O pensamento de Michel Foucault

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O pensamento de Michel Foucault Elvira Maciel DEMQS/ENSP/FIOCRUZ elviramaciel@ensp.fiocruz.br


A dimensão histórica da epistemologia francesa 

Objetivo da epistemologia: avaliar a ciência do ponto de vista de sua cientificidade.

Especificidade da epistemologia francesa: identificação entre a reflexão filosófica com uma análise histórica das ciências.

Representantes: Cavaillés, Bachelard, Koyré, Canguilhem


Foucault com relação à história das ciências: a arqueologia do saber 

A impossibilidade da formulação de um racionalismo geral RACIONALISMO REGIONAL

BACHELARD: física, química

FOUCAULT: saberes sobre o homem –

Ciências da Natureza

Arqueologia

CANGUILHEM: biologia, anatomia e fisiologia Ciências da Vida


Foucault com relação à história das ciências: a arqueologia do saber Epistemologia X Arqueologia: A arqueologia pretende ser uma crítica da própria idéia de racionalidade, abandonando a questão da cientificidade e de progresso da razão.

Método arqueológico: análise conceitual dos discursos


Foucault com relação à história das ciências: a arqueologia do saber 

Trajeto da arqueologia: Valorização das propriedades intrínsecas dos objetos estudados: psiquiatria, medicina. Arqueologia da percepção ou arqueologia do olhar

História da loucura (1961), O nascimento da Clínica (1963)


Foucault com relação à história das ciências: a arqueologia do saber 

Trajeto da arqueologia:

Ampliação do âmbito da análise que não se limita mais a uma região e formulação de seu objeto em nível anterior ao da história epistemológica. Arqueologia do saber

As palavras e as coisas (1967)


A história epistemológica de Georges Canguilhem

Temática: as “ciências da vida”; trata-se de uma filosofia das ciências da vida.

A filosofia de Canguilhem é uma epistemologia regional.

Metodologia:  o conceito  a descontinuidade  a recorrência


A história epistemológica de Georges Canguilhem  

O conceito A história não deve ser descritiva, mas crítica.

A ciência se relaciona intrinsecamente com a verdade; cada ciência produz sua verdade.

É a formação do conceito que define a racionalidade do discurso.

Uma teoria é um “feixe” de conceitos, um sistema conceitual.


A história epistemológica de Georges Canguilhem 1 

O conceitos não conhecem fronteiras epistemológicas. REGULAÇÃO

mecânica

biologia

cibernética


A hist贸ria epistemol贸gica de Georges Canguilhem fisiologia NORMAL patologia

cl铆nica

sociologia


A história epistemológica de Georges Canguilhem biologia CÉLULA física

teoria social


A hist贸ria epistemol贸gica de Georges Canguilhem fisiologia biologia MEIO f铆sica

geografia

psicologia


A história epistemológica de Georges Canguilhem 2 

O progresso é uma característica essencial da ciência e ocorre na relação entre o erro e a verdade. A natureza do progresso científico define-se pela descontinuidade que ocorre durante o processo que leva ao nascimento de um conceito.

A crítica do precursor:  identidade da questão e da intenção da pesquisa;  identidade do sistema de conceito no qual os precedentes adquirem sentido;  as rupturas segundo Bachelard e a ruptura segundo Canguilhem: de Descartes a Willis, a retificação do conceito de reflexo.


A história epistemológica de Georges Canguilhem 3 A história das ciências é normativa: seu objetivo é julgar a ciência ou, mais especificamente, seu passado. 

A epistemologia regional estabelece os critérios segundo os quais a história julga a ciência, mas não produz os critérios de cientificidade: ela os explicita. Canguilhem nomeia esta propriedade da história epistemológica, a avaliação da ciência a partir da atualidade da lógica interna dos sistemas conceituais - de recorrência.


A história arqueológica de Michel Foucault: a História da loucura

“Se pode ser considerada um método, a arqueologia caracteriza-se pela variação constante de seus princípios, pela permanente redefinição de seus objetivos, pela mudança no sistema de argumentação que a legitima ou justifica.” Machado, 1982


A história da loucura (1961) “A partir do século XV a face da loucura assombrou a imaginação do homem ocidental.”

A Nau dos Loucos Hyeronimus Bosch (século XV)


A história da loucura (1961) - Renascimento 

Em Brant (1497) e Erasmo (1509), a loucura “desemboca num universo inteiramente moral. O Mal não é o castigo ou o fim dos tempos, mas apenas erro e defeito (...), tudo que o próprio homem pôde inventar como irregularidades de conduta. No domínio da expressão da literatura e da filosofia, a experiência da loucura, no século XV, assume sobretudo o aspecto de uma sátira moral.” M .Foucault

A experiência trágica e a consciência crítica



A história da loucura (1961) – a experiência clássica da loucura

Descartes (século XVII): Eu, que penso, não posso estar louco. A loucura é a condição de impossibilidade do pensamento.


A história da loucura (1961) – a experiência clássica da loucura 

Final do século XVI – século XVII: prevalece, na experiência da loucura, a consciência crítica. 1. A loucura deixa de ter uma existência absoluta na noite do mundo e torna-se uma forma relativa à razão. 2. A loucura torna-se uma das próprias formas da razão. A loucura só tem sentido e valor no campo da razão. 3. A prática do internamento designa o modo pelo qual a loucura é percebida e vivida pela era clássica. 4. Dessacralização da loucura e da miséria e aproximação de ambas no que diz respeito aos discursos e às práticas.


A história da loucura (1961) – o século XVIII 

De mal-estar da sociedade a doença da natureza. A cumplicidade entre a medicina e a moral: Durante 150 anos, os doentes venéreos vão ficar lado a lado com os insanos no espaço de uma mesma prisão. Doravante, novas relações se instauram entre o amor e o desatino.

O internamento foi colocado pela monarquia absoluta à disposição da família burguesa.

Os costumes do internamento traem também a presença de outro agrupamento: o de todas as categorias da profanação.


A história da loucura (1961)-séculosXVII-XVIII SAGRADO x PROFANO – século XVI Impiedade, blasfêmia, profanação, heresia

MORALIDADE (ordem) x IMORALIDADE (desordem) séculos XVII e XVIII condenação ética do erro, do desatino

SANIDADE (normalidade) x INSANIDADE (patologia) – século XIX transformação dos interditos em neuroses


A história da loucura – Idade Clássica INERNAMENTO = REFORMA MORAL

do ERRO à VERDADE, da libertinagem ao uso da razão

A experiência clássica encontra a loucura em um mundo social.


“Experiências da loucura” Séculos XVII –XVIII- Internamento – “FUROR”: região indiferenciada da desordem da conduta, dos costumes e do espírito (devassidão, libertinagem, perda da razão/alienados)

A loucura é desconhecida como doença, mas percebida sob outra perspectiva.

“Os cuidados médicos são enxertados à prática do internamento a fim de prevenir alguns de seus efeitos; não constituem nem o sentido, nem o projeto do internamento.” H.L.,1987:115


Experiências da loucura: Sujeito de direito (análise jurídica) ou homem social (parecer médico)? “É possível interrogar as condutas humanas e determinar em que medida se pode atribuí-las à loucura. (...) Cabe ao médico descobrir as marcas indubitáveis da verdade.” H.L.,1987:126

“Os parentes mais próximos têm maior valor para fazer valer queixas ou apreensões no memorial em que pedem o internamento.” H.L.,1987:128


História da loucura – as duas experiências da alienação na Idade Clássica 

A limitação da subjetividade – cerceamento da liberdade, interdição pelo Outro. DETERMINISMO DA DOENÇA

Tomada de consciência através da qual o louco é reconhecido pela sociedade como o Outro. CONDENAÇÃO ÉTICA


Don Quixote, imprisoned in a cage, being returned to his village by the priest and the barber


Charenton


“No começo do século XIX, deixar-se-á que Sade morra em Charenton.” H.L.:137


“A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conhecimentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia restaurado com o desatino; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica mas, contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo da animalidade.” HL:162



História da loucura – a Modernidade

O conhecimento da doença deve fazer, antes de mais nada, o inventário de tudo o que existe de mais manifesto na percepção, de mais evidente na verdade. HL:189


História da loucura – o “jardim das espécies”

A grande preocupação classificadores no século XVIII é animada por uma constante metáfora que tem a amplitude e a obstinação de um mito: a transferência das desordens da doença para a ordem da vegetação. HL:190


WEICKART (1790) – I. Doenças do Espírito 1. Fraqueza da imaginação 2. Vivacidade da imaginação 3. Falta de atenção 4. Reflexão obstinada e persistente 5. Ausência de memória 6. Erros de juízo

7. Estupidez, lentidão do espírito 8. Vivacidade extravagante e instabilidade do espírito

9.Delírio


WEICKART (1790) – II. Doenças do sentimento 1. Excitação: orgulho, cólera, fanatismo, erotomania, etc. 2. Depressão: tristeza, inveja, suicídio, “doença da corte”, etc.


Experiências da loucura: a “transcendência do delírio” “A alma não está suficientemente comprometida na loucura para pecar nela. (...) A alma dos loucos não é louca.” HL:210 Formas da loucura:

 A negatividade da loucura que se manifesta como desatino ou demência (ausência da alma e da razão).  Mania e melancolia: estrutura de percepção organizada e sintomas com valor significativo.  Histeria e hipocondria: doenças dos nervos ou do espírito?


A medicina e a loucura “Ainda existe, ao final do século XVIII, todo um corpus técnico da cura que nem os médicos nem a medicina nunca controlaram, por pertencer totalmente a empíricos fiéis a suas receitas, números e símbolos.” Século XIX: as formas “modernas” do desatino. O desatino não está fora da razão, mas nela, possuído por ela. A noção de loucura isola-se do desatino e forma-se no interior de uma consciência histórica e, mais tarde, recebe um sentido numa moral social.


A medicina e a loucura: do desatino à loucura Enquanto o desatino se absorve assim no indiferenciado, não conservando mais que um obscuro poder de encantamento (...) a loucura, pelo contrário, tende a especificar-se na própria medida em que o destino de retira e se desfaz no contínuo.O desatino torna-se cada vez mais um simples poder de fascinação; a loucura, pelo contrário, se instala como objeto de percepção. (...) Os loucos são diferentes de um para outro, escondendo mal, sob o manto de desatino que os envolve, o segredo da paradoxais espécies. HL:386


A medicina e a loucura: do desatino à loucura

Século XVIII: Criação de casas destinadas exclusivamente aos loucos que, no entanto, precede amplamente a noção de que os loucos eram doentes que deveriam ser tratados; a classe médica exerce, no máximo, um papel descritivo, diagnóstico.

PERCEPÇÃO ASILAR

x

ANALÍTICA CLÍNICA


Do internamento do século XVIII ao asilo do século XIX 

A partir do final do século XVIII surge uma consciência política do escândalo que representava o internamento e tem início a diferenciação da percepção da loucura.

Reabilitação da pobreza e definição do espaço do internamento como próprio da loucura e dos infratores.

Durante a Revolução: necessidade de determinação de um espaço social para a loucura que não o internamento.


A medicalização da loucura: o surgimento da doença mental

O internamento do louco deverá ser o negativo da exclusão, mas deverá se dar em um espaço adaptado e reservado à loucura, incluindo a assistência médica e uma espécie de “liberdade reclusa” como abertura para o mundo positivo da cura.


Da casa de internamento ao asilo Alteração de suas significações sociais Crítica política da repressão

REESTRUTURAÇÃO INTERNA DO ESPAÇO DO INTERNAMENTO

Crítica econômica da assistência Apropriação de todo o campo do internamento pela loucura

RECONHECIMENTO DO VALOR TERAPÊUTICO DO INTERNAMENTO: a medicina apossa-se do asilo


O funcionamento do asilo I

Quando um louco é levado para um lugar de detenção, sem perda de tempo será observado sob todos os

aspectos, submetido a exame por oficiais de saúde, vigiado por pessoas da polícia das mais inteligentes e mais habituadas a observar a loucura em todas as suas verdades. HL:436


O funcionamento do asilo II A justiça que imperará no asilo não será mais a da punição, mas a da verdade (...) Há toda uma dedução conceitual da camisa-de-força que mostra que na loucura não se faz mais a experiência, de um confronto absoluto entre a razão e o desatino, mas a de um jogo

sempre relativo, sempre móvel, entre a liberdade e seus limites. HL:436


Formas de liberação

Estruturas de proteção

Supressão de um internamento que confunde a loucura com todas as outras formas do desatino.

Designação, para a loucura, de um internamento que não é mais terra de exclusão, porém lugar privilegiado onde ela deve encontrar sua verdade.

Constituição de um asilo cujo único objetivo é de caráter médico.

Captação da loucura por um espaço intransponível que deve ser ao mesmo tempo lugar de manifestação e espaço de cura.


Formas de liberação Aquisição, pela loucura, do direito de exprimir-se, de ser ouvida, de falar em seu próprio nome.

Estruturas de proteção Elaboração ao redor e acima da loucura de uma espécie de sujeito absoluto que é totalmente um olhar, e que lhe confere um estatuto de objeto puro.

Introdução da loucura no sujeito psicológico como verdade cotidiana da paixão, da violência e do crime.

Inserção da loucura no interior de um mundo não coerente de valores, e nos jogos de má consciência.

Reconhecimento da loucura, em seu papel de verdade psicológica, como determinismo irresponsável.

Divisão das formas da loucura segundo as exigências dicotômicas de um juízo moral.

HL:454-5


Este duplo movimento de liberação e sujeição constitui as bases secretas sobre as quais repousa a experiência moderna da loucura. HL:455


A experiência moderna da loucura

LOUCURA = OBJETO = DOENÇA MENTAL


A produção deste período da obra do artista afetou sua fama de "pintor burguês", já que Goya era o artista oficial da realeza espanhola.

GOYA, A casa dos loucos, séc. XIX


GOYA, Os disparatados


VAN GOGH, 1853-1890


FRIEDRICH NIETZSCHE 1844-1900


ANTONIN ARTAUD,1896-1948


“A ação do psiquiatra é moral e social, e não depende necessariamente, para sua eficácia, de competência científica: desalienar é instaurar uma ordem moral. A medicina mental é uma terapêutica, uma educação

moral, característica que, até nossos dias, ainda a acompanha. O que, de um ponto de vista teórico ou conceitual, só é possível porque o louco não é mais, como na Época Clássica, um desarrazoado (...), mas um

alienado, alguém teoricamente passível de recuperação, de transformação ou de cura, pois sob a alienação existe, no mais íntimo do homem, algo inalienável que é explicitado pela psiquiatria em termos

de natureza, verdade, razão, moral social etc. Se loucura é alienação, sua cura é retorno ao inalienável pela ação exercida pelo hospício. Chegou para o louco , e cada vez mais para todos nós, a era do patológico.” Roberto Machado


FRIEDRICH NIETZSCHE 1844-1900


“Ora, uma aspecto fundamental de História da loucura é o reconhecimento da insuficiência desse nível (o do saber objetivo, positivo) para dar conta das condições de possibilidade da psiquiatria.”

Talvez o pertencimento da loucura à patologia deva ser antes considerado como um confisco, espécie de avatar que teria sido preparado há muito tempo na história de nossa cultura, mas de nenhum modo determinado pela própria essência da loucura.

Michel Foucault


“Um dia de manhã, (...) estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lha que o alienista o mandava chamar. (...)Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspecção até o pescoço.

- Estou muito contente, disse ele - Notícias de nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula.

O alienista fez um gesto magnífico e respondeu: - Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica (...). A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.”

Machado de Assis, O alienista


“Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou cursos à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse metido na Casa Verde. Tudo era loucura.”

Machado de Assis, O Alienista


“(...)o mesmo assombro que ficou a vila ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam ser todos postos na rua. (...)De fato o alienista oficiara à Câmara expondo: - 1º: que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento (...) 4º que à vista disso declarava que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde (...)”

Machado de Assis, O Alienista


Teorias de Simão Bacamarte sobre a loucura

Teoria 1: são loucos aqueles que apresentarem um comportamento anormal de acordo com o conhecimento da maioria. 

Teoria 2: ampliou o território da loucura: "A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades, fora daí, insânia, insânia e só insânia.“ 

Teoria 3: os loucos agora são os leais, os justos, os honestos e imparciais. Dizia que se devia admitir como normal o desequilíbrio das faculdades e como patológico, o seu equilíbrio. 

Teoria 4: o único ser perfeito de Itaguaí era o próprio Simão Bacamarte. Logo, somente ele deveria ir para a Casa Verde. 

sobre Machado de Assis, O Alienista in: www.portalimpacto.com.br


Arnaldo Antunes, 2002



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