LIVRO TENSO TEXTOS, POESIAS E IMAGENS SOBRE AS TENSÕES DO HUMANO
Glaucia Nagem Gustavo Salvatore e Flavio Bassani
1o edição
São Paulo 2014
Glaucia Nagem
LIVRO TENSO Glaucia Nagem
Livro Tenso faz parte das conversas no Ateliê 702. São reflexões em que a produção gráfica de artistas convidados dialoga com profissionais de diversas áreas. As tensões do humano — este foi o tema escolhido e proposto para que 27 artistas gravadores resolvessem em duas folhas em livros de 59 x 73 cm presos e expostos nas paredes, como “quadros paginados”. A exploração visual dessas tensões gerou as 54 gravuras presentes neste livro digital. Os cinco livros físicos serão doados para uma biblioteca pública (ainda em pesquisa). Foram cinco livros físicos (em papel) que exploraram as seguintes tensões: Amor -Ódio, Som- Silêncio, Luz-Escuridão, Presença-Ausência, Vida-Morte. Seis profissionais das áreas da História, Psicologia, Filosofia, Linguística, Psicanálise e Arte participaram de conversas sobre a questão das tensões do humano em suas áreas específicas, tendo a exposição para comentar e exemplificar. Com isso, a exposição promoveu uma discussão sobre o tema, sendo a técnica da gravura o suporte para as conversas durante o SP-Estampa, edição de 2014. O Projeto Livro Tenso dá continuidade à associação “exposição — conversas do Ateliê 702”, que se iniciou no ano de 2013 durante a edição do SP-Estampa com o projeto Múltiplo Singular. Ao término desse primeiro projeto, surgiu a ideia de publicar a transcrição das conversas dos convidados junto com as imagens. Assim, com a colaboração de Flavio Bassani, que fotografou e editou digitalmente as imagens dos artistas participantes e textos dos colegas “conversadores”, fica aberto ao público o resultado do projeto Livro Tenso. A associação de artistas interessados em pensar a arte e pensadores interessados na arte do pensar fez acontecer este projeto. De minha parte, agradeço: - A cada um que topou a ideia e abraçou o projeto; - Aos colegas que compareceram e promoveram as conversas; - Àqueles que, além de conversar, cederam seus textos; - A Lucilia Maria Abrahão de Souza e Conrado Ramos por seus textos e poesias; - Aos colegas Gustavo Salvatore, Beth Lima e Flavio Bassani na execução do projeto; - A meu marido e meus filhos, que me apoiaram e acompanharam.
Tensão, ruptura e significância: o livro tenso como passe Conrado Ramos
“Tensões vividas pelo humano no decorrer de sua existência.” O tenso, o ponto esticado ao máximo, a tensão como impasse entre o afrouxamento e a ruptura... São muitos, múltiplos, simultâneos ou consecutivos os pontos de impasse na existência humana. São pontos de impasse, de estiramento máximo de uma lógica que já não dá conta. A tensão surge quando as coordenadas existentes para o tratamento de um problema já não servem mais, não suportam mais uma solução; quando as alternativas presentes não dão mais suporte, não seguram mais uma situação dentro da elasticidade que seu cálculo permite. Ponto de explosão, de ebulição, de quebra, de trauma, de choque, de transbordo, de queda, de revolução, de enlouquecimento... A existência humana é atravessada destes pontos, destes picos, destas gotas d’água. A História nos permite ver suas presença nos golpes e contragolpes, nos levantes, nas revoltas, nas cisões... A medicina os encontra nos índices fora das curvas, nas disfunções, nos traumatismos, nos corpos assujeitados ao dia a dia dos prontos-socorros. A psicanálise os encontra nas marcas significantes que estas rupturas deixam. Marcas que implicam um ato, ou uma passagem ao ato. Ato enquanto transformação, enquanto invenção contingente de uma solução diante do impasse posto pelas coordenadas da fantasia de um sujeito. Ali onde o repertório fantasmático de respostas construídas historicamente por um sujeito à demanda suposta do Outro não oferece mais ajuste, alívio ou apaziguamento, o sujeito cai da fantasia, como se dela fosse o resto, o precipitado final e sem sentido, um corpo-dejeto destituído de qualquer significação vinda do Outro. É a passagem ao ato. (Muitas vezes encontrada na causa de parte dos corpos assujeitados ao dia a dia dos prontos-socorros.) Mas ele pode também subverter as coordenadas possíveis da fantasia e atra-
vessá-la, ao invés de cair de sua lógica restrita e neurótica. Neste caso, temos o ato como passe, como atravessamento das limitações subjetivas. Instante de ruptura, sim, mas de criação, de invenção, de fundação de algo que, na lógica restrita da fantasia, aparece para o sujeito como impossível, como inexistente, mas que ele faz ex-sistir a partir da contingência do ato, da subversão dos limites da significação fantasmática da existência, do forçamento dos limites para um além dos sentidos dados e prévios. O sujeito estira ao máximo seu modo de ex-sistir no mundo, no laço com o Outro que sua neurose faz consistir no horizonte, quer como objeto de um gozo pleno, quer como aquele que impede o alcance deste objeto. A neurose se alimenta da ilusão, posta no horizonte, do encontro com um gozo pleno, daquilo que os lacanianos chamam de relação sexual. Mas dizem os lacanianos que não há relação sexual, isto quer dizer que não há gozo pleno no horizonte. É um gozo impossível. Para manter este gozo pleno lá, no horizonte, como possível, o neurótico prefere colocar-se como impotente para alcançá-lo do que deparar-se com sua impossibilidade e realizar seu luto. Para tanto, o neurótico constrói seus obstáculos: “ah, se eu pudesse chegar ao horizonte!”; “ai! Se não fosse isto me impedindo de chegar lá!”; “puxa... cheguei lá, mas não era isso ainda... deve estar mais adiante, então...” A neurose é muito hábil e rica em produzir sentidos em torno deste inexistente. Às vezes, porém, estes sentidos falham, o inexistente ameaça aparecer enquanto tal, tensionando o neurótico no trabalho louco de reconstruir os suportes simbólicos e imaginários para esconder o real da impossibilidade deste gozo. Pode parecer paradoxal, mas é disso que o neurótico goza, do sofrimento implicado em querer o que não há, em sustentar um gozo que não há para gozar da insatisfação por não alcançá-lo. É DA TENSÃO QUE GOZA O NEURÓTICO. De chegar tão perto o suficiente do limite de revelar sua mentira para afastar-se de novo, ou de afastar-se ao máximo deste horizonte, mas sem o risco de que ele suma de vista e se apresente como ilusão. O neurótico se pendura num bungee jump e salta, seguro por estar preso pelo pé, como Édipo que, de pés inchados, livrou-se da tensão das cordas pela queda dos olhos. (Como propõe Lacan acerca do atravessamento de Édipo, ele subverte sua tensa procura da verdade não pela queda da venda que a escondia, mas pela queda dos olhos e da própria verdade que ele fazia ex-sistir por sua fantasia.) Não é o sentido verdadeiro que o neurótico encontra com seu atravessamento da tensão da fantasia, mas o verdadeiro como sentido para o que não tem sentido, isto é, a sustentação de uma promessa de gozo.
Do que gozamos, então, depois deste atravessamento da tensão da fantasia? O que acontece com o neurótico quando se rompe o cabo do bungee jump? Das duas, uma: ou ele cai (passagem ao ato) ou ele descobre que sabe voar (o que lhe parecia, antes, impossível). Voar, aqui, como libertar-se das polaridades postas pelo cabo elástico da fantasia, do qual o neurótico goza de esticar e contrair, de tensionar e destensionar, mas sem chegar lá ou sair disso... Voar, aqui, como gozar do que é possível, não como o que tampa o furo da relação sexual, mas como o que inventamos para nos virarmos com o fato de que não há gozo pleno, o que não quer dizer que não haja gozo, desejo e pulsão (cujas relações complexas não cabem neste texto). Arriscar-se a voar como ato de alívio diante da descoberta de que o que parecia ser da ordem da impotência é do campo lógico do impossível, transformando em inútil todo o esforço do vaivém do tensionamento da fantasia. Voar, como quem deixa de buscar o sentido último e verdadeiro ou se solta do sentido engessado da fantasia para enfrentar a impossibilidade da significação derradeira, o que não quer dizer cair no non sense, mas abrir-se para a potência da significância que encontramos como fluxo no furo aberto do sentido. Podemos opor, portanto, fluxo e tensão. O fluxo – se me permitem dizer assim – do desejo desamarrado como oposição à amarração do desejo no elástico tenso da fantasia. O contrário da tensão na psicanálise, portanto, talvez não seja equilíbrio, mas desequilíbrio, deixar-se cair para inventar um jeito de voar com aquilo que a existência traz, com aquilo que a história nos faz, com as contingências e determinações (necessidades) que o ser falante encontra em sua ex-sistência. Isto não quer dizer que a vida deixe de ser tensa, mas que é possível se virar com estas tensões inventando, subvertendo, para além das amarras tensas da fantasia polarizadora entre o tudo ou nada do gozo pleno posto no horizonte. Se não há gozo pleno no horizonte, só gozamos de modo não-todo, não-todo tenso, talvez... mesmo que seja com as tensões da vida. A psicanálise, assim, não promete a felicidade, o sentido último, o ajustamento social ou o fim do sofrimento. O que ela pode fazer não é mais do que levar alguém ao impasse deste vaievém da fantasia e, pra quem quiser, que passe. E que cada um veja no que vai dar, pois daí a psicanálise já não tem mais o que fazer... E o que podemos ler, agora, nas polarizações que sustentam as tensões desta exposição? O que há no fio esticado entre o amor e o ódio, o som e o silêncio, a luz e a escuridão, a presença e a ausência e a vida e a morte? Não podemos lê-los pelo viés da tensão neurótica tal como aparecem nas falas cotidianas dos consultórios de psicanálise? Não se esforça o neurótico durante
anos para posicionar-se entre o amor ou o ódio? Não falamos todos do sofrimento diante da presença (amada ou odiada do Outro) ou de sua ausência (odiada ou amada)? Não padece o obsessivo por anos tentando posicionar-se na vida o mínimo para manter-se fora dos olhos da morte? A polarização do discurso que evita deixar a fantasia está presente nas falas de quem se deita no divã, e sua tradução coloriria livros tensos como estes que aqui temos. Cada dupla de páginas espelhadas aqui presentes podem emoldurar o bungee jump da lógica da fantasia, dando viva imagem aos limites tensos dos impasses que a caracterizam. Perder-se nos apelos destas imagens é espelhar esta dimensão de impasse tenso, este ponto de pico, de gota d’água, de solução impossível, de inconsistência lógica e de impossibilidade de escolha. Mas fazer destas páginas um livro não seria justamente poder atravessá-las? Não no sentido de uma síntese, de uma nova verdade decorrente da dialetização da contradição presente entre tese e antítese. O livro não sintetiza a tensão, resolvendo-a na superação da contradição, mas inventa um modo de apresentá-la de outro lugar, como outra coisa, em sua vertente imagética e mentirosa. O ato de folhear o livro das polaridades tensas não é mais ceder às suas verdades, não equivale a acreditar nelas, não é o mesmo que entendê-las enquanto erro de julgamento ou falha da razão, mas já é subverter as polaridades tomando-as como contradição presente no objeto da razão, na fantasia como objeto transmissível da razão. Se as polarizações tensas apontam impasses de sentido, o livro das polarizações tensas já é uma subversão, uma invenção que abre para a significância que delas se pode extrair. Estou propondo a leitura de que fazer das polaridades tensas um livro equivale ao que Lacan chamou de passe, na medida em que toma a fantasia enquanto tal para não mais nela acreditar. É um passe também na medida em que utilizamos este termo para falar do artifício de Escola criado para recolher e debater a transmissão de uma análise, isto é, do inventar, de cada um, de um jeito de se virar com o desejo para além das amarras da fantasia. A concepção de apresentar as polaridades tensas num livro metaforiza, no meu entender, esta dimensão de transmissão ocorrida no passe, ao apresentar como mentirosa a verdade tensa em que se constitui a fantasia, ao apresentar como marcas, e como marcas gravadas, as inscrições que sustentam as tensões da vida, da história de um sujeito. Ao final de uma análise o que temos não é o sentido verdadeiro da existência de um sujeito, mas um conjunto de marcas que a contingência e o acaso escreveram no corpo de alguém e que, atravessados pelo gozo, fizeram e fazem ex-sistir um sujeito. O sujeito como efeito daquilo que, singularmente, o processo de uma análise escreve da história das polaridades tensas de um ser falante. E isto
que assim se escreve, e assim pode se fazer livro, não é uma síntese, um sentido último e absoluto que supera as contradições, mas a apresentação da divisão subjetiva propriamente dita na dialética sem síntese em que se constitui o inconsciente, na medida em que se nos apresenta como um saber impossível, um saber real, diante do qual a fantasia, como resposta, tenta ser recobrimento. Um livro tenso, tal como aqui concebido, assim, não é o retrato da verdade da tensão humana, mas a verdade como invenção, como resposta diante da divisão posta ao ser falante pelo inconsciente. A polarização tensa, assim, é o sentido dado à divisão do sujeito, enquanto que um livro de tensões é o atravessamento deste sentido, buscando reinventá-lo por um artifício que sustente, da polaridade tensa, a potência de significação, a abertura da significância. É a isto que nos convoca esta exposição: a tirar as polaridades tensas do campo do 0 ou 1, do V ou F, do sentido único, para o transbordamento inventivo, singular e múltiplo das significações. Com isto, rompemos as tensões pela via da construção do novo, do arriscar o impossível, tal como podemos encontrar na arte, no ato psicanalítico e na transformação histórica.
Tensão
(sobre gravura de Karla Ruoco)
entre o som e o silêncio a tensão rompe-se a corda do bungee jump! acordo ou stomp! estatelo-me no chão estampo-me no silêncio da gravura ou me aventuro vibrando no vazio do som
Conrado Ramos, maio de 2014
Luz e Escurid達o
Apenas Lucília Abrahão de Souza
Com os olhos fechados, ela sempre via mais longe... Assim, ele no distante E tanto os trancou que certa manhã, apenas o escuro. Buraco negro nos olhos. Espanto. Abriu os dois ao mesmo tempo De uma vez E bem. Às claras. Ainda assim, apenas o escuro. Com e sem os seus, os dela que eram dele... Desde o dia em que se foi e deixou-a apreciando o fundo dos horizontes.
ALTINA FELÍCIO - Olhos d’água - Claro? Escuro? - Ponta seca, 2014 - 16,5 x 19 cm e 5 x 32 cm
ARLUCE GURJテグ - Objeto Simbテウlico Composto I, II - Xilogravura, 2014 - 23 x 23 cm
KAMILA VASQUES - Sem título - Xilogravura, 2014 68 cm x 44 cm
Sem tĂtulo -Relevo seco (matriz em relevo de madeira), 2014 - 68 cm x 44 cm
MARCOS OLIVA - Licht - Meia-tinta, 2014 - Schatten - Rolete, berceaux, ponta seca e buril, 2014 - 35 x 28 cm
MARIA PINTO - Acima - Luz – Escuridão Abaixo – Luz – Escuridão Água tinta,, 2014 - 60 x 40 cm
MÁRIO MORRI - Luz - Escuridão - Lito-poliéster, 2013 - 20,5 x 28,8 cm
ROBERTO FLORES - SXT / Luz-Escurid達o - Xilogravuras, 2014 - 25 x 32 cm
Amor e Ódio “Você seria capaz de uma gentileza?” Lucília Abrahão de Souza
Ela disse pouco. Voz de arame, quase a não sair. “Você seria capaz de uma gentileza?”. Ele já não sorria. Eram outros os tempos. Os dois foram outros no enquanto de dizerem-se. Quando palavra, entre eles, possível parecia. O sim escapou com traços de não. Certa nuance de talvez... “Apague nossas histórias, todas”. E, em seguida, baixou o tom para lilás, “quer dizer, por favor...” Sempre as reticências... Ele se fez nuvem, quase a não entender... Silêncio de água parada que é sempre promessa de tempestade... “De que histórias você fala?”. “Todas”, saiu com engasgo. “Aquelas que te dei, as que inventamos, as incompletas, os diálogos, principalmente as outras, ainda por escrever.” “E também as da memória”, foi um período interrompido, quase. No triz de ser névoa, ela calou-se, sombria. Era sempre em rodopio de continuar e, de novo, um fio de dizer. Agora quase. O tecido foi muito desejado por ela... Tomava as agulhas com cuidado, sentava-se com sofreguidão e vagar, escolhia a mais firme, de furar melhor o dizer dele. Espetava-se ali nas palavras que
nunca foram dela, de escrever dele, de se enfeitar para ele... Palavras que eram dele, eram ele. Ele, varal e tela; ela, linha de seda e lã no trabalho de furo em furo, preenchimento que nunca vinha... Porque fio é coisa de mais escapar do que de prender; e palavra mais aparta que ajunta... Voz dele silenciada, espreguiçou uma frase que não saiu. Algo como “tá”. Ela insistiu com a pressa de seus arrepios, “que seja hoje, agora.” E a voz dela era ave que bate no vidro buscando árvore lá fora, árvore que não tinha. “Quer dizer, por favor”... Mais uma vez, outra vez, sem era uma vez. Nunca saberia que o pendrive sumira de repente, como veio, junto com o que foram os dois naqueles textos frágeis, débeis e inúteis que compuseram... Ao menos no enquanto de emendarem-se um na história do outro, ela no relato dele, sempre o primeiro passo dado por ela. E aqui faltava um complemento, na hora, na oração, na ação... Afinal, demais faltava. Sempre. Não sabia mais completar, nem era o caso. A palavra mesmo de brincar, coisa de jogo, dolorido às vezes, corpo de linguagem em movimento, secou. Palavra oca, ausentada de dois. E se ele contasse a ela assim: “não sei onde estão, perdi todas”? Ela diria muitos “como?” com força exclamativa, um atrás do outro, sem pausa, nem para separar sílabas. Nunca entenderia que perder era a especialidade dele. Ela, oco em contorção, quarto sem alojamento, noite de horas congeladas, gelo na pele da alma. “Tá” seria palavra exata para estar ali... Duas letras no lugar da falta, como se não fosse... Então, ela falou: “apague ainda nossos nomes... Palavra de não recolher mais, só apagar”. Ficou em suspenso... Voz dela não tinha parada: “E não é bom o nome continuar... Nome sempre dá raiz pra esperança.”. Ele ficou em dúvida, mas não teve vontade de conversar. Foi distante em um “pode deixar”, que colocou como ponto final desnecessário. “De hoje em diante não existirão mais”, o resto. A cortina do esperado sempre se desfaz no instante. Desligaram o telefone sem se despedir, quase ao mesmo tempo. Tinham de fato muita sintonia, em vários sentidos. Até na palavra de não dizer... Ela ainda ficou com o telefone na mão esquerda, mudo. “Quanto dura o tempo de morrer? Como se mede o intervalo entre existir e restar? Será que se morre de ficar só?”. Apertou a tecla vermelha do aparelho, para ter certeza do fim. Cor de rosa que sangra e perfuma, mas ali era só disfarce para a voz embargada dela diante das mudas de rosa que nunca conheceu, não plantou nem viu nascer... Ali não havia perfume doce, nem cheiro verde de espinho. Nem botão de rosa, nenhuma. Nem pétala. O dedo continuou apertado até doer, vermelho. Essa era a cor daquela hora. Mirou a janela entreaberta, último dia do mês. O céu estava rosa, quase vermelho. Quase.
ELISETE ALVARENGA - Sem título - Gravura em metal (água forte), 2014 - 16,5 x 16 cm
FLAVIO BASSANI - Amor/quente; テ電io/frio - Xilogravuras, 2014 - 48 x 30 cm
GLAUCIA NAGEM - Amor贸dio - Gravuras em metal - 19 x 73 cm
GUSTAVO SALVATORE - Amor/テ電io - Xilogravuras, 2013 - 22 x 19,5 cm e 19,5 x 21,5 cm
SERGIO KAL - Sem título - Xilogravura, 2014 - Placa única de - 92 x 134 cm
Som e SilĂŞncio
Solidão Lucília Abrahão de Souza
De tardinha, solidão Hora de ouvir a sombra da tarde piar baixinho. O sitio era meu país onde eu falava a língua verde das inocências Eram macias... Adorava tocar nelas, especialmente nas vogais ausentes Maciez de fruta madura, mornidão cheirosa para os dentes. Convite. Aceito a brisa e a brasa em mim, por todas as águas e as forças nascentes. Assim. Um cadinho mais alto soava quando ameaçava chover. A primeira gota anunciava cantoria, capim cidreira em nota de agudos. Começo não tinha sinal de fim. E tinha rosto quase todo, em desamparo. Restinho de tarde... A noite aberta com as pernas dobradas em nesgas de escuros por vir. Curvo os olhos, o tempo da roça em mim. E lá. No inatingível.
BETH LIMA - Pradarias - Ponta seca, 2014 - 27,5 x 29 cm
CAROLINA LOPES - Sem título - Xilogravuras, 2013 - 7 x 46,5 cm
KARLA RUOCO - Sem Título - Água forte, 2013 - 59 x 34 cm
MARISA HYPÓLITO - Ordinário (da série Ordinários) - Som/Silêncio - Água-forte, 2014 - 35 x 30cm
PAULO PENNA - Som/SilĂŞncio - Fotografia e xilogravura, 2014 - 42 x 30 cm
Presença e Ausência
Renda de Espuma Lucília Abrahão de Souza
Maria chegou na beirada do mar. Os olhos desejavam ser renda de espuma, minuto seguido de sumir. Só renda de (não) ser. No instante. E depois não mais... Pôs o pé dentro da onda, era de sol e de areia. Deixou-se ali. As tramas de fios de água, os desenhos de nunca permanecer. Tocou. Mais e mais, ela não sabia tão menos assim. O mar produzia um continuar de tecelão, com dedos desiguais e promessas pendentes de ventos. Sem garantia de sopro, sem certeza da correnteza. Sem ser no fixo. Mal teve tempo de colocar o outro pé. A renda mais branca de pura filigrana líquida fez-se convite... Ela saltou de uma só vez, no fundo de sua beira, no sempre de sua eira. A marca do pé durou instantes, poucos. E logo desapareceu na areia, beijada por outra renda d’água. De nunca mais ver.
ANDRÉA TAVARES - Nosso herói visita: Brasília - Litografia, 2014 49 x 73cm
CAIO CARUSO - Sem título - Relevo seco em acrílico, 2014 33 x 50 cm
LUCIANO OGURA - Pelos cotovelos - Xilogravura, 2011 20 x 14 cm
Claudia reclinada - Xilogravura, 2012 26 x 49 cm
MAURA DE ANDRADE - Sem título - Água tinta, xilogravura, relevo seco
2014 - 9,5 cm x 14,5 cm e 42,5 x 29,5 cm
NORMA MOBILON - São Jerônimo em seu estúdio - presença/ausência
ponta de diamante e mezzotinta, 2014 - 21,5 x 18,5 cm
Vida e Morte
Livro Vida Morte Da última vez Espuma Lucília Abrahão de Souza
Da primeira vez em que ele morreu, não chorei. Restei quieta. Apenas. Mas não bastou. Continuou morrendo por vários dias, madrugadas a fio. Morria tão lentamente que, certos dias, morria em azuis. Acontecia assim. Sem quebrar a casca da vida que era muito fina. Ele sorriu. Começou a sair borboletas dos olhos dele, fechados e mortos. Saíam como gases, vapores e ventos leves de baforar. De não forçar janelas, de ventar pelos espaços de dentro. Última borboleta azul, morreu pela última. Ficou subitamente vazio sem nunca ter ficado cheio. Morreu, pela última vez. E eu chorei apenas um soluço. Não mais.
ANTONIO GOPER - Morte - Relevo seco, 2014 15 cm x 15 cm
Vida - Ă gua tinta e ponta seca, 2014 - 15 x 15 cm
DANIELLE NORONHA - Para Riobaldo - Gravura em metal, 2014 - 30 x 30 cm
LU ZEFERINO - Vida / Morte - Gravuras em metal - 29 x 30 cm
MARINA DE FALCO - Vida e Morte - Cologravura aquarelada, 2014 - 73 x 49 cm
MAURÍCIO PIZA - Vida – Morte - Xilogravura, 2014 - 39 x 29 cm
LIVRO TENSO
Projeto de Glaucia Nagem de Souza Desenvolvimento: Ateliê 702 Organização: Gustavo Luiz Salvatore Diagramação: Beth Lima e Flavio Bassani Edição Digital e Fotografia: Studio Maker As gravuras do livro foram impressas manualmente pelos artistas participantes do projeto. ISBN 978-85-61783-01-3