desejarem, podem entrar e, até se alimentar com a merenda fornecida pelo governo. De forma alguma são barrados, mesmo porque em seu modo de viver tudo é dividido e partilhado. Situação essa que se hibrida naturalmente em detrimento daquilo que o estado delibera no sentido de que somente os alunos matriculados poderiam circular e, principalmente se alimentar na escola. Nesse caso, os educandos encontram-se conectados pela própria cultura da comunidade, junto às normas estaduais da secretaria de educação e, aqui se percebe os processos híbridos em ambas posições. 86
Cabe destacar que no exemplo descrito ocorre um transtorno, uma vez que, antes de terminar o mês corrente a alimentação acaba e a escola tem que suprir esta necessidade por conta própria. Analisando esse fato, é certo que não adianta a emoção abarcar somente o lado positivo, no que concerne à socialização entre os indivíduos independentemente se, são alunos matriculados ou não. É preciso observar o outro lado também. Podemos pensar que cabe ao estado, como um órgão responsável legalmente sobre essa questão, avançar mais nos processos híbridos e fornecer uma maior quantidade de alimentação. Todavia, uma atitude desse tipo trilharia um caminho paternalista deixando a essência pedagógica de lado, sendo que esse é o foco principal da socialização escolar nessa comunidade. Para finalizar, afirmo que grassa de senso comum ouvir referências às peculiaridades intrínsecas a cada subjetividade humana, no qual os valores, as crenças e as tradições diferentes e desconhecidas são ignoradas e rotuladas. Na mesma direção, a exaltação daquilo que é posto e sedimentado no espírito de uma época contrapõe-se ao que destoa. Nas sociedades em que a vida é ditada através dos sistemas de informação, cabe essa reflexão no sentido de horizontalizar nossas concepções e não incidir nas falácias que muitas vezes ficam a solta, pairando no ar e esperando o nosso abraço. Questão essa, extremamente importante para que em qualquer canto do universo e das mentalidades que o compõem, Auschwitz não se repita mais, embora sombriamente possamos elencar uma série de Auschwitz mundo afora e até concluir que, definitivamente, Auschwitz nunca deixou de existir (ADORNO, 1995). É certo que sempre passamos de formas heterogêneas para outras homogêneas e vice e versa, sem que nenhuma seja plena. Mais do que discorrer de forma conceitual e breve sobre as categorizações de cultura e os processos híbridos, o objetivo dessa análise é entender que na contemporaneidade estamos o tempo todo recebendo e enviando significações do universo, quer tenhamos consciência disso ou não. Resta definirmos sob qual perspectiva desejamos estar.
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Referências bibliográficas ADORNO, Theodor W. 1995. Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra. CANCLINI, Néstor G. 2008. Culturas híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. 4º edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. DESCARTES, René. 1988. Meditações. (Os pensadores). 3ª edição. São Paulo: Nova Cultural. DURKHEIM, Émile. 1966. As regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Editorial. HOBSBAWN, Eric. 1998. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras. SILVA, Kalina V. e SILVA, Maciel H. 2013. Dicionário de Conceitos Históricos. 3ª edição, 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto. TODOROV, Tzvetan. 2003. A conquista da América: A questão do outro. Tradução: Beatriz Perrone-Moisés. 3º edição. São Paulo: Martins Fontes.
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A questão dos animais: Singer e a refutação utilitarista ao especismo Everton Miguel Puhl Maciel 1 Introdução Cumprindo o dever filosófico de tradução dos termos próprios da filosofia para uma linguagem acessível a todos os interessados, o filósofo australiano Peter Singer, em sua obra Ética Prática2, destaca, entre outros assuntos, os direitos dos animais. Autor de Libertação Animal3, obra que causou polêmica e é usada como referência por ativistas dos direitos dos animais do mundo todo, Singer retoma o tema em sua obra Ética Prática. O livro contém uma coleção de textos editados apuradamente para que haja uma conexão fina entre os pensamentos relativos à boa parte da carreira do autor. O princípio da igualdade4 serve como alicerce para que muitos temas polêmicos, que se arrastaram pelo século XX e explodiram no século XXI, sejam tratados com a atenção que merecem. Nesse contexto, esse trabalho abordará um ponto nevrálgico dessa tensão: o capítulo 3, intitulado “igualdade para os animais?”. 1 Princípio da igualdade O princípio de igual consideração de interesses é levantado por Singer já o segundo capítulo de sua obra. Isso acontece introdutoriamente para estabelecer um ponto de partida para todos os temas polêmicos tratados no restante do livro A “essência do princípio” (SINGER, 2002, p. 30) se alimenta no fato de que devemos atribuir às nossas deliberações morais interesses semelhantes a todos os atingidos. Neste sentido, se apenas dois elementos fossem atingidos por uma determinada ação e, somente, o indivíduo A estivesse sujeito a ganhos e o indivíduo B ficasse afetado, conseqüentemente, pelas perdas, essa ação não deveria ser realizada.
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Texto escrito por Everton Miguel Puhl Maciel, Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS, bolsista CAPES; e-mail: jornalistamaciel@gmail.com. Palestra proferida na Unipampa-Bagé em 14 de agosto de 2013. 2 SINGER, Peter. Ética Prática; Ed. Martins Fontes, 2002. 3 Ed. Lugano, publicado, originalmente, em 1975. 4 SINGER, 2002, p. 25. 89
Isso se dá porque um interesse é sempre um interesse, seja ele de quem for. Não podemos argumentar que estamos mais preocupados com A do que com B, se temos como base que os interesses de ambos deve ser levados igualmente em consideração. Para solucionar suas questões éticas, Singer se alimenta de interesses específicos, por exemplo: aliviar a dor. O ideal, para o autor, é que se possam considerar os interesses de todos igualmente. Neste caso, interesses específicos não possuem um peso maior ou menor: “as verdadeiras balanças favorecem o lado em que o interesse é mais forte, ou em que vários interesses se combinam para exceder em peso um menor número de interesses semelhantes; mas não levam em consideração quais interesses estão pesando” (SINGER, 2002 p. 31). Deste ponto de vista, não encontraremos na distinção especista um argumento legítimo para sentenciar que uma raça é mais ou menos relevante e, portanto, mereceria que seus interesses fossem levados em consideração distintamente das outras. 2 Igualdade para os animais Propositalmente, Singer inaugura o terceiro capítulo de sua obra com algumas interrogações. O estilo instigante do autor insere em muitos títulos dos capítulos de Ética Prática uma pontuação reflexiva. No capítulo “igualdade para os animais?” Singer adota o mesmo critério. Sua intenção é mover o leitor através de um jogo lógico que necessariamente trata os animais como seres sencientes com as mesmas características que os seres humanos. Com a intenção de introduzir sua discussão Singer, mais uma vez, interroga: Mas que dizer dos animais? O bem-estar dos animais não se insere numa categoria totalmente diversa, uma história para pessoas loucas por cães e gatos? Como é possível que alguém perca o seu tempo tratando igualmente dos animais, quando a verdadeira igualdade é negada a tantos seres humanos? (SINGER, 2002, p. 65) O argumento central do autor para atribuir aos animais direitos iguais que aos seres humanos à vida e à liberdade é o princípio da igual consideração de interesses. Na condição de minimalista, Singer sugere uma base mínima, condição indubitável, aceita por todos, para que possamos encontrar legitimidade na sua filosofia ética.
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Parece-nos legítimo aceitar que todos os animais, inclusive os não humanos, possuem na sua natureza a intenção de se aproximar do prazer e se afastar da dor. Todavia, como o direito às condições básicas de manutenção da vida e da liberdade foi negado durante a história da humanidade mesmo a seres humanos provenientes de minorias étnicas, como estender esse direito igualmente aos animais? Neste contexto histórico, Singer cita um dos poucos filósofos que se arriscaram a estender aos animais diretos semelhantes aos seres humanos: Jeremy Bentham, criador do utilitarismo moderno, admitiu que o princípio da igual consideração de interesses tem suas implicações extrapolando a espécie humana: Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação dos sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino (apud. SINGER, 2002, p. 67). Em cinco pontos, Singer justifica a ampliação dos direitos morais aos animais: a) nossa preocupação com os outros não deve depender de como são; b) os animais possuem capacidades intelectuais semelhantes, ou superiores, a bebês e deficientes mentais; c) não há justificativa moral para não levarmos em consideração o sofrimento de um ser; d) não há como dar prioridade ao sofrimento de determinadas espécies frente a outras; e) na reflexão sobre o valor da vida, uma vida humana e animal possuem o mesmo valor, pois não está na base da espécie em si o valor da sua vida. No caso do ponto que leva em consideração o fato de que não devemos nos importar com os outros dependendo de como eles são, verificamos que o princípio da igual consideração de interesses não prevê que podemos explorar seres que não pertencem a nossa espécie. Não devemos, portando, deixar de levar em conta os interesses dos animais. A premissa da igual consideração de interesses é ratificada por Singer em uma recente entrevista a revista Época. O filósofo diz o seguinte quando perguntado pelo repórter5 sobre quem determina as premissas que devemos seguir: “ninguém determina. Cada um de nós determina para si próprio. Devemos fazer isso
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O jornalista que entrevistou Singer não estava identificado na entrevista 91
pensando claramente sobre o que fazemos, nos perguntando, por exemplo, se gostaríamos que fizessem conosco o que fazemos com o outro” (SINGER, 2008) 6. Podemos lembrar de outra passagem da citação de Singer a Bentham para ratificar o segundo ponto, que dá conta da comparação entre animais e alguns casos especiais de seres humanos, bebês e deficientes mentais: Um cavalo ou um cão adulto são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim: que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento (apud. SINGER, 2002, p. 67). É importante lembrar que Singer voltará a comparar humanos e animais mais demoradamente em um subtítulo importante do capítulo 3, “Diferença entre seres humanos e animais”. Sobre isso, nos deteremos quando chegar o momento. No ponto que diz respeito ao fato de não haver justificação para não levarmos em consideração o sofrimento de outro ser, precisamos compreender que “a dor e o sofrimento são coisas más e, independentemente da raça, do sexo ou da espécie do ser que sofre, devem ser evitados ou mitigados” (SINGER, 2002, p.71). Tendo em vista que não há como priorizar o sofrimento de determinadas espécies frente às outras, seria necessário que houvesse uma mudança radical no nosso comportamento, especialmente no comportamento alimentar. Singer não admite que para a satisfação de nosso prazer gustativo seja imposta a morte e, mais pontualmente ainda, o sofrimento de animais que são utilizados como alimentos: O princípio da igual consideração de interesses não permite que os interesses maiores sejam sacrificados em função dos interesses menores. (...) Para que a carne chegue às mesas das pessoas a um preço acessível, a nossa sociedade tolera métodos de produção de carne que confinam animais sensíveis em condições impróprias e espaços exíguos durante toda a duração de suas vidas. (2002, p. 73).
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Entrevista publicada exclusivamente no site da revista Época, 9 de julho de 2006, edição eletrônica nº: 421 92
Voltaremos a este assunto posteriormente. Antes disso é importante complementar dizendo que o valor da vida em si talvez seja o ponto mais polêmico na filosofia ética de Singer. Ele, inclusive, trata desse ponto particularmente no capítulo seguinte, “O que há de errado em matar?”7. No entanto, é importante destacar o que próprio autor ressalta diversas vezes: a questão não é diminuir a importância e a relevância da vida humana, mas salientar que qualquer vida merece ser respeitada seja ela da espécie que for sem estabelecer critérios hierárquicos às diferentes formas de vidas. “Como faríamos isso já é outra questão, e não tenho nada de melhor a oferecer além da reconstrução imaginária de como seria existir sob a forma de um diferente tipo de ser” (SINGER, 2002, p. 117).
3 O especismo na prática 3.1 Animais como alimentos Para Singer, salvo exceções muito específicas, a carne animal é um luxo e não uma necessidade. Como exceção a essa regra, o autor aponta o caso vivido por esquimós, que em um ambiente inóspito dependem deste alimento para sobreviver. Apesar de Singer manter o discurso filosófico, ele utiliza, constantemente, algumas informações científicas para tentar ratificar sua tese: O peso avassalador do testemunho médico indica que a carne animal não é necessária para a boa saúde ou a longevidade. Além disso, a produção animal nas sociedades industrializadas não constitui uma forma eficaz de produção de alimentos, visto que a maior parte dos animais foi engordada com grãos e outros alimentos que poderíamos ter comido diretamente. (2002, p. 72) Se isso não fosse o suficiente, poderíamos salientar que os métodos industriais de produção de carne submetem os animais a condições que causam sofrimentos extremos durante todo o decorrer das suas vidas. Isso acontece para que o produto chegue por preços acessíveis ao maior número de pessoas. Além disso, “a castração, a separação de mães e filhotes, a separação de rebanhos, as marcas com ferro em brasa, o transporte e, finalmente, os momentos do abate” (SINGER, 2000, p. 74), também são
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SINGER, 2002, p. 90 93
procedimentos empregados para que a carne chegue à mesa da sociedade moderna com um lucro agregado satisfatório aos produtores. A indústria transforma pasto em carne, desconsiderando inteiramente o sofrimento dos animais. Apesar de vegetariano há algumas décadas, Singer não prega em sua obra um vegetarianismo radical. Para ele, a carne produzida sem sofrimento pode ser consumida: “A menos que possamos estar certos de que foi [produzida sem sofrimento], o princípio da igual consideração de interesses implica que foi errado sacrificar importantes interesses do animal” (SINGER, 2002. p. 75). 3.2 Experiências com animais Outro fenômeno reprovável da nossa sociedade moderna são as experiências científicas que utilizam animais como cobaias, impondo-lhes dor e sofrimentos para que resultados incertos e, muitas vezes, desnecessários cheguem aos seres humanos. Singer cita diversos experimentos, muitos deles com pouco alicerce científico prático, que causam arrepios nos leitores mais sensíveis. Não nos cabe aqui fazer um levantamento minucioso de cada um desses projetos fracassados do fazer científico. No entanto, vamos utilizar a riqueza do argumento filosófico utilitarista de Singer. Para ele, não há problema que um ou mais animais fossem usado para salvar milhares de pessoas. O que Singer coloca, é que um ente não merece ser sacrificado em benefício de outro, que dirá se esse “benefício” for limitado a saber se um determinado tipo de xampu agride o olho de um coelho podendo causar cegueira, como acontece em muitos testes deste tipo até hoje. Se a igual consideração de interesses for levada em conta, seria necessário questionar os adversários do anti-especismo sobre se eles estariam prontos para fazer as mesmas experiências realizadas em animais com órfãos acéfalos. Se a resposta da comunidade científica for negativa, fica claro que os animais são utilizados sem argumento algum a não ser a discriminação. Com o mínimo de esforço, podemos observar que: (...) macacos, cães, gatos e até mesmo camundongos e ratos são mais inteligentes, mais conscientes do que se passa com eles, mais sensíveis a dor, etc., do que muitos seres humanos com graves lesões cerebrais, que mal sobrevivem em enfermarias de hospitais e outras instituições (SINGER, 2002, p. 78). 94
Fica clara que a posição de Singer trata o especismo com a mesma intolerância que o racismo é tratado pela sociedade contemporânea. 3.3 Outras formas de especismo O que se pode dizer da relação entre benefícios para o prazer humano e dor para animais quando um artefato luxuoso é produzido a partir de centenas de chinchilas condenadas, apenas, porque sua pele possui um valor estético? Assim como os casacos de pele, zoológicos, circos, centros de caça esportiva, negócios envolvendo animais de estimação e rodeios também embarcam no argumento de que os interesses menores não podem depender de sacrifícios maiores. 4. Algumas objeções Para Singer, há um progresso considerável desde 1973, quando ele apresentou a “Libertação animal”. Apesar do crescente movimento que prega o anti-especismo, muitas objeções foram feitas. No final do capítulo 3, o autor discorre sobre essas objeções. 3.1 Como sabemos que os animais sentem dor? A menos que pudéssemos viver a vida de outro ser, jamais poderíamos sentir a dor do outro. Singer exemplifica argumentando que mesmo que uma criança não possa reclamar da dor que sente, ela pode demonstrar. Assim, também, funciona com os animais não humanos, que, apesar de não poderem reclamar de suas dores, têm um comportamento muito parecido com os seres humanos. Se isso não bastasse, cientificamente, verificamos um sistema nervoso muito parecido em todos os vertebrados. Sobretudo os pássaros e os mamíferos. Como sabemos que nossas dores passam por esse sistema, fica evidente dizer que, sim, os animais, apesar de não humanos, sentem dor.
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4.2 Os animais comem uns aos outros; porque, então, não deveríamos comê-los? Sobre essa objeção, Singer cita Benjamin Franklin, que: (...) em sua autobiografia, (...) conta que foi vegetariano durante algum tempo, mas que sua abstinência de carne animal chegou ao fim quando observava alguns amigos preparando-se para fritar um peixe que tinham acabado de pescar. Quando o peixe foi aberto, descobriu-se que tinha um peixinho no seu estômago. (SINGER, apud. 2002, p. 80) O raciocínio de Franklin foi bastante óbvio: afinal, se os animais não humanos alimentam-se uns dos outros, há porque não comê-los? Singer resolve esse problema explicando que a maior parte dos animais que matam para comer “não conseguiria sobreviver de outra forma” (SINGER. 2002, p. 81). Se isso não fosse suficiente, é estranho que os seres humanos, que qualificam o comportamento animal como selvagem e irracional, façam uso desse argumento quando lhes é interessante. Por certo, que a capacidade onisciente dos animais não os permite refletir sobre seus atos, muito menos, sobre as alternativas de sobrevivência que lhes são apresentadas. Quando esse argumento constrói na natureza instintiva do ser humano um alicerce para seu raciocínio, esquece que a natureza primitiva do homem nada tem a ver com o processo de industrialização em massa da carne. Ainda sobre “ser natural que os seres humanos comam animais”, Singer argumenta que natural e racional são duas coisas muito diferentes: “é, sem dúvida, natural que as mulheres gerem uma criança a cada ano ou dois, da puberdade à menopausa, mas isso não significa que seja errado interferir nesse processo. Precisamos conhecer as leis naturais que nos afetam para podermos avaliar as conseqüências do que fazemos” (2000, p. 82). 5 Diferenças entre seres humanos e animais Apesar de Singer já ter mencionado uma relação imediata entre humanos e animais no segundo dos cinco pontos onde ele justifica a ampliação dos direitos morais aos animais (b. os animais possuem capacidades intelectuais semelhantes, ou superiores, a bebês e deficientes mentais), um subtítulo especial é aberto sobre o tema. Antes disso, é importante lembrar que antes de Singer, ou mesmo Bentham, estabelecerem uma 96
discussão ética que tentasse encontrar caminhos para uma postura moral que trouxesse consigo respeito à vida animal, o naturalista britânico Charles Darwin inaugurava, em 1872, logo após fundar o evolucionismo8, um caminho importante na comparação entre as vidas de animais humanos e não humanos: Mesmo o homem não consegue exprimir com sinais externos amor e humildade tão claramente quanto um cachorro, quando, com orelhas caídas, boca aberta, corpo torcido e cauda abanando, entra o amado dono. Também não podemos entender esses movimentos no cachorro como atos de volição ou instintos necessários melhor do que o sorriso e o brilho nos olhos de um homem quando encontra um velho amigo. (DARWIN, 2000, p. 20s) Singer parte justamente deste ponto. Para ele, a distância insondável entre os seres humanos e os animais não foi questionada durante quase toda a existência da civilização ocidental. Todavia, depois da descoberta darwiniana de que descendemos de animais irracionais, várias alternativas de vida curta têm-se apresentado para traçar uma linha divisória entre humanos e animais. Uma das primeiras alternativas era que apenas nós, humanos, usamos ferramentas para desempenhar determinadas tarefas. Descobriu-se que alguns chipanzés e mesmo pica-paus também recorrem a esse artifício. Depois, veio a questão da linguagem, novamente, os primatas se mostraram igualmente capazes de aprender a língua dos sinais. No entanto, mesmo que os animais não estivessem enquadrados nessa situação, não seria isso suficiente para legitimar sua condição moral por esse fato. O fato dos seres não usarem suas próprias ferramentas e não terem uma linguagem específica, não representa nada para desmerecer o fato de que devemos levar em conta seu sofrimento. Igualmente foi sugerido que nós, seres autônomos e auto-conscientes, teríamos prioridade moral frente a seres que não possuem a noção de tempo e liberdade. No entanto, fazer essa comparação seria o mesmo que, novamente, colocar lado a lado humanos com deficiências mentais e animais, uma vez que o status moral desses seres humanos sem as características normais seria analisado como status de animal, não de humano. Essa parcialidade frente aos membros de nossa espécie é explicada por Singer:
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DARWIN, Charles, Origem das Espécies. 1872. 97
A ética não exige que eliminemos as relações pessoais e as afeições parciais, mas exige que, em nossas ações, levemos em conta as reivindicações morais dos que são afetados por elas, e que o façamos com um certo (sic) grau de independência de nossos sentimentos por eles. (SINGER, 2002, p. 87) Vale o observar que essa citação, mais uma vez, deixa claro que Singer não pretende desqualificar o ser humano e a relação que temos com seres da mesma espécie. Diferente disso, ele tenta atribuir aos animais o mesmo valor moral que reivindicamos para todos os seres humanos. 6 Ética e reciprocidade Em virtude da repercussão desta objeção em específico, Singer abre um subtítulo à parte. Realmente, se levarmos em consideração as outras objeções, esta, especialmente, parece ser a que mais fortemente é alicerçada sobre um conceito filosófico claro e destino. A questão da reciprocidade é envolve diretamente a compreensão daquilo que Singer critica como uma ética contratualista. Como sabemos, a ética contratualista (também chamada de regra de ouro) compreende a capacidade de relação dos seres conscientes. Assim sendo, apenas mereceria valor moral aquele que tivesse a capacidade de retribuir esse valor, ou seja, ser recíproco. Como a maiorias dos animais não têm consciência de si, o argumento seria justamente esse: eles não possuem a capacidade de manter com os seres humanos uma relação de reciprocidade. Portanto, seriamos agredidos, sim, por um leão que se sentisse ameaçado com a nossa presença. Mesmo que quiséssemos o bem deste animal. A conclusão de que os animais merecem considerações éticas, mesmo sem poder retribuir os seres humanos por isso, acontece por vários motivos. Primeiramente, o autor considera que, diferente da maioria dos animais, somos capazes de pensar eticamente. Ou seja, nossa autoconsciência e nossa capacidade de compreensão temporal nos concedem a oportunidade de ultrapassar essas “premissas mundanas” (SINGER, 2002, p. 89). Aprofundando esse argumento, Singer justifica que, se levássemos em consideração a ética contratual, teríamos que excluir da esfera moral muito mais do que os animais. Mais uma vez, as crianças muito novas, as pessoas com deficiências mentais
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graves poderiam ser citadas como exemplos, mas, nesse ponto, inclusive as gerações futuras acabam engrossando o nicho de pessoas que não podem ser recíprocas às nossas manifestações de selo moral. Tentamos, em tese, preservar o meio ambiente e não seremos atingidos diretamente pelos benefícios causados pela nossa atitude. Se a solicitação envolvendo a reciprocidade fosse levada em conta, as gerações futuras, que não têm a capacidade de manter relação contratual com os contemporâneos, não deveriam receber valores morais frente a nós. Singer escreve: De acordo com essa concepção, a principal razão para se celebrar um contrato ético é o interesse pessoal. A menos que um novo elemento universal seja introduzido, um grupo de pessoas não tem motivos para lidar eticamente com outro, desde que seja de seu interesse fazê-lo. (2002, p. 90) Mais uma vez, o argumento não ultrapassa a questão puramente especista. Considerações finais Sabemos que nossa capacidade de compreender a realidade nos obriga a levarmos em consideração os interesses das gerações futuras e do planeta como um todo. Ou existe outra justificativa para a preocupação com o manejo do lixo nuclear, uma vez que a energia produzida desta forma pode trazer benefícios imensos para a geração que utiliza esse artifício? Certamente, poderíamos aumentar consideravelmente o conforto da população do planeta se utilizássemos energia nuclear. Ainda teríamos a oportunidade de baratear a produção, tornando esse benefício mais acessível, podendo fazer com que ele pudesse chegar a uma parcela maior da população. Mas não fazemos isso desordenadamente porque conhecemos as conseqüências que os resíduos dessa produção poderiam trazer. Se não há nenhuma possibilidade de que essas pessoas possam vir a manter contratos éticos conosco porque deveríamos levar seus interesses em consideração? Poderíamos encerrar esta questão com apenas uma citação de Singer: “[...] somos capazes de raciocínio, e a razão não é subordinada ao interesse pessoal” (2002, p. 89).
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Referências Bibliográficas SINGER, Peter; Ética Prática. Tradução: Jefferson Luiz Camargo – 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2002. DARWIN, Charles; A expressão das emoções no homem e nos animais. Tradução: Leon de Souza Lobo Garcia – São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ÉPOCA,
Revista;
Entrevista
com
Peter
Singer
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG74453-5856-421,00.html - Editora Globo, 2007. Acesso em: 03/05/08.
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Um trajeto para a ética no pensamento de Michel Foucault: o “cuidado de si” Tulipa Meireles 1 Para examinar a imbricação entre arte de viver e cuidado de si no pensamento de Foucault, toma-se como ponto de partida o período greco-romano dos séculos I e II de nossa era, explorado no curso A Hermenêutica do sujeito (1982). Nos séculos I e II, o período helenístico e romano, a arte de viver foi considerada um terreno muito sólido no qual escrevia-se o “cuidado de si”. Todavia, a queda da Polis Grega – e a crise de valores como consequência desta – estreitou a relação entre arte de viver e cuidado de si. Durante o período helenístico e romano, a arte de viver foi inteiramente dominada pelo cuidado de si, que se tornou o pilar para os modos de subjetivação , no qual fez-se necessário uma arte de viver que o atravessasse, o cuidado de si passou a ser o terreno para a arte de viver. A questão fundamental a que esta pesquisa se propõe está situada na análise de Foucault sobre os séculos I e II, na qual o cuidado de si deixa de ser tão somente uma atividade de conhecimento e torna-se uma prática de si. Nas palavras de Foucault “O cuidado de si torna-se coextensivo à vida” (FOUCAULT, 2011), ou seja, há uma extensão à vida individual, do cuidado de si à arte de viver. Há uma especulação no cerne das obras tardias do filósofo articulada nos seguintes termos: Como é necessário ao indivíduo conduzir-se a fim de se tornar um sujeito moral? A essa questão Foucault afirma existirem diversas maneiras de conduzirse, e tais diferenças dizem respeito às maneiras as quais o indivíduo estabelece sua própria relação com a regra e a desenvolve em moldes de um trabalho ético sobre sua própria conduta. Quando o indivíduo realiza-se enquanto sujeito de ação moral ele atinge um modo de ser característico e não restringe sua conduta somente aos valores e regras que lhe são exteriores. O campo da moralidade é constituído para Foucault por meio dos códigos de comportamento e dos modos de subjetivação. O segundo elemento pode ser compreendido como um movimento ético no percurso filosófico do autor, no qual a constituição do indivíduo como sujeito moral ocorre por meio das relações estabelecidas consigo mesmo. Os procedimentos e práticas de si são, segundo Foucault “morais orientadas para a ética”. (FOUCAULT, 2010) Foucault encontrou tais reflexões do 1 Texto escrito por Tulipa Meireles, Mestre pela Universidade Federal de Pelotas-UFPEL. e-mail: tulipameireles@hotmail.com. Palestra proferida na Unipampa-Bagé em 11 de setembro de 2013.
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campo da moralidade ao estudar as morais da Grécia Clássica e do Período helenístico e romano, em que as ações eram conduzidas mais pelas práticas de si do que pelas condutas orientadas pelos códigos de lei. Nesses períodos se enfatiza mais a atitude frente ao cumprimento da lei do que o próprio conteúdo dessa lei. Se conduz a própria vida a fim de atingir um modo de ser definido pelo domínio e soberania de si mesmo (ataraxia)2. Principalmente no segundo volume de História da sexualidade o autor demonstra o modo em que as atividades exercidas sobre o próprio corpo foram problematizadas através de uma ascética filosófica que colocavam em jogo os princípios para uma “estética da existência” – que estabelece, se não a própria “ética de si”3, ao menos um modo de viver orientado por um critério estético. No curso de 1982, Foucault desenvolve a noção de ascese filosófica, ou ascética, para diferenciar da ascese cristã. Brevemente pode-se dizer que a ascese filosófica, da forma que foi elaborada pelos filósofos dos séculos I-II se referia a um conjunto de práticas voltadas para o objetivo de fazer da existência do sujeito um fim em si mesmo. Trata-se da elaboração de um “equipamento” de defesa, que o sujeito esteja dotado a fim de defender-se dos possíveis acontecimentos da vida. A problematização na qual o autor se propõe são desenvolvidas no cerne de um tipo ou aspecto moral em que são transmitidos um conjunto de valores e regras de forma difusa. Constituindo assim, não uma unidade sistemática, mas um conjunto de elementos que se confrontam a fim de compensarem-se, anularem-se, corrigirem-se. O problema posto pelo autor está sob as circunstâncias das relações entre saber e poder. Portanto, se é plausível a afirmação que a relação estabelecida entre cuidado de si e arte de existência permite a construção de um novo modelo ético vinculado aos modos de subjetivação do indivíduo, é necessário considerar que essa ética de si é formulada através de um trabalho rigoroso consigo mesmo e situado em uma trama histórica. Esse aspecto descarta a possibilidade de nos perguntarmos se Foucault, ao tentar fugir de uma normatividade, não estaria justamente contradizendo-se e assim, buscando um tipo de normatividade que abarcaria o seu próprio projeto filosófico para a ética. O trabalho ético sobre si mesmo é pensado e articulado por
2 Os filósofos dos séculos I-II utilizavam esse termo para identificar um estado de imperturbabilidade da alma, ou ausência de inquietação. 3 São conceitos utilizados por Foucault a fim de determinar um modo de viver orientado por certa estilística. São dois conceitos que irão praticamente nortear o projeto em questão. Um a fim de vincular com determinados modos de subjetivação por meio de uma ética e uma ascética e o outro constituindo a própria proposta de Michel Foucault.
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Foucault em meio a contingência da história e dos acontecimentos que são próprios de um modo de vida. Nesse sentido, Foucault distancia-se de uma normatização, de uma universalização. O ponto de partida para Foucault é justamente a desconstrução dos universais, o autor não parte de nenhum fato dado antecipadamente. Uma via de análise ao problema levantado é examinar a relação estabelecida entre subjetividade e verdade através do preceito do cuidado de si (epiméleia heautoû), assim como foi concebido deste os gregos, até os helênicos e romanos, quando o cuidado de si surgiu como um preceito geral na filosofia, onde só por necessidade foi acoplado o preceito do “conhecete a ti mesmo” (gnôthi seautón). Quando o preceito délfico do gnôthi seautón, “conhece-te a ti mesmo” surge no pensamento filosófico, ele aparece através do personagem de Sócrates e está vinculado ao preceito do cuidado de si. Foucault utiliza a palavra “subordinação” para estabelecer a relação em que se encontrava o gnôthi seautón em relação à epiméleia heautoû “cuidado de si”. O “conhece-te a ti mesmo” aparecia como uma forma do cuidado de si, um modo de aplicação concreta. Porém a forma geral na qual o conhecimento estava inscrito era o da preocupação consigo mesmo. O personagem de Sócrates apresentavase como sendo aquele que tinha como ofício incitar os homens a cuidarem de si mesmos, preocupar-se consigo, não se esquecerem de si. O cuidado de si, como explicita Foucault, é um princípio de movimento, de agitação que deve ser impregnado no corpo humano, “cravado na existência”. O cuidado de si é o que fomenta a inquietação na existência do indivíduo. Há
três aspectos fundamentais para se
considerar no preceito da epiméleia heautoû: a) O cuidado de si é um modo de ser e estar no mundo, diz respeito a uma prática, uma atitude e uma relação com o outro, consigo mesmo e com o mundo; b) É uma forma de “olhar”, compreendido como uma conversão do olhar, que se movimenta do exterior – as coisas do mundo – para si mesmo; c) O cuidado de si implica uma prática exercida sobre si mesmo através de exercícios de memorização, meditação, consciência. A
relação entre cuidado de si e conhecimento de si é importante para a
investigação na qual esta trabalho se propõe, na medida em que ressalta como fundamental o preceito do cuidado de si no pensamento filosófico desde os gregos como um terreno para o conhecimento de si, e não o contrário. Foucault afirma no seu curso de 1982 que o cuidado de si foi suprimido no pensamento filosófico para que em seu lugar fosse ressaltado o conhecimento de si como sendo aquilo que permitia o acesso à verdade. Isso se intensificou ainda mais na modernidade, até a chegada do momento em
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que o cuidado de si foi excluído do pensamento filosófico. A partir de A Hermenêutica do sujeito, o filósofo parece recolocar o cuidado de si como aquilo que está no princípio do sujeito, no cerne daqueles que pretendem fazer de suas vidas uma obra de arte, que como tal deve ser algo de bom e belo. O cuidado de si considerado numa “filosofia da espiritualidade”, um conjunto de práticas, de maneiras de ser, de formas de existências que constituem em si mesmo o que permite dar-lhes acesso à verdade. E nessa medida podemos também pensar se não foi o cuidado de si, quem desde os gregos serviu de base para todo o pensamento filosófico. A noção de cuidado de si passou por um processo que vai de Sócrates e Platão aos estoicos, cínicos e epicuristas. Platão considerava o conhecimento de si como um aspecto do imperativo do cuidado de si. Porém diferentemente da forma que foi concebida mais tarde pelo estoicismo. Platão estabelece um vínculo entre cuidado de si e cuidado dos outros que remete ao cuidado de si mesmo como elemento fundamental. Aquele que ocupava-se consigo estava apto a ocupar-se com os outros, ou melhor, aquele que ocupava-se consigo assim fazia justamente com a finalidade de ocupar-se com os outros. Praticava-se a arte da catártica, purificação da alma, para assim tornar-se um sujeito político e então estar apto a governar. Tal sujeito ao ocupar-se consigo e fazer uso de sua condição de governante podia fazer o bem para sua cidade e assim assegurar a salvação dos cidadãos através da prosperidade da cidade. Ao garantir a salvação dos cidadãos esse sujeito estava assegurando a sua própria salvação, uma vez que fazia parte da mesma comunidade. Em Platão não há dissociação entre o conceito político e o catártico, os dois temas não diferem um do outro, no sentido de não exercerem-se sobre finalidades distintas. O catártico aparece sob a forma da reminiscência, quando a alma, ao purificar-se, descobre o que é, o que sabe e o que sempre soube. O tema catártico está em relação direta com o político uma vez que a perfeição encontra-se na cidade, na coisa pública como uma finalidade. É por isso que em Platão há um vínculo de finalidade entre ocupar-se consigo e ocupar-se com os outros. Por outro lado, nos séculos I e II houve uma dissociação entre o cuidado de si e o cuidado dos outros. O cuidado com os outros deixou de ser um indicativo de valorização para o cuidado de si mesmo. O eu desprendeu-se pouco a pouco até constituir-se como fim em si mesmo. Não mais, como em Platão, um “encaixe” ou elemento de transição para algo de exterior, como os outros ou a cidade, perceber o eu torna-se o único objetivo definitivo. A atividade de ocupar-se consigo no período
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helenístico e romano centra-se no exercício sobre si mesmo. Nesse primeiro momento, e Foucault é bem enfático nesse ponto, o cuidado de si, de acordo com as práticas do período helenístico e romano, pode ser compreendido como algo fechado em si, no sentido oposto ao que foi observado no cuidado de si platônico, que visava não o ocupar-se consigo em sentido estrito, mas somente na medida em que ocupar-se consigo conduzia a uma prática política bem específica. Nesse período acentuou-se o desprendimento do que os neoplatonicos chamaram de catártico em uma relação indistinta ao político. A preocupação com a ascética estava muito mais centrada na educação e práticas desse período. Se antes as escolas Gregas exerciam suas atividades em lugares públicos, nesse período que agora se fala a escola era um produto de importação, separado da rua e das atividades políticas. Vê-se um modo de vida que não estava mais centrado na formação do indivíduo ou no modo de adaptá-lo a sociedade. A educação romana, como assinala Paul Veyne (2009), não tinha mais uma função social e sim pessoal: “Durante esse tempo, os meninos estudam para se tornarem bons cidadãos? Para adquirir os meios de compreender algumas coisas do mundo em que vivem? Não, mas para adornar o espírito, para se instruírem nas belas-letras.” Percebe-se, pois, um movimento na direção do modo de ser do sujeito que acentua-se no tema catártico dissociado do tema político, um caráter voltado para o espiritual, muito mais do que pela coisa pública. A preocupação dos filósofos do epicurismo e principalmente do estoicismo e cinismo, estava em buscar uma definição de filosofia que fixava seu objetivo em torno da tékhne toû bíou, uma arte que se refletia na existência do indivíduo. Essa tékhne toû bíou, essa arte de viver como técnica para toda a vida era o campo em que o cuidado consigo mesmo se inscrevia a fim de auto finalizar-se. O cuidado de si que atravessava a existência do homem para finalizar-se estava inscrito numa técnica, numa arte de existência que se constituía enquanto uma ascética, uma verdadeira série e conjunto de práticas e exercícios para a constituição de um ethôs4. Enquanto o eu se afirmava como objeto desse cuidado, inscrito numa arte de viver, o cuidado de si formava-se cada vez mais como a própria arte de si mesmo. Segundo Foucault “a absorção cada vez mais acentuada no decorrer da época helenística e romana, da filosofia como pensamento da verdade, pela espiritualidade como 4
Para Foucault êthos remete a relação do indivíduo consigo mesmo, relação com os outros e com a verdade, refere-se a uma forma de vida.
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transformação do modo de ser do sujeito por ele mesmo” teve como consequência “simultaneamente o crescimento do tema catártico.”(FOUCAULT, 2010) Ou seja, houve uma identificação cada vez mais acentuada entre a arte da existência e o cuidado de si. A tékhne tôu bíou colocava a questão de identificar qual o saber que possibilitaria viver como se deve para ser um indivíduo, um cidadão. E cada vez mais incorporou a questão de saber como fazer, quais as práticas a serem seguidas, para se tornar e permanecer aquilo que se deve ser. Pode-se, portanto, observar um desprendimento daquilo que era considerado como pensamento de uma verdade através do conhecimento filosófico para absorção de uma espiritualidade como transformação do sujeito, para pensar quais os procedimentos que possibilitariam modificar o sujeito para então ter acesso à verdade. O conhecimento de si está, pois, condicionado a uma ascética e uma estética, a um conjunto de práticas bem específicas determinadas pelo próprio sujeito. Ao se referir a uma “Filosofia Espiritual” pretende-se apenas identificar a distinção estabelecida pelo autor entre o eu como sujeito de conhecimento e o eu que se torna um sujeito apto ao conhecimento da verdade, considerando como “espiritual” a aproximação cada vez mais acentuada do tema catártico no pensamento dessa época. Esse procedimento teve ainda como consequência além do aparecimento do tema da “conversão”, o desenvolvimento de uma “cultura de si”. A noção de “conversão” nos séculos I-II está centrada na exigência de aplicar-se sobre si mesmo, e nessa medida estar em vigilância permanente para consigo. Voltar para si, voltar o olhar em direção a si mesmo se faz no intuito de que não desviemos o olhar para as coisas que nos cercam e que são exteriores a nós ou podem decidir ou intervir nas escolhas próprias do sujeito. No curso de 1982, Foucault utiliza a imagem do pião para ilustrar essa concepção. O pião sugere um movimento de girar sobre si mesmo, no entanto, da maneira como não devemos girar sobre nós mesmos, nas palavras de Foucault: O que é um pião? É alguma coisa que gira sobre si por solicitação e sob o impulso de um movimento exterior. Ademais, girando sobre si, ele apresenta sucessivamente faces diferentes às diferentes direções e aos diferentes elementos que lhe servem de circuito (...) Ora, contrariamente ao movimento do pião a sabedoria consistirá em não se deixar jamais ser induzida a um movimento involuntário por solicitação de um movimento exterior. (FOUCAULT, 2010)
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Assim, contrariamente ao movimento do pião, deve-se buscar no centro de si mesmo o ponto no qual fixaremos uma meta. Essa volta, esse retorno sobre o próprio eu remete a uma conversão, no sentido de converter a si ou voltar o olhar em direção a si. No terceiro volume de História da sexualidade: o cuidado de si, Foucault assinala que os séculos I-II foram a “idade de ouro da cultura de si”. Essa cultura de si desenvolvida no período helenístico e romano tem como evidência a preocupação com as práticas destinadas ao corpo, ao modo de ser do sujeito que é o que o constitui como sujeito de um êthos. Foucault cita G. Canguilhem quando este diz que: „A causa da cura‟, para Aristóteles, „é a forma da saúde na atividade médica‟; que não é o médico, mas „a saúde que cura o doente‟; e que de um modo geral „ a responsabilidade de uma produção técnica não diz respeito ao artesão, mas à arte...; a Arte, isto é, a finalidade não deliberativa de um logos natural. (FOUCAULT, 2011a) Esta passagem parece pertinente ao ponto no qual se pretende chegar ao considerar que a responsabilidade da produção é algo concernente à própria “arte” e não ao artesão. Dessa forma tem-se que a responsabilidade em constituir-se como um sujeito, como uma obra de arte completa, definida como êthos de sua própria existência é pura e simplesmente do sujeito, na medida em que tem a si mesmo como próprio objeto de uma prática. O indivíduo é o próprio artesão de sua vida, que como objeto e meta definitiva, constitui-se como sujeito, que é a própria arte. Foucault nos fornece elementos os quais podemos ser levados a concluir que o tema da cultura de si, através de uma ascética filosófica conduz a formação de um sujeito ético-estético. O sujeito é posto como aquele que é inteiramente responsável pela sua tékhne, à medida que a escolha pelo modo de vida parte inteiramente de sua liberdade pessoal, de decidir-se por ocupar-se consigo e elaborar um trabalho sobre si mesmo a partir de técnicas e práticas de si. A ascética filosófica não possui um caráter normativo nem constrói um regulamento ou mandamento para a vida, ela é antes uma forma de vida. Pensar o indivíduo como sujeito moral de suas ações é pensar a ética de forma a considerar a diversidade de formas e principalmente a liberdade do homem que decide pela sua criação, a fim de constituir-se como obra, obra de arte.
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Referências Bibliográficas FOUCAULT, M. 2010. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres.13ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal. FOUCAULT, M. 2011a. História da sexualidade 3: O cuidado de si. 11ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal. FOUCAULT, M. 2011b. Hermenêutica do sujeito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes. VEYNE. P. 2009. História da vida privada. Do império romano ao ano mil. O império Romano. São Paulo: Companhia das Letras.
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Ética aplicada: a relação entre ciência, linguagem e filosofia. Sérgio Fernando M. Corrêa 1 Introdução O artigo que ora apresento tem como objetivo publicizar o texto que formalizei e serviu como base e guia para a palestra Ética Prática: a Implicação Entre Ciência, Direito e Filosofia, ministrada nas dependências do Campus Bagé da UNIPAMPA em 13 de novembro de 2013 por ocasião das atividades do projeto de extensão Filosofia para Todos. Na época tinhamos por objetivo geral a compreensão os principais problemas e os fundamentos da filosofia prática. Para alcançar tal objetivo estabelecemos como objetivos específicos a análise crítica de alguns dos problemas que envolvem a bioética. Procuramos também conceituar os problemas selecionados e que englobam o debate bioético. Por fim, tratamos apresentar os modelos explicativos do pensamento bioético. I Iniciamos o encontro tratando de alguns tópicos de ética contemporânea a partir da leitura dos livros do Professor Jovino Pizzi. No primeiro momento o fizemos uma apresentação dos conteúdos da palestra. Na sequência alguns ouvintes fizeram breves comentários sobre as motivações que levaram a escolher a palestra. Deste momento, ficou evidente que o grupo tinha a marca da pluralidade. Alunos regulares do curso de química, das pós-graduações. Alunos ouvintes das mesmas linhas. Havia também a presença de alunos do programa do mestrado em Filosofia da UFPel. No segundo momento, propôs-se um debate sobre a questão da ética aplicada. Nisto ficou evidente que se trata de um conceito muito amplo. Tem relações com a filosofia, mas tem a especificidade de originar-se fora da filosofia. O termo tem sua procedência de questões práticas no contexto das empresas, dos hospitais, das escolas, órgãos envolvidos em questões ambientais. Esta peculariedade leva a mudanças significativas na filosofia e no âmbito moral. É o que o professor Pizzi chama de Ethical Turn. Este giro ético aponta para a necessidade de fundamentação e aplicabilidade das teorias éticas na legitimação das práticas dos agentes envolvidos com questões científicas, econômicas, religiosas, educacionais etc. Assim tivemos noção dos problemas e questões que iríamos lidar no decorrer da nossa palestra. Sugerimos como leitura o primeiro capítulo livro sobre éticas aplicadas do professor Jovino Pizzi: Ética e Éticas Aplicadas: a reconfiguração do âmbito moral.
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Texto escrito por Sérgio Fernando M. Corrêa. Professor de Filosofia do Instituto Federal Catarinense, Campus de Videira, SC. Doutorando em Filosofia pela Unisinos, São Leopoldo-RS. O texto é reflete o conteúdo de palestra proferida na Unipampa-Bagé em 11 de setembro de 2013. E-mail: sergio.correa@ifc-videira.edu.br 109
II Neste segundo tópico iniciamos os trabalhos pelo debate sobre as questões ligadas aos avanços científicos. Trata-se, igualmente, de um tema que suscita esperanças, provoca temores e cria incertezas. Ora, este misto de otimismo e insegurança deu base à busca do diálogo entre filósofos, cientistas, economistas e políticos. Nisto deixamos claro que a ética aplicada tem a ver com uma nova exigência de método que tem na interdisciplinaridade sua marca maior. Responsabilidade moral, agir ético, motivação moral, consequência éticas, agir comunicativo são temas que perpassam toda esta reflexão. Estas questões passam a exigir novas normas do agir, fundamentação para as escolhas éticas que os agentes humanos precisam fazer no cotidiano de suas ações. Decorre desta busca pelo fundamento a necessidade de encontrar em teorias éticas o fundamento para a ação. Buscase então no universalismo, contratualismo, utilitarismo, etnocentrismo, comunitarismo entre muitos outros os fundamentos para a ação. Nesta linha usam-se os mais variados argumentos para buscar o mínimo consenso entre os interlocutores. Desta gama de discussões vem a tona então o que se nomeia de éticas aplicadas, que em síntese é o busca pelo fundamento em teorias éticas e a sua aplicabilidade a casos específicos. O professor Pizzi, anota sobre o tema: “O surgimento da ética aplicada não desbanca o lugar da fundamentação, nem restringe a preocupação com as teorias éticas” (PIZZI, 2006, p. 23). Sucede então, segundo Pizzi, um novo modo de compreender as teorias éticas. A busca pela fundamentação e pela justificação encontra nas éticas antigas e medievais (éticas do ser), nas éticas da consciência (éticas modernas) ainda algumas bases fundamentar um novo modelo ético – a ética da linguagem a qual nasce da crise de fundamento que os dois modelos anteriores apresentam. III Iniciamos este ponto refletindo sobre o modo como estudamos e compreendermos a história da filosofia, isto é, a dividimos em quatro etapas: a Filosofia Antiga, a Filosofia Medieval, a Filosofia Moderna e a Filosofia Contemporânea. Porém, adotaremos a divisão da História da Filosofia em três etapas: a era do ser, da consciência e da linguagem. Jürgen Habermas tem em mente estas questões e se orienta por esta tríplice divisão: a era do Ser é Aristotélica, cuja abordagem é a do Ser e do Não-ser. Segue-se portanto uma ontologia, cuja perspectiva é teológica. Aqui está em evidência “o que é?” Com a modernidade, aparece a noção e as filosofias do cogito ergo Sun (Penso, logo existo) de Descartes inaugurando a era da filosofia da consciência. Esta etapa caracteriza-se pela emancipação do sujeito em relação ao processo teológico, isto, é a razão tornando-se autônoma. Habermas propõe um mapeamento das várias filosofias que expressam a era da consciência. A era da linguagem exige a saída do monólogo, para o diálogo. Nesta perspectiva a pergunta pela significação: “o que é o significado?” Assim inaugura-se o giro linguístico, a 110
chamada racionalidade dialógica. Deste modo surge a questão da razão pública. Neste sentido, falar do binômio público/privado está quase que superado. Na sequencia passou a se discutir a natureza dos atos de fala: que ora são locucionários, ilocucionários e perlocucionários. Deste modo um ato de fala pretende ser válido e não é válido ou inválido de antemão. Neste caso, os atos de fala se devem acontecer entre sujeitos-sujeitos. É a diálogo intersubjetivo. Em seguida procedeu ao debate sobre o texto de Alasdair Macintyre cujo título é: ¿La ética aplicada se basa em un error? Deste debate, podemos fazer as seguintes considerações: reafirmou-se que a ética aplicada se refere a um campo amplo de atividades, como já foi dito acima. Também se destaca a necessidade de um sujeito racional capaz de agir de forma coerente, em conformidade com a verdade e buscando universalizar a ação, como afirma o filósofo: “De ló que deduce que en la formulación de este tipo de reglas sólo se emplean conceptos al alcance de las personas racionales como tales” (MACINTYRE, 2003, p. 72). Para o autor este é um ideal a ser procurado, pois em geral as pessoas desmembram a apreensão da regra de sua execução. Segundo o filósofo britânico surgem problemas sérios para a ética quando se separa o conhecimento e apreensão da regra de sua aplicabilidade. Assim, regras de ação carecem estar em constante ampliação, pois se formulam de acordo com novas situações-problemas que cotidianamente surgem. O autor é, então, enfático: “Pero no existe ninguna regla separada de sus aplicaciones (...) de lo que implica tanto el seguimento de la regla como la ampliación de uma regla preexistente a uma nueva clase de casos” (MACINTYRE, 2003, p. 76-77). Macintyre é bastante crítico com as regras morais. Na sua percepção nenhuma regra ou mesmo um conjunto de regras conseguem abarcar de maneira absoluta as contingências e novas situações-problemas que aparecem em uma determinada comunidade. Escreve: Ninguna regla ni conjunto de reglas puede abarcar todas las contingencias relevantes, y el descubrimento de un caso no abarcado de este modo no necesita proporcionar, y en acaciones no puede proporcionar, una razón adecuada para ampliar e reformular estas reglas em particular (MACINTYRE, 2003, p. 83). Prossegue na sua crítica, sendo bastante severo com as éticas aplicadas. Segundo sua tese, se os postulados éticos são bem fundamentados, estão compreendidos e corretamente executados, então não haveria a necessidade da elaboração de uma ética aplicada. Para o autor este tipo de problema surge porque se supõe que as regras morais são a-históricas, a-temporais e desvinculadas do contexto social e das instituições que o representam e as desenvolveram. Por tais razões, “Cuando la ética y la moralidad se comprenden correctamente, el concepto de la ética aplicada pierde toda aplicación” (MACINTYRE, 2003, p. 84). Portanto, segundo esta visão, a ética aplicada se fundamenta em um erro. Por conseguinte, necessita-se de 111
uma moral capaz de sustentar diante da complexidade social, de argumentos antagônicos, dos grandes problemas suscitados pelos avanços da ciência. IV Vimos e debatemos as questões deixadas no ponto anterior que era: analisar o que é pragmática universal? Para tal, sugerimos a leitura do livro O Conteúdo Moral do Agir Comunicativo, do professor Pizzi. A primeira pergunta que esta leitura suscita é a seguinte: que significa o giro pragmático da linguagem? Segundo o texto, cf.: (PIZZI, 2005, p. 47) “O giro linguístico significa a passagem da semântica à pragmática, por meio do qual é possível fundamentar um procedimento capaz de vincular o agir comunicativo ao mundo da vida”. Ora, pois, para aprofundar esta definição precisamos saber o que é a semântica. Segundo consta, a semântica ocupa-se com o significado das palavras e sempre busca quantificar, qualificar, nomear, dar lugar as palavras em um discurso. Decorre então que esta busca pelo significado, pela análise do discurso, pela verdade dos fatos linguísticos é sem dúvida característica do tempo da filosofia consciência, na qual um sujeito autônomo e consciente de si iria ao mundo dos objetos para recolher a verdade, a estrutura última das coisas, o significado do fato linguístico. Ora, se houve uma passagem da era da consciência, então é fato aceito que este modo de proceder da linguagem também está sendo superado. Temos então que analisar o que se refere a pragmática que toma o lugar da semântica. Esta questão remete ao texto de Habermas ¿Qué significa pragmática universal? Ora, se o modelo da filosofia da consciência entrou em crise com todo sua vontade de verdade e universalidade, então é preciso fundamentar e estabelecer condições necessárias para promover um entendimento possível Segundo o filósofo, esta é a tarefa da pragmática – “La pragmática universal tiene como tarea identiticar y recontruir lãs condiciones universales del entendimento posible” (HABERMAS, 1989, p. 299).
Portanto, este entendimento possível deseja
universalmente a validez dos atos de fala. Para tal, este processo de entendimento universal – a tarefa da pragmática universal – supõe que um determinado falante esteja expressando algo de forma inteligível, que esteja dando a entender algo, que se dê a entender e que busque entender-se com os demais. Este parece ser o conteúdo normativo do entendimento possível, que aparece em Habermas como “Agir Comunicativo”. Ora, uma questão depreende-se destes apontamentos que o professor Pizzi abordou em tópico em um dos seus livros: Por que a linguagem é um meio? Poderíamos ser simplistas e dizer que a linguagem serve de meio para atender aos interesses particulares, que seria uma forma de seduzir aos que nos ouvem, que seria a instrumentalização as fases do discurso com fins puramente subjetivos. É o que Habermas chama de agir estratégico ao qual caracteriza: “O Agir Estratégico parte do pressuposto de que as decisões levam em conta os interesses pessoais individuais” (HABBERMAS, 1992, p. 68). Todavia, o que nos interessa é analisar a linguagem 112
como meio na perspectiva do agir comunicativo, ao qual Habermas conceitua: “O Agir comunicativo parte do pressuposto de que as decisões levam em conta os interesses interpessoais do bem-comum e da reciprocidade” (HABERMAS, 1992, p. 99). Nesta linha a linguagem deixa de ser um meio de convencimento estratégico e passa a ser meio para produzir, segundo Habermas: “un acuerdo, que termine en la comunidad intersubjetiva de la compresión mutua, del saber compartido, de la confianza recíproca y de la concordancia de unos con otros” (HABERMAS, 1989, p. 301). Depreende-se desta última definição de linguagem como meio o imperativo da procura pelo consenso que não pode ser imposto de fora e menos ainda imposto por uma das partes envolvidas no diálogo. É o acordo possível que é concretizado por meio da liguagem do agir comunicativo. V Inciamos este ponto pela explanação e pelo debate das tres condições necessárias para preenxer as pretenções de valiedez – verdade, retidão e veracidade – razão suficiente para um ato de fala capaz de efetivar a pragmática universal, ou seja a busca do consenso. Ora, este acordo possível só pode ocorrer por meio de atos de fala que se pretendam válidos na perspectiva do agir comunicativo. Mas como conceituar, descrever, caracterizar um ato de fala. Habermas dirá o seguinte: Una teoría geral de los actos de habla tendría que describir precisamente el sistema fundamental de reglas que los hablantes adultos dominan em la medida en que pueden cumplir las condiciones para un empleo afortunado de oraciones em actos de habla (HABERMAS, 1989, p. 326). As regras, das quais Habermas trata só podem ser aquelas pretendem ser inteligíveis, são as que dão a entender algo do que se fala. O falante, neste caso, se faz entender e visa não dominar os outros por meio da linguagem, mas entrar em acordo com os demais. Pois se fosse de outro modo estaríamos no campo do agir estratégico, característico da filosofia da consciência que instrumentaliza a razão. Portanto este tipo de ato de fala necessita ser ilocucionário, isto é, se constituir na própria linguagem. Sucede então que os atos de fala pretendem ser válidos, aos menos enquanto busca. Decorre então que o ato de fala necessita estar comprometido com a verdade daquilo que se fala, que os atores envolvidos no diálogo são sinceros e que estejam em iguais condições enquanto ouvintes e falantes. É, pois característica universal e racional do atos de fala. É o que Habermas sugere: “El acto de habla ha de lograse, há de venir respaldada por normas vigentes, lo cual significa: por el reconocimiento (a lo menos) fáctico de la pretensíon de que tales normas rigen con razón” (HABERMAS. 1989, p. 354.). Escreve no livro Agir comunicativo e razão destranscendentralizada: 113
O entendimento através da linguagem funciona da seguinte maneira: os participantes da interação unem-se através da validade pretendida de suas ações de fala ou tomem consideração os dissensos constatados. Através das ações de fala são levantadas pretensões de validade criticáveis, as quais apontam para um reconhecimento intersubjetivo. A oferta contida num ato de fala adquire força obrigatória quando o falante garante, através de sua pretensão de validez, que está em condições de resgatar essa pretensão, caso seja exigido, empregando o tipo correto de argumentos (HABERMAS, 2002, p. 72). A grande questão posta pelo professor Pizzi é: como Habermas monta a arquitetônica do agir comunicativo? Nisto o professor retomou a um ponto que havia sido posto em debate anteriormente que aborda a questão da ética do ser, da consciência e da linguagem. Trata-se, portanto, do Giro Linguístico, um importante movimento do século XX para a ética e para as ciências em geral. Deste modo se destacou que o giro linguístico é uma maneira de justificarmos as decisões que nós tomamos. A proposta do agir comunicativo é uma resposta, entre muitas outras para enfrentar os grandes problemas enfrentados pela sociedade. Neste sentido é necessário conhecer o conteúdo moral do agir comunicativo para ser criticado. Habermas pretende a superação da filosofia da consciência. Pizzi coloca quatro aspectos sobre a suspeita da filosofia de consciência que pode ser encontrada na filosofia de Habermas. Cf.: (PIZZI, 2005, p. 25 – 34): Primeiro: as filosofias da consciência se movem dentro de uma linguagem monológica, na qual o sujeito sempre tenderá a objetivar e auto objetivar-se. Segundo: tudo fica ligado ao binômio sujeito-objeto. Aqui sempre há um tipo de agir estratégico, instrumental. Neste caso a filosofia se reduz à relação descritiva entre sujeito atomizado e os fatos objetivos do mundo empírico. Terceiro: Observador e observado, no qual ha intervenções ao modo das ciências empíricas. Aqui há a conexão entre os diferentes campos do conhecimento. Quarto: objeto e a validade das proposições. Tipologia do agir – instrumental, estratégico e comunicativo. Concluimos que o Acordo para Habermas equivale ao consenso. No momento da tomada de decisão a comunidade linguistíca necessita de um mínimo de consenso que as decisões tenham pretenções de validade. É o que Habermas nomeia de pragmática universal – a pretenção de validade – como foi dito acima. Por estas razões o acordo necessita de uma comunidade em condições de comunicação através de atos de fala ilocucionários, como escrito acima. A este projeto Habermas dá o nome de Pragmática Universal . "He propuesto el nombre de 'pragmática iniversal' para el programa de investición que tiene por objeto reconstruir la
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base universal de validez del habla" (HABERMAS, 1989, p. 302). Com esta citação finalizamos este tópico destinado à discussão sobre o conceito de Mundo da Vida em Habermas. VI Traçamos neste ponto algumas considerações sobre a leitura do texto: A Imbricação entre Ação e Discurso. Neste trecho o autor coloca em questão a relação entre a ação efetiva das pessoas e o discurso com pretensões de validez do agir comunicativo. Deste modo há uma situação ideal a ser buscada e uma situação real na qual se efetivam os modelos sociais de vivência. Neste caso, é preciso uma complementação entre a ação cotidiana, o mundo da vida, e o discurso pretensamente válido, como aponta Pizzi: “Neste caso, persiste mais que notório o lugar que ocupa o Lebenswelt na ação comunicativa, pois representa esse pano de fundo de evidências de um saber pré-categorial e antepredicaticativo” (PIZZI, 2005, p. 134). Ora, se assim é, os participantes desta “comunidade real de fala” não apenas reproduzem as determinações do contexto sociocultural em que habitam, mas, de maneira incessante procuram renovar o consenso. Sucede que o agir comunicativo está aberto à complexidade das tramas sociais e as estilizações dos modos subjetivos de viver.
Esta
disposição de abertura acontece pelo seu fundo racional que sustenta a interação entre ouvintes e falantes. Registra o autor: “Qualquer modo de vida, por mais simples que seja, “encerra um potencial de racionalidade” (PIZZI, 2005, p. 137). Deste modo fica evidente que o acordo não é estático. A renovação, a reinterpretação do acordo pactuado não é o postulado de um único sujeito que age de forma unilateral. Todavia, eles ocorrem por meio da argumentação racional. Aqui reside a fundamentação universalizável das pretensões de validade do discurso. Trata-se de colocar, por um instante, o mundo da vida “entre parênteses” para trabalhar no plano racional que sempre vai privilegiar a força do melhor argumento. Se fosse de outro modo, os participantes não estariam em condições equitativas, mas haveria relações de poder que coagiriam não em função do melhor argumento, mas em função do argumento mais conveniente. Daí as palavras de Pizzi: “O processo discursivo implica, pois, o abandono temporário das convicções cotidianas e a passagem, então, ao nível da argumentação discursiva” (PIZZI, 2005, p. 143). Portanto, este processo discursivo é o pano de fundo racional que oferece as condições de possibilidade da renovação, reinterpretação, recriação de conceitos, critérios, regras, práticas que são cultivados no mundo da vida. E aí, sela-se, a coadunação entre ação e discurso. Considerações finais O presente texto lidou com as várias faces, problemáticas e conceitos da ética do discurso proposta por Jürgen Habermas. Também abordou de questões delicadas que surgem 115
com as chamadas éticas aplicadas. Um dos conceitos introdutórios é o Ethical Turn – o giro linguístico. Este conceito se refere à virada ética frente às éticas do ser e da consciência que já não são capazes de fundamentar por si só as novas exigências que a ética contemporânea enfrenta. Outra questão importante é o das éticas aplicadas. Segundo as posições de Macintyre, desponta um problema quando se separa a apreensão dos postulados da ética de sua aplicação. Para este autor uma das razões do aparecimento das éticas aplicadas é a discrepância entre teorias éticas e a prática efetiva destas teorias. Adiante, adentramos na questão da pragmática universal, um conceito habermasiano que tem por meta reconstruir as condições universais de um entendimento possível que seja capaz de superar o agir estratégico e repousar no ideal do agir comunicativo. Outro ponto importante para fundamentação da ética habermasiana é o Lebenswelt, conceito colhido de Husserl que se reporta ao mundo da vida. Este ponto releva o mundo sóciohistórico, a cultura como elementos fundamentais para se estabelecer uma comunidade ideal de fala que se refere ao mundo vivido. Nesta mesma linha, é significativo o debate em torno dos atos de fala e a sua pretensão de validez. Aqui há a necessidade de comprometimento entre os autores envolvidos com a veracidade do que se anuncia. Há a necessidade de equivalência de condições entre aquele produz um ato de fala e daquele que ouve. Enfim, foram muitos e importantes os conteúdos trabalhados neste texto. Outros poderiam e deveriam ser retomados, mas por uma questão de espaço concluímos por aqui.
Referências Bibliográficas HABERMAS, JÜRGEN. Agir comunicativo e razão destranscendentralizada. (Trad. Lucia Aragão). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. ____________________. Conhecimento e Interesse (Trad.: José N. Heck). Rio de Janeiro: Zahar, 1982. ____________________. De L’éthique de la discussion. Hunyadi.Paris: Les Éditions Du CERF, 1992 ____________________. Técnica e Ciência como “Ideologia” (Trad.: Arthur Mourão) Lisboa: Edições 70, 2007. ____________________.Teoría de La Accíon Comunicativa: complementos y estúdios prévios. Madrid: Cátedra, 1989. MACINTYRE, Alasdair. ¿La ética aplicada se basa em un error?In.: Razón Pública y éticas aplicadas – los caminos de la razón práctica em una socidad pluralista. Madrid:Tecnos, 2003. PIZZI, Jovino. Ética e Éticas Aplicadas: a reconfiguração do âmbito moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. 116
___________. O Conteúdo Moral do Agir Comunicativo: uma análise sobre os limites do procedimentalismo. São Leopoldo: Unisinos, 2005. ___________. O Mundo da Vida. Husserl e Habermas. Ijuí: Editora Unijuí, 2006.
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Nietzsche e vontade de verdade Vani Letícia Fonseca dos Santos 1 Quando examinamos a trajetória de Nietzsche e sua crítica a moral, suas origens e consequências, diante do homem, nos deparamos com homens que buscaram no pensamento fórmulas para decodificar conceitos, sentimentos e ações, e que acabaram por mostrar à humanidade a face criativa do homem.
Uma das grandes intuições de sua filosofia consiste em considerar a vontade como algo que excede a subsistência, e é esse excesso, aquilo que se joga em afirmação de si, em criações imaginárias, expressividade simbólica, etc., que deve merecer plenamente a atenção da filosofia. Esta é uma linha de pensamento que percorre sua obra, desde seus primeiros escritos sobre a tragédia a grega e a estética da música, até os últimos fragmentos sobre a vontade de poder e o niilismo europeu. (MARQUES, 2003, p. 11)2 Neste mesmo sentido Safranski nos diz:
Mais é precisamente: é a infinita variedade dos impulsos que dá aos conhecimentos os motivos, a energia, a direção e o colorido, que produz o sentimento básico e os secundários, que permite a incorporação, que a adia ou rejeita. Se dessa maneira o impulso da vontade permanece presente no conhecimento, isso significa: a vontade e verdade jamais podem se separar. E assim também o possível conflito entre vida e conhecimento nada seria senão um drama na planície do próprio processo dos impulsos. (SAFRANSKI, 2005, p.219). Desse modo, observamos que a busca pela verdade está atrelada a um instinto e necessidade humanas que fazem parte do processo de formação dos pensamentos. 1 Texto escrito por Vani Letícia Fonseca dos Santos, Mestre pela-Universidade Federal de PelotasUFPEL. e-mail: wanyletty@gmail.com. Palestra proferida na Unipampa-Bagé em 11 de dezembro de 2013. 2 MARQUES, Antônio. A Filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ,2003. O autor em questão aproxima o pensamento de Nietzsche da filosofia transcendental de Kant: “Na verdade, um pressuposto que sustenta toda nossa argumentação é a convicção de que o perspectivismo de Nietzsche representa o desenvolvimento da dimensão transcendental da pesquisa filosófica, particularmente o desenvolvimento da filosofia transcendental de Kant”(p.10) – Neste sentido não nos aproximamos muito das concepções de Marques, no entanto, suas considerações acerca da questão da verdade e vontade; bem como, outras análises a respeito da filosofia perspectivista nietzschiana, contribuem para a produção de nosso trabalho. 118
Consequentemente admitimos que os resultados advindos desse processo (como conceitos e juízos, por exemplo) são o reflexo de uma luta travada no interior do indivíduo a fim de promover uma dominação pela estabilidade determinada e nominada como verdade. O civilizar é um processo onde o criar se estabelece como fonte de toda e qualquer ação humana. Encontramos exemplos históricos como o platonismo e o cristianismo, para citarmos apenas alguns. Através do platonismo e sua concepção de dois mundos, o sensível e o inteligível, sendo o último, o mundo veraz; temos uma das mais profícuas fontes do “conhecimento metafísico”, e com a tese de Platão o mundo sensível ou das aparências acabara por tornar-se (por séculos), como aquele do qual não poderíamos obter qualquer vestígio de confiança e verdade. A mácula implantada por Platão (na perspectiva de Nietzsche) obteve no cristianismo uma das mais fortes fontes de propagação da ideia de que nossa sensibilidade deve ser gerida por algo maior e confiável. Porém com o cristianismo passamos não só a vangloriar um mundo de ideias, mas um Deus ao qual devemos não só reverência como o gerenciamento de nossas vidas e pensamentos. Por uma fórmula ou outra, não somos nós quem criamos, mas apenas aqueles que de “algum” modo descobrem onde está a verdade. Nietzsche nos diz que com o tempo o homem-artista, prefere a condição de cientista e no lugar do criar enaltece os atos de “descoberta”. E assim, a cada teoria ou fórmula é creditada a verdade da descoberta; pela alcunha de ciência, passamos a conhecer o mundo “real”. Grandes pensadores dos mais variados períodos, protegiam-se sob o véu da imparcialidade, para garantir a veracidade de suas teses. Desse modo o mundo a nossa volta não é apenas “representação”, a qual nossos olhos atingem, mas, é a “exata” condição em que nos encontramos. Nosso filósofo desconfia desse sistema tão veraz. Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimento existem valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida. Por exemplo, que o determinado tenha mais valor que o determinado, a aparência menos valor que a „verdade‟: tais avaliações poderiam, não obstante a sua importância reguladora para nós, ser apenas avaliações-defachada, um determinado tipo de niaiserie [tolice], tal como poder necessário justamente para a preservação de seres como nós. Supondo, claro, que não seja precisamente o homem a „medida de todas as coisas‟. (NIETZSCHE, 2005, p.11)
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E ainda Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas, por isso, além do bem e do mal. (NIETZSCHE, 2005, p.11) E mais uma vez, Nietzsche acaba por denunciar o quanto de imoralidade pode haver quando nos protegemos sob a tutela da moral. A omissão da intenção daqueles que buscam a verdade acaba de certa forma, por tornar todo o sistema, menos crível; afinal, por melhores que sejam os propósitos de nossos geradores de verdades, suas investidas nessa busca possuem sempre raízes de cunho pessoal , isto é, suas vontades. Quando trabalhamos com o pensamento do filósofo de Sils-Maria, há justamente aqui um grande diferencial, pois este faz questão de comprometer-se com o que diz. Seus pensamentos buscam aqueles que queiram compreende-lo, sem, no entanto, demonstrar o quanto de pessoal encontra-se ali. Nietzsche sabe que toda questão referente a valor, possui um aspecto relacionada ao quem avalia e o por que o faz. Se em um dado momento de nossa história foi necessário que se estabelecessem verdades, para que a mesma pudesse “progredir” de alguma maneira, isso não significa necessariamente um problema. No entanto, o problema surge justamente do negar essa busca e os aspectos intrínsecos a ela. O proferir uma verdade tem um peso divinal! Quando alguém passa a ser designado como descobridor de uma verdade, suas palavras ganham notoriedade e legalidade. E assim, um “veraz”, é alguém no qual podemos depositar nossa “fé” e “crer”. A vaidade em tal procedimento não é sequer imaginada. O ser que descobre que desvela, não pode compartilhar de sentimentos menores; é ele, portanto, um refletor moral. Mentor de ideias que não tem vontade de nada. Mas não foi a vontade nele que o compeliu a busca da verdade? Seria possível que um ser estéril produzisse pensamentos? Até então, o valor da verdade vigia como um dado natural, uma certeza absoluta, definitiva. A pergunta de Nietzsche visa transformar essa evidência em problema: dado que queremos a verdade, por que não, antes, a não verdade? Qual a vontade que institui a verdade como valor absoluto? Quem prefere a verdade, o que (em nós) prefere a verdade ao erro, ao engano, à ilusão? Essa pergunta nos remete diretamente à origem da vontade de verdade. (...)Com isso, a consciência filosófica descobre que, como todo valor, a verdade pressupõe uma instância de avaliação. Pressupõe essa instância de determinação, então isso 120
significa que a verdade a todo preço, o incondicionado na verdade é fachada, superfície. (GIACOIA, 2005, p. 17)3 Buscamos verdades, por interesse pessoal ou coletivo. Isso significa que essa necessidade de se atingir patamares de verdade é indubitavelmente um produto da nossa capacidade de almejar coisas e perpetuar outras, de acordo com nossas finalidades. E nesse sentido, citamos uma passagem muito significativa de Crepúsculo dos Ídolos, onde Nietzsche lança seu martelo sobre os pensadores que de alguma forma perpetuaram uma postura de exaltação a “verdade”, ainda que nitidamente forjada por eles mesmos. Tudo o que os filósofos manejaram por milênios, foram conceitos-múmias; nada realmente vivo saiu de suas mãos. Eles matam, eles empalham quando adoram, esses idólatras de conceitos – tornam-se um perigo mortal para todos, quando adoram. A morte, a mudança, a idade, assim como a procriação e o crescimento, são para eles objeções – até mesmo refutações. O que é não se torna; o que se torna não é...Agora todos eles crêem, com desespero até, no ser. Mas, como dele não se apoderam, buscam os motivos pelos quais lhe é negado. „Deve haver uma aparência, um engano, que nos impede de perceber o ser: onde está o enganador?‟ – „Já o temos‟, gritam felizes, „é a sensualidade! Esses sentidos, já tão imorais em outros aspectos, enganam-nos acerca do verdadeiro mundo. Moral: desembaraçar-se do engano dos sentidos, do vir-a-ser, da história, da mentira – história não é senão crença nos sentidos, crença na mentira. Moral: dizer não a tudo o que crê nos sentidos, a todo o resto da humanidade: tudo isso é „povo‟. Ser filósofo, ser múmia, representar o „monotonoteísmo‟ com mímica do coveiro! – E, sobretudo, fora com o corpo, essa deplorável idée fixe dos sentidos! acometido de todos os erros da lógica, refutado, até mesmo impossível, embora insolente o bastante para portar-se como se fosse real!... (NIETZSCHE, 2006, p. 25). Entrelaçada a vontade de verdade encontra-se justamente uma opção pela racionalidade. Essa característica, tão enaltecida como um traço distinto da humanidade junto aos demais seres é sem sombra de dúvida uma chave que abre diversas portas aos homens, no entanto, não é a única, ou talvez fosse melhor dizer – não trabalha sozinha nesse intento. Todavia, mesmo sendo capazes de reconhecer que nosso corpo – caixa da 3
Entendemos essa “superfície”, não como algo apenas “aparente”, mas como um aspecto que se apresenta aos indivíduos obscurecendo outros dados relativos aos indivíduos e que ao mesmo tempo nos possibilita essa avaliação justamente por ter um sentido, agora, desvelado por Nietzsche. A verdade poderia ser entendida mais como uma máscara representativa, de como os sujeitos desejam ser vistos. 121
razão – a comporte, nos recusamos a olhar para o mesmo como uma via possível de entendimento do mundo ao qual pertencemos. Os sentidos podem nos enganar, o mundo a nossa volta pode nos preparar armadilhas! Em contrapartida, podemos confiar plenamente em dados acrescidos por nós de modo apenas intelectual?4 Pertencemos a esse mundo sensível e ao mesmo tempo projetamos nossas observações sobre ele. Nós falamos por ele. Nesse caso, observamos que por maiores que sejam as críticas que Nietzsche faz a racionalidade, não o faz por mero capricho, mas pela observação de que a recusa aos sentidos acaba por tornar-se um problema, já que denota a covardia de encararmos toda vontade que reside em optar por apenas um caminho. Ademais, essa opção é feita de modo “altruísta” pelos pensadores, algo inconcebível na visão nietzschiana.
...Mas esta é uma antiga, eterna história: o que ocorreu então aos estóicos sucede ainda hoje, tão logo uma filosofia começa a acreditar em si mesma. Ela sempre cria o mundo à sua imagem em si mesma. Ela sempre cria o mundo à sua imagem, não consegue evitá-lo; a filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a mais espiritual „vontade de poder‟, de „criação do mundo‟, de „causa prima‟ [causa primeira].( NIETZSCHE, 2005, p.15).5 Quando analisamos junto a Nietzsche, a problemática envolvendo a questão da verdade percebemos uma aproximação que poderia por muitos ser vista como algo anômalo – a metafísica, descrita e reverenciada na filosofia – com o cristianismo. Na figura do filósofo, há aspectos sacerdotais, no que tange a postura diante do conhecimento; ele impõe-se uma necessidade de atingir o inatingível (no caso a verdade) e o reveste de um domínio próprio daqueles que “podem” dizer que sua “descoberta” é adequada, vide os meios utilizados para tanto. Porém, essa saga leva-nos apenas a identificar nessa espécie de pensador – a fé. A mesma fé que conduz um religioso a olhar o mundo a sua volta e identificá-lo como “impuro” ou “terreno” e que 4
A crítica ao racionalismo deriva justamente desse enaltecimento de uma opção pelo dizer que a verdade provém de uma razão “acima” do mundo e do “corpo” em que está inserida. É como se passássemos a entender que a categoria da verdade, bem como outras, não fossem resultado de uma razão pura, mas de uma vontade que tem origem no indivíduo como um todo. Como podemos desconfiar da capacidade que justamente nos permite um contato e entendimento do mundo (o conjunto de nosso intelecto e sentidos)? 5 A vontade de poder aparece aqui justamente como um sinônimo de conhecimento e criação do mesmo. Sendo assim, essa vontade desse poder tornaria os filósofos seres tirânicos, já que, os mesmos buscam validar seus pensamentos e também fazer com que os mesmos se tornem nortes para os indivíduos de modo geral. 122
após a morte encontraremos de fato o “verdadeiro mundo” do qual faremos parte. Nas palavras de Clademir Araldi:
A vontade de verdade, ou a ambição metafísica de certeza, tem sua gênese já em Sócrates e Platão, mas é no cristianismo que ela desdobra a amplitude de seu sentido e de seu caráter problemático e ambígüo. A vontade de verdade, que nasce da moral cristã, volta-se contra a moral, contra a necessidade de mentira e falsificação do mundo que ela comporta. (ARALDI, 1998, p.75-94)6 O inefável passa a ser expresso de modo tão contundente que quase podemos tocá-lo. A vontade pela verdade passa a ser uma ambição coletiva (ou talvez sempre o tenha sido), no entanto, os sujeitos responsáveis por esse aperfeiçoamento e busca, não exprimem de modo concreto que “sim” – são eles quem decodificam e modificam os conceitos tratados como verdades. Se a necessidade por critérios de convivência, nos fez pensadores, o papel de legislador é rechaçado por nós. A produção de conhecimento parece ser um papel menos nobre, ou aquém da “realidade” na qual está inserida. Michel Foucault (um notório estudioso de Nietzsche) vislumbra o eco dessa tarefa permanente a que o homem se impõe.
A verdade é deste mundo (grifo nosso); ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua „política geral‟ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 1979, p.12)7 6
Um dos aspectos que fazem com que Nietzsche lance sua crítica contra o cristianismo reside justamente em uma das suas maiores características: determinação cabal do modo de como “devemos viver”, quando a mesma nega o como “podemos viver”. O conhecimento divulgado pela moral cristã, diz como as coisas “são” e impinge ao homem a “culpa” se o mesmo se desviar dessas determinações. O conflito interno gerado por esse gerenciamento impede o homem de ver-se por inteiro e como um ser capaz de criar e mentir para si e sobre tudo. 7 Foucault analisa a questão da verdade, justamente, sob a luz do “poder”. Esse poder que perpassa todas as relações, na visão foucaultiana, lança-se sobre os discursos com os quais convivemos. Não muito diferente de Nietzsche, porém, para Foucault não há um processo hierárquico nesse fluxo de poderes (o poder influência diferentes relações e em áreas distintas também); o que como veremos para Nietzsche influência não só nas relações como no modo como nossos valores são dispostos. 123
Esse desvelamento do processo em que se dá essa necessária corrida pela verdade, possui um desdobramento de extrema importância na análise nietzschiana; essa vontade de verdade acaba por denotar uma vontade mais primordial no homem – a vontade de poder (assunto esse que trabalharemos mais especificamente nos próximos capítulos). Quando Nietzsche questiona essa ânsia por apontarmos verdades, acaba por dissecar uma parte importante de todo o sistema moralizante, e que havia se mantido obscura por muito tempo: o quem está por trás da verdade e por que. Pode parecer-nos um tanto óbvio, que ao promovermos alguma espécie de estudo, nos questionemos pelas origens e fatores que levaram a obtenção dos dados relacionados ao que analisamos; contudo, por muito tempo essas origens não foram questionadas. Assim sendo, parece-nos que a verdade seria como que um argumento de autoridade; dando ao seu proferidor a possibilidade de estabelecer uma série de regras ou critérios de acordo com seus pensamentos. E Nietzsche assim não o faz? Nosso pensador, não pode ser acusado de tal posicionamento, visto que, ele parte do questionamento desta “posição de garante” assumida pelos filósofos de seu tempo e mesmo anteriores; e ainda, assume que parte de um perspectivismo muito peculiar e adequada a “sua” proposta de crítica. Nas palavras de Deleuze:
Nietzsche procura o que é que a verdade significa como conceito, quais forças e que vontade qualificadas este conceito pressupõe por direito. Nietzsche não critica as falsas pretensões à verdade, mas a própria verdade e como ideal. (DELEUZE, Nietzsche e a Filosofia, P. 143) Ao questionar a vontade de verdade, Nietzsche quer interromper um procedimento onde impera certa mística em torno da verdade – como “a” verdade – dada por descoberta. E se rompemos com esse modo de proceder, nos abrimos à possibilidade de verificar que podemos procurar novas vias, ainda que desconhecidas e menos “seguras”. A procura pelo conhecimento não é negada por Nietzsche, tanto, que ele a faz; contudo, não quer utilizar de uma matéria já deteriorada e que aos seus olhos é nefasta, pela sua própria forma de constituição. Nosso filósofo assim como tantos outros, quer atingir algo possível de ser atribuído como veraz, desde que não se parta dessa premissa para assim o alcançar. Pois, como nos relata Deleuze:
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Neste sentido nós também, somos os „verídicos‟ ou „os que procuramos conhecimento‟. Mas não substituímos o ideal ascético, não deixamos subsistir absolutamente nada do próprio lugar, queremos queimar o lugar, pretendemos um outro ideal num outro lugar, uma outra maneira de conhecer, um outro conceito de verdade, quer dizer, uma verdade que não se pressupõe numa vontade do verdadeiro, mas supõe uma vontade outra. (DELEUZE, Nietzsche e a Filosofia, p.149).8 Assim, detrás da verdade, encontramos não um mundo transcendente e nem mesmo um deus, mas o próprio homem. Uma explicação mais singular e nem por isso menos fantástica. Mais humana certamente. O que de fato pode assustar o bicho homem, quando se vê apenas como mais um animal entre tantos outros; dotado de razão sem dúvida, porém, ainda detentor de instintos. A segurança proporcionada por verdades sejam elas quais forem, acabam por colocar o homem em uma situação de menor apreensão diante de si mesmo. Esse controle que se exerce através de verdades, torna o mundo real, possível de ser suportado. Ainda que nossos sentidos nos enganem, sim, são possíveis certezas! Nesse sentido a vontade que se origina no homem e busca pela verdade é um grande fator psicológico e fisiológico. É ela, um movimento intenso que produz no homem uma força criativa; que, no entanto, a mesma passa posteriormente a fraqueza, afinal, deixa de ser vista como tal e mais ainda é negada. Seguindo a análise exposta por essa trajetória, percebemos, que mais do que uma crítica a pensamentos atrelados a um sistema dogmatizador, o que acaba se destacando sempre na concepção nietzschiana é o indivíduo que permite que essas ideias avancem e o porquê disso. O que queremos com nossas verdades? Segurança? Proteção? Domesticação? A intencionalidade de nossos atos é possivelmente um alicerce para todo o sistema moral criticado por Nietzsche. Não, ele não está querendo responsabilizar o homem, por seu feito – pois este já o é, a partir do momento em que Nietzsche propõe o questionamento da moral – mas disponibilizar aqueles que forem capazes de compreendê-lo, um caminho menos tortuoso e que respeite a integridade humana (mente e corpo). Poderíamos afirmar que o pensador de Sils-Maria almeja a verdade e que em muitos momentos ele parece identificar-se como o único a dizê-la. Porém, por maiores que sejam as pretensões nietzschianas, ele sempre as analisa pela 8
Deleuze nos demonstra aqui, uma das vias para absolvermos Nietzsche de uma das acusações que envolvem seu nome: Se ele não acreditava em verdades, como pretendia dizer que suas idéias eram corretas? A vontade de Nietzsche sempre transcorre suas obras, em muitos momentos nosso pensador a transcreve literalmente e nisso reside um aspecto o diferencial. Ao mesmo tempo, o pensador de Sils Maria deixa claro que sua filosofia é perspectivista e nesse sentido ela é mais uma perspectiva. 125
ótica perspectivista, e portanto, não introjeta em sua filosofia o caráter dogmático que tanto combate abertamente.
A originalidade e a importância da filosofia de Nietzsche é ter compreendido que a crítica da ciência só pode ser eficazmente realizada como questionamento da vontade de verdade, o que significa situar-se do ponto de vista da vontade de potência. Se a questão do conhecimento não pode ser elucidada limitando-se a seu interior é porque na base do conhecimento está a vontade e porque a vontade de verdade expressa sempre um determinado tipo de vontade de potência. (MACHADO, 1999, p.75)9 A vontade de verdade é apenas vontade, buscando se instituir como verdade. A partir do momento que ela favorece o surgimento de movimentos como o da metafísica e o da moral, temos uma forma imoral de promulgar a moral; afinal, não é a moral por ela mesma, mas a moral por outros fins não explicitados. Diferente desse comportamento usual, Nietzsche, demonstra em suas obras de modo contundente sua vontade, a mesma perpassa seus escritos e afronta com essa “verdade” incomoda aqueles que durante tanto tempo (quando não omitiram) negaram haver pessoalidade envolvida na produção do conhecimento. Conhecimento esse que permitiu a conservação humana, mas não seu pleno desenvolvimento. O campo do saber acaba por denotar que mesmo uma área pretensamente imaculada por vontades ou avaliações morais, não escapa a proposta moral vigente.
Mesmo que a ciência critique a religião como dogma, essa crítica ainda está situada no terreno de seus valores, ainda é a conseqüência e a expressão mais atual de sua moral, pois é a própria vontade de verdade – como se sabe, a essência do ideal ascético – que, se aperfeiçoando, proíbe a „mentira da crença em Deus(GM,III,§27). (MACHADO, 1999,p.79). A possibilidade de construção de “verdades” aponta-nos para as condições sob as quais essas verdades surgem; ou seja, quais seriam os valores que possibilitariam que tomássemos certos critérios como os verdadeiros. Assim sendo, Nietzsche não critica apenas a vontade de verdade, mas todos os seus afluentes como os valores eternos e 9
O diferencial de Nietzsche é observar que a ciência não é um campo desprovido de interesses. A neutralidade científica não é vislumbrada por ele. Todo o cientista, assim como todo filósofo, marca suas descobertas com suas características e crenças. Os pensamentos e teses não são reflexos de um conhecimento imparcial, mas frutos de uma vontade que de alguma forma os “buscou”. 126
imutáveis, sob os quais não sonharíamos nunca em questionar. A filosofia crítica de nosso filósofo avança, assim, sobre o modo como avaliamos e em última instância sobre nós mesmos. Poderíamos nos perguntar então: Nietzsche não acredita no homem? Nietzsche desconfia do homem, justamente pelo modo como esse passou a encarar a si e suas vontades. A necessidade de uma verdade transcendental é evocada no homem, pela desconfiança que sua natureza mutável imprime no mesmo.
De sua parte, Nietzsche considera que a vontade de verdade somente desempenha um papel enquanto instrumento de acomodação do mundo a propósitos utilitários, enquanto produtora de ficções e fórmulas simplificadoras da complexidade caótica de impressões que permeiam os seres orgânicos, facilitando a preservação e crescimento de determinada espécie animal: “A verdade é este tipo de erro sem o qual uma certa espécie de seres viventes não poderia viver” (XI, 34 (253) (ONATE, 1996, p.07-32) E por isso o pensador de Sils Maria irrompe contra essa verdade que se busca, pois a mesma não pode ser chamada de verdade, nascida de um processo negatório e que apenas dá ao homem uma possibilidade de viver; negando aspectos seus que não consegue entender, ou talvez, conter. Os pensadores de um modo geral deveriam ser os primeiros a voltarem seus olhos para esse aspecto, afinal, o conceito que se entende por verdade carrega em si o signo do que é “real”, “exato”, “sincero”, “certo”. A verdade com a qual nos habituamos é apenas uma condição que traz “em si”, a eleição de certos valores para favorecer a sobrevivência, e na perspectiva nietzschiana, cercear a vida. Nietzsche exalta nossa vontade, pois, vê na mesma a chave para compreendermos que:
O conhecimento não é „imaculado‟: não se realiza libertando-se dos afetos, dos desejos, das paixões, das emoções, da vontade; na base do conhecimento se encontra a perspectiva da vida definida como vontade de potência, conceito que quando é produzido é, em geral, assimilado ao de instinto. (MACHADO, 1999, p. 95) O homem pretende dominar e para tanto sua natureza “cria” e “interpreta” o mundo a sua volta de acordo com sua vontade; e é essa interpretação o caminho com o qual nos deparamos com a instituição da verdade. Para Nietzsche,portanto, estamos 127
diante de um quadro de múltiplas interpretações de diferentes vontades, onde cada uma delas busca sua auto-afirmação; e isto, pode ser identificado justamente nas avaliações e posicionamentos que conseguem prevalecer nessa luta dos instintos. Sendo assim, a vontade de verdade que quer ser sinônimo de conhecer, é, de fato, vontade de poder.
As categorias da verdade, da moral ou da religião não são e nunca foram purismo da razão, mas sim imposições de uma vontade de poder (grifo nosso). Esta situação não é terminal, não representa o fim de um processo, mas, pelo contrário, continua, ainda que agora com uma dinâmica que já consciencializou o elemento ilusório. (...) O perspectivismo explora, talvez pela primeira vez de forma sistemática na história da filosofia ocidental, a relação entre conhecer e poder, tema familiar ao século XX. Os filósofos não deixam de perseguir a verdade, mas , no futuro, será ingênua tarefa pretender construir mundos fechados de conhecimento puro. (MARQUES, 2003, p. 12 e 13) Nesse processo de “des”coberta, Nietzsche mostra-nos que há um circular no qual estamos inseridos: a busca pelo verdadeiro, que nos lança a crenças metafísicas, que finalmente possibilitam que valores sejam cunhados para fundamentar uma moral. O filósofo promove um desvelamento necessário para encararmos nossas verdades como produtos nem distantes e nem menos humanos do que aqueles que as decodificam, nomeiam e decretam como tais; mas como parte de um processo onde verdade e poder são fragmentos de algo que negamos, mas que nos torna quem somos - nossa vontade de poder. Referências Bibliográficas ARALDI, Clademir Luís. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche. cadernos Nietzsche 5, São Paulo. p. 75-94, 1998 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro. Ed. RIO, 1975. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. (org. e trad. Roberto Machado) Rio de Janeiro: Edições Graal,1979.
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GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche e Para Além de Bem e Mal. 2ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. São Paulo. Ed. Paz e Terra, 1999 MARQUES, Antônio. A Filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Trad., notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. (A) ______________________. Crepúsculo dos Ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. Trad., notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,2006. ONATE, Alberto Marcos. Vontade de verdade uma abordagem genealógica. cadernos Nietzsche 1, São Paulo. p. 07-32, 1996. SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche, biografia de uma tragédia. Trad. Lya L. Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2005.
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Capa do Livro: "A Escola de Atenas" afresco de Raffaello Sanzio (1506-1510). Palรกcio Apostรณlico, Vaticano.