Felipe Sabatini Rodrigo Pereira de Almeida Lins
LIVRO EXPERIMENTAL E A NÃO-LINEARIDADE DO TEMPO Projeto entregue à disciplina Projeto VI B (PGD fase 2), 8º semestre, como parte dos requisitos exigidos para obtenção do grau de Bacharel em Design pela ESPM São Paulo. Orientador: Daniel Trench São Paulo 2013
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6. Agradecimentos 8. Introdução 14. Sobre o livro, o tempo e a experiência 24. Sobre livros experimentais, a história e as opiniões 76. Sobre o tempo do relógio e o tempo do homem 79. Sobre o tempo, Cronos e a memória 86. Sobre nossas publicações 226. Sobre o processo, a história e os resultados 242. Referências bibliográficas
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Este trabalho não poderia ter sido concluído apenas por nós. Muitas pessoas fizeram parte e ajudaram a construir este projeto. Agradecemos a Daniel Trench pela orientação, atenção, paciência e empenho em nos ajudar, e por ter aceitado participar desta trajetória. Iuri Pereira, Wagner Malta Tavares, Jacopo Visconti, Rízio Bruno Sant’Ana e Laura Teixeira, pela disponibilidade e vontade de participar de nossas entrevistas. Fabio Morais e sua Editora 3 Dias, por convidar nosso projeto zero.oito para fazer parte da 2ª Feira de Publicações Independentes do SESC. Edith Derdyk, pela orientação no curso e pelas incríveis referências. Celso Longo, Marise de Chirico e Patrícia Amorim, pelos conselhos e atenção na nossa banca de qualificação. Renata Malzoni e Ciro Drago Couto por aceitarem participar deste projeto e fornecerem parte de suas produções para o nosso trabalho. Luisa Malzoni, pela disponibilidade e ajuda sempre que precisamos. Maria Isabel e Karen Sueshiro pela dedicação em nos ajudar com as encadernações.
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Agradeço ainda a meus pais, pelo eterno investimento, dedicação e atenção. Minhas irmãs, pela companhia. Mel e Karen por transformarem nossas publicações em realidade. Vidjai pela grande ajuda ao florescer seu lado marceneiro. Ralph pelos palpites, humor e companhia. Conglomerado Virgílio pelos momentos diários e por me aguentar. Lucas, Victor, Laís, Ciro e Thiago, pela eterna amizade. E, finalmente, Julia, pelo apoio incondícional e pela incrível habilidade de transformar os momentos de stress em diversão. Felipe Sabatini
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Um obrigado especial à dona Teka e ao seu Ivo, também conhecidos por mãe e pai, por tudo que me proporcionaram. À Dona Velha também, pela companhia nas tardes de PGD. Aos amigos, todos, os quais prefiro não nomear, por receio de não conseguir agradecer apropriadamente. Lulicruz, pela ajuda teórica que acabou desencadeando em muita coisa deste trabalho. Pri, porque foi, é e sempre será muito importante. Obrigado, Waltercio Caldas, pelo brilhantismo que tanto nos inspirou. Nave-mãe e seus moradores, pela inspiração e relaxamento proporcionados. Às bandas que serviram de apoio moral nos momentos de produção. Aos professores que fizeram o curso valer à pena. À Arte, por ser infinitamente intrigante. Rodrigo Lins
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I N T R O Sempre tivemos uma relação intrínseca com o livro. Por sorte, sempre fomos pessoas que tiveram um contato constante com o livro e a leitura. Se antes da faculdade o livro era um espaço de contato e interação, virou, depois, um objeto de estudo e admiração. No terceiro semestre, tivemos nossa primeira experiência de criar um livro, da ideia até a sua materialização. Entre estudos de estruturas, temas e materiais de produção, encontrávamos aos poucos um objeto que nos envolvia e criava diferentes desafios para sua concretização. Neste momento, nós percebemos que nossa ligação com os livros não era apenas a do leitor, nós queríamos criá-los. Vimos no livro um espaço para a criação. E, de fato, isso se repercutiu em nosso trabalho. Já no terceiro semestre produzimos o livro Mia Couto - Dois Poemas, que trazia uma grande experimentação de linguagem e construção narrativa. Passado o tempo, nos encontramos numa posição de escolher qual tema escolheríamos para desenvolver este trabalho que, de algum modo, resume nossa graduação. Após a definição de que faríamos um trabalho experimental, ainda nos restava essa escolha do tema. Listando nossos interesses e aptidões, não tivemos dúvida, o livro seria nosso tema. Era uma oportunidade única de explorar e entender esse objeto que por tanto tempo nos circundava. Esta publicação busca catalogar o processo do trabalho de conclusão de curso ‘Livro experimental e a não linearidade do tempo’. O experimental, logo no título, é o primeiro indício de nossa busca e nosso objetivo com este trabalho. É a partir dessa palavra que podemos começar a entender a estrutura de nossa proposta. Começamos, num primeiro momento, uma pesquisa para entender o significado e a relevância da palavra e, consequentemente, como ela se refletia no trabalho de um designer. Entre
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conversas e leituras, percebemos que esse significado é vago e, por vezes, impossível. Tentar definir ou “achar” a comprovação física que experimental (ou o experimentalismo) existe é quase uma ingenuidade. Experimental não é algo que se materializa ou se apresenta fisicamente, é o rastro que se estende, é o processo de construção. Processo este que se faz possível a partir de uma iniciativa de qualquer pessoa que se permita quebrar uma série de conceitos preestabelecidos para estudar algo, ou alguém, sob uma nova ótica. Ao ter essa permissão, qualquer caminho ou possível resultado encontrado é diferente do convencional e, por nossa experiência, transformador. O processo de experimentação tem a capacidade de expandir o conhecimento sobre o objeto explorado e, consequentemente, criar uma constante evolução e construção de valor do explorador. Tentar entender qualquer conceito por diferentes ângulos é talvez um dos exercícios mais importantes para um designer e, visto desta forma, o processo da experimentação é um período precioso para nossa profissão. A experimentação é a responsável por inovar e expandir nosso conhecimento sobre qualquer assunto que engloba nossa atuação. Entendido nosso conceito de utilização da experimentação, é preciso entender os temas que iremos abordar nesta proposta. Nosso principal objeto de estudo é o livro. Trataremos desse objeto como um espaço que permite uma possibilidade de experimentação, de um modo que ela recrie a experiência de se ler um livro, alterando assim o processo de compreensão de um livro. Pretendemos, com este trabalho, expandir as possibilidades do livro, explorando seus limites, para conseguir trazer parte
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dessa experimentação, que por vezes permeia o universo da arte, para o universo do design, podendo ser aplicada de fato no nosso trabalho cotidiano. As anotações aqui contidas funcionam como um caderno de memórias, que foi composto durante a trajetória de nosso trabalho. Buscando esclarecer para o leitor nossas linhas de pensamento e nossa proposta, este trabalho contempla diversos textos produzidos por nós, que procuram retratar todo esse processo de descobrimento da experimentação. Convidamos o leitor a começar a leitura pelo texto “Sobre o livro, o tempo e a experiência”, onde ele será introduzido ao nosso estudo do objeto livro, além de entender melhor a relação entre o homem e o livro e as possibilidades que o espaço do livro permite para as experimentações. Ainda com o foco sobre o livro, passamos ao capítulo seguinte “Sobre Livros Experimentais, a história e as opiniões” no qual entramos numa pesquisa histórica para entender como o livro já foi explorado e usado no passado. Essa pesquisa é dividida em duas partes: as principais publicações experimentais que circundam a história da arte americana e europeia, e um apanhado de publicações que exploraram, de alguma forma, o objeto livro no Brasil. Entendido o objeto de estudo, nós passamos para nossa percepção sobre nosso outro tema de pesquisa, o Tempo. Na terceira parte desta monografia, apresentamos dois textos produzidos por nós que retratam nosso olhar sobre o Tempo e a relação que criamos com ele a partir dessa experiência de estudo de cada um sobre o tema. Caminhamos, então, para o registro de nosso trabalho. Na quarta parte, “Sobre o processo, a história e os resultados” procuramos colocar o leitor ao nosso lado durante todo o processo de criação do projeto. Entendemos que o processo é o grande resultado desse trabalho,
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portanto, achamos que deveríamos explicar e pontuar minuciosamente toda esta etapa. É neste capítulo então, que o leitor se depara com os nossos desafios, a nossa linha de raciocínio do projeto, as etapas por que passamos e como o trabalho foi se moldando e se adaptando com o passar do tempo. Na quinta e última parte, apresentamos nossas publicações para o leitor. Aqui, explicamos e analisamos todos os nossos livros e fazemos um apanhado por todos os resultados de nosso experimento. Neste momento, podemos analisar, juntos, a evolução e a prática do nosso olhar, como aos poucos nós íamos sendo tomados pelo tema e tentávamos entender mais nossa relação com o livro. Com a leitura e análise de nossas etapas, procuramos fazer com que o leitor se indague com as mesmas questões que fizeram com que este trabalho tenha sido extremamente desafiador para nós. Desde o começo, queríamos entender como este processo de experimentação e de abertura de possibilidades pode se tornar parte do processo de trabalho do designer. Esperamos que, com a leitura, o leitor possa ter como base nosso estudo do livro para despertar em si mesmo essa mesma vontade de aceitar o experimental e buscar sua própria resposta dessa ligação. Boa leitura!
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S O B R E O
Existe uma aura no livro. Algo que permeia a folha, passa pelos dedos e mira nos olhos, criando experiências únicas e completamente pessoais entre o Homem e o livro. Não é apenas um objeto de transposição de texto, ele é a junção de ideias, conceitos, expressões e movimentos em um espaço físico. Um livro tradicional se define por um grupo de folhas, refiladas no mesmo tamanho, contendo uma narrativa que pode ou não ser linear, que se desenvolve na sequência das páginas, encadernadas ou agrupadas juntas, limitado por duas capas ou qualquer elemento que o suporte. O conteúdo pode ser tanto textual quanto imagético, com casos nos quais a imagem ilustra ou complementa a narrativa do texto e vice-versa. Entende-se aqui narrativa não necessariamente um romance, com começo, meio e fim, mas sim a apresentação de um conceito e/ou história. É esse tipo de livro que nomeamos aqui como livro-codex. O livro tem uma função primária muito clara; armazenar as informações de modo a preservá-las e transmiti-las para um receptor. Essa função faz com que ele seja um material de comunicação que traz em si um conceito de transposição de um conteúdo. Logo, ele só completa sua função quando seu receptor entra em contato com esse conteúdo, concluindo assim um ciclo de experiência. Para entender melhor a função e a experiência que o livro exerce sobre nós precisamos primeiro analisar como ele é formado, suas características e aspectos de sua concepção. Começamos a análise do livro por um aspecto intrínseco na sua formação: a sequencialidade. Ela está presente tanto no processo de construção quanto no de leitura e percepção da obra, sendo, assim, um elemento essencial para a concepção do objeto livro. Paulo Silveira, em seu livro, define a sequencialidade como:
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“O primeiro grande elemento ordinal no livro é a sequencialidade na percepção ou na leitura. Ela é a diretriz da ordem interna da obra, envolvendo a interação mecânica do leitor ou fruidor. Um livro envolve o tempo de sua construção e os tempos de seu desfrute. Cada vez que viramos uma página, temos um lapso e o início de uma nova onda impressiva. Essa nova impressão (e intelecção) conta com a memória das impressões passadas e com a expectativa das impressões futuras.” (SILVEIRA, 2001, p. 72) Assim como a sequencialidade é a base da concepção do livro, outros elementos aparecem como aspectos determinantes de sua existência, como a palavra e a imagem. Quando temos a presença da palavra impressa no livro, existe um movimento de materialização de algo que antes era imaterial: o texto do autor se torna real. Entende-se aqui como imaterial a impossibilidade do contato. Quando a palavra ainda não está impressa e não passa de ideia, ela está em um ambiente recluso, de difícil contato e armazenamento. A concepção do autor encontra no texto sua materialização, através da impressão. Ao mesmo tempo, ao ser armazenada no livro, a palavra se protege do tempo e do esquecimento, ela sempre estará lá. O livro transforma a palavra em eternidade. “A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar, e multiplica a sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não se protege contra o desgaste do tempo (nós nos esquecemos e nós a esquecemos); ela pouco ou nada conserva de suas aquisições, e cada lugar por onde ela passa é a repetição do paraíso perdido.” (CHARTIER, 1994)
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A imagem, assim como a palavra, quando presente em um livro, passa a fazer parte daquele contexto, não apenas como ilustração para o texto, mas servindo de ferramenta narrativa e assumindo significados que podem ser impossíveis pela combinação de palavras. Tanto a questão da sequencialidade quanto da presença da palavra ou da imagem só é possível devido à existência da página. Ela é o principal elemento do livro como objeto de contato. Fatores como espessura, tipos de papel, relevo, cor, dobras e rasgos comunicam algo; são, por si, um elemento transmissor. Se considerarmos aqui a máxima de Marshall Mcluhan, ‘O Meio é a Mensagem’, podemos classificar a página como a expressão do livro fisicamente, cada tipo de página comunica algo, assim como tudo inserido nela. Tudo o que faz parte do livro transmite alguma mensagem. Essa mensagem pode ou não ser entendida pelo leitor. Ainda assim, as possibilidades de interpretação que uma página tem deve ser uma preocupação do designer. Outra importância da página é sua presença física. Seu conjunto transforma o livro em corpo físico, um espaço tridimensional que traz consigo uma existência no espaçotempo, tornando possível sua experiência. Ali, contido em suas páginas, está presente um emaranhado de momentos que pode se apresentar para o leitor de infinitas formas. É importante ressaltar a necessidade da presença física para criar essa experiência, o toque transforma todo o processo de compreensão do livro. Sua fisicalidade é um dos principais fatores que criam a experiência de leitura. “Um livro é um objeto no sentido genérico, uma coisa que pode ser apreendida pela percepção ou pelo pensamento. Sendo material e ocupando um lugar no espaço, tem nas três dimensões a principal característica de ser um corpo físico matemático.
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Como corpo, portanto, possui a propriedade de causar impressões e estímulos nos seres humanos. Os dualismos corpo e alma, corpo e espírito, corpo e mente e outros semelhantes importam aqui de uma maneira acessória. Neste enfoque, o corpo é sensível e inteligível, através da relação entre o plano material e o plano mental e dessa possível identidade, pelo uso da leitura e/ou da percepção como ferramenta de compreensão ou apreensão. É pela percepção mais ou menos imediata (por vezes reflexa) da aparência que o livro que é obra de arte se instaura, mesmo naqueles que são bastante discretos. A leitura, o desfrute e a intelecção são processos de aproximação posterior. Para qualquer das etapas, é principalmente a sua eloquência como corpo físico que impõe o seu status de objeto artístico.” (SILVEIRA, 2001, p. 64) Todos esses elementos aqui citados são essenciais para a estruturação de um livro. Utilizar essas combinações em conjunto faz com que a existência do livro, enquanto objeto, seja possível. Portanto, entender a estrutura do livro é fundamental para entender as possibilidades do livro. “Toda palavra existe como elemento de uma estrutura uma frase, uma novela, um telegrama. Ou: toda palavra é parte de um texto. Nada, nem ninguém, existe isolado: tudo é um elemento de uma estrutura. Toda estrutura é por sua vez um elemento de outra estrutura. Tudo que existe são estruturas. Compreender algo é compreender a estrutura de que faz parte e/ou os elementos que formam sua estrutura. Um livro é formado por diversos elementos, um deles pode ser o texto. Um texto que faz parte de um
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livro não é necessariamente a parte essencial ou a mais importante do livro.” (CARRIÓN, 2011) A estruturação do livro é necessária para criar o fenômeno que chamamos aqui de experiência de leitura, que acontece quando temos contato com o objeto. Existe uma relação entre o Homem e o livro, um fenômeno que acontece quando ambas as partes entram em sinergia. Fenômeno este que acontece desde o primeiro encontro com o objeto livro. Existe um momento, um instante de apreciação, como se ali estivesse algo valioso, que pertencesse a um grupo de objetos únicos. O retirar da estante, o primeiro toque na capa, a abertura, o folhear das páginas, o dedo no papel. Tudo faz parte da experiência de se criar uma conexão com o livro, da experiência que é este espaço físico agora fazer parte de você. “Lembro-me de uma coletânea de fotografia de André Kertész, formato pequeno e paisagem, que mostrava apenas homens e mulheres lendo em todo tipo de lugar e situação. Esse livro não era para ser lido, mas, simplesmente, contemplado. No entanto, a despeito da grande calma que emanava de suas páginas e do tato com que as silhuetas que o ritmavam haviam sido captadas sem que o soubessem, ele na verdade dizia muito sobre o ato ao mesmo tempo corriqueiro e misterioso que é a leitura. [...] E, com efeito, o que de imediato se impõe quando casualmente percebemos alguém lendo um livro, seja no café, no banco de uma praça ou num trem, é que essa criatura, tão estranha para nós quanto todas aquelas com quem cruzamos, decidiu, por assim dizer, tornarse ainda mais estranha, subtraindo-se ao rumor e ao desfile impressionista das sensações e dos olhares. No curso do tempo, tal como ele se configura, repercute e
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ricocheteia numa profusão de facetas e fluxos, na forma caleidoscópica desse curso, o leitor inscreve uma cesura e inscreve a si próprio como cesura. Assim, ele abandona o caleidoscópio para seguir um único desenho, uma única linha que corre sob seus olhos, mas que nós, mesmo perto dele, não vemos. Solitário, o leitor extraise provisoriamente da comunidade, pelo menos em sua forma imediata. Quer dela se isole ou se proteja, efetiva e voluntariamente, quer a ela se junte pelo que o livro talvez lhe diga sobre ela, há, no leitor, uma parte que não quis ficar, preferindo ir embora, seguir outro caminho.” (BAILLY, 2000, p.13) A leitura é uma das partes básicas dessa experiência. É comum entendermos leitura como um processo textual, uma compreensão e interpretação de um signo de escrita preestabelecido. Porém, percebemos que a leitura de um livro não se limita às palavras, mas sim à toda a estrutura do próprio livro. Isso é fundamental para o nosso projeto. Principalmente como designers, devemos entender que tudo no livro comunica algo. Ao propormos a experimentação no suporte livro, precisamos considerar todo o livro. “Para ler a nova arte devemos apreender o livro como uma estrutura, identificar seus elementos e compreender sua função.” (CARRIÓN, 2011) A partir da percepção da existência dessa experiência de contato do livro, percebemos a necessidade de um tempo e de um momento para que esse fenômeno ocorra. Vale aqui um pequeno parêntese para diferenciar o tempo do momento. Entendemos o tempo como uma forma linear, como um elemento eterno que nos atinge e é fator determinante de nossa vida. Dividimos sua presença entre
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passado, presente e futuro. Regulamos sua passagem por horas, minutos e segundos. Sabemos que ele nos circunda, apesar de não conseguir controlá-lo. Ao mesmo tempo em que é incontrolável, tentamos criar parâmetros para que sua presença faça sentido. Por outro lado, o momento se define como um período que ganha relevância por alguma razão dentro do tempo. Períodos em que breves passagens de tempo representam muito mais do que apenas o tempo (físico) ali contido. Horas podem se passar em apenas alguns minutos. A natureza do momento é base de qualquer experiência que tira o indivíduo da normalidade. Logo, a experiência de leitura se da muito pelo momento da leitura. É importante citar isso para perceber a construção do livro. Além de ser um objeto que influencia a criação de um momento, é formado por diversos momentos dentro de si; o momento da escrita, de sua editoração, da impressão, em que ele é adquirido e, finalmente, o momento em que ele é utilizado. Podemos observar então que o livro tem uma conexão inseparável do tempo. Parte de sua produção e função é intimamente ligado com nossa relação com o tempo. O livro se apresenta então como um objeto que permeia o espaço-tempo a todo instante, e se utiliza desse princípio para existir. “Um livro é uma sequência de espaços. [...] Cada um desses espaços é percebido num momento diferente - um livro é também uma sequência de momentos. [...] Um texto literário (prosa) contido num livro ignora o fato de que o livro é uma sequência espaço-tempo autônoma. Uma série de textos mais ou menos pequenos (poemas de outro), distribuídos por todo o livro, seguindo uma disposição específica, revela a natureza sequencial do livro. Isto o revela, talvez o utilize; porém não o incorpora ou assimila. [...] A linguagem escrita é uma sequência de sinais
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expandindo-se dentro de um espaço, a sua leitura ocorre no tempo. O livro é uma sequência espaçotempo. [...] Fazer um livro é realizar esta sequência espaço-tempo ideal por meio da criação de sequência de sinais paralela, sendo ela verbal ou outra.” (CARRIÓN, 2011) É importante entender também o tempo dentro do livro. Cada livro se apresenta com um ritmo e, consequentemente, um tempo diferente. O ritmo do livro é um fator que dita parte da intensidade e duração da experiência da leitura. Ele pode ser construído a partir da diagramação do texto, da presença ou não de imagens, de buracos, de interferências durante a leitura, de variações de papel durante o livro, enfim, o ritmo é um artifício do editor para interferir no processo de leitura do usuário. “O ritmo é um padrão forte, constante e repetido: o toque dos tambores, o cair da chuva, os passos no chão. Um discurso, uma música, uma dança, todos empregam o ritmo para expressar uma forma no tempo. Designers gráficos usam o ritmo na construção de imagens estáticas, bem como em livros, revistas e imagens animadas que possuam uma duração e uma sequencia. [...] O designer de livros, por exemplo, busca uma variedade de escalas e valores tonais ao longo das páginas, mas ao mesmo tempo preserva uma unidade estrutural fundamental. O equilíbrio e o ritmo trabalham juntos para criar designs que pulsem com vida, atingindo estabilidade e surpresa.” (LUPTON e PHILLIPS, 2008, p. 29) Outra participação ativa do tempo no livro é a sua relação com o movimento. A experiência de leitura se dá tanto
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pelo movimento do usuário no contato com o livro quanto pelo próprio movimento dentro do livro. Graficamente, o movimento é um dos principais elementos de consolidação do livro, a sequencialidade cria o movimento e o movimento cria o interesse pela leitura. O livro é um eterno movimento dos olhos, da percepção visual. “Tempo e movimento são princípios estreitamente relacionados. Qualquer palavra ou imagem que se mova opera tanto espacialmente como temporalmente. O movimento é um tipo de mudança, e toda mudança acontece no tempo. Entretanto, ele pode ser subentendido ou literal. Os artistas sempre procuraram representar o movimento dos corpos e a passagem do tempo no reino do espaço estático, bidimensional. O tempo e o movimento são preocupações de todo trabalho de design: de um livro impresso, cujas páginas seguem-se umas às outras.” (LUPTON e PHILLIPS, 2008, p. 215) Classificamos essa ação como o tripé da formação do livro. São três pilares que somente juntos criam essa experiência de leitura: o próprio autor (quem emite a informação), o designer/ editor (quem organiza essa informação) e, por fim, o leitor (o receptor e fator reagente da informação). Percebendo o potencial deste espaço poético que é o livro, ganha atenção em meados da década de 60 o livro experimental, no qual a linearidade e clareza característicos do livro-codex são postos de lado por uma experimentação de linguagem, abrindo um leque de interpretações com o qual o livro deixa de ser o fim em si mesmo. Sua relevância não se dá mais apenas pelo seu conteúdo mas principalmente à experiência do leitor, e é ele quem constrói a narrativa no livro experimental.
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A singularidade desse tipo de livro é propor uma experiência nova para o usuário, que acontece justamente pela quebra do que é esperado pelo leitor no momento de seu contato com o livro, gerando assim um estranhamento. A mensagem aqui se dá pela interpretação de significantes, gerando significados que não necessariamente condizem com o conceito pensado pelo autor, algo que, como designers, somos incentivados a evitar. A desconstrução, neste caso, resulta em uma experiência inédita ao leitor. Acreditamos, porém, que é justamente a partir dessa experimentação que surgem possibilidades que ecoam para o universo do design como forma de agregar valor e transformar o contato entre o livro e o leitor.
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S O B R E
Nossa pesquisa sobre Livros Experimentais começou com um problema de sintaxe. Não sabíamos ao certo o campo e o limite que cada ‘classificação’ que diferentes tipos de livros tinham. Em um primeiro momento, tentamos classificar cada grupo, mas percebemos que o limite entre eles é muito tênue, o que faz com que apenas um livro possa fazer parte de diversas classificações. Livro de Artista, Livro Objeto, Objeto Livro, Livro Alterado, Livro Poema, Livro de Arte, Livro Experiência, Livro Caixa, Caixa Livro, Livro Autoral, enfim, classificamos todo esse grupo de possibilidades como Livros Experimentais. Afinal, todos trazem uma proposta experimental em sua concepção, uma proposta de exercício de linguagem e a utilização do livro enquanto espaço de exploração gráfica e artística. Posto isso, podemos analisar um pouco da história do objeto livro para então chegar nas nossas propostas; como a experimentação do livro pode voltar para o campo do design como um elemento de criação de experiência. Nossa pesquisa tem como ponto de partida a obra “La Mariée mise à nu par ses célibataires, même” (A Caixa Verde, 1934), de Marcel Duchamp. A obra é composta por uma compilação de reproduções fotográficas de anotações do autor que eram armazenadas numa caixa. Em uma época em que a própria fotografia não tinha se firmado como expressão artística, Duchamp se utiliza de um suporte rígido e reproduzível para criar um novo modo de apresentação de seu trabalho para o público: um suporte que armazenava suas obras e, ao mesmo tempo, fazia com que sua função (de armazenar) fosse um indício de que a obra era composta por todos os objetos ali presentes. Duchamp retoma a exploração do objeto caixa com a obra “Boîte-en-Valise” (Caixa-Valise, 1941), uma compilação de 69 trabalhos organizados em uma caixa, compondo assim uma nova obra de arte, formada por versões de seus trabalhos, com uma tiragem de 300 edições da Caixa-Valise fabricadas e comercializadas. Ele organizou e classificou as ordens dos
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trabalhos de acordo com seu critério, formando para o usuário um ritmo, tempo e experiência de contato com a obra único e planejado. Essa caixa criou novas perspectivas e narrativas das obras ali integradas. É importante notar também a preocupação do artista com a reprodutibilidade das obras. É evidente que a função e o significado das obras é alterado pelo local em que ela é exibida. Quando uma peça de arte sai do museu e chega até a mão das pessoas, seu movimento de compreensão é alterado. Mesmo antes desse trabalho de Duchamp outros artistas surrealistas se aventuraram no suporte livro e começaram timidamente a tentar usar o espaço desse objeto como ambiente para questões artísticas. Max Ernst procurou desenvolver seus trabalhos na busca de recursos gráficos que pudessem transformar suas peças literárias. É o caso de sua publicação “Une semaine de bonté” (1934), na qual o artista utiliza de gravuras surrealistas como ponto determinante de sua narrativa, um compilado de livros que compõe uma peça. Paul Valéry produziu em 1927 a coletânea “Maîtres et amis”, que continha obras de Descartes, Baudelaire, Berthe, Morisot e Mallarmé. Cada publicação recebia uma sequência de xilogravuras coloridas desenvolvidas pelo artista. Existia ali uma relação entre palavra e imagem diferente da convencional, as imagens não eram uma representação do texto, mas sim a visão de Valéry sobre a narrativa. Outro artista dessa época que merece atenção é Filippo Marinetti, italiano e futurista. Marinetti desenvolveu diversos livros que ficaram famosos por absorver a narrativa e adaptá-la à linguagem futurista. Seu livro “Les mots en liberté futuristes” propunha que o usuário manipulasse a publicação, fazendo com que suas páginas se abrissem e revelassem, em cada dupla, um cartaz. Essa proposta de livros que se desdobram era bastante inovadora para a época.
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Na mesma ocasião, outros artistas também começavam a discutir a estrutura e o modo como o livro deve ser lido. É o caso da francesa Sonia Deluanay-Terk na obra “La Prose du Transsibérian et de la petite Jehanne de France”. A artista propõe um livro que deve ser lido verticalmente, uma alusão aos pergaminhos. Além disso ela faz uma divisão entre imagem e texto. O lado esquerdo do livro passa por um eterno movimento de ondas coloridas, enquanto no direito o texto é colocado entre o resultado das cores usadas no lado oposto. Colocando-se a favor da premissa de fuga do museu e buscando uma discussão para potencializar o contato da arte com o espectador, somado à influência do trabalho de Duchamp, um grupo de artistas na década de 1960 encontra no livro um terreno perfeito para ser explorado por suas experimentações. Nessa época surge o ‘Livro de Artista’ como classificação para esses objetos feitos pelos artistas em questão. A grande conquista desse grupo é transformar o livro, ele deixa de ser um mero objeto que por vezes tem em si uma representação artística para se transformar no objeto artístico em si. “Durante as décadas de 1960 e 1970, com o clima de mudança trazido pelos ativismos social e político, o múltiplo democrático se tornava atraente para artistas fora do circuito de galerias e museus. “O livro poderia ser a arte em si.” Livros de artista se tornaram um modo de atingir um público maior e as décadas de 1960 e 1970 foram tempos férteis para essa nova forma de arte ganhar seu espaço. A hierarquia das belas artes foi sacudida pelo interesse do público e dos artistas na fotografia. À medida que os limites entre arte conceitual, filme, teatro, dança, literatura e música se tornavam nebulosos, experimentar a arte nos livros foi uma transição natural para muitos artistas. Como Clive Philpot afirma em “Alguns Artistas Contemporâneos
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e seus Livros”, a década de 1970 foi uma “época na qual mais e mais artistas se viram obrigados a discutir suas intenções mais do que nunca… Tinham muitos artistas incríveis que desejavam se comunicar sem intermediários, e o formato do livro fez desta uma opção mais do que nunca.” (PENNER, 2008, p. 29) (tradução nossa) Fazem parte desse grupo artistas como: Ed Ruscha, um dos pioneiros na utilização do livro como espaço artístico, que produziu, entre outros, o livro “Twentysix gasoline Stations”, uma coletânea de fotos de postos de gasolina da ‘66 highway’ que conecta Oklahoma a Los Angeles. O livro chama atenção pela disposição das fotos nas páginas e pela narrativa que se constrói a partir da sequência delas, sem nenhum texto para auxiliar o leitor. É interessante ver a evolução da ideia no trabalho de Ruscha: em 1966, três anos depois da publicação de “Twentysix gasoline Stations”, o artista publica “Every Building on the Sunset Strip”, um livro que se assemelha à ideia do primeiro, mas traz uma diagramação inovadora. O artista emula uma avenida, com imagens dos edifícios dispostas de cada lado da página, fazendo com que a leitura do livro seja uma volta pela avenida. Dieter Roth, que ao lado de Ruscha foi um dos idealizadores do movimento de experimentação do livro, produziu a sequência de livros “Daily Mirror”, que teve duas publicações diferentes, todas retratando momentos do dia do artista. A primeira é feita apenas com pedaços de 2x2cm recortados do jornal ‘The Daily Mirror’; na segunda, o artista fotografa as páginas usadas na primeira edição, estoura seu tamanho e produz uma segunda edição com as mesmas fotos modificadas. Existe uma discussão nesse trabalho sobre a reprodução dos livros e como eles podem gerar outros livros. Raymond Queneau, autor de “Zazie no Metro”, produziu o famoso
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A Caixa Verde, Duchamp, 1934
Caixa-Valise, Duchamp, 1941
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Une semaine de bontĂŠ, Max Ernst, 1934
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Les mots en libertĂŠ futuristes, Filippo Marinetti, 1920
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La Prose du TranssibĂŠrian et de la petite Jehanne de France, Sonia Deluanay-Terk, 1915
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“One Thousand Billion Poems”. O livro era composto por 10 poemas com 14 linhas cada, todas as linhas eram destacadas, o que permitia uma combinação da linha de um poema com o restante de linhas dos outros poemas, possibilitando assim bilhões de combinações possíveis. Ben Vautier, que desenvolveu uma série de livros intitulada “Gesture Piece”, os quais traziam uma proposta de dobras e novas possibilidades da formação do livro para o receptor. O livro era uma brincadeira sobre o movimento que esperamos do livro, em um primeiro momento ele se apresentava como um bloco em branco, escrito ‘desdobre’, e, ao desdobrar, o livro se abria e continha apenas a mensagem ‘dobre’. James Lee Byars, que produziu o livro “The One Page Book”, que procurava discutir os limites e a função do livro. Anos depois, James produziu o “The Cube Book” quase como numa oposição ao “The One Page Book”. Ian Burn que transportou o livro para ser usado junto, como uma instalação - ele fazia parte da experiência de “Mirror Piece”, sendo o primeiro contato do usuário com a instalação. Jonas Mekas que desenvolveu seu livro de fotos “Reminiscensijos” (Reminiscences) em um suporte de madeira, fazendo uma alusão a uma caixa de memórias e evidenciando uma experimentação do livro sendo feito a partir de outros materiais. Mieko Shiomi, que foi responsável pelo “Fluxcalender”, entre outros. O movimento de experimentação do livro começa a ganhar força na década de 1970, e em 1976 é inaugurada, em Nova York, a Printed Matter, primeira editora especializada em livros experimentais. Torna-se ponto de encontro de artistas e público da época. A Printed Matter continua aberta até hoje e é uma das editoras que mais financiam publicações independentes no mundo. Além disso, é responsável pela organização da “NY Art Book Fair”, uma feira anual de artistas e editores que trabalham com livros independentes e autorais em todo mundo.
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Nota-se que parte dos integrantes desse grupo teve participação ativa no Fluxus. Encontraram nele a possibilidade de explorar meios não convencionais da atividade artística, tal qual o livro. O Fluxus se caracteriza por ser um movimento que pluralizava o campo de publicações de seus artistas, eles prezavam por uma mistura das artes e a experimentação de novas possibilidades de plataformas de contato, inclusive o livro. Acreditavam também que arte e vida são duas coisas inseparáveis. Assim sendo não era mais um movimento, mas sim um estilo de vida. Vale citar aqui o trabalho gráfico desenvolvido pela “Fluxus Magazine”, que traziamem suas publicações uma linguagem totalmente experimental, conversando com a própria essência do grupo. Na década de 1980, com o movimento punk ganhando força, a ideologia do DIY (Faça Você Mesmo) se tornou base para os artistas que produziam e viam na produção caseira uma alternativa atrativa para seus livros. Foi o caso de John Bently, que em 83 começou a produzir no próprio flat uma série de livros intitulados “Liver & Light”. Cada edição possuí um tema próprio, traduzido não só no conteúdo mas na própria materialidade do livro. Bently continua produzindo e teve o último número, 41, lançado em 2011. Ansel Kiefer, por outro lado, influenciado pelo movimento neoexpressionista alemão, produz em 81 um livro composto por 25 xilogravuras e que leva o nome de um dos rios centrais da Alemanha, “Rhine”. O livro sugere o percurso que o próprio rio faz, trazendo consigo sua importância histórica através de representações imagéticas das batalhas ali vividas. Ao mesmo tempo o livro começa a ser muito explorado como possibilidade de instalações. Nessa época, aumenta a produção de livros-objetos, livros que se apresentam esteticamente como um produto final, sem necessidade de contato ou manipulação por parte do receptor.
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Twentysix gasoline Stations, Ed Ruscha, 1963
Every Building on the Sunset Strip, Ed Ruscha, 1966
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Daily Mirror - 1, Dieter Roth, 1964
One Thousand Billion Poems, Raymond Queneau, 1963
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The Cube Book, James Lee Byars, 1969
The One Page Book, James Lee Byars, 1965
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Reminiscences, Jonas Mekas, 1972
Mirror Piece, Ian Burn, 1967
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“Os anos 80 foram especialmente frutíferos ao livroobjeto, com o reingresso dos ensinamentos das técnicas de encadernação, subvertidos para colaborar com a constituição de uma linguagem, aliados ao retorno ao expressionismo na pintura. Lawrence Weiner (na revista Umbrella, v.11, n.1, 1990, transcrito em Hoffberg, 1999, p.141) brincou com o grau de crescimento da circulação no final dos anos 80, chamando o fenômeno nos Estados Unidos de ‘Como é Maravilhoso o Livro de Artista’. E prossegue: ‘E o que constitui um livro de artista realmente não importa. Para usar a sentença de Joe McCarthy novamente, se anda como um pato e fala como um pato, é um pato’. O movimento foi mesmo muito intenso. Ficou estabelecida uma marcante divisão da produção em obras que se comportam como suporte e obras que se comportam como matéria plasmável, o que definirá como bifacetado esse universo.” (SILVEIRA, 2001, p. 31) Podemos destacar nesse período artistas como Esther K. Smith, Dikko Faust, Lawrence Weiner, Susan Happersett e Ray Tomasso. Classificamos, a partir da década de 1990, as publicações experimentais como publicações contemporâneas. Optamos fazer para essa parte um grande quadro de referência visual, sem profundas explicações sobre os artistas ou o movimento de que eles fazem parte. Nas próximas páginas, estão as obras que abordam os livros experimentais na contemporaneidade. -----------No Brasil, também aconteceu um grande movimento de exploração e experimentação do livro ao longo de sua história. Nas primeiras décadas do séc. XX, os modernistas
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produziam a revista Klaxon, uma publicação que procurava divulgar ações, obras e eventos do movimento modernista. A revista, baseada nos conceitos modernistas, trazia uma série de experimentações, principalmente na sua linguagem e na forma que seu conteúdo se apresentava para o público. Já na década de 1950, o livro foi extensamente explorado pelos concretistas. Os poetas concretos viram no livro, em especial na página, o ambiente para que suas poesias geométricas pudessem existir, além de uma excelente ferramenta de propagação desses poemas/poesias. O movimento surgiu como resposta à grande mudança que acontecia na vida das pessoas, procurando captar o começo e o avanço da urbanização brasileira, que acontecia em ritmo acelerado. O Concretismo era encabeçado por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, que produziram juntos a revista-livro Noigandres, trazendo, em suas edições, parte do material desenvolvido pelos concretistas. A revista foi fundamental para o surgimento e desenvolvimento de um pré-concretismo no país. Demonstrou uma preocupação genuína em parear o Brasil com as tendências da criação artística internacional. O movimento, porém, só ganhou destaque na Exposição de Arte Concreta realizada no Museu de Arte Moderna, em 1956. Derivado do Concretismo e da junção de artistas do Grupo Frente e do Grupo Ruptura, o neoconcretismo também se apresenta como um grupo que traz a experimentação na sua base e continua explorando o objeto livro. É relevante notar como nesse movimento existe uma busca maior pela experiência do receptor, busca esta que também focamos no desenvolvimento de nosso projeto. Vale notar a atenção cuidadosa dada pelo movimento à experiência que o receptor tem com as obras, um dos principais aspectos no desenvolvimento do nosso projeto.
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Andrzej Dobosz
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Aram Bartholl
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Harmony Korine
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Stephan Sagmeister
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Jonathan Safran Foer’s
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Jean Delvaux
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Viviane Sassen
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“O neoconcretismo define-se como tomada de posição com relação à arte concreta exacerbadamente racionalista, e é formado por artistas que pretendem continuar a trabalhar no sentido da experimentação, do encontro de soluções próprias, integrando autor, obra e fruidor.” (ITAÚ CULTURAL, 2011) Fazem parte desse grupo artistas como Amilcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Reynaldo Jardim, Willys de Castro, Lygia Clark e Lygia Pape. As duas últimas tiveram uma ligação muito forte com livros em suas obras, analisaremos parte de seus trabalhos a seguir. Lygia Clark começa sua carreira artística em 194, quando inicia um pequeno curso com Burle Marx. Ingressa no Grupo Frente e posteriormente assina o manifesto neoconcreto. Com a evolução de seu trabalho, a artista começa a propor em suas obras um contato da arte com as pessoas, a criação de um ambiente e fenômeno a partir de uma instalação artística. Por priorizar esse contato das pessoas com a arte, ela acaba se utilizando inúmeras vezes do objeto livro, sempre com uma abordagem experimental e sensitiva. Na primeira exposição do Grupo Neoconcreto, a artista apresenta a obra “Bichos”, feita a partir de dobradiças de metal que devem ser manipuladas pelos usuários a fim de que cada pessoa chegue num resultado final diferente. Podemos ver nessa obra uma relação clara com a sequencialidade e o movimento natural de um livro, o passar e controlar de páginas em comparação com o controle que o usuário tem daqueles metais. Essa ligação com o livro se repete em outros trabalhos da artista, mas ela é a base para o desenvolvimento de um dos livros de artistas mais importantes da história da arte brasileira: o “Livro-Obra”. Esse trabalho é uma constante construção e desconstrução do livro a partir do toque do leitor. Em cada abertura de
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página, a artista cria um ambiente onde o receptor terá que, de alguma maneira, manipular a obra para que sua construção faça sentido. Os movimentos de dentro do livro são uma constante reprodução do momento da leitura e sua narrativa é formada a partir do contato do usuário com as situações propostas pela artista. Assim como Lygia Clark, o trabalho de Lygia Pape também permeia o universo dos livros, buscando uma experimentação de materiais que tragam em si toque e manipulação por parte do usuário. Buscava sempre experimentar a combinação de materiais com potencial de exploração por parte do leitor. É relevante notar no trabalho de Pape sua pluralidade em relação aos materiais, ela se aventura por muitas áreas, trazendo sempre a idéia da interatividade na concepção de suas obras. “O desenvolvimento de Lygia Pape dentro e além do movimento neoconcreto do fim dos anos 1950 e início dos anos 1960 proporciona um exemplo rico desta reorientação do modernismo europeu sob condições brasileiras. O seu ludismo e a sua liberdade particulares podiam ser vistos pelo modo com que ela estava disposta, desde o início, a experimentar com uma ampla gama de linguagens e formatos - desde o balé até o livro!” (BRETT, 2000, p.306) Escolhemos para esta breve citação duas obras de Lygia que caracterizam bem esse seu movimento pluralista. O “Livro da Criação”, de 1959, consiste na compilação de 18 unidades de cartão (30x30cm) soltas. Percebe-se uma indagação da artista sobre o limite do livro, além de um experimento sobre as possibilidades e as não possibilidades do suporte livro. Cada lâmina tem características próprias, seja pelas suas cores, possíveis dobras, pelo convite ou não à manipulação, furos ou interferências da artista. Apesar dessa narrativa
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própria, a obra se dá pelo conjunto das lâminas, criando assim uma comunicação entre elas e a existência de um modelo comparativo para o receptor. Já em “O Livro do Tempo”, de 61-63, Pape constrói 365 blocos de madeira, diferentes entre si, um para cada dia do ano. Esses blocos se distinguem entre suas composição e cor, é como se cada um fosse o resumo construtivista de um dia. Dispostos na parede, lado a lado, os blocos funcionam como páginas soltas de um livro enorme, o receptor se sente envolto pela obra, envolto pelo tempo. É interessante analisar como a artista dá o nome de “Livro do Tempo” para essa obra; apesar dela não se apresentar como um livro (formato códice), existe na instalação elementos do livro que sinalizam a proximidade da experiência de vivenciar a obra com a experiência de leitura. Podemos citar também obras de outros artistas neoconcretos que permeiam o universo do livro. Raymundo Colares produz com sua série “Gibis” uma composição que se assemelha ao movimento funcional do “Livro da Criação”: são páginas criadas a partir de dobras e diferentes cores, feitas para serem manipuladas pelo usuário, gerando assim inúmeras possíveis combinações de composições. Hélio Oiticica chega a trabalhar com caixas e suportes, podemos ver seus experimentos na obra “Bolide 3 Caixa 3 Africana”, tema que tem uma ligação muito forte com o próprio livro. Franz Weissmann e Amilcar de Castro trabalham com o movimento na tridimensionalidade, lembrando o movimento que o livro permite. Podemos, inclusive, traçar um paralelo entre a leveza da página e a dureza do metal que, apesar do distanciamento, se assemelham nas possibilidades de movimento. Willys de Castro chegou a produzir livros nos quais discutia questões da forma e do conteúdo, numa transposição da consistência e do movimento do tridimensional para o bidimensional da folha. Enfim, podemos notar que o tema livro estava sempre
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envolto às vanguardas brasileiras, fazendo com que sua experimentação fosse uma rica contribuição para o campo artístico derivado do livro. Amélia Toledo produziu livros de artista e ligou seu trabalho à natureza do livro. Questões como a delicadeza do papel, atrelado à sobreposição, o toque e a sequência das páginas sempre estavam presentes em sua obra. Podemos ver um exemplo disso em “Gênesis”, de 1959. A artista propõe uma sobreposição de espaços leves e com opacidade, fazendo com que a visão da página seja uma soma de um conjunto de outras páginas que, rasgadas, o antecedem ou sucedem. “A obra incorpora uma ação tangencialmente incidental - o ato de rasgar -, para confrontá-lo com a monotonia e a rigidez do quadrado, formato dentro dos padrões clássicos do objeto livro. (...) Trata-se, pois, de uma construção de sinal contrário: as mãos rasgam os pedaços quadrangulares de cor (cada folha de papel é um plano de cor), em busca de obter, o que fazem tentativamente, outras figuras geométricas de contornos inevitavelmente irregulares, toscos ou, vendo-se por outro ângulo, impregnados do calor suscitado pela ação. A cor, em função das fibras do papel que ela tem por corpo, rasga-se em porções desigualmente serrilhadas e, ao cabo de um tempo, a artista obtém um conjunto de formas coloridas e frementes, como seria de esperar de uma geometria construída à mão livre, que servirá de base para as sucessivas operações de sobreposição e colagem que tomam o quadrado como baliza. Cada página virada, na qualidade de um mosaico composto de pedaços de cor de transparências distintas, anuncia a seguinte enquanto promove o esmaecimento da anterior.
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Capa da Revista Noigandres, 1952
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Haroldo de Campos, Nasce Morre, 1958
Augustos de Campos, Eis os Amantes, 1953
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Bichos, Lygia Clark, 1960
Livro da Criação, Lygia Pape, 1959
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Livro-Obra, Lygia Clark, 1966
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Livro do Tempo, Lygia Clark, 1961-63
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Gibis, Raymundo Colares, 1968
Bolide 3 Caixa 3 Africana, HĂŠlio Oiticica, 1963
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Capa do Rex Time, 1966
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As páginas do livro, agora conduzidas pelo ‘leitor’, oferecem-se como uma piscina para o salto dos olhos.” (FARIAS, 2004) Outro trabalho que merece atenção é o “Livro da Construção”, também de 1959. Influenciada pelo Concretismo, a artista apresenta uma plataforma do livro que oferece inúmeras possibilidades para o usuário, desde dobras até opções de encaixe e sobreposições do próprio papel. Ainda na década de 1960, outro grupo se destacou por uma experimentação artística, que estava em parte ligada ao livro e a editoração. O Grupo Rex foi criado em 1966 por Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros e Nelson Leirner. O periódico do grupo, o Rex Time, incorporava o próprio discurso do grupo ao propor uma diagramação e linguagem diferentes em cada uma de suas edições. É interessante notar, nesse caso, como o recurso gráfico acabou sendo o meio de comunicação com seu público. Além de ser o ponto de contato com seus receptores, o Rex Time incorporava os experimentos e a linguagem do grupo para seu projeto gráfico. As edições variavam de estrutura, cor e linguagem e se apresentavam, muitas vezes, de maneira inusitada para um jornal. “Fazemos parte de uma tendência de experimentação, que podíamos dizer ser nascida nos Estados Unidos (...). O espírito de nossa galeria (e do jornal), consequentemente, é mostrar essa arte à medida que ela vai sendo processada e desenvolvida”. (Parte do discurso de Wesley Duke Lee na abertura da Rex Gallery, 1966) Devemos citar, ainda, artistas que durante as década de 1960 a 1980 tiveram seu trabalho muito ligado à experimentação editorial, apesar de não incorporarem os citados grupos de
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vanguarda. É o caso de Artur Barrio, Aloísio Magalhães, Amélia Toledo, Cildo Meireles, Luciano Figueiredo, Mira Schendel, Tunga e Waltercio Caldas. Aloísio Magalhães teve parte de seu trabalho atrelado ao livro. É interessante visitar a obra de Aloísio pela sua proximidade com o design. No começo da década de 1960 vemos um conjunto de trabalhos produzidos por meio de seu viés artístico que, eventualmente, terão uma influência na sua produção como designer. O livro “Doorway to Brasília” é uma experimentação do artista em parceria com Eugene Feldman sobre o objeto livro. Nele, Aloísio retrata a construção de Brasília através de gravuras feitas a partir de fotografias. O resultado final é uma impressão em offset 3 cores (azul, amarelo e verde) da gravura que sobrepõe as fotografias é uma interessante sobreposição de elementos, que monta Brasília a partir de conjunções de cores e diferentes formas. A ligação de Waltercio Caldas com o livro é forte e quase constante, desde o livro como suporte para instalação, passando por livros de artistas e até usando o livro como tema de pinturas. Percebemos em Waltercio um importante vínculo com o campo editorial e uma preocupação com as possíveis aplicações e possibilidades da existência do livro com caráter artístico, preocupação essa que ocasionou uma das primeiras publicações de um Livro de Artista em escala mercadológica, o Manual da Ciência Popular. “Eu tive a oportunidade, em 1981, de imprimir pela FUNARTE um pequeno livro chamado Manual da Ciência Popular, onde eu isolei dentro da minha produção artística problemas relacionados à questão da ligação do texto e da imagem, e tratei dessas questões, da reprodução do objeto de arte, da multiplicação do objeto de arte, o que toda essa situação produz na obra de alguém, e como isso afeta não só a minha obra como a de todos os artistas.
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Mas especialmente eu preferi isolar nesse manual essas determinadas questões. E eu isolei essas questões e realizei esse livro, que era basicamente um livro que teria uma irônica característica técnica, como se o fato de um livro de arte ter essa preocupação técnica já fosse de uma certa maneira uma crítica ao modo como os objetos eram reproduzidos […] Era tanta modificação produzida pela tradução do tridimensional para o bidimensional, que objetos transparentes se tornavam opacos. Isso me levou a constatar que essa linguagem deveria ser tratada de uma forma específica, de uma forma que ela também fosse parte do meu trabalho. No manual, eu cheguei a colocar alguns pontos em relação a isso. Comecei a me interessar, a partir dai, em fazer livros de artistas ou livros que falassem de arte de uma forma não necessariamente sobre arte mas que a própria linguagem artística estivesse incorporada no processo de formar um livro.” (Waltercio Caldas durante palestra para a Revista Serrote, 2012) Também observamos uma vertente experimental nas obras de Waltercio, tanto na linguagem quando na aplicação. Obras como Vôo Noturno trazem o livro quase como uma instalação artística. Em compensação o Livro Carbono se assemelha às preocupações de contato e usabilidade como as de Lygia Clark e Lygia Pape, e se apresenta como um livro que é formado justamente pelo manuseio. Waltercio participou, junto com Cildo Meireles, da revista Malasartes, uma publicação de 1975, focada em artes visuais produzida por artistas e críticos de arte que procuravam discutir a arte contemporânea brasileira. Tanto Cildo como Rubens tiveram trabalhos relacionados com a temática do livro, mas acabaram se focando em uma outra vertente do
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livro, a caixa enquanto objeto artístico. Adicionamos aqui a exploração da caixa em paralelo com a do livro, porque ambos os temas surgiram juntos - o conceito de espaço do livro como possibilidade artística surgiu a partir das caixas de Duchamp, ambos trazem consigo o sentido de conter, proteger seu conteúdo. Logo, existe uma relação entre os dois objetos e o limite que determina o que cada grupo contém no âmbito artístico é de difícil definição. Em “Arte Física Cordões”, Cildo trabalha com a idéia de um objeto que contém o resultado de uma experiência, fazendo com que sua presença seja a própria natureza artística da experiência. Esse trabalho se distancia do universo dos livros, porém trabalha com uma narrativa que depois foi abordada por artistas de livro: o livro que contém a natureza da experiência. Ainda na década de 1970, podemos destacar artistas como Mira Schendel e Artur Barrio. Mira teve uma extensa produção focada em Cadernos-Livros. Entre 1970 e 71, produziu mais de 150 publicações, que foram divididas em diferentes seções. Os livros, assim como sua obra, trazem um interessante experimento gráfico e de linguagem. Elementos como sobreposições, formas gráficas e adoção de uma linguagem poética são frequentes em suas composições. O papel, por vezes, usa da opacidade como elemento de composição, além de demonstrar a delicadeza e detalhes do livro por sua espessura e tipo. Artur Barrio desenvolveu, em 1979, um dos principais livros experimentais brasileiros. O “Livro Carne”, como o próprio nome diz, é composto apenas de carnes cortadas e costuradas como se fosse um livro, um handmade que, assim como as outras obras de Artur, traz uma relação com o resto e as sobras do mundo. Além desse trabalho, Artur produziu uma série de cadernos que acompanhavam sua rotina de pesquisa e catalogavam seus trabalhos. Esses cadernos foram organizados e publicados posteriormente como caderno-livros compilados.
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Tunga também foi um artista plástico que teve parte de sua obra publicada na revista Malasartes e que tem uma ligação forte com experimentações no âmbito gráfico. Parte de seu trabalho da década de 1980 foi organizada e publicada como um livro de artista / livro objeto e marcou a primeira publicação e o ínicio da CosacNaify, editora que demonstra uma preocupação com o mercado editorial e uma própria postura de propor experimentações em suas publicações. Em “Barroco de Lírios”, publicação de Tunga, o artista monta um cenário de total manipulação do usuário, levantando aspectos do livro como movimentação, sequencialidade, sobreposição, função das páginas, que estão intrínsecos na base de qualquer livro, seja ele artístico ou não. A partir da década de 1990, classificamos os trabalhos que se relacionavam com livros como trabalhos contemporâneos. Nesse quadro se encaixam artistas como: Nuno Ramos, Edith Derdyk, Jac Leirner, Flávia Ribeiro, Fábio Morais e Marilia Dardot. Nessa última parte falaremos brevemente do trabalho de cada artista. Nuno Ramos é artista plástico e, por vezes, explorou o espaço do livro para experimentos artísticos. Escolhemos para essa análise de seu trabalho o livro “Balada”. A obra é composta por um livro, em branco, que num primeiro momento se apresenta sem nenhuma interferência. Ao ser aberto percebemos um rastro de orifício que se segue por todo o livro, rastro essa que é a sobra do trajeto feito por uma bala (revólver) que atravessa todo o livro. É interessante perceber que com apenas essa ação de atirar no livro, o artista conseguiu montar uma obra que capta uma importante parte da estrutura do livro. “Balada” tem uma narrativa, uma sequencialidade, um ritmo, começo, meio e fim. É um livro sem textos, apenas o objeto e o rastro de sua ação sobre o livro. A obra de Edith Derdyk permeia entre o livro como objeto e o livro como instalação. Existe no conjunto de obras da artista
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um movimento de tornar o desenho e o traço bidimensional em tridimensional, e foi essa ligação com o traço que levou Edith ao universo dos livros. Os livros aparecem hoje em sua obra como objeto de exploração, como instalação e ainda como tema. Analisaremos aqui a obra “Onda Seca”, uma instalação montada a partir de quatro toneladas de papel. Nessa instalação, Edith transporta para um objeto características e a essencial do livro. Além da obra ser feita a partir de páginas, existe nela uma ligação entre a parte pelo todo, um movimento que só acontece quando todas as páginas estão em conjunto, assim como no livro. “Onda Seca é uma escultura feita a partir de quatro toneladas de papel. Trata-se de um grande livro, construído página por página, impregnadas da energia dos diversos gestos, que montam uma sobre as outras, registrando uma narrativa feita de pó e sutis digitais, pouco perceptíveis a olho nu. Entretanto, o livro não se contém na sua forma agigantada, e suas partes parecem soltar-se da costura original que as agrupava, para duplicar-se, expandir-se no espaço do Octógono, provocando um fluxo incessante de páginas, uma onda branca, seca, interrompida e aprisionada pelo artista no instante da sua arrebentação.” (MESQUITA, 2007) Jac Leirner traz em seu trabalho uma premissa de compilar objetos para formar novos objetos / instalações a partir disso. Em “Hip Hop” a artista transporta esse universo da junção de formas para o bidimensional, para dentro de um livro. O resultado é uma representação gráfica da obra de Jac Leirner no plano do papel, revelando uma experimentação bastante interessante. Flávia Ribeiro tem grande parte de suas obras vinculadas ao livro e faz parte do grupo de artistas Tijuana da Galeria
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Vermelho, grupo que trabalha exclusivamente com livro e cartazes. Em sua obra, vemos uma extensa exploração do livro como objeto de contato até aplicações do livro como instalações. Mostraremos aqui a obra “Mecânica”, composta por 69 folhas de papel penduradas na parede. A obra é uma transposição do espaço do livro para o plano da parede, as folhas soltas se movimentam a partir do ar que é orientado pelas pessoas que se aproximam. O movimento desse livro aberto é alterado pelo presença das pessoas, existe ali um manuseio do livro sem a necessidade do contato. Também faz parte do grupo Tijuana o artista Fábio Morais, que além de produzir inúmeros livros também tem um trabalho interessante como pesquisador e escritor sobre livros experimentais. É criador do projeto ‘Editora 3 Dias’, uma editora itinerante que financia projetos de livros independentes. Para essa breve demonstração de seu trabalho, escolhemos a obra “O Mundo Dividido” por fazer parte de um grupo de obras que utilizam livros teoricamente prontos para a criação de novas estruturas a partir desse objeto. Vemos nessa obra um dicionário transformado num relógio que passa apenas pelos segundos, como se passasse por cada palavra do dicionário, fazendo uma alusão ao enorme tempo compilado naquele livro. Marilá Dardot também faz parte do Tijuana e possui uma ligação interessante com o livro. Seus trabalhos dialogam muito com a palavra e a poética por trás dela, o que acabou levando a artista para o universo do livros. Em “Rayuela”, trabalho inspirado no livro O Jogo da Amarelinha (1963) de Julio Cortázar, a artista cria um vínculo entre sua instalação a partir das páginas do livro, com o movimento proposto pelo autor que é a base de sua narrativa. Em sua obra Dardot transporta as páginas abertas do livro para uma parede, porém evidencia uma brincadeira com os espaços em branco, criando uma alusão ao próprio título do livro, fazendo com que o
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movimento de leitura seja pausado, assim como a narrativa. A obra de todos os artistas citados trazem o movimento e a busca pela experimentação como fatores determinantes de sua existência. É importante, para uma análise sobre o livro, entendermos como essas referências podem ajudar a construir um campo de conhecimento sobre o livro experimental, onde o objeto livro se estabelece por completo como um espaço aberto para inúmeras possibilidades.
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Manual da Ci锚ncia Popular, Waltercio Caldas, 1981
V么o Noturno, Waltercio Caldas, 1967
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Doorway to Brasília, Aloísio Magalhães, 1959
Arte Física Cordões, Cildo Meireles, 1969
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Livro Carne, Artur Barrio, 1979
Gênesis, Amélia Toledo, 1959
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Livro da Construção, Amélia Toledo, 1959
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O Mundo Dividido, Fรกbio Morais, 2008
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Balada, Nuno Ramos, 1995
Onda Seca, Edith Derdyk, 2007
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Hip Hop, Jac Leirner, 1998
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Barroco de Lirios, Tunga, 1997
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S O B R E O O tempo nasce com o Homem. É inerente a ele, no sentido que precisamos dele para nos nortear, nos dar o complemento para o espaço; nos movemos pelo espaço assim como nos movemos pelo tempo. Ainda assim, não deixa de ser uma criação abstrata, nossa percepção de que o tempo existe vem de mudanças nos eventos que vivemos. Justamente por isso o tempo é relativo, sua percepção varia de acordo com o contexto que estamos, não só subjetivamente mas fisicamente. É uma variável dependente da velocidade: quanto mais rápido estamos, mais devagar temos a impressão do tempo passar, claro que isso se mostra mais evidente em velocidades que dificilmente alcançaremos. Se o tempo é relativo, podemos afirmar que não existe um tempo, mas vários. Ele é, portanto, pessoal e universal, na medida em que tendemos a crer que todos “sofremos” a ação do tempo da mesma maneira. Somos iludidos pelo relógio, acreditamos naquele tempo como o único. É muito mais válido, porém, afirmar que está marcando uma divisão que criamos para nos auxiliar com os eventos astronômicos que há milênios ditam questões até hoje básicas para nossa sobrevivência; os ciclos de plantação, de colheita, períodos de seca e calor, enfim, diversos fatores com os quais, sem o tempo, dificilmente conseguiríamos lidar. Nomeamos esse tempo como o tempo do relógio; é o tempo mecanizado dividido em anos, meses, dias, horas, minutos e assim por diante. O que era sobrevivência hoje se tornou fundamental à vida, tudo que fazemos é regrado pelo relógio, tudo tem um tempo delimitado, somos escravos do relógio. Há, inclusive, um metafísico, John McTaggart, que desenvolveu uma teoria segundo a qual para o tempo existir ele não pode existir. Segundo ele, o tempo precisa de dois referenciais, dois modos de enxergá-lo que somente juntos são capaz de defini-lo. Porém ambos são contraditórios; para uma série, como McTaggart definiu, existir, a outra deve ser
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tida como falsa. O tempo, portanto é irreal. Se considerarmos que tempo envolve mudança e que estamos sempre no presente, o evento que estamos vivendo não sofre alteração pois não tem nada que sirva de base de comparação. Ele é sempre presente e a partir do momento que muda, passa a ser passado. Somos sempre presente. Ainda assim, nosso presente, quem somos, é consequência de todo o nosso passado. Carregamos o passado para construir o presente. É aqui que a memória se faz importante: é a principal evidência da existência do tempo. Metaforicamente, caminhamos pelo futuro pisando no presente e enxergando o passado. Tudo que somos e fazemos tem o futuro de ser passado. Somos presentes e seremos passado. Do mesmo modo, vivemos no presente tentando prever o futuro, tentando adivinhar o que vai acontecer para conseguirmos lidar melhor com as situações. Desconhecer o futuro, não ter um plano, não conseguir ver o que está por vir é talvez um dos nossos maiores receios. Não sabemos lidar com o caos das infinitas possibilidades porque precisamos organizar e dar um sentido a tudo. No fundo, nossa única certeza é o tempo, e o que era futuro caminha para o passado. Somos presentes, seremos passado e fomos futuro. O outro tempo, classificado aqui como tempo do Homem, é aquele que sentimos, que percebemos. Ele é completamente subjetivo e individual. Se no primeiro caso a divisão se dava pela soma de segundos, aqui é resultado do conjunto de momentos, instantes. É essa a unidade do tempo do Homem, o menor período de tempo perceptível, quase impossível de se definir; é o presente que divide o futuro do passado. Em contraponto, encontramos o eterno, que não tem duração, que é para sempre. A ideia de algo que não tem fim nos parece improvável, senão impossível. Se nem ao menos conseguimos provar o tangível, o tempo que vivemos, que dirá sua extensão máxima tanto pro passado quanto pro
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futuro. Nossas experiências alteram a duração desse tempo, todos alguma vez já sentimos um evento passar mais rápido ou devagar que o comum. Nesses casos, associamos essa diferença à intensidade do momento que vivemos. O livro entra aqui como um dilatador desse tipo de tempo - a partir do momento em que imergimos em uma obra, passamos a ignorar tudo em nossa volta. O próprio livro tem seu tempo, os anos de uma história pode se passar em algumas páginas. Tornamo-nos parte daquela narrativa e, consequentemente, do seu tempo. Quanto maior for a experiência proposta pelo livro, maior é essa imersão. O tempo não é só uma criação humana, é parte importante de quem somos. Podemos dizer, inclusive, que ele é nosso sexto sentido, até maior que isso, uma vez que conseguimos nos adaptar a uma deficiência de qualquer um dos outros cinco, mas viver sem noção de tempo é algo completamente inimaginável. O tempo é o que nos constrói, é nossa sobrevivência. Rodrigo lins
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S O B R E O “Noturno o rio das horas flui do manancial que é o amanhã eterno.”
Incrustada no meio do livro, essa frase me agarrou pelos olhos. Percebi que ela merecia minha atenção, mais do que a de uma simples primeira leitura. Mesmo assim, pequena e tímida, está presente nela um fator quase constante do tempo sobre a humanidade. Assim como as águas de um rio, o tempo flui sobre nós apenas uma vez, é impossível voltarmos para sentir aquela fluidez momentânea novamente. É fato, também, que a presença desse tempo que nos ronda é constantemente ignorada. Cada hora, minuto, segundo e instante é único e nunca será repetido/vivido novamente. Esse talvez seja um dos desejos impossíveis mais cobiçado pelos humanos, a capacidade de reviver um momento. Entender que o tempo não se repete e que tudo só acontece uma vez talvez seja o grande ensinamento atrelado ao tempo. Temos implícito em nossa existência uma efemeridade. Nossa passagem é breve. Por isso devemos ter a consciência da importância e relevância de todas as passagens e tempos de cada vida. Ao tentar recordar ou relembrar nossos momentos passados, entramos em contato com a atividade humana mais atrelada ao tempo, a memória. A memória é uma grande compilação de recordações, que não se limitam à nossa vivência mas a qualquer atividade que faça com que tenhamos que nos ligar ao passado. Qualquer pensamento, fala, ação, contato se utiliza, em algum momento, da memória. Vale ressaltar que, quando conectada a recordações de momento, a memória existe primordialmente como representação de algo já ocorrido. Como uma esperança esboçada da vontade que aquele momento possa existir novamente, uma revisitação daquele instante, sem suas cores, cheiros, emoções. Como uma tentativa falha de agitar a água já serena que descansa do outro lado da cachoeira.
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É interessante ver como a memória, na mitologia grega, tem um papel fundamental para o ser humano como fator determinante da vida. No mito grego, Cronos (Deus do tempo) devora seus filhos para evitar a profecia que afirma que um de seus herdeiros irá lhe destronar. Gaia, mãe dos filhos de Cronos, vai até a Titã Mnemosine (Deusa da memória) e lhe pede ajuda para acabar com essa destruição. Mnemosine aconselha Gaia a trocar seu próximo filho, Zeus, por uma pedra na hora da oferenda. Gaia segue o conselho da Titã e esconde Zeus de seu pai. Zeus cresce escondido e anos depois cumpre a profecia, destronando Cronos e libertando seus irmãos da barriga do pai. Nessas poucas linhas, vemos um ensinamento grego que constantemente nos atinge. O tempo irá nos devorar e o único modo de fugir dessa destruição é pedirmos ajuda à nossa memória. Ela é nosso ponto de contato com o passado, e, considerando que somos o resultado de nosso passado, a memória é nosso ponto de contato com nós mesmos. Permanecendo ainda na mitologia grega, podemos analisar outra grande contribuição dos gregos para o estudo do tempo. Apesar de Cronos ser o Deus do tempo, existia uma divisão de seu poder. Kairos, filho de Cronos, é o responsável pela natureza do momento. Essa divisão proposta pelos gregos é interessantíssima, é como se o momento tivesse tamanha importância que precisava de regras e um comando exclusivo. E, se formos analisar o momento, ele realmente tem uma existência própria dentro do tempo. O momento é composto por períodos em que breves passagens de tempo representam muito mais do que apenas o tempo (físico) ali contido. Ao pensarmos nas passagens de nossas vidas, nos deparamos que todas as nossas vivências se baseiam num momento único de cada passagem. Todas as suas experiências, conhecimento, amores, relações, idéias, esperanças e pensamentos necessitam de um momento para acontecer, e é desse momento que lembramos. Ouso dizer que ao término da destruição de
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Cronos toda sua consciência é formada por Kairos e seus momentos. Se voltarmos ao rio do tempo, perceberemos que as águas que passam despercebidas não são cobiçadas. Ao mesmo tempo que a memória é nossa ligação ao passado, é implícita a importância do futuro em nossas vidas. Apesar de vivermos um eterno imediatismo, grande parte de nossas ações e pensamentos funcionam em virtude de um planejamento para um futuro, mesmo sabendo que esse futuro pode não existir. É importante ressaltar que o futuro é o resultado de diversas ações do passado, o que nos leva a uma interessante questionamento: ‘cada indivíduo tem uma infinidade de futuros possíveis que podem estar acontecendo ao mesmo tempo’. Ou seja, cada ação que fazemos muda nosso futuro de alguma maneira, uma simples decisão de ir pela direita e não pela esquerda vai acarretar em alguma mudança no futuro. Ao estar numa travessa e escolher ir pela direita, você elimina a opção de ir pela esquerda; todavia, podemos imaginar as possibilidades de futuro caso você tenha ido pela esquerda. O nome desse efeito é ‘Linhas Temporais Paralelas’, e ele exemplifica bem a questão de infinitas possibilidade de futuro. A noção de que temos infinitas possibilidades de futuro nos leva a outra teoria, o Fatalismo, que afirma que o futuro é imutável. De acordo com o Fatalismo, existem cinco regras que possibilitam afirmar que o futuro é imutável. São elas: (1) Existem várias possibilidades de futuro; (2) Toda possibilidade pode ser verdadeira ou falsa; (3) Se 1 e 2 são verdadeiras, logo, existe uma junção de possibilidades que, juntas, podem prever o futuro, uma linha de todas as possibilidades verdadeiras; (4) Se 3 é verdadeiro, logo, tudo que acontece no futuro é imutável; (5) O futuro é imutável. A partir do Fatalismo podemos entender que não importa o que fazemos nós não conseguiremos alterar nosso futuro. Por exemplo: ao termos noção de que existe uma linha do futuro em nossas vidas e tentarmos mudar isso, nós, na
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verdade, não estamos mudando, pois em algum momento era previsto que isso aconteceria e que tentaríamos a mudança. O Fatalismo atinge efeitos que consideramos básicos, como o livre arbítrio. Temos a noção de que possuímos total controle sobre nossas vidas; porém, de acordo com os Fatalistas esse controle é apenas uma ilusão. Ao citar passado e futuro, automaticamente nos remetemos ao presente. Teoricamente, o presente é definido pelo agora, o momento da vivência, o seu, leitor, é o exato momento em que você lê essa frase. Pronto, agora é passado. Santo Agostinho irá escrever sobre a delicadeza e a eterna efemeridade do presente com uma interessante lucidez: “Antes de começar, o poema está em minha antecipação; nem bem o acabo, na minha memória; mas, enquanto o digo, se espicha na memória, devido ao que eu já disse; na antecipação, devido ao que me falta dizer. Aquilo que acontece com a totalidade do poema, acontece em cada verso e com cada sílaba. O mesmo afirmo da ação mais ampla de que o poema faz parte, e do destino individual, que é composto de uma série de ações, e da humanidade, que é uma série de destinos individuais.” O presente pode ser visto, então, como esse eterno elo que transforma futuro em passado. Tentar viver o presente, portanto, é impossível, uma vez que, ao ter consciência do momento do presente, aquilo já se torna passado. É relevante notar também a construção do rio do tempo. O rio, e sua fluidez, não se fazem com uma só gota, mas com a junção de todas as gotas em sinergia. Assim, da mesma forma, é nossa relação com o tempo. Somos a soma de passado, presente e futuro num só estado mental. Somos um aglomerado de memórias do passado que se unem para enfrentar o possível presente, aspirando sobre o futuro.
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A soma de todas essas ações do tempo nos envolta como um furacão, em todo os instantes. Tudo o que fazemos, pensamos, agimos e aspiramos são criações cognitivas construídas a partir do tempo. Não conseguimos distinguir, em meio à confusão, o nível dessas informações nos atingindo, nossa percepção não consegue se orientar com a quantidade de facetas que nos persegue. O resultado é uma abstenção natural de todo esse furacão, nos isolamos do efeito da destruição do tempo e vivemos como se nunca fossemos destruídos. Talvez seja esse um fenômeno caracteristicamente ocidental aqui apresentado. É fato curioso, e imprescindível da ligação humana, como lidamos com a possibilidade do fim de nossa existência. Parece longe, impossível, porém iminente. A relação que construímos com o possível fim do tempo tem total relação com nossa ligação com a eternidade. Podemos citar 3 períodos eternos que se caracterizam pela relação tempo-homem. A eternidade pré-vida, a eternidade da vida e a eternidade pós-vida. O jeito com que nos relacionamos com a questão da eternidade influencia totalmente no modo como vivemos. É fato também que a eternidade sempre foi uma busca do ser humano, como se pudéssemos alongar o tamanho de nossa linha do tempo, ou ainda, vivermos um tempo que supera a eternidade da vida. Aceitar a possibilidade de que somos apenas uma parte mínima de uma fração que está inserida dentro de uma linha do tempo universal e infinita é talvez um dos questionamentos mais pertinentes vinculados ao estudo do tempo. É numa conclusão parecida que Jorge de Lima chega, ao estudar a relação do homem com a eternidade: “...Chego de antemão a esta conclusão: a vida é pobre demais para não ser também imortal. Mas nem sequer temos a segurança de nossa pobreza, pois o tempo, facilmente refutável no sensorial, não o é também no
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intelectual, de cuja essência o conceito de sucessão parece inseparável.” (LIMA, 1936, p. 34) Esse talvez seja o principal legado que o processo do estudo do tempo tenha me causado. Estudar esse fator natural mutante e sua implícita ligação com o homem cria um processo de formação de humanidade. Uma experiência que recria nossas vidas e nossos atos, nossas prioridades e nossos anseios, nossos amores e nossa ligação com o mundo. É isso, a água do rio está passando e a fonte se secando. Felipe Sabatini
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Durante todo o processo produzimos diversos livros, partindo dos mais diversos pressupostos, com a intenção de experimentar e expandir ao extremos os limites daquele objeto que conhecíamos como livro. Analisaremos nesse capítulo cada livro, com dados da sua produçào e relatos do processo de cada criação.
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Data de concepção: 16/06/2012 Tipo de papel: Pólen Tipo de impressão: Laser Tamanho: 12,5x18 cm [fechado] Número de páginas: 68 A cultura tem uma relação de interdependência com o Homem; assim como ele é uma síntese de toda a influência cultural que sofre, parte dessa cultura é criada e renovada por ele, sendo assim seu receptor, transmissor e criador. Essa construção cultural constante foi a base do nosso projeto e se mostra muito presente durante o próprio manifesto. Uma vez estabelecida a íntima relação entre Homem e cultura, a figura humana, aqui representada por rostos diversos em mistura com elementos da natureza, ganha papel de coadjuvante do texto. Para retratar essa figura humana, optamos por utilizar diferentes rostos, sempre sobrepostos por imagens de ondas ou nuvens. As ondas e nuvens foram escolhidas por serem elementos da natureza que mantém a mesma relação de ciclo que o homem mantém com a cultura. Tanto a nuvem como a onda se utilizam de parcelas próprias para se reproduzirem. Graficamente usamos como suporte: formato, alinhamento, imagem e capa. As imagens do homem variavam em tonalidades de cian e magenta, e o texto vinha representado ao lado em roxo (soma, cian + magenta). O texto tinha uma preocupação formal de ocupar a mesma área da foto, criando uma relação do conteúdo da imagem com o conteúdo do manifesto em si. Em contraponto, o artigo do Ítaú Cultural é escrito na mancha do negativo do conteúdo do resto do manifesto, como se a informação sobre o manifesto viesse de fora pra dentro, completando o espaço deixado pelo conteúdo original. A capa traz todo o conteúdo da publicação em uma só página, causando uma sobreposição e um certo caos. Ali, novamente, o maior conceito do manifesto: tudo está acontecendo junto, sendo somado.
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Data de concepção: 20/07/2012 Tipo de papel: Couché Tipo de impressão: Quadricromia - 4x2 Tamanho: 23x17 cm [fechado] Número de páginas: variado Também baseados no texto de Otto Lara Resende, os três livros procuram, através de linguagens diferentes, traduzir o conceito do texto. O primeiro deles tinha o preceito de ser inteiramente tipográfico; usamo-nos da tipografia não para transmitir o conteúdo do texto, uma vez que o texto em si sangra para fora da página tornando impossível sua leitura completa, mas para saltar aos olhos aquilo que passa despercebido mas sem o qual aquele conteúdo não se tornaria possível, a própria tipografia. Tornamos evidente para o leitor o desenho e os detalhes das letras - o que era suporte para um conteúdo, aqui vira imagem. A própria fonte escolhida, American Typewritter, tem um desenho muito característico, com curvas fortes que se valorizam ainda mais com essa ampliação. Parte dessa banalização do olhar pode ter origem no excesso de informação visual ao qual somos submetidos todo dia. Acabamos por criar um filtro para destacar aquilo que supostamente vale nossa atenção, e nesse processo perdemos coisas valiosas escondidas no meio desse resto. A diagramação reflete esse caos: é tão estourado, tão gritante, que tudo perde a força. O leitor pode passar reto, ler aquelas letras mais como imagem do que texto. Ou pode de fato ler os pedaços do texto e tentar abstrair a essência do texto; não é a falta do texto integral que o impedirá de compreender a ideia por trás daquelas palavras. Outra linguagem proposta foi a fotográfica. Nesse livro escolhemos trabalhar através do estranhamento, captando fotos de pequenos ímãs em diferentes configurações e desconstruindoos em cada página através de mosaicos. Cada página parece um cenário completamente diferente, quando na verdade são partes de um todo que pode ser visto no final do livro. O olhar aqui é a criação dessas novas imagens usando artifícios próprios da
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fotografia, como foco e posicionamento, que criam essa ilusão. Cabe ao leitor, portanto, se atentar para a configuração desses ímãs e perceber a repetição de algum deles, forçando de certa forma, o treinamento do seu olhar. Porém, para não deixar o leitor completamente ao relento, colorimos uma coluna por foto, indicando ao mesmo tempo o movimento do olhar, da esquerda para a direita, e a parte do todo, uma vez que a última foto é totalmente preenchida pela cor. A desconstrução das fotos nos mosaicos desafia o leitor a remontá-las mentalmente como imagina que eram as originais, convidando-o a gastar mais tempo observando os detalhes. A última proposta dessa família de livros foi um livro exclusivamente gráfico que traduzisse a essência do texto. Buscamos representar a formação do olhar através de uma linha que, assim como uma visão embaçada tentando focar em algo, se multiplica em diferentes direções até atingir uma definição precisa, no caso o ponto final, o objeto. A construção da linha vai se mostrando complicada e gigante pelo caminho, cheia de vertentes, é como se fosse uma representação de toda a grandiosidade e possibilidades do olhar, que acaba se perdendo em um único objeto. O texto acompanha esse movimento: não se consegue ler o conteúdo inteiro da página de uma vez, é preciso ir até o final do livro para conseguir ler a linha inteira e então voltar para o começo, algo como contemplar um mesmo assunto tempo o suficiente para o entender por completo.
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Data de concepção: 08/08/2012 Tipo de papel: Pólen Tipo de impressão: Laser Tamanho: 10x15,5 cm [fechado] Número de páginas: 20 O livro Espectro foi concebido a partir de uma discussão sobre reprodutibilidade, questão recorrente ao se falar de livro. Documentamos, através de fotografias, a queima do livro tipográfico da série “Olhares”. A partir do momento que a obra original se consome em chamas, a imagem mais próxima ao livro, agora inexistente, é paradoxalmente, ele mesmo sendo destruído. As poucas palavras inteligíveis nas imagens ganham uma importância ainda maior, sendo o contato mais próximo e fiel ao que era o livro. Cria-se aqui uma relação íntima entre aquilo que representa e aquilo que é representado. Por se tratar de um livro único a ser queimado, a captação das fotos precisou passar por diversos ajustes antes de acontecer de fato. A preocupação se deu pela falta de luz em contraste com a intensa chama, assunto principal da foto, que poderia sobreexpor a imagem, tornando o texto original completamente ilegível. Outro aspecto que exigiu cuidado foi coletar as cinzas e criar o sistema que anexaria, ao final do livro, uma pequena porção dessas cinzas. No final, Espectro se apresenta não só como a representação da queima do livro, como também o objeto mais próximo de um livro que não existe mais, tornando-se assim um verdadeiro espectro, uma imagem incorpórea de algo falecido.
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LIVRÁRVORE
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Data de concepção: 14/08/2012 Tipo de papel: Folhas Tipo de impressão: n/a Tamanho: 10x11 cm [fechado] Número de páginas: 12 O mito grego nos conta a história de Cronos, Deus do tempo, que, por temer a profecia de que seus filhos o destronariam, começa a devorar seus filhos para guardar dentro de si os futuros herdeiros. Gaia, mãe dos filhos de Cronos, não aceita entregar seu novo filho, Zeus, e junto com Mnemosine, Deusa da memória, troca o corpo da criança por uma pedra no momento da oferenda. Zeus cresce e, cumprindo a profecia, rouba o lugar de seu pai após uma grande guerra. Apesar de breve, a entrelinha desse mito grego é bastante interessante e base desse livro. O tempo irá te devorar. Começamos então uma pesquisa para tornar material esse processo de destruição do tempo, ou algo que provasse sua existência. Ao agrupar e refilar em um mesmo tamanho folhas de diferentes árvores, tiramo-nas de seu contexto e funções originais e damo-las características que remetem, seja pela encadernação, sequencialidade ou estrutura, a um livro. Mesmo sem uma narrativa clara, cada folha conta uma história, e o modo como o tempo age sobre elas, de diferentes maneiras para cada uma, torna clara e palpável sua ação. A experiência com o livro deixa de ser imediata e se torna algo que se dilata no tempo, na qual o contato evidencia as deformações causadas não só pelo próprio tempo mas também pelo manuseio muitas vezes descuidado de seu usuário, que acaba por despedaçar suas páginas. O processo partiu de uma discussão sobre os ready-made, objetos comuns tirados de seu contexto ganhando status artístico. Começou-se pensando em objetos que poderiam virar substrato para as páginas do livro, alterando assim seu “propósito”. A partir do momento que ganham o formato e características
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de livro, tivemos uma preocupação de que a sequência desses substratos tenha alguma relação entre si, formando assim uma narrativa não clara. Dentre os diversos objetos pensados, a folha de árvore foi escolhida por trazer em si uma ligação forte com o tema que escolhemos para o PGD, o tempo. Além da sua própria materialidade, que permite a melhor encadernação, a ordem que escolhemos reflete um cuidado com a sequência que pode aparentar uma aleatoriedade, e ao utilizar um objeto “vivo” como base da estrutura, teríamos no livro seu processo de destruição.
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Data de concepção: 21/08/2012 Tipo de papel: Papel de revelação de fotos Tipo de impressão: revelação manual Tamanho: 17,5x13,5 cm [fechado] Número de páginas: 24 O livro Revelações foi desenvolvido após uma leitura do texto Vista Cansada, de Otto Lara Resende, no qual o autor questiona a importância de como usamos nosso olhar. Propomos, nesse livro, a transportação do movimento do olhar para a página, passando pela escuridão até a formação de imagens com a luz. Escolhemos trabalhar no livro por meio de um processo completamente analógico, que se aproximasse ao máximo do olhar humano de fato. Para isso, todas as fotos foram captadas com câmera e filmes analógicos; os assuntos escolhidos, em um primeiro momento, parecem gratuitos, refletindo justamente essa anestesia visual descrita por Otto. A revelação se faz presente não só no título, onde através do baixo relevo se esconde, mas também se revela para olhos mais atentos. Primeiro, com a sequencialidade das fotos nas quais a luz, foto por foto, vai dominando a página e revelando a luz do olhar. Existe também a revelação de cada página do livro, afinal ele é impresso em papel fotográfico, criando assim uma revelação da página. O mesmo processo de revelação garante ainda que o livro, assim como o olhar, seja único e irreprodutível. Afinal, as fotos só foram reveladas uma vez, sendo assim, impossível que uma outra revelação obtenha o mesmo resultado do que as que formam o livro. A dificuldade desse trabalho foi justamente encontrar situações onde o assunto se mostrasse desinteressante em um primeiro momento e com uma predominância de luz, para que essa escala tonal, que acontece no percorrer do livro, ficasse clara. Outra discussão que surgiu durante o processo foi de que modo encadernar as folhas, uma vez que o verso, a princípio, não seria preenchido. Percebemos, porém, que esse espaço garante um respiro às fotos, que convida a um maior tempo de apreciação.
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Data de concepção: 10/09/2012 Tipo de papel: Velcro Tipo de impressão: n/a Tamanho: 5x7 cm [fechado] Número de páginas: 12 A obra em questão partiu de um desafio; fazer um livro apenas com substratos refilados em um mesmo tamanho, sem qualquer tipo de intervenção, seja corte, impressão ou colagem. O livro, literalmente, fala por si só: características das folhas como textura, transparência, gramatura, tal qual sua ordenação são os principais elementos de comunicação. Ainda com base no texto Vista Cansada, o livro reflete a dificuldade de treinar o olhar, de romper com essa rotina visual a qual estamos submetidos, traduzido justamente nesse movimento de ruptura, no qual o leitor se vê obrigado a romper com o lacre interno do livro para poder usufrui-lo. No seu interior, encontram-se uma folha preta, algumas translúcidas e, no centro, uma branca. Entendemos essa sequência como o exercício do olhar; passado o primeiro desafio com o velcro, o leitor se depara com o caos, a sobreposição de tamanha quantidade de informação resulta em uma grande escuridão. Se ainda assim continua, seu filtro começa a esclarecer o assunto até chegar no que procura: a luz. Trabalhar apenas com substratos para comunicar todo um conceito foi um fundamental para entendermos a importância tanto do aspecto material do livro - a textura da página, opacidade, encadernação -, quanto de características implícitas ao livro, como sequencialidade, ritmo, ordem. São aspectos com um poder de comunicação que, por vezes, nos esquecemos.
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Data de concepção: 27/09/2012 Tipo de papel: Fabriano Tipo de impressão: Giz Tamanho: 12,5x 9,5 cm [fechado] Número de páginas: 8 Seguindo a mesma premissa de outras obras como Livrárvore e Iminência dos Corpos, esta obra se transforma com o contato do leitor. A partir da capa, coberta com giz preto, o conteúdo se mistura e se propaga ao longo das páginas. Todas foram coloridas seguindo uma paleta de cores, representando desde o amarelo do amanhecer ao azul da noite. Encontramos três tempos em um livro. O presente, a página que estamos tocando e observando, é a única realidade concreta que temos acesso. O passado, as folhas que já viramos e que não passam de memória. E o futuro, das possibilidades que as páginas que ainda não alcançamos guardam. Passado e futuro, porém, nunca serão acessíveis; não importa se voltarmos ou avançarmos algumas folhas, aquele será sempre o nosso presente. O mesmo acontece com o tempo do Homem. Estamos em contato apenas com o presente, carregando experiências do passado e usando-as para tentar prever o futuro. Nosso objetivo com esse livro foi materializar essa passagem do tempo. Conforme o leitor avança, carrega consigo e para as páginas seguintes resquícios da capa. O livro se forma com o manuseio, deixando as marcas de quem usufruiu dele. Sua produção foge completamente da rotina de um designer, uma vez que pelos meios convencionais é impossível reproduzilo industrialmente. Se no computador começamos planejando o todo antes do conteúdo, nesse caso foi um trabalho que começou página a página para depois ser montado como um livro de fato.
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RELEITURA EM BRANCO
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Data de concepção: 08/10/2012 Tipo de papel: Papel alta print e image mate Tipo de impressão: Offset Tamanho: 14x20 cm [fechado] Número de páginas: 150 Também produzido no curso da Edith Derdyk, Releitura em Branco tem como base o livro “Memórias do Brasil” de Evgen Bavcar. O fotógrafo, conhecido pela sensibilidade ímpar para compor suas fotos, mesmo cego, reproduz no livro alguns de seus textos e fotografias produzidos durante sua passagem pelo Brasil, podendo ser visto como uma espécie de diário de viagem. A alteração do livro se deu no sentido de ressaltar esse aspecto de diário; para isso, reescrevemos manualmente o texto impresso, sobrepondo-o ao original e criando uma textura que dificulta ao leitor compreender qualquer uma das duas escritas, dado que um diário é algo pessoal que criamos para se tornar um arquivo fiel de nossas memórias. Decidimos, portanto, dificultar o acesso a esse arquivo, tornando-o apenas resquícios dessa memória. Outro artifício muito usado é juntar ao diário pequenas lembranças, seja passagens, imagens ou até um guardanapo de um restaurante memorável, tudo se torna objeto colecionável a ser incorporado. O que ocorre muitas veze, porém, é a preocupação excessiva de registrar todos os momentos e se esquecer de vivê-los. Traduzimos isso no livro através da sobreposição de fita adesiva, geralmente usada para fixar esse adereços ao diário, a um ponto que o próprio título do livro se torna ilegível.
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MEMÓRIAS EM DELÍRIO
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Data de concepção: 12/10/2012 Tipo de papel: Color Plus Tipo de impressão: Laser Tamanho: 11,5x16 cm [fechado] Número de páginas: 6 Memórias em Delírio foi nosso primeiro projeto experimental com um cliente. Ele é feito a partir de poesias e poemas de Ciro Garcia. Queríamos trazer para esse projeto gráfico uma discussão sobre as possibilidades de um livro, um livro que também fosse um não livro. Pensando nisso desenvolvemos o Livro Cartaz, que teria a função de ser um livro e, ao mesmo tempo, um cartaz. Pesquisamos facas e dobras que permitiam esse movimento do livro até chegar no formato ideal. O projeto estrutural é desenvolvido a partir de um A3 que é dobrado ao meio horizontalmente e depois dobrado ao meio mais duas vezes, transformando assim num A5. É interessante notar que num primeiro momento apenas um lado do papel permanece visível, fazendo com que um lado dele fique protegido, permitindo assim a impressão do livro de um lado e do cartaz no outro. O projeto gráfico do livro traz uma representação de um movimento que ocorre nas narrativas do poeta. Retas que não se encontram, apenas flertam com suas possibilidades. Além disso, o texto da parte do livro é caracterizado por um movimento de leitura orientado pelo autor, traços sinalizam as pausas e o hiato entre palavras no momento da leitura.
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Z E R O.O I TO : DE PASSAGEM
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Data de concepção: 09/11/2012 Tipo de papel: Color Plus Tipo de impressão: Quadricromia - 4x1 Tamanho: 13,5x19 cm [fechado] Número de páginas: 8 Quando paramos para observar um relógio de parede, percebemos que aquele mecanismo criado para nos situar no tempo não é tão fiel à realidade quanto imaginamos. Enquanto percebemos o tempo como algo fluido, no qual as mudanças são ininterruptas e de certa forma validam o tempo como algo linear e constante, o relógio o representa de uma maneira diferente. Seu ponteiro dos segundos permanece 0,8 segundos em uma marcação até pular para o segundo seguinte, como se durante esse período tudo permanecesse absolutamente imutável e apenas nos 0,2 segundos dessa transição para a marcação seguinte os eventos de fato acontecessem. A publicação zero. oito possui uma premissa muito clara; ter como principal linguagem a fotografia, a qual deve ser captada com exatos 0,8 segundos de exposição. Cada edição terá um tema que explore essa singularidade do relógio e que abra novas possibilidades no campo da fotografia. A primeira edição, desenvolvida durante a Segunda Feira de Publicações Independentes do SESC Pompéia em parceria com a Editora 3 dias, tem como norteador o tema “de passagem”. Captamos pessoas em momentos de travessia, no qual o destino tem pouca importância, uma vez que o foco está justamente no momento. O resultado são imagens nas quais o único assunto evidente são os corpos em movimento, o resto não passa de manchas que se prolongam pela página. Exploramos, nessa primeira tiragem, a relação que se cria entre imagem e texto. Decidimos por imprimir quatro versões que diferem na ausência ou localização do texto, assim como o tamanho e posição das imagens. Desse modo, conseguimos analisar como essa relação se dá. Quando sobreposto, o texto
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tira força da fotografia ao mesmo tempo que cria nova imagens a partir de sua sobreposição. Diferente de quando é apresentado como uma introdução à obra, deixando para as imagens um poder de comunicação maior e mais autônomo. A versão composta exclusivamente por fotografia também tem suas peculiaridades; quando diagramada com duas imagens por folha, cria-se uma relação entre elas que contribui com o conceito do livro, o movimento de passagem se torna mais claro. Por outro lado, quando a imagem ocupa uma abertura de página isolada, ela ganha maior autonomia e contraste com o papel, criando um ritmo de leitura que se dá apenas pelo movimento das imagens.
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Data de concepção: 04/03/2013 Tipo de papel: Velcro Tipo de impressão: Nenhuma Tamanho: 17x 21cm [fechado] Número de páginas: 0 Há livros com os quais o leitor trava uma verdadeira batalha para desfrutar do seu conteúdo, seja pela dificuldade de leitura ou de manuseio. Livros desproporcionalmente grandes ou livros cuja escrita do autor cria um ritmo que o leitor não consegue acompanhar são exemplos de livros que se fazem difíceis de ler. A experiência de leitura muitas vezes se torna um desafio à parte. Tal qual o livro Velcro, trabalho que serviu de inspiração para este livro, o Lvr se fecha ao leitor ao mesmo tempo que explicita aquilo que o impede de abrir a obra. O velcro colado em uma tampa de vidro esconde conteúdo do livro, visível através da capa transparente mas inalcançável no sentido de ser uma massa preta, sem comunicar nada. A força física necessária para abrir o livro, somada ao perigo de cortes pelo vidro, deixa clara a intenção de ser um livro para ser mantido fechado. A mensagem não se transmite através do seu conteúdo mas pelo livro como objeto. O tempo desse livro é suspenso. O ritmo e o tempo das páginas aqui é substituído pela exploração do seu receptáculo.
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Data de concepção: 27/03/2013 Tipo de papel: Pólen Tipo de impressão: Giz Pastel Seco Tamanho: 13x 19cm [fechado] Número de páginas: 365 Começamos a pensar no 365 como uma versão repensada do Dianoitedia. Tal qual o livro que originou esse, a matéria prima do livro é o leitor. O parágrafo a seguir, presente na análise do Dianoitedia, serviu de base para esse trabalho. Encontramos três tempos em um livro. O presente, a página que estamos tocando e observando, é ela a única realidade concreta que temos acesso. O passado, as folhas que já viramos e que não passam de memória. E o futuro, das possibilidades que as páginas que ainda não alcançamos guardam. Passado e futuro, porém, nunca serão acessíveis; não importa se voltarmos ou avançarmos algumas folhas, aquele será sempre o nosso presente. O mesmo acontece com o tempo do Homem. Estamos em contato apenas com o presente, carregando experiências do passado e usando-as para prever o futuro. Nosso objetivo com esse livro foi materializar essa passagem do tempo. Conforme o leitor avança, carrega consigo e para as páginas seguintes resquícios da capa e páginas seguintes. O livro se forma com o manuseio, deixando as marcas de quem usufruiu dele. O leitor aqui se depara com 365 páginas pintadas à mão, que vão do preto da capa e contracapa até o centro vermelho. Do amanhecer escuro até o mais iluminado dia e terminando novamente em noite. Um dia que se passa em um ano e um ano que passa pelos dedos do leitor. A transição das cores não se dá página por página. Só é sentida quando avançamos uma grande quantidade de folhas de uma vez. No fim o leitor constrói o livro junto com seu próprio tempo.
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Data de concepção: 02/04/2013 Tipo de papel: Variado Tipo de impressão: Variado Tamanho: Variado Número de páginas: Variado Esse livro surgiu da proposta de criar um livro que qualquer pessoa pudesse fazer com materiais facilmente encontrados. O leitor assume então papel também de criador e editor. Partindo desse pressuposto, pensamos qual poderia ser a fonte material das páginas e o jornal se mostrou de fácil acesso, sendo encontrado em praticamente toda casa e com fácil manuseio. Criamos então um manual de instruções de como fazer o seu próprio “Recorte Diário”, como nomeamos esse livro. A aleatoriedade do resultado nesse caso se torna produtiva no sentido de criar manchas gráficas que não apenas desfuncionalizam o jornal como fonte de algum conteúdo, mas também incitam o aspecto imagético das letras com a reordenação tipográfica. Bebemos da mesma fonte que artistas como Waltercio Caldas que, ao lançar o Manual da Ciência Popular, coloca em discussão a aura da obra de arte ao permitir que qualquer um replique seus trabalhos. O “Recorte Diário”, nesse sentido, não se limita a um livro com dimensões, páginas e conteúdos fixos. Sua essência é justamente o oposto disso, sua multiplicidade. O livro, neste caso, deixa de ser um objeto tradicional, revestido por suas capas e representado por seu conteúdo. Ele é apenas um guia, um meio. Que só existe e se faz livro quando o usuário constrói essa sua forma física.
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Data de concepção: 13/04/2013 Tipo de papel: Couché Tipo de impressão: Laser Tamanho: 11,5x15 cm Número de páginas: 16 Nessa edição da zero.oito são as exposições e seus espectadores que ocupam as páginas do livro. É neste ambiente, afinal, que o tempo se multiplica, se alonga e se torna ainda mais individual. Assim como em outras edições, uma frase de Bernadette Panek foi nosso norte enquanto produzimos este livro; “O museu descreve objetos com os quais o observador já não tem uma relação vital, que estão num processo de extinção e devem sua preservação mais à questão histórica do que às necessidades do presente”. É o espectador quem decide quanto tempo ele vai dedicara uma obra. O tempo da obra também faz parte da sua concepção, não apenas aquele que o artista dedicou para realizá-la, mas também todo o tempo que ela ficou conservada. Ele cria um tempo de apreciação, de entendimento e de reflexão e acaba se colocando como um agente passivo nesse ambiente. Invertemos então o foco da atenção, não são as obras que ganham o espaço das fotos mas seus observadores, cada qual com seu tempo. A tridimensionalidade do espaço expositivo é fundamental para criar o fluxo e a narrativa das obras ali expostas. Assim como a sequência de páginas de um livro, a ordem e disposição das obras em uma exposição criam uma experiência única para seus visitantes. Do mesmo modo, ao dividir cada foto em duas páginas, sugerimos que o leitor tente refazer aquela foto original e para isso ele deve trabalhar com a tridimensionalidade implícita da página. Ele acaba criando um espaço novo que simula o espaço em que aquela foto foi tirada. A página dupla é composta pela mistura de duas fotos, que ao mesmo tempo se divergem mas constroem uma nova imagem, formando no papel esse eterno paralelo entre a arte e o homem.
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Data de concepção: 16/04/2013 Tipo de papel: Craft [capa] e pólen [miolo] Tipo de impressão: Laser Tamanho: 10,5x7 cm Número de páginas: 20 por livro Um livro que se divide em dois e funciona a partir de uma leitura simultânea, é assim que esta edição se constrói. São fotos em que em uma metade encontramos algum assunto em movimento e na outra tudo completamente parado. Cada metade se encontra em um livro diferente e somente com os dois alinhados e abertos de modo sincronizado é que conseguimos montar a foto original. Essa divisão possibilita também a criação de novas fotos, juntando metades diferentes. De certa forma, tornamos material a ideia de Charles Baudelaire, lembrada durante o processo de concepção do livro, que diz que “A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável”. Da maneira mais explícita possível, dividimos o fugitivo e o imutável, ambos presentes na mesma foto, e que juntos criam esse novo tempo. Sugerimos ao leitor esse novo modo de ler e conduzir o ritmo do livro. Abrimos, porém, o espaço para, caso seja sua vontade, que ele utilize cada livro separadamente, criando assim uma nova narrativa e forma.
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Data de concepção: 19/04/2013 Tipo de papel: Marfim Tipo de impressão: Laser Tamanho: 6,8x9,8 cm [fechado] Número de páginas: 24 Temos algumas lembranças bem vivas em nossa mentes. Eventos importantes ou não, mas que ficam marcados de uma maneira que recordamos dos mínimos detalhes e somos capazes de recontar uma infinidade de vezes. Há também algumas lembranças um pouco mais enfraquecidas, as quais lembramos dos principais acontecimentos mas de cuja imagem não nos lembramos muito claramente. São essas imagens que são encontradas nesta edição, de eventos do cotidiano, e que remetem de alguma forma ao passado e que se mostram quase sem foco, o suficiente para conseguirmos entender qual é o assunto de cada uma. Seu formato segue a mesma proposta, cada foto está distribuída por diversas páginas, que formam um labirinto. As páginas não tem uma espinha na qual estão encadernadas, mas se sustentam apenas pela ligação com a próxima página. São memórias que vão se juntando pelo ocorrer dos fatos e que formam esse grande emaranhado de imagens que é o passado. O manuseio do livro também se estende em diversas possibilidades. Seu conteúdo só se mostra por completo quando o livro assume um outro formato, o de cartaz. O leitor precisa entender o funcionamento do livro para então desdobrá-lo de modo a formar esse novo formato e finalmente ver o todo. Neste zero.oito, optamos por usar o verso justamente para oferecer ao leitor o texto que serviu como inspiração para essa edição. Waltercio Caldas discute a multiplicidade do formato, sua estrutura e sua função como suporte, o qual se utiliza em muitas de suas obras.
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Data de concepção: 21/04/2013 Tipo de papel: Pólen Tipo de impressão: Laser Tamanho: 21x29,7 cm [fechado] Número de páginas: 18 O tempo de uma expressão facial genuína é instantâneo. Muitas pessoas não percebem a quantidade de caras e bocas que fazem em poucos segundos. São momentos como esses que procuramos captar nesta edição. Posados ou não, aproveitamonos da longa exposição de cada foto para mesclar todas essas expressões, tendo como resultado um rosto novo, um rosto que sente muito e sente tudo ao mesmo tempo. Do mesmo modo, o tratamento que cada foto recebeu expressa essa explicitação da expressão do Homem. Tornamos visíveis as retículas de impressão que, quando em tamanho natural, tornam-se invisíveis a olho nu. Assim como na edição Nostalgia, escolhemos por incluir o texto de Baudelaire que foi o ponto de partida para este livro. O texto aqui entra de modo sútil, no meio das páginas, e acaba criando uma relação direta entre texto e imagem, ainda que o conteúdo dos dois aparentemente não se relacionem. O texto porém, acaba se escondendo na espinha do livro, evidenciando o processo de impressão no qual frente e verso nem sempre são impressos corretamente.
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Data de concepção: 28/04/2013 Tipo de papel: Pólen Tipo de impressão: Laser Tamanho: 5,6x7,7 cm [fechado] Número de páginas: 15 Quando se vive há muito tempo em uma cidade como São Paulo, acabamos tendo uma dimensão de tempo completamente diferente de uma cidade de interior. Tudo tem de ser rápido, tudo é efêmero. Até as grandes construções, feitas para durar décadas, se mostram frágeis frente ao tempo destrutivo da cidade. Perdemos a noção do tempo na cidade porque muitas vezes não participamos dele. Entramos em prédios enormes, habitamos a cidade das alturas e o que acontece no chão passa despercebido. Grande parte dessas ideias discutidas durante o fazimento deste livro surgiram depois da leitura de um trecho do texto de Ana Fani Alessandri Carlos no seu livro “O Espaço Urbano: Novos Escritos Sobre a Cidade” no qual a autora afirma: “Tal instantaneidade do tempo traz como consequência o esmaecimento da memória impressa no espaço, provado pelo desaparecimento dos referenciais da vida humana. Neste contexto, a aceleração do tempo torna as formas da cidade obsoletas sem que sequer tenham envelhecido, como decorrência do fato de que a relação espaço-tempo na sociedade atual é acelerada pela técnica como condição da reprodução capitalista. Esse fato impõe a passagem da qualidade para a quantidade – o tempo da atividade produtiva revela-se abstratamente, através de sua quantificação, e por sua vez exige a produção de um espaço capaz de viabilizar a circulação do produto, tornando, também o espaço, abstrato.” Essa ideia de um tempo artificial criado pelo ritmo de uma grande metrópole foi o estopim para a escolha do motivo das fotos. A verticalização está em cada página. Cada foto tenta congelar esse tempo ligeiro, tenta imortalizar as construções fadadas à reconstrução. Como se tratam de 0.8 segundos, porém, nem a
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câmera consegue rematerializá-las nas páginas. Vemos apenas vestígios, manchas de luz ou de concreto. Paradoxalmente, o livro se desdobra em um grande horizonte. Cada foto compõe uma paisagem nova, completamente horizontal, tentando desfazer essa verticalização que vivemos, tentando estender o tempo para frente e não para cima. No verso dos prédios avermelhados temos a palavra ‘Encima’. Um indício de que tudo ali sobrepõe nossa cabeça e, consequentemente, nosso olhar. É esse movimento de ter de olhar para cima que compõe a narrativa e ritmo dessas fotos.
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Data de concepção: 24/04/2013 Tipo de papel: Craft [capa] e pólen [miolo] Tipo de impressão: Laser Tamanho: 8,5x12,1 cm Número de páginas: 20 Nessa edição partimos de uma proposta diferente. Convidaríamos um artista para realizar as 8 fotos de acordo com uma temática que ele próprio escolheria. Conversamos então com Renata Malzoni, formanda de Artes Plásticas que tem um trabalho tematizado sempre pelo universo doméstico. Ela nos contou que as fotos surgiram depois de uma leitura do livro A poética do espaço, de Gaston Bachelard, que tem sido a base do seu trabalho de conclusão de curso. Pedimos que selecionasse alguns trechos que evidenciassem seu processo e foi de um deles que escolhemos a frase que abre essa edição. O trecho escolhido foi o seguinte: “Por vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo; que no próprio passado, quando sai em busca do tempo perdido, que “suspender” o vôo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço.” Acreditamos que se optássemos pelo trecho inteiro, as interpretações possíveis se reduziriam muito e o livro como um todo se tornaria objetivo demais. Em suas fotos percebemos a delicadeza de atos cotidianos como acender um abajur, preparar café entre tantos outros que no tempo íntimo da casa não acabamos nos dando conta. O modo o qual ela trata suas fotos reforça ainda mais a condição fugaz desses atos. São cores claras, tons puxados para o sépia, um pouco sobreexpostos, como se o momento estivesse para escapar. Tal delicadeza se reflete no papel escolhido. Trata-se de um papel com textura delicada, uma maciez que agrada o dedo tal qual nossa casa nos acolhe. No fim, o livro é a própria delicadeza dos momentos do lar agrupado, tendo sua história contada e protegida pelas hastes de seu telhado.
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Data de concepção: 29/04/2013 Tipo de papel: Ilford Tipo de impressão: Ampliação e revelação Tamanho: 11x11 cm Número de páginas: 8 O trabalho com as imagens nesta publicação foi completamente diferente do resto. Não só por terem sido todas tiradas de modo analógico, mas porque os 0.8 segundos aqui não se deram no momento da captação da foto mas sim na sua revelação/ampliação. Todos os diversos assuntos foram submetidos a uma mesma quantidade de luz no momento da ampliação. Ao contrário da captação, na qual uma exposição longa como 0.8 segundos resulta em fotos com muita luz, na ampliação esse mesmo tempo não é suficiente para queimar o papel e revelar claramente o assunto da imagem. Toda essa ideia surgiu da vontade de recriar o livro “Revelação” sob a estrutura de um zero.oito, afinal as especificidades técnicas eram compatíveis com o projeto. Observamos, então, algumas páginas com fotos quase legíveis e outras com as quais é preciso dedicar um tempo maior tentando observar manchas discretas que indiciam o que poderia ser o assunto da fotografia. O conceito, nesta edição, não se percebe por cada foto mas pelo conjunto delas e entendimento do processo ao qual foram submetidas.
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Data de concepção: 02/05/2013 Tipo de papel: Vegetal Tipo de impressão: Laser Tamanho: 19x12,4 cm Número de páginas: 9 O Teste de Rorschach é um conhecido teste usado na Psicologia, que consiste em apresentar 10 pranchas com manchas de tinta simétricas para os pacientes e, de acordo com suas respostas sobre quais figuras tais manchas lembram, traçar um perfil e/ou diagnóstico aproximado. Trabalhamos nessa edição com fotos cujo assunto está aparentemente estático mas que devido aos 0.8 segundos apresentam um discreto movimento. São situações que na nossa relação com o tempo, uma relação de imediatismo, não conseguimos perceber. Ações que passam despercebidas seja pelo cuidado e consequente precisão de movimentos, como é o caso da foto registrando uma pele sendo tatuada, seja pelo estado de suspensão do tempo que acaba criando, como uma pessoa completamente imóvel usando o celular. Veio à nossa mente uma das primeiras frases do livro de Milan Kundera, “A Insustentável Leveza do Ser”, a qual divaga sobre a teoria do eterno retorno; “No mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de uma insustentável leveza.” É preciso um acúmulo de tempo para explicitar movimentos tão delicados, é preciso forçar para o leitor esse eterno retorno. A fim de ressaltar essa agitação implícita em cada foto, imprimimos todas em papel translúcido, de modo que, ao abrir o livro, o leitor se depare com um grande emaranhado de imagens sobrepostas que transmitem. A sobreposição de uma imagem à outra acaba criando novas formas conforme a leitura do livro avança. Cada foto só se revela quando suspensa do livro; de certa forma é preciso removê-la do seu contexto para conseguir compreender do que se trata.
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S O B R E O O término de nosso trabalho levou automaticamente a uma reflexão sobre toda a nossa trajetória. Trajetória esta que é totalmente representada pelo nosso processo de pesquisa deste projeto. Por ser um trabalho experimental, o primeiro desta categoria, nós não sabíamos ao certo qual caminho devíamos percorrer ou aonde podíamos chegar. Tudo era novo e com inúmeras possibilidades de descobertas, e era isso que tornava o projeto tão instigante. Falar sobre nosso trabalho então, é falar sobre o processo e toda a transformação que ocorreu conosco durante o projeto. Como dito anteriormente, esse mesmo processo é o verdadeiro resultado desse trabalho. Parece evidente para nós, que de fato ele é nosso grande ensinamento. Nosso processo de pesquisa do PGD começou no final de junho, quando decidimos o tema de nosso trabalho junto com nosso orientador, Daniel Trench. Naquele período, tínhamos acabado de desenvolver o trabalho “Manifesto Antropófago” para a disciplina Design de Publicações e Portfolio e começamos a nos interessar pelo universo do livro e suas possibilidades. Passamos o mês de julho desenvolvendo, a partir da crônica “Vista Cansada” de Otto Lara Rezende, os três livros ‘Olhares’ e conversando com nosso orientador sobre nossas primeiras percepções acerca da estrutura do livro. Começamos também a ler “A Página Violada”, o trabalho de mestrado de Paulo Silveira, que é a principal publicação, editada no Brasil, sobre o tema. Também no mês de julho, decidimos que uma das partes mais importantes de nossa pesquisa seria um conjunto de entrevistas, que faríamos durante nosso trabalho. Escolhemos pessoas que tinham uma ligação com nosso tema e que pudessem conversar e discutir sobre questões que apareceriam no decorrer de nossa pesquisa. Em um primeiro momento, definimos os nomes: Wagner Malta, artista plástico; Iuri Pereira, diretor de edição da Editora Hedra; Jacopo Visconti, curador e crítico de arte; Laura Teixeira, ilustradora e membro do coletivo Charivari; Elaine Ramos, diretora de arte da Cosac Naify; Nuno Ramos, artista plástico e Flávia Ribeiro, também artista plástica.
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No começo de agosto definimos como seria nossa entrega, o tema do nosso livro e o cronograma. Optamos por dividir nosso trabalho em duas partes: a primeira seria de agosto até dezembro, e a segunda de dezembro até a data de nossa apresentação. Na primeira parte, focaríamos nosso projeto na pesquisa sobre o tema, construção da parte teórica, montagem de uma biblioteca de referências, desenvolvimento de livros, entrevistas e formulação da proposta final. A segunda parte seria focada na nossa entrega, no nosso livro e no conjunto de verbetes que o acompanharão. Deixamos para a segunda parte: desenvolvimento do projeto gráfico dos verbetes, desenvolvimento do livro sobre o Tempo, últimas entrevistas e pesquisas teóricas. Nesse momento, também definimos o tema de nosso livro, que faria parte de nossa entrega final. Optamos por escolher um tema que tivesse uma ligação com nossos interesses e também um vínculo importante com o livro; escolhemos, então, um assunto que por sua dificuldade se faz interessante, o Tempo. Ainda em agosto, começamos nossa pesquisa sobre o Tempo e lemos nossos primeiros livros sobre o assunto, “A História da Eternidade” de Jorge Luís Borges e “Mitologia Grega - Volume I” de Junito de Souza Brandão. Primeiro, fomos buscar nos gregos o conceito de Tempo para eles e depois tentamos ver abordagens filosóficas sobre as infinitas possibilidades da atuação do mesmo. Também em agosto, fizemos nossas publicações ‘Revelações’, ‘Livrárvore’ e ‘Espectros’; nesses livros nós já incorporamos nossos estudos sobre o tema e as possibilidades dele em publicações editoriais. Um outro momento importante de agosto foi a nossa primeira entrevista, com o artista plástico Wagner Malta. Essa conversa foi marcante pois definimos um delimitador fundamental de nossa pesquisa. Com o artista, discutimos questões sobre o limite do designer e do artista no processo de publicação de edições autorais, além dos grupos que definem e limitam todas as obras produzidas usando o objeto livro. Foi nesse momento que optamos por agrupar todas essas publicações dentro do escopo de Livros Experimentais.
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“Eu acho estranho essa nomeação de livro de artista, porque nessas circunstâncias vocês estão se colocando como artistas. [...] então aí já tem um outro pensamento que você tem que colocar que é menos objetivo, menos amarrado” (MALTA, Wagner) O mês de setembro foi importante para avançarmos nas pesquisas teóricas e nos nossos próprios experimentos. Começamos a pesquisar sobre a estrutura do livro para entender como ele é formado. Para isso, lemos: “O Design do Livro” de Richard Hendel, “A Arte Invisível” de Plinio Martins Filho, “A Forma do Livro” de Jan Tschichold, “Elementos do Estilo Tipográfico” de Robert Bringhurst; “Grid: Construção e Desconstrução” de Timothy Samara e “Novos Fundamentos do Design” de Ellen Lupton e Jennifer Cole Philips. Em paralelo, continuávamos pesquisando sobre o Tempo. Nos dedicamos a entender o tempo como grandeza física, lemos “Uma Breve História do Tempo” de Stephen Hawking. Hawking utiliza esse livro para explicar conceitos físicos para não-físicos, o que torna sua leitura e compreensão bem claras. Ele desenvolve explicações sobre Teoria da Relatividade, a grandeza e a aplicação do tempo, origem do Universo e determinados outros temas. Um dado importante foi que esse livro nos despertou o interesse para pesquisarmos sobre outras teorias físicas, como o caso do ‘Fatalismo’, as diferenças entre o ‘Reducionismo e o ‘Platonismo’ e as teorias de McTaggart’s em “The Unreality of Time”, e vimos o interessante argumento de Carl Sagan em misturar física e filosofia em “Bilhões e Bilhões”. Produzimos nesse mês as publicações: “O Mar” e “Velcro”, estudos de possíveis publicações que depois resultaram em outros livros. No final do mês, participamos do simpósio “Práticas da autorepresentação por meio da publicação”, parte da programação da Trigésima Bienal de São Paulo. Os participantes, europeus, estadunidenses e brasileiros, discutiram as possibilidades do design editorial, como as mudanças que vem sofrendo com a comunicação digital. Jonas Magnusson e Cecilia Grönberg contaram um pouco
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da história do seu periódico, OEI, no qual apresentam reflexões sobre filosofia, literatura, arte e temas relacionados, sempre buscando uma linguagem experimental. Relataram também como está sendo produzir a edição especial da OEI sobre a Bienal: a dupla vai fazer uma espécie de residência em São Paulo enquanto acontece a Trigésima Bienal. Falaram também da dificuldade que é a distribuição de um periódico com um público tão específico e uma produção limitada como é o caso da OEI. Paolo Caffoni e Lina Grumm colocaram em questão o livro como elemento agrupador de pessoas; como exemplo usaram sua livraria, a qual incentiva a produção de obras com caráter feminista. Com esse foco, a livraria começou a ser ponto de encontro de grupos de mulheres com esse mesmo interesse. Agie Keefer contou um pouco da história da Serving Library, uma livraria que produz obras de escritores independentes e distribui os textos tanto em um periódico impresso bienal quanto virtualmente. A livraria física, porém, é itinerante; o que a define são seus livros e não o espaço físico. Por fim, Iuri Pereira fez um breve histórico da publicação autoral no Brasil. Apresentou obras desde o início da imprensa no Brasil até produções contemporâneas, mostrando, inclusive, obras da sua própria coleção. Um dos principais momentos do mês, no entanto, em relação ao desenvolvimento de nosso trabalho, foi nossa visita à seção de livros raros da Biblioteca Mario de Andrade. Com o acompanhamento de Rízio Bruno Sant’Ana, curador de obras raras e especiais, conhecemos e entramos em contato com uma grande quantidade de livros e publicações raras do acervo da biblioteca. Entre eles, podemos citar: edição da ‘Revista Noigandres’, produzida pelos concretistas; livros individuais de poemas como o ‘Exercício Findo’ de Décio Pignatari; ‘Revista Código’ produzida por Augusto de Campos; o livro ‘Doorway to Brasilia’ de Aloísio Magalhães; publicações ‘Poético e Político’ e ‘Oxigenesis’ de Julio Plaza; ‘Antepasto’ livro produzido por Silvio Spada; um conjunto de
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publicações de “Poemas Cinéticos”; as obras “Paranoia” de Roberto Piva e “Logograma” de Pedro Xisto. Também vimos publicações importantes da Poesia Marginal, como o “O Olho Prisioneiro” de Artur Matuck e “Voo Interdito” de Elsy Guimaraes. Chegamos ainda a ver todas as publicações do “Charivari”, grupo que, atualmente, tem um enfoque em livros experimentais. Enfim, a visita foi uma grande passagem pela história de publicações na editoração brasileira, passando desde os pré-construtivistas até publicações atuais. É incrível notar a diferença entre ter contato e manipular os livros produzidos da mera visão de fotos reprodutivas. Saímos de lá com a certeza de que o livro é um objeto feito para ser tocado. No mês de outubro começamos o curso “Entre ser um e ser mil: o livro-objeto como possibilidade poética”, ainda em andamento durante a entrega deste relatório. Já conseguimos, porém, chegar a alguns resultados bastante interessantes. Edith começou contextualizando o livro, desde a origem da escrita e o surgimento dos pergaminhos até como o conhecemos hoje. Foi importante perceber toda essa evolução; o livro como conhecemos hoje é o resultado de séculos de desenvolvimento técnico. Aspectos como encadernação, capa, impressão, tipografia, entre tantos outros, foram constantemente se adaptando às tecnologias disponíveis. Se hoje seguramos um livro e conseguimos lê-lo confortavelmente, muito se deve a essa evolução. Outro ponto fundamental foi entender o livro, em especial o experimental, não como suporte mas como espaço poético. Quando o colocamos como suporte, serve apenas de recipiente a um conteúdo, podendo perder propriedades importantes que o objeto oferece. Quando pensamos no livro experimental, por outro lado, o espaço do livro é parte fundamental do desenvolvimento do projeto. O primeiro projeto foi escolher uma obra já existente e alterála de modo a criar uma nova narrativa. O exercício se mostrou mais desafiador do que imaginávamos; trabalhar analogicamente foi ao mesmo tempo limitante e libertador. Assumimos uma responsabilidade na medida em que qualquer alteração devia ter
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uma razão clara. Pareceu, a princípio, ser uma atividade intuitiva para explorar o objeto partindo de algo concreto. Após os atendimentos com Edith, porém, percebemos que tudo, sem exceção, comunica. Houve a partir de então um cuidado em estudar a obra e as possibilidades, tanto gráficas quanto conceituais, que ela oferecia. As produções do grupo apresentaram diversos caminhos que se podem seguir com o livro experimental; o livro como escultura, como caixa, recortes que criam uma janela e um caminho por dentro do livro, enfim, foi demonstrada uma pluralidade de opções. Por se tratar de um grupo com profissionais de diversas áreas, notamos diferentes modos de trabalhar e resultados inesperados. Começamos então todo o processo de desenvolvimento do projeto final do curso. Uma publicação cujo tema seria o ‘pão’. Partindo de uma descrição, não só física, mas de sensações e memórias que um simples alimento como o pão pode trazer, chegamos a imagens e palavras que outras pessoas, lendo nosso texto, sugeriram. Tentamos, então, criar relações entre as imagens e as palavras. Começou-se a esboçar nesse momento uma linguagem daquilo que Edith nomeou como célula, a essência da página. O processo se mostrou completamente contrário ao que estamos acostumados: desenvolver o conteúdo antes mesmo de saber as dimensões e formas da página. Entendemos que neste caso, o livro se faz de dentro para fora, a página como unidade do livro só surge no meio do desenvolvimento do projeto. Passamos a seguir caminhos diferentes, de um lado a dualidade da casca e do miolo, do áspero e do macio, traduzidos no toque do leitor com o livro. Do outro, a batalha para romper a armadura do pão e chegar no seu núcleo, gerando algo para ser contemplado e não manuseado, uma vez que suas páginas servem de estrutura. Expandimos nossos limites do que entendíamos como livro. Por fim, exploramos de que modo essas folhas seriam agrupadas, como podemos concentrá-las ou desdobrá-las de acordo com o que queríamos comunicar. A encadernação se mostrou um território muito mais extenso do que imaginávamos, são diversas
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possibilidades para diversos resultados. A linha pode percorrer o espaço, não precisa se limitar à lombada, pode juntar ou distanciar as páginas, mudar o ritmo, o movimento, criar livros dentro de livros e novos jeitos de se contar uma história. Ainda no curso desenvolvemos outras propostas de livros que nos ajudaram a entender os aspectos de estrutura do livro. Focamos parte de nossa produção do curso nos livros alterados. Procuramos desenvolver novos livros a partir de livros já existentes, obras em cima de obras, criando assim uma ressignificação de um conceito já estabelecido. Essa mesma ideia foi utilizada em outros trabalhos novos, que tiveram sua origem a partir desse movimento de exploração das barreiras do livro. O curso resultou em descobertas muito proveitosas para o desenvolvimento do projeto. O convívio com outras pessoas com os mesmos interesses gerou debates interessantes e uma possibilidade de entender diferentes pontos de vistas sobre o assunto. Os ensinamentos da Edith contribuíram muito para os livros que produzíamos simultaneamente ao curso, assim como as referências mostradas em sala. Ainda em outubro, continuamos nossas séries de entrevistas. Nesse mês, conversamos com Iuri Pereira e Jacopo Visconti. Nossa conversa com o Iuri foi focada no mercado editorial e nas possibilidades de livros experimentais serem inseridos nesse mercado. Em certo ponto da conversa começamos a discutir sobre a relevância dos livros experimentais e o propósito da existência deles em massa. O livro é um objeto que funciona, existe uma série de regras que podem ser seguidas pelo designer/editor que faz com que a estrutura do livro seja feita de um jeito que o torne um objeto funcional em relação a leitura. Se essas regras já estão estabelecidas porque devemos tentar rompê-las para interferir no processo de leitura? Neste momento, percebemos que o grande propósito do livro experimental é transformar a experiência de leitura do usuário, fazendo com que o livro não se limite apenas à experiência do texto, mas que
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também englobe uma experiência sensorial, tornando assim sua leitura uma combinação de sentidos. “Enfim, tudo que eu tenho estudado ultimamente me fez pensar: ‘eu não gosto de nenhuma invenção’, porque eu fui tomando consciência de que o livro é muito bem feito historicamente. Você pode discutir onde vai colocar o número da página mas que não precisa dessa discussão, não precisa. Existe um lugar que é mais adequado segundo a tradição. [...] mesmo quando um certo tipo de aporte material do livro ocorre numa editora comercial como a cosacnaify, esses livros se tornam exceção no catálogo.” (PEREIRA, Iuri) “Vocês tem que se perguntar se o livro que vocês vão fazer é um livro para ler. Se for um livro para ler, tem de ter certas preocupações de legibilidade. Pode ser um livro só para experimentar, vocês podem oferecer uma experiência de tempo.” (PEREIRA, Iuri) Já nossa conversa com o Jacopo teve um foco maior no livro como possibilidade artística. Discutimos sobre artistas contemporâneos que utilizam o livro como espaço de suas obras, e como é dada a abordagem do livro quando inserida num contexto de museu. Apesar da maioria das obras que usam o livro como objeto de exploração artística serem desenvolvidas para uma manipulação do usuário, elas perdem uma importante parte de sua existência quando inseridas dentro do museu como “peça de visualização”. Assim, a inserção de uma obra-livro no museu sem uma preocupação com sua manipulação vem a ser um grande equívoco por parte dos expositores. Um bom exemplo de como uma publicação pode ser bem articulada numa exposição é o caso da obra “Book From the Ground” do chinês Xu Bing, que foi exposta na FAAP pela 30ª Bienal de São Paulo. Num primeiro momento, o
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livro produzido por Xu Bing foi aberto e enquadrado, cada uma de suas aberturas, postas lado a lado. Essa primeira visão criava uma unidade do livro inteiro e uma percepção do receptor com toda a obra. No final da sala, o usuário tinha a possibilidade de folhear o livro, tendo assim o contato físico com a obra. Outro ponto importante discutido com o Jacopo foi o papel do designer como desenvolvedor de uma publicação experimental. Percebemos que o papel do designer, no tripé que definimos como base do desenvolvimento de um livro (autor - designer - leitor), é relativamente igual ou menor que o do autor numa publicação normal. Sua função é transmitir o conteúdo do autor, garantindo sua comunicação com o leitor. No campo das publicações experimentais, entretanto, o designer interfere no modo como a mensagem é passada ao leitor, interferindo, assim, na sua compreensão. Portanto, cabe ao designer entender o peso e influência que possíveis interferências podem ter, para conseguir desenvolver um trabalho experimental que tenha uma justificativa quando aliado à sua narrativa. Qualquer interferência deve ser justificada. “Existem operações de design que são quase livro de artista, só que aí é uma operação do designer. Quando existe um autor, de um livro de narrativa, qualquer intervenção do designer pesada na obra, eu acho complicado. [...] Uma coisa é você escolher uma imagem, uma foto, indo já para a editoria mais clássica, e colocá-la na capa por achar que tem uma relação com o conteúdo que está dentro. Já isso alguns autores podem questionar. Agora quando você pega o Bartleby, por exemplo, é muito complicado, acho eu. Vamos pegar o exemplo oposto, em um livro de artista que o artista concebeu, fez todas as páginas. Nunca passaria pela cabeça de editor nenhum colar as páginas porque aquilo tem a ver com o que o artista queria fazer. Então por que que o designer se acha no direito de fazer isso com o livro do Melville? Eu acho tão questionável quanto, é uma questão muito séria. Não digo que esteja errado ou que
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não possa fazer, só que está entrando em uma área autoral que já faz daquilo um livro experimental. Então já não é mais um livro do Bartleby, virou outra coisa.” (VISCONTI, Jacopo) Produzimos, ainda em outubro, as publicações “Dianoitedia”, “Releitura em branco”, “A Iminência dos Corpos” e “Memórias em Delírio”. Continuamos também nossa pesquisa sobre o tempo, nesse mês conhecemos a ligação de Santo Agostinho, importante pensador do séc. III, com o tema, em seu livro “Confissões”. Santo Agostinho aborda questões como a importância do tempo para a humanidade, a busca do homem pela eternidade, a relação do homem com seu tempo de vida e a dificuldade de se estudar algo imaterial. Uma passagem de suas anotações resume muito bem essa enorme dificuldade que é estudar o tempo; mais do que isso, a dificuldade de se traduzir em palavras uma das maiores grandezas que nos atingem. “Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.” No mesmo mês, fomos selecionados para participar da 2ª edição da “Feira de Publicações Independentes”, projeto desenvolvido pela Editora 3 Dias, de Fábio Morais. Inscrevemo-nos com o projeto zero.oito, que tem o objetivo de produzir séries de publicações cujo tema principal é o tempo. No workshop com Fábio Morais, produzimos o piloto desse projeto que depois ficou exposto na Feira de Publicações, junto com outros artistas independentes, no SESC Pompéia.
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Nesse momento nós terminávamos a primeira parte de nosso trabalho, apresentando este conteúdo à nossa banca de qualificação. Após uma conversa, ainda nos perguntávamos se o caminho que tínhamos escolhido para focar essa segunda parte era coerente com esse começo de nosso trabalho. Decidimos então, que em vez de focar toda essa segunda etapa em um único livro, nossa entrega final seria todas as nossas publicações revistas e atualizadas. Sabíamos o quanto o processo de experimentação foi o ponto alto desse projeto, portanto, nada mais coerente do que nossa entrega final não ser apenas um livro que englobasse todo esse processo (o que seria impossível), mas sim a constatação física desse processo. Optamos por continuar nossas experimentações, produzindo novos livros que explorassem aspectos, ainda não testados por nós, desse universo. Em novembro, analisamos todas nossas publicações já feitas e montamos um quadro para saber aonde ainda podíamos chegar no limite da exploração. Nossas conversas se baseavam no limite entre o design e a arte e, por consequência, o limite do livro. Onde é esse limite? Nossos projetos já exploravam temas como: a relação no livro entre texto, imagem e forma; a estrutura do livro; a possibilidade do espaço do livro como um espaço poético; a não necessidade do livro de se apresentar como um livro; a relação entre fotografia, espaço, tempo e estrutura; a relação entre a folha e o toque; o movimento de leitura, do olho e da página; a narrativa e sua necessidade, ou não, das palavras e a efemeridade da existência do livro e de suas memórias. Foi então que decidimos outros dois livros que seriam produzidos no ano seguinte. O Lvr, um livro feito de vidros colados por um velcro, não permite ser aberto por seu usuário. Se apresenta como um amostra da sua estrutura. Permite que o leitor veja o elemento que prende sua capa e contracapa, mas que se faz protegido por essas mesmas capas, não permitindo assim o acesso de qualquer um ao seu conteúdo interno. E o 365, um livro com 365 páginas pintadas à mão com giz, que se preenche inteiramente de cor, formando um gradiente entre o dia e
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a noite, um grande transporte do tempo, do ano, da passagem e da sobreposição de todos esses elementos para o papel. Durante o desenvolvimento desses livros nós entendemos que, por vezes, nossos projetos beiravam o limite do livro. Chegamos inclusive a ultrapassar essa barreira, produzindo publicações que quase não eram livros, ou que só eram entendidos como um livro dentro de um contexto estabelecido. Em um momento de reflexão sobre nosso próprio projeto e sobre nossos objetivos, decidimos que talvez fosse hora de voltar e tentar trazer toda essa pesquisa para o campo do design. Precisávamos estabelecer essas perspectivas dentro de um trabalho real, que se sustentasse e existisse conceitualmente. Que tivesse uma forma, função, objetivo e adequação ao universo do design. Essa deveria ser nossa entrega final. Essa foi toda nossa trajetória para entender o que estávamos fazendo. Foi uma surpresa quando percebemos que esse projeto que tanto precisávamos para aplicar essas teorias e testes já existia, e fazia parte de nosso trabalho. O zero.oito nasceu para ser um projeto de design experimental, que tivesse uma publicação periódica e que podia ser colocado à venda no mercado. Para participar da 2ª Feira de Publicações Independentes, precisávamos estruturar todo o projeto antes de começar sua produção. Ao retomarmos as análises de nossas publicações percebemos a força e as infinitas possibilidades que esse projeto tinha. Entre os meses de março e abril, decidimos que o resto de nosso tempo de experimentação seria dedicado ao zero.oito. Paramos completamente as publicações em paralelo e realocamos toda nossa energia e atenção para essa nova fase do trabalho. Foi estabelecida então a produção de oito novos zero.oitos, sempre levando em conta a espinha dorsal da publicação, sua ligação com o tempo. Vale ressaltar que não temos o zero.oito como um produto final, mas como uma parte do processo à qual nos dedicamos mais. Isso porque esse acabou sendo o livro que mais se aproxima da nossa proposta inicial, de explorarmos ao máximo o livro como suporte, e
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ver quais dessas experimentações podem voltar para o campo do design, transformando o que chamamos durante todo o trabalho de experiência de leitura. É importante citar que nós entendemos o zero.oito como um espaço onde o espaço do livro se torna um campo de experimentações poéticas sobre determinados assuntos. Logo, a concepção de cada peça é feita em parte por nós, e em outra por cada absorção do usuário, criando assim uma infinita gama de possibilidades de interpretação, que variam de acordo com cada usuário. A escolha dos temas foi um processo em que vimos todas as possibilidades que tínhamos, para então reduzir a um número que fosse possível realizar. Decidimos que todas as edições seguiriam algumas regras que criariam essa identidade entre todas. Seriam compostas por 8 fotos cada e o logo deveria estar presente na capa, seguido pelo título da edição. O título é de fundamental importância, pois atua como uma introdução ao assunto das fotos, além de ser uma indicação de nossa visão e do objetivo com o livro. Foi necessário um cuidado especial para a escolha de cada um, não podíamos ser objetivos demais, pois anularia diversas possibilidades de interpretação, mas tínhamos de oferecer algum caminho por onde o leitor começaria a decifrar e criar seu próprio entendimento do livro. Foi um processo trabalhoso. A liberdade que tivemos para escolher os temas foi o que acabou direcionando e dificultando a seleção das fotos que ia para cada edição. A nossa primeira preocupação era com as fotos em si, todas deviam transmitir por si só o conceito escolhido. O próximo desafio foi entender como elas podiam se relacionar e de que modo essa relação criaria um livro. Todos os aspectos que citamos ao longo desta monografia foram levados em consideração, desde a sequência das fotos e os substratos nos quais elas foram impressas, até o modo como foram encadernadas. Trabalhar com uma quantidade limitada de páginas foi outro fator desafiante do trabalho. Tínhamos ideias de livros que traduziam
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exatamente o conceito que queríamos, porém com um número reduzido de páginas a ideia não se concretizava do modo que esperávamos. Foi preciso adaptar o livro para a quantidade de fotos disponíveis. Do mesmo modo que essa escassez limitou algumas ideias, foi graças a ela que pudemos realizar livros como a edição da zero.oito que vira um cartaz. Além dos livros, tivemos a preocupação de pensar em elementos que podiam armazenar cada publicação, para oferecer uma proteção extra para cada livro. Itens como capa dura, luvas, cintas, envelopes e até estojos foram usados para envelopar as publicações. Nesse momento percebemos que nosso trabalho não era apenas de um designer, estávamos atuando como editores gerais. Tínhamos um trabalho de curadoria de textos e temas, de discussão de pauta, de pesquisa de materiais, de referências projetuais e da própria produção. Em todo esse processo, nosso trabalho deixou de ser o de simples organizadores de informações para nos tornarmos agentes que entendiam e pensavam como o projeto poderia ser melhor executado. Por fim, pensamos sobre o modo como todas as publicações seriam agrupadas para a entrega. Se o livro e a caixa são intimamente ligados, poderíamos trazer esse conjunto de livros para dentro de uma caixa que contivesse, protegesse e funcionasse como uma estrutura de transporte para os livros ali contidos. Terminada nossa parte final desse processo, partimos para a última parte de nosso trabalho, esta própria monografia. Após tantas experimentações, ela deveria ser um indício material do seu conteúdo. Decidimos priorizar a legibilidade acima de qualquer experimentação. Assim como fizemos na entrega da qualificação, na qual dividimos nosso conteúdo em passado, com análises dos livros que produzimos e um relato do processo até então; presente, com a base teórica do nosso trabalho; e futuro, com o cronograma planejando o semestre seguinte, na monografia decidimos dividir o conteúdo em 4 grandes blocos. O primeiro, introduzindo o trabalho e fazendo os devidos agradecimentos. O seguinte, tratando do objeto
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livro e sua história, principalmente no âmbito do livro experimental. O tempo ganhou um bloco próprio, afinal foi o fio condutor de todas as produções. Finalmente, a análise de todos os livros que fizemos junto com nossa percepção de todo o trabalho, seguido pelas referências bibliográficas. Cada bloco ganhou uma cor própria, presente no papel no qual foram impressos. Quando encadernados junto, fica visível essa divisão, facilitando o manuseio do livro por assunto e criando uma sequência própria das páginas. Sua encadernação é feita com uma costura aparente, como um indício de que cada bloco de cores, e seu consequente conteúdo, fosse costurado, um a um, para formar nossa concepção desse trabalho. Não achamos que esse projeto tem fim ou uma conclusão. Conforme afirmado aqui, ele é o emaranhado de um processo, que apenas está em uma determinada parte, longe do final. Além desse projeto ter criado nosso novo projeto pessoal, o zero.oito, ele alterou totalmente nosso processo de trabalho e de entendimento da profissão do designer. Nos entendemos como profissionais que buscam um significado e expressão no nosso trabalho, trouxemos essa necessidade conceitual dos projetos aqui citados para nossos próprios projetos profissionais. Temos a percepção final de que essa é a grande relevância de se permitir o experimentalismo, uma abertura do olhar, da percepção e uma consequente reflexão sobre o papel de um designer.
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