Beijo da rua. 30 years of Brazilian Sex Worker Social Movement in Brazil

Page 1

Prostitutas completam três décadas de luta ano 28 número 2 dezembro de 2017

“O maior projeto é o movimento” “Nossa política afirmativa é ser mulher” “Uma puta ativista vai com boceta, cabeça, vai de útero mesmo” “Somos putas políticas, sem perder o clima de sedução das luzes vermelhas”

“A gente nunca vai ser ex” “Começamos e avançamos em rede” “Ainda lutamos por identidade e participação”


30 anos de conquistas e desafios

S

etembro de 2017. O VI Encontro Nacional de Prostitutas: 30 anos de Memórias, Histórias e Lutas, em São Luís do Maranhão, reúne dezenas de prostitutas de mais de 15 estados, além de aliadas e aliados, parceiros da sociedade civil, do Parlamento, e de governos. O evento acontece 30 anos depois do I Encontro, no Rio. Nesse tempo todo, há muitas conquistas – citadas ao longo do jornal – e um desafio que se mantém: a identidade. Não à toa, o I Encontro se chamou Mulher da vida. É Preciso Falar. No VI Encontro, também ficou demonstrada a diversidade autônoma do movimento nacional, com prostitutas que construíram e mantêm o movimento e novas referências formando um conjunto que fortalece a luta de todas. Houve encontros e reencontros afetivos e políticos de muitas companheiras de esquinas e lutas. E também embates e tensões políticas. Houve união. E poderes em jogo. E aquele desafio que se mantém, o da identidade, que é essencial para consolidar nossas lutas, nos fortalecer nos espaços de tomada de decisão já ocupados e ampliar a participação no desenho e na implementação de políticas que tratem de nossas questões e direitos. E porque identidade é se permitir falar, mostrar a cara de verdade, falamos aqui também. São palavras ditas durante o VI Encontro, nas mesas e em entrevistas, ou em reflexões depois do evento, como faz Lourdes Barreto, que também traz memórias do I Encontro, detacando o papel essencial de Gabriela Leite, então e sempre, como fazem várias outras ativistas, e comparando os dois eventos. De Gabriela, por sinal, trazemos coluna de 1994 que toca fundo em questões atuais do movimento. Uma linha de tempo também contribui para uma visão desse 30 anos de memórias, histórias e lutas. Assim como artigo de Roberto Domingues sobre o que se costuma chamar de “parcerias”. Pois aliadas e aliados não podiam faltar, e por isso também marcam presença neste jornal, como ainda Laura Fundadora Gabriela Leite Editor Flavio Lenz (RP MTB 13.193) Edição de arte Claudio Prudente

2 beijo da rua

Foto: Ingrid Barros

Murray, Soraya Simões, Mauricio Toledo, Zwinglio Dias, Diane Helene, Beatriz Kushnir. O VI Encontro foi organizado pela Associação de Prostitutas do Piauí, Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará, Associação de Prostitutas do Maranhão, e realizado pela Rede Brasileira de Prostitutas e Central Única de Trabalhadores e Trabalhadoras Sexuais, contando com a participação da Articulação Nacional de Profissionais do Sexo, apoio de Unesco, governos federal, estadual e municipal. O próximo encontro será em Campinas, em 2019, sediado pelas Mulheres Guerreiras. Pois guerreiras são todas! Putas Guerreiras! Como Theresinha Ferreira, Sandra Cabelão! ❤

Foto cor da capa Jacqueline Silva, VI Encontro Nacional de Prostitutas Foto P&B da capa I Encontro Nacional de Prostitutas

Uma publicação do Coletivo Davida coletivodavida@davida.org.br Distribuição gratuita, doações bem-vindas

Fala mulher da vida

E garante o principal direito: sermos representadas por nós mesmas

N

Nossa política afirmativa é ser mulher ossa putualidade mesmo é nossa política afirmativa de eu ser mulher, eu faço do meu corpo o que eu quero, uso como quero, tenho como quero, esse é o ponto alto da nossa discussão. É respeito. A gente tem uma vida trabalhando a questão da liberdade, eu sou livre, e dentro desse eu sou livre a gente decide. Quando fizeram série de reportagens comigo, o título ficou “Ex-prostituta hoje é líder feminista”. E desconcordei. Se eu sou ex, eu nem estou sendo líder política feminista. O “ex” não foi empoderamento; mas a líder em discussões feministas eu gosto, gosto de discutir ao pé da letra. E o título geral é “Ninguém me pisa”. Então, se alguém quer me ver como ex, como puta, como prostituta, pode ver, ninguém me pisa. Eu sou a mulher, a mulher empoderada para discutir essas coisas. Mas de repente alguém quer se intitular como ex, e nosso dever é respeitar

essa pessoa que quer ser tratada como ex. Mas nós não somos ex porque nós estamos na ativa da luta, na ativa às vezes até do sexo, porque não vamos dizer que estamos fazendo sexo adoidado, porque tem essa porra dessa cultura machista, que homens gostam mais de mulheres mais novas. Mas como nós mulheres temos uma coisa muito massa, que é abrir a perna e a vara vai, isso é bom porque a gente não se segura na porra do pau caído, a gente tem muitos pontos positivos muito legais, eu não preciso de nada pra levantar nada, só preciso de uma cabeça preparada pra trepar. A gente precisa ter algumas divergências discutitárias. Concordo com todo mundo, a gente tem as nossas ideias, tem que concordar com os outros e não desconcordar com o que a gente pensa. Tenho que respeitar a ideia dos outros e a minha também. Maria de Jesus Costa, Aprosma, São Luís do Maranhão

beijo da rua 3


Foto: Jacqueline Silva

Identidade Os encontros mostram que nós putas somos estrelas e juntas formamos uma constelação. Quanto mais movimento de puta melhor, pra nos tirar da invisibilidade, pra acabar com o estigma, com o preconceito, a vitimização, e a gente ter coragem de se identificar como prostituta. É fácil dizer que é advogado, médico, mas dizer que é puta é muito difícil. Pra dizer que é puta tem que estar com a autoestima lá em cima. Por isso acho que a maior conquista do movimento é as putas estarem se identificando. E seria bom que as prostitutas que estão na universidade também se identificassem. Vânia Rezende, APPS, Recife Se assumir Ainda falta mais clareza para a prostituta a identidade dela. Continuamos na luta de conquistar nossa identidade. Se assumir, não se esconder atrás de um refrigerante, de um balcão de bar, de uma amiga. Isso vai fazer com que a nossa luta seja o progresso para essas meninas que estão vindo agora. Edna, Ampap, Amapá Sou puta! Nossa associação vive em coletivos. Falando e ouvindo coletivamente. Não precisamos ser convidadas para discutir assuntos que nos interessan, como profissão, prostituição, GLBT, sexualidade. Nesses espaços estaremos porque nos sentimos no direito de sermos representadas por nós mesmas. E nesse percurso a gente só tem

4 beijo da rua

a agradecer a Gabriela, a Leila e a Lourdes Barreto. Gabriela me reconheceu no meio de 80 alunos da Unicamp e me chamou de colega. Foi você, Gabriela, que me permitiu falar. Sou puta! Sou puta, Lourdes Barreto, sou filha da puta, Leila Barreto. E a minha dedicação maior é a uma filha da puta: Leila foi a primeira pessoa que desenhou um esqueleto de projeto para que a associação Mulheres Guerreiras nascesse e hoje tivesse reconhecimento. Completamos 10 anos graças a esse esqueleto. Betânia Santos, Mulheres Guerreiras, Campinas (SP) A gente pode falar por nós mesmas A Amazonas nasceu porque o Gempac foi lá atrás da gente. Eu estava num bar e uma amiga me chamou para ir na praça do pau mole (como era chamada a praça da prefeitura). Foi quando eu vi Leila pela primeira vez, falando que a gente podia se organizar, se empoderar. Já tinham vindo muitas pessoas falar com a gente, mas queriam levar o nome das putas e falar por nós. Como é que uma pessoa de outro movimento pode falar por uma puta se eu faço programa, se eu fico na zona, se eu amanheço, se eu que sei quais os problemas que têm dentro da zona? E eu ouvindo Leila e pensando, será? E então veio a possibilidade de criar uma associação a partir do projeto Sem Vergonha. Leila com muita paciência, que a nossa cabeça era difícil, difícil entender uma mulher falando que a gente poderia fazer uma associação, poderia se organizar, poderia lutar pelos nossos direitos. E fizemos. Mas mesmo depois de ter associação, ainda tinha gente

Foto: Ingrid Barros

que queria falar por nós. E isso a gente diz pra essas pessoas. “Nós já temos uma instituição. A gente pode falar por nós mesmas”. Também acontecia de eu chegar numa reunião e dizer “Sou Denise Mara, sou prostituta”, e todo mundo ria. Como é que pode? Se um movimento LGBT chega lá e fala, o povo ri? Isso começou a me dar raiva. Se é pra falar das coisas... Eu nunca fui em reunião de calça comprida, cabelo liso. Não! Eu saía da zona, sapato alto, sainha curtinha, a cara mais pintada, parecia uma drag queen, as unhas enormes, chegava lá e tinha gente que dizia, “Denise, não dava pra vestir outra roupa?” “Dá não, daqui a pouco eu tô voltando pra lá de novo, não tenho tempo de ir em casa trocar minha roupa, não”. Se eu sou puta, por que é que eu ia trocar as minhas vestes? Só para agradar alguém? Denise Mara, As Amazonas, de Manaus

certo, ninguém queria botar a cara a tapa, se apresentar como puta. E um belo dia quem aparece em Corumbá? Gabriela Leite. Meu primeiro contato com Gabriela Leite, nossa! Ela me chamou num bar, no Centro da cidade, e disse: “Vocês têm que decidir o que vocês querem”. A partir daquele momento saiu o que a gente queria realmente: estar nesse movimento, estar no controle dos nossos direitos. E começamos a mostrar a cara de verdade. Aí, depois de vários anos, entrei numa espécie de buraco e me afastei do movimento e da Rede Brasileira de Prostitutas. Hoje voltei para o movimento, estou na CUTS, e a pessoa que me trouxe de volta foi a Diana Soares. Então agradeço a Diana, Leila, Lourdes, Gabriela, começando por Gabriela. Também Elaine e Laura, que eram parceiras no projeto Encontros.Ivanete Pinho, Dassc, Corumbá (MS)

Sou prostituta Eu sou prostituta. Eu defendo a nomenclatura prostituta. Não sou garota de programa, não sou acompanhante de executivo. Foi na Rede que eu me identifiquei como prostituta. Nanci Feijó, APPS, Recife

No meio de tudo Sou prostituta, mesmo tendo parado, mesmo sem estar na ativa. Não existe ex, a gente tá sempre no meio do movimento. E sempre vou estar unida com minhas colegas que estão na ativa. Nilza Marinho, Davida, Rio

No controle dos nossos direitos Foi a participação no Projeto Encontros, de eventos, oficinas, testagens, que foi acordando a ideia da gente se organizar em Corumbá. O projeto ia acabar, e nós já tínhamos a imagem de que era nosso, e pensamos então em montar uma instituição e dar continuidade a esse trabalho. Na primeira tentativa não deu

Sem preconceito Este encontro foi mais que um encontro, foi uma junção, foi consolidar, foi amar. As putas dizendo ao que veio, o que nós queremos, qual é a nossa política. Só vou descansar no dia em que o Brasilzão não tiver mais preconceito. Maria de Jesus

beijo da rua 5


Foto: Monique Prada Foto: Jacqueline Silva

Luta contra doença Não conhecia a questão política do movimento e quando recebi o convite me entreguei de corpo e alma. Movimento significa luta contra uma doença chamada preconceito e significa quebra de tabu. Mai Silveira, Gempac, Belém do Pará Toque suave Muita coisa mudou na vida das prostitutas e mesmo das pessoas que não se envolvem na prostituição desde o começo do movimento. Eu por exemplo aprendi que fazer política é escutar, esperar e no momento certo dar um toque, mais suave do que fazia antes. Quando se descobre o que se pode fazer, a forma de fazer ativismo, aí vai em frente, e ainda tem muito o que fazer. Tina Rovira, NEP, Porto Alegre Superação e reconciliação Que são 30 anos. Com 30 anos fui mãe, uma mulher com 30 anos não é velha nem nova, é uma mulher cheia de tesão. 30 anos de luta, resistência, emoção, afirmação, alegria e muita tesão. 30 anos, que são 30 anos. Felicidade, paixão, transa e Maranhão. Maranhão, ah, 3 dias de superação e reconciliação. Ah, que saudade do Encontro Nacional de Prostitutas no Maranhão. Vânia Rezende Porque Gabriela era assim Foi quando teve um evento no Gempac e conheci uma mulher pequena, Gabriela. E falar de Gabriela é falar de uma pessoa muito

6 beijo da rua

especial. Se Gabriela estivesse aqui, estaria ali fora, fumando o cigarrinho dela, tomando cafezinho, e prestando atenção em tudo que tá acontecendo. Porque Gabriela era assim. E ela me chamou pra beber uma cerveja e foi quando comecei a entender melhor o que é a batalha, o que é sair com uma mochila nas costas, de uma cidade pra outra, sem esses apoios todos que a gente tem hoje, que Gabriela e nem Lourdes tinham. E conhecer tudo, que os problemas nos estados são uns diferentes dos outros. Hoje as coisas estão melhores, mas ainda existem problemas. E tudo isso foi pelo projeto de duas pessoas que começaram lá atrás, há 30 anos. Duas pessoas, e pra mim não importa se tem outros movimentos, que sempre vão ser minhas amigas, a gente luta pelas mesmas causas: discriminação, preconceito, violência. E hoje, com esse governo que quer se meter em tudo, daqui uns dias vão dizer que puta não pode foder. Eu tô preocupada se alguém vai dar o quê, vai chupar o quê? Eu tô preocupada com as crianças que tão passando fome, com a educação que tá errada, com esse governo que tá todo errado. Denise Mara, As Amazonas, de Manaus Movimento reconhecido Maior conquista do movimento é a própria divulgação de que nós existimos,é o movimento ser reconhecido. Antes do movimento, em Manaus, uma senhora casada cuspia nos pés da gente. Agora isso não acontece mais, tem mais respeito pelas prostitutas. E ainda falta conquistar mais espaço e ter direitos como qualquer outra cidadã. Sebastiana do Santos (Ana), Amazonas

Putas jovens: “Esta mulher sou eu” Uma grande conquista é a gente já estar provocando os espaços feministas. Outra é ver as putas velhas recebendo as putas jovens, que também estão vindo lutar, não estão mais naquela coisa de Pastoral, de ser assistidas. Aquilo que Gabriela lutou tanto está sendo posto em prática. O movimento brasileiro é esse crescimento, é o Puta Dei... O movimento é Gabriela, são as coisas que vieram dela, o movimento sempre vai ser Gabriela. Não adianta querer esquecer ou querer substituí-la porque não tem como. Hoje vejo na base que a gente faz coisas que deveria fazer quando ela estava viva. E tem gente sentindo saudade de não ter conhecido ela pessoalmente e quer se aprofundar ainda mais no que ela deixou. As colegas veem Gabriela nos vídeos e dizem: “Porra, essa mulher existiu mesmo? Essa mulher sou eu!” Diana Soares, Articulação Nacional Tudo começou em rede A grande sacada do movimento de puta é que desde o começou foi inovador, já começou em rede. Não começa como instituição e depois forma mais instituições para formar uma rede. Começa em rede e depois vai pro caminho que for. E continua se comunicando, como faz desde o início, justo porque se articula em rede. Em 1988 já tinha o “Beijo da rua”. Das questões difíceis, a principal é a da identidade. Não é que a puta não tenha identidade, é que ela negocia essa identidade. Se ela tem de sobreviver em determinado ambiente, vai negociar essa identidade. Se quer que tu ouças o que tu estás querendo que ela fale, vai negociar

essa identidade, que pode ser de vítima, de empoderada, o que quiser. Mas aí se cria a questão de como formatar isso em termos políticos para fortalecer o movimento e reivindicar demandas. Outra questão é a participação significativa. O movimento está em toda parte. Mas parece que essa voz não é significada. Agora mesmo estamos lutando pela democracia. De repente consegue fortalecer isso. Mas a puta ainda vai continuar fazendo essa negociação, que muitas vezes a invisibiliza, e muitas questões suas vão ser reivindicadas, mas não vão ser garantidas. Tem um nó político. Participando sempre das grandes questões do país, mas o que de significativo isso tem na vida de cada uma? O certo é que temos muito afeto entre nós e transamos o direito ao prazer. Queremos manter esse direito. Leila Barreto, Gempac, Belém do Pará Abrindo puteiros Os puteiros em Oiapoque estavam fechados. Lourdes veio, correu atrás de um carro aberto e organizou uma demonstração, em que as putas saíram pelas ruas gritando “putas unidas jamais serão vencidas”. O Ministério Público soube e no outro dia os puteiros estavam todos abertos. Edna, Ampap, Amapá Falar e construir A maior conquista do movimento é o respeito das pessoas para com as trabalhadoras sexuais. E entre nós é a união que vi neste encontro, as putas falando, construindo. E ainda assim é preciso fortalecer o movimento em geral. Célia Silva, Aprospi, Piauí

beijo da rua 7


lourdes barreto

“O maior projeto é o movimento”

L

ourdes Barreto é um mulher paraibana do brejo (Brejo de Areia), que logo cedo foi morar no sertão, em Catolé do Rocha. “Brejeira com sertaneja”. Nasceu em 1943, numa família que hoje seria considerada de classe média. “Naquela época tinha pobre e rico. No meu caso era pobre, mas que tinha água, milho, feijão, ovelha, boi, porco”. Morou em várias cidades do Nordeste e também do Norte, trabalhando na prostituição. “Fui pra prostituição por opção. Sonhava com essa fantasia da vida da prostituição, de glamour e também de algumas ilusões, nem tudo é um mar de rosas. Gosto do trabalho sexual. Tive muitos homens e muitos clientes. Andei pouco atrás de alguns homens, sempre fiz eles andarem atrás de mim”. Em 1957 foi viver em Belém, trabalhou em várias casas, lutou contra o fechamento do Quadrilátero do Amor pela ditadura, foi uma das primeiras mulheres prostitutas a entrar no garimpo nos anos 1980, depois nas obras da Barragem de Tucuruí. Durante todo esse tempo, alguma coisa insistia: “Percebia que a gente precisava se organizar. Não sabia como fazer, e quando conheci Gabriela (Leite), num encontro da Pastoral da Mulher Marginalizada, de que eu participava desde o início anos 1960, essa possibilidade foi ficando mais clara”. Isso foi em 1986. Logo no ano seguinte, acontecia no Rio o I Encontro Nacional de Prostitutas. E uma nova página da História se abriu, com a participação intensa de Lourdes, como agora mesmo no VI Nacional, em São Luís. E são esses 30 anos de militância, e os próximos, os temas dessa entrevista da aquariana e fundadora do Grupo de Mulheres Prostitutas do Pará (Gempac) – que se define como “empoderada, simples e complicada, às vezes arrogante, desafiante, uma maluca beleza, maluca sonhadora, com coragem, determinação e fraquezas, mãezona, vozona, bisavozona, uma puta companheira, uma puta em todos os sentidos”. Que gosta de estar “no meio das pessoas” e acredita que “é possível mudar o mundo”. Por isso “estou no movimento. Ele é que nos faz sonhar e acreditar, e andar no tempo. O maior projeto é o movimento”. A força do I Encontro Não foi fácil organizar esse movimento lá no início. A gente construiu o movimento porque havia muita vontade, muita força e energia. A gente se virava, acreditando, não tinha diária, passagem de avião, porra nenhuma. Eu mesma viajei 56 horas do Pará até o Rio de Janeiro pra participar do I Encontro. Era luta pra caramba!

8 beijo da rua

No I Encontro eram poucas pessoas querendo construir uma história, com vontade própria, dedicação, acreditando que era possível construir essa história, como foi construída. Eu e Gabriela já tínhamos uma identidade muito forte. Eu fiz a abertura no Circo Voador. Um grande desafio, com minhas limitações, mas com muita força de vontade. Foi muito bom. Tanta gente, tantos artistas, uma força muito grande. E não tinha vaidade, a gente estava querendo lutar porque acreditava que era muito importante organizar o movimento, já pensávamos em rede. Os desafios do VI Encontro Este encontro estava a cara da Gabriela. Todo mundo falava muito. Mesmo já havendo outras instâncias, a Rede tem um significado muito grande, político, contempla tudo o que vem acontecendo de cabo a rabo. Mas ainda temos questões. E está bem claro que um dos problemas dentro do movimento ainda é a questão da identidade. Há uma dificuldade, o estigma ainda é muito forte. E eu também percebo que há uma certa vaidade, de achar que uma é mais que a outra. Mas todas somos iguais. Acho que dei umas boas batidas de toalha molhada sobre essas questões de vaidade. Muitas vezes de até impedir, dificultar o surgimento de novas referências. Outra coisa é que algumas ainda vêm o movimento como assistencialista. Ainda tem gente esperando que a Rede tenha uma presidenta, pra fazer tudo. Poucos estados conseguiram articular passagem nos seus locais. Muitas foram do seu bolso e 40 e tantas prostitutas com passagens do Ministério da Saúde. E outra questão é ver o movimento como meio de vida, e de colocar a questão da pobreza, associar a questão da prostituição com a questão da pobreza. Isso não é real. Pode ter vindo de alguma parte de pobreza, mas tem que ver o outro lado, do dinheiro, do prazer que a gente tem na prostituição, de receber pra dar prazer. E tem também a questão da institucionalização, achar que por estar na instituição está participando mais, que é melhor do que a puta da rua. Eu tenho essa missão: precisamos largar a prancheta e falar de igual pra igual com as putas dos cabarés. Falar da sexualidade, de família...Tem que ir pro cabaré tomar cerveja com as colegas. Bater papo de puta!

O maior projeto é o movimento A questão de querer recurso, projeto, estamos trabalhando sem recurso há muito tempo, é logico que tem de ter recurso, temos mais condições de fazer mais com recurso, claro. Mas deixei bem claro que o maior projeto de todos é o projeto político, o projeto do movimento – não o projeto pontual, do momento, com seus objetivos e metas. O maior projeto é o movimento. Por isso eu quero continuar com esse movimento de putas brasileiras, sem divisão, sem lutas de poder. Vamos nos unir.

Participação nos estados Precisamos aprofundar nosso trabalho em nossos estados, qualquer estado conhece melhor o seu trabalho, temos que participar dos órgãos, dos conselhos. Devíamos ter feito mais pela campanha de Gabriela. Eu também fui muito bem votada aqui. Vereadora mais bem votada no interior do Amazonas. E a Indianara se tornou suplente no Rio. Jaqueline aqui, também candidata a deputada estadual. Precisamos insistir nisso.

beijo da rua 9


Foto: Monique Prada

Gabriela Sempre vai estar com a gente. Aquela fala, aquela concepção, aquele entendimento político. A luta por identidade. Gabriela me contemplava quando viajava pro exterior pelo discurso político, pelo entendimento. Ela sempre vai estar presente. Como ela dizia, é bater papo no botequim, ficar de igual pra igual, que as pessoas ficam empoderadas. Projeto de lei O PL Gabriela Leite não tem que ter mudanças: algumas não concordam com 50%, mas o que precisamos é lutar por condições de trabalho, nem sempre os ambientes são agradáveis nos cabarés, nos garimpos. Precisamos ir para as praças e pedir assinaturas de apoio ao projeto. CBO Acho que foi pouco divulgado, ainda tem poucas prostitutas que contribuem para o INSS com base na CBO (Classificação Brasileira de Ocupações). Fizemos pouco material sobre isso. É difícil, mas precisamos trabalhar mais com essa divulgação. Botar barraca na praça. Alianças Esse movimento não precisa só ser puta pra estar nele. É um movimento de quem acredita nesse movimento. Lógico que uma fala de uma puta empoderada é uma coisa, é principal. Mas de repente tu não é puto, nem puta, mas faz uma puta diferença.

Conquistas A maior conquista é reconhecimento da existência desse movimento, reconhecimento de que essas mulheres vêm construindo políticas públicas, que são para toda a sociedade. É um movimento democrático, não de poder, mesmo que ainda seja preciso bater muito na questão do poder. Somos todas amigas, colegas e companheiras. Um movimento que ajudou a construir as políticas de Aids do Brasil.

10 beijo da rua

Parcerias A questão da Aids, diretamente ou indiretamente, nos ajudou muito, com seus projetos locais e nacionais, fortalecimento do movimento, como Esquina da Noite, o Sem Vergonha, Amazônia Legal. E aprendemos a fazer prevenção. A não ser o Ministério do Trabalho, com a CBO, de órgãos públicos, quem mais apoiou o movimento de puta foi o Departamento de Aids, embora puta não tem cara de Aids, mas tem puta com Aids. E a academia e os pesquisadores também têm sido fundamentais. Ser puta A gente nunca vai ser ex. Qualquer hora pode aparecer um programa e a gente vai. Quando a gente começa a ficar mais velha fica meio difícil mesmo, como qualquer trabalhador. Apesar que tem umas putas velhas fazendo programa ainda. Nós somos todas putas. Estando na ativa ou não.

MULHER GUERREIRA, MÃE DA RUA Theresinha Ferreira (Sandra Cabelão) Diana Helene Só quem presenciou esse olhar ao vivo sabe a magnitude que ele tem. Ela levava um mundo inteiro dentro dele. Levava uma história ancestral. Eu vislumbrava toda história do Brasil na história de vida dessa mulher cada vez que ela me contava algo que tinha vivido. Coisas fantásticas e inacreditáveis. Fábulas de uma vida complexa. Filha de um amor proibido entre kayapós e espanhóis. Ficou órfã em função da disputa entre eles. Cresceu no meio do mato, sozinha. chegou na cidade e não aceitava vestir roupa nenhuma. Dormia de ajuda na casa das pessoas. Foi traficada com 12 anos. Teve dois filhos no cativeiro que foram tirados dela. Depois, em liberdade, escolheu

continuar sendo prostituta. Viveu e trabalhou muitos anos no Jardim Itatinga. Foi bandida. Sua esposa foi assassinada. Adotou uma criança cigana, que havia perdido toda sua família pelas mãos da polícia no centro de Campinas. Escolheu lutar pelas outras mulheres que trabalhavam como prostitutas em Campinas. Protegia as prostitutas do centro da violência da polícia. Era a “mãe da rua”. Junto com as mulheres do centro fundou a Associação Mulheres Guerreiras. Voltou a estudar e se formou no supletivo. Fez um filme sobre a história da associação. O que mais preocupava ela atualmente era ter que deixar seu cachorro sozinho pra poder participar dos eventos do movimento de prostitutas. Foi assassinada por um crime de ódio: feminicídio, putafobia e racismo. Porque a nossa sociedade precisava queimar mais uma bruxa. Sandra, guerreira, que você descanse dessa vida tão cheia de luta. Nós vamos continuar tocando por aqui, sob a sombra da sua história. Dica: assista ao filme Mulheres Guerreiras https://www.youtube.com/watch?v=zgCf_QQjxRg

beijo da rua 11


Vitória da puta política

Luzes vermelhas Nesta coluna para o ‘Beijo da rua’, Gabriela reflete sobre o primeiro encontro de prostitutas, em 1987: “Quando realizamos o I Encontro de Prostitutas, em 1987, o clima reinante de romantismo e coração aberto era a grande força de um movimento em início. Hoje não, hoje somos políticas e coerentes. Na medida do possível, evitamos a contradição. Nos tornamos politicamente corretas.” No final, ela escreve: “Somos hoje um movimento estruturado e respeitado como sério e eficaz. Era isso o que queríamos. Ganhamos essa batalha; mas além das muitas outras batalhas que ainda temos pela frente, temos Laura Murray também um grande desafio: não deixar a racionalidade nos vencer. Não podemos perder duas grandes características lapidadas pela Tenho dúvidas se é possível definir a forma tão particular e potente antiguidade da profissão: a sedução e o clima de mistério das luzes com que o movimento brasileiro de prostitutas faz política. Tentei vermelhas.” na minha tese, e continuo tentando. Chamo de puta politics. Deixo Leila Barreto, uma das organizadoras do evento e também do em inglês e português, puta política, uma forma de reconhecer sua prêmio Puta Política, me contou que ela não conhecia essa coluna singularidade e a maneira de operar diversos planos e campos de do ‘Beijo da rua’ e sentia que tinha um grande significado entregar ação a la vez. É muito mais que um movimento social. Não cabe o prêmio ao lado desse banner. “De uma maneira, Gabriela batizou nas teorias políticas atuais do ativismo. Redefine, passa por cima, dá o próprio prêmio, e fica dando a grande cutucada no movimento. voltas, seduz, segue, cai fora, incorpora, sai e volta com uma fluidez e Eu achei uma feliz coincidência e vejo essa coincidência como um uma sabedoria que são das putas. Escapa de definição. É uma política bom sinal, dos significados em torno desse nome, e na verdade dessa que sente. Que mobiliza. Que quando você se dá conta, você já foi crítica ao movimento e às possibilidades dele, ao reconhecimento do totalmente tomada por ela. Tem que ser reconhecida como teoria e movimento.” filosofia política. Sai Aristóteles, entram as putas. Ao falar sobre política, Leila também enfatiza a importância No VI Encontro, fui mais uma vez tomada por ela. Perguntei do corpo como instrumento político do movimento e questão da para várias lideranças o que política significa para elas. Quando identidade – sobretudo a palavra puta. “E não é um perguntei a Diana Soares, de Natal, como o ativismo “Uma puta ativista vai simples aspecto de dizer assim, ‘ah, sou puta’. Não é só das prostitutas era diferente de outros ativismos, ela mesmo com boceta, esse dizer, mas é no espaço que estiver, ser. Essa identidade disse: “É muito mais atrevido. A gente faz ativismo com cabeça, com está visível.” com aquela elegância, coisa bem putanhento mesmo. tudo, vai de útero Nas falas da Diana, Jesus e Leila há contradições Uma puta ativista vai mesmo com boceta, com cabeça, mesmo. Diferente das e sedução – a boazinha, a malvada, a habilidade de com tudo, vai de útero mesmo. Diferente das outras outras ativistas, que negociar todas essas subjetividades para formar alianças ativistas, que vão só de cabeça, a gente entra com tudo vão só de cabeça, a e conquistar espaços. Parte da contradição e sedução mesmo.” gente entra com tudo vem de uma política que sabe o que quer e como negociar Maria de Jesus, de São Luís, respondeu assim: “Eu mesmo” várias subjetividades para chegar lá. sou política. Acho que todo o mundo é político. A Diana Soares gente vai pra rua, a gente mete a cara, a gente é mãe, é Bater sem machucar mulher, namorada, é tudo... então a gente é política. A Na oficina realizada em João vida da gente rola ou fazendo Pessoa em maio de 2017, no meio política de boa vizinhança de um embate com o Estado e ou de malvada ou de boazinha, não interessa, o negociações para a realização do que interessa é que a gente é VI Encontro, Lourdes Barreto me puta política.” disse que fazer política era “bater Teve o Prêmio Puta sem machucar”. Isso para resumir Política, entregue para tudo o que eu tinha observado lideranças do movimento entre o movimento de prostitutas e aliados. A cerimônia de e o Estado. Um movimento que premiação foi na frente de sabe bater sem machucar, e um dois bâneres do Observatório Estado que muitas vezes machuca da Prostituição; um com sem bater. Pedi para Lourdes falar imagens do III Encontro mais sobre o que era política para Nacional, de 1994, e outro ela. Essa sabedoria de saber bater com textos e fotos de sem machucar vem da combinação Gabriela, incluindo a coluna de sedução e contradição a que que ela escreveu após o III Gabriela se refere – é distinto de ser Encontro, intitulada Putas politicamente correto. Políticas. Lourdes ainda explicou: “Fazer

12 beijo da rua

política, com autodeterminação, admiração, com prazer, com respeito, é saber bater sem machucar, saber ter diálogo, saber encaminhar as coisas politicamente, saber fazer articulação política. Política está ao nosso redor, política está na minha casa quando estou na cozinha, quando estou no supermercado fazendo compras, quando estou trepando na cama estou fazendo política porque estou negociando politicamente a forma que quero transar. Política é tudo isso, ninguém vive sem política.” Um exemplo do Encontro. Assistimos à entrevista maravilhosa da Nanci Feijó, da Associação de Prostitutas de Pernambuco (APPS), ao Jô Soares, dada em novembro do 2007. Ela fala do ativismo, dos clientes, sexo, prazer, tudo. E num momento da entrevista, mostra um material do APPS e menciona a parceria com a prefeitura de Recife. Eu assisti ao lado da Vania Rezende, também da APPS, e ela me contou o prefeito ligou para Nanci para parabenizar pela entrevista. APPS estava prestes a ser despejada de sua sede e Nanci falou para ele: “Não quero agradecimentos, quero espaço”. E o prefeito deu um espaço no Centro de Recife, perto das putas na Praça da República, que elas ocupam até hoje. E não só cedeu – como a Vania me falou, desde essa época até hoje, não pagam “nem água, nem luz, nem papel higiênico!” E quando escrevi para Nanci para perguntar se eu poderia contar essa história aqui, como exemplo de uma sabedoria de articulação política, ela falou: “Será um prazer contar essas experiências para incentivar outras prostitutas a terem aliados e parcerias. A ser puta com quatro pês – PUTA – PÚBLICA – POLITIZADA E PODEROSA.” É justamente essa política de formar aliados, abolir as divisões entre instituições e a rua, ocupar espaços institucionais com as pautas da prostituição, de ressignificar a prostituição por onde passa que vejo como central ao puta politics. O corpo é político e as estratégias de mobilização e ação vêm de uma sabedoria, coragem e força que é só das putas. Acho possível que Gabriela tivesse achado alguns momentos do VI Encontro estruturados ou politicamente corretos demais. Ao mesmo tempo, a luta, em meu olhar, está fortíssima e resistente. E apesar de todos os retrocessos e desmontes que estamos vivendo, a

Foto: Monique Prada

racionalidade não venceu. Pelo contrário, a realização do Encontro em si, neste cenário político, é uma vitória da puta política. O desfile Daspu foi realizado numa praça pública, do lado de um bar, da escola Flor do Samba e da igreja mais antiga de São Luís. As putas deram um show, com cenas que foram do religioso ao profano na frente de representantes e estruturas mais importantes da cidade, estado e nação. A “sedução e o clima das luzes vermelhas” venceu. ❤

beijo da rua 13


Um desejo chamado Cidade

O

Soraya Silveira Simões

que é uma cidade? Um monte de ruas destinadas a virarem um mapa? Uma esquina com um bar? Um ponto de ônibus? Uma praça? Isso tudo e mais um monte de gente, vivendo, pulsando, vibrando, gozando, querendo, desejando, andando, correndo, trepando, comendo e bebendo? Cidades têm sido objeto de muita reflexão e tentativas as mais variadas de definição, mas podemos resumir mais ou menos bem essa conversa toda dizendo o seguinte: há a turma do que diz que cidade é o lugar de gente (e portanto dos conflitos e das lutas pelas definições do que é a cidade mesmo) e há os que pensem que a cidade é o que eles, e só eles, dizem o que é. Normalmente estes últimos são os “especialistas” em cidade, que para tanto puderam obter um diploma que certifica isso, esse “direito”. Mas a cidade de que falo aqui é a cidade contida na ideia de “direito à cidade”, cunhada lá nos anos 1960, momento da contracultura, das contestações que tiveram as cidades como palcos de muitas cenas criativas, potentes, subversivas. A cidade política, mas sobretudo a cidade que estendeu a política urbana propriamente a uma política do corpo e, com isso, a uma nova pauta de reivindicações que veicula sentidos bastante diversificados do que quer dizer habitar. Não mais uma política que segrega espaços e papéis – aqui é para morar, aqui é para circular, aqui é para trabalhar –, mas uma política que quer tudo, que potencializa misturas, que gosta do ambíguo e do umbigo, da língua e da pele preta, branca, marrom, vermelha. Uma política do desejo, e esse desejo também pode se chamar cidade. Em São Luís, Maranhão, isso tudo voltou ao palco, ao papo, às esquinas, aos copos e às bocas. O VI Encontro Nacional de Prostitutas disse de corpos situados em lugares, em cidades. Corpos que se deslocam entre e nas cidades. Corpos que querem ser algo da cidade. Corpos que falam, têm cheiro, cor, sexo. Sobretudo sexo. Pois cidade também é sexo. E a cidade, como um corpo, também tem lugares e horários para tanto e tantas coisas que até Deus duvida!

14 beijo da rua

Em São Luís do Maranhão as putas viram o quanto o movimento cresceu, se ampliou, deu frutos. Hoje são três redes articuladas no Brasil: a Rede Brasileira de Prostitutas, a Central Única de Trabalhadores Sexuais e a Articulação Norte-Nordeste. Todas frutos de movimentos associativos que tiveram nas interações na cidade o seu motor, um grito contra abusos e violências de toda ordem, que poderiam ter também como “alvo” outras mulheres, outros trabalhadores, outros habitantes, mas que não. Tiveram aquela mulher, aquela esquina, aquele prédio, aquela ali: a puta, a zona, essa cidade. O VI Encontro Nacional de Prostitutas, ou melhor, de Putas, aconteceu em São Luís, capital de antigo território que reuniu três capitanias da então América Portuguesa: as capitanias de Grão-Pará, Maranhão e Ceará, que juntas configuravam o Estado do Maranhão, ao lado do Estado do Brasil. Ambos terra de colonização da Coroa d’além-mar durante a dinastia do Rei Filipe III, lá nos idos de 1600 e lá vai fumaça. Pois foi ali, no Convento das Mercês, construído mais ou menos nessa época, que as putas do Brasil inteiro, de Sul a Norte, se reuniram para tratar de si. Protagonistas – e não proprietárias – que são das ruas da cidade, realizaram esse encontro em uma das cidades mais antigas do nosso território nacional para promover um contragolpe, fortalecendo a categoria, em torno dos 30 anos de memórias, histórias e lutas em território de antiga colônia. O VI Encontro Nacional de Putas tratou de descolonização em todos os aspectos: descolonização de ideias, de lugares, de ruas, de sentidos, de corpos, de práticas. Terminou com um desfile Daspu na quadra da Escola de Samba Flor do Samba, no bairro do Desterro, lembrando a todos que “somos todos uns desterrados em nossa própria terra”, como escreveu Sergio Buarque de Holanda há 80 anos, logo no primeiro parágrafo de “Raízes do Brasil”. No bairro do Desterro, em São Luís do Maranhão, as putas todas botaram pra quebrar. E requebraram! Pois se assim é, matamos a cobra e mostramos o pau! ❤ Foto: Ingrid Barros

A batalha entre sujeito e objeto no sertão da Saúde Roberto Domingues

Estávamos ainda tateando e buscando compreender os impactos que aquela nova doença provocava sobre a população sexualmente ativa de um modo geral e, em especial, sobre as pessoas que apresentavam experiências com o sexo tidas como periféricas, por estarem fora do que era considerado normal ou convencional pela sociedade, fossem comerciais, por puro prazer ou ambas. O ano era 1989 e circulava a representação, socialmente construída, de uma infecção restrita aos denominados “grupos de risco”, nos quais as prostitutas haviam sido incluídas, logo após os homossexuais masculinos, travestis e usuários de drogas injetáveis. Mais uma vez a sombra ameaçadora do estigma que acompanhava prostitutas desde tempos imemoriais retornava materializada, voltando elas a estarem ao alcance dos olhares como potenciais transmissoras de doenças sexualmente transmissíveis. Porém um diferencial insurgia a partir dos conhecimentos científicos disponíveis na época. Mais do que vetores de transmissão, estas “mulheres da vida” eram tidas como sujeitos passíveis de serem afetados pelo HIV, um grupo vulnerável à infecção que demandava intervenções de proteção. Todavia, em razão das características peculiares da profissão, elas apresentavam condições bastante estratégicas para servirem, ao mesmo tempo, como autoras de ações voltadas para a educação em saúde e prevenção às doenças de transmissão sexual. Aproximação Neste cenário inaugura-se a primeira aproximação entre prostitutas e o Ministério da Saúde, que, por meio do Programa Nacional de DST e Aids, trazia ao país um modelo inovador

de intervenção social de educação de pares em saúde, batizado Projeto Previna. Este projeto foi desenhado de modo a, em ações concomitantes, atingir grupos específicos utilizando uma mesma metodologia adaptada às especificidades de cada público, a saber, prostitutas, homossexuais, usuários de drogas e população prisional. Em razão de seu formato inovador, o Previna foi uma experiência impactante para além de seus objetivos no campo da promoção em saúde e prevenção das atualmente denominadas IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis), um marco simbólico e revelador do que viria a se consolidar como a relação entre governos e sociedade civil na construção da resposta brasileira à Aids ao longo dos anos. Uma relação nem sempre tranquila, marcada por tensões e embates, mas absolutamente necessária para o exercício da participação democrática da população na gestão e implementação de políticas públicas de saúde no país. O reconhecimento, pelo poder público, da organização do movimento de prostitutas, naquele momento recém-estruturado, representou um forte empuxo para o seu fortalecimento, uma vez que endereçou a ele uma demanda de articulação em nível nacional que, talvez, demorasse um tempo maior para ocorrer. De acordo com metodologia adotada pelo Projeto PREVINA, cidades de grande e médio porte, de norte a sul do país, foram selecionadas para compor a força tarefa proposta pelo Ministério da Saúde. As prostitutas foram incorporadas na agenda de trabalho dos profissionais de saúde, não como mero objetos de intervenção, mas como agentes proativos de promoção de saúde, provocando transformações importantes na constituição subjetiva e coletiva de identidades até então deterioradas pela marginalização imposta a essas mulheres pela moral sexual hegemônica mantida pela sociedade de modo geral. Parceria? Fato é que, desde o primeiro momento, prostitutas se posicionaram frente ao Poder Público de forma assertiva, numa postura de resistência inúmeras vezes recebida com surpresa, e até certa indignação, por gestores e técnicos da área da saúde, sobretudo quando reagiam a imposições que se contrapunham ao caráter autônomo inerente à participação dessas mulheres, crescente e a cada dia mais solidificado na medida em que se conquistavam espaços de reconhecimento. O uso da palavra indignação não surge de forma gratuita, podendo ser antevista a partir de duas possibilidades interdependentes, embora distintas. A primeira aponta para a confusão compartilhada tanto pelo Poder Público quanto pela sociedade civil como um todo, inclusive pelo movimento de prostitutas, de que estava em curso um processo genuíno de parceria em nome de um objetivo comum e único. A luta contra a Aids, de forma inequívoca, aproximou e uniu os mais diversos setores da sociedade em torno de um objetivo maior, porém afirmar a existência de parceria entre Poder Público e sociedade sempre

beijo da rua 15


pareceu algo extemporâneo e um tanto descabido, na medida em que pressupõe, via de regra, relações assimétricas de poder entre os parceiros, o que nunca se mostrou possível entre setores tão diversos. Gabriela Silva Leite, parafraseando o filósofo francês Rousseau, afirmou em um dos vários eventos que prostitutas organizaram ao longo dos anos, este na Bahia: “As relações só podem ser consideradas efetivamente democráticas quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém”. Chamou assim a atenção para a complexidade da relação estabelecida entre o Estado e o movimento social. Assim, nada mais apropriado do que afirmar que o movimento de prostitutas sempre se dispôs a colaborar com o governo na construção de políticas públicas de saúde, mas nunca foi exatamente o seu parceiro. Elementos de sedução e da arte da conquista eram postos em jogo em uma dança na qual o Estado entrava com recursos e as prostitutas com o seu saber da vida, em um baile em que todos poderiam se beneficiar conjuntamente. O desenho final, ironicamente, traçava um paralelo com a ideia recorrente de que prostitutas vendem seus corpos quando, na verdade, comercializam fantasias a clientes capazes e dispostos a pagar pela realização delas. A segunda possibilidade de análise de compreensão da indignação vivenciada diz respeito ao próprio caráter libertário e revolucionário que o movimento de prostitutas sempre sustentou, rompendo com padrões clássicos de comportamento diante do instituído, contrariando as expectativas de submissão a um saber dado sobre a epidemia da Aids, bem como aos protocolos da “corte de Brasilia” ou financiadores internacionais. Tensões em quatro tempos São inúmeras as passagens emblemáticas deste tensionamento, mas quatro delas são essenciais para oferecer uma compreensão ampliada

16 beijo da rua

do processo político e eticamente orientado de construção identitária do movimento de prostitutas no Brasil. O marco inicial pode ser localizado já em 1989 na luta por imprimir no material do Projeto Previna um tom eminentemente político, com ênfase nos direitos civis demandados pelas prostitutas, em detrimento de informações meramente técnicas sobre transmissão viral e métodos de prevenção, como proposto inicialmente pelos técnicos do Ministério da Saúde. Elabora-se, assim, com ineditismo, as cartilhas “Fala Mulher da Vida”, “Estrelas da Noite” e “Rapazes da Noite”, nas quais se apresentavam e discutiam questões que abordavam as várias vulnerabilidades sociais às quais prostitutas, travestis e michês estavam sujeitos no exercício profissional e que, por via de consequência, fragilizavam a autodeterminação diante da decisão de usar o preservativo. Anos mais tarde, no âmbito do Projeto Maria Sem Vergonha, um material de referência seria elaborado por integrantes da Rede Brasileira de Prostitutas, avançando nesta abordagem, marcando a relação intrínseca entre possibilidade de prevenção às IST e Aids com cidadania e promoção de direitos. A insurreição do movimento de prostitutas frente às iniciativas de testagem em massa de mulheres, ainda que em âmbito de pesquisas científicas e acadêmicas, também dá a devida dimensão da potência da ação política deste grupo, que conseguiu interferir no modelo de investigação junto a este segmento populacional, exigindo respeito aos princípios basilares de pesquisas com seres humanos no Brasil. O amadurecimento do movimento e evidências da autonomia e da força conquistadas pelas prostitutas são demonstrados em outros dois momentos históricos. A imposição do governo dos Estados Unidos em encerrar financiamentos de ações de enfrentamento da Aids para projetos que previam o fortalecimento de pautas políticas e empoderamento de grupos de prostitutas causou forte impacto e resistência local, tendo em vista que já estava consolidada no Brasil essa estratégia como meio fundamental de trabalho no campo das IST e Aids. A crise teve proporções inimagináveis, uma vez que o Programa Brasileiro apresentava enorme dependência de financiamento externo para manutenção de seus programas e a adesão dos diversos movimentos sociais, ainda que não diretamente afetados pela medida, foi decisiva para potencializar as ações de resistência e pressionar o governo brasileiro a negociar soluções capazes de ofertar respostas que não negassem os princípios estruturais da resposta do país na luta contra a Aids. A última crise apresentou proporções ainda mais avassaladoras, abalando a relação entre a Rede Brasileira de Prostitutas e o governo federal. Foi deflagrada pelo cancelamento da campanha alusiva ao dia 2 de junho – Dia Internacional da Prostituta. Nela, a partir de depoimentos de mulheres prostitutas, era exposta a valorização da profissão como forma de manejar, com sucesso, estratégias

de prevenção às IST e Aids. O veto da campanha, dado pelo ministro Alexandre Padilha, especialmente diante do cartaz em que uma mulher se dizia feliz sendo prostituta, traduziu, de forma cristalina, os rumos que a política de Aids estava tomando e o quão excludente, conservadora e violadora de direitos poderia se tornar. A partir deste impasse ocorreu o rompimento formal do movimento com o Departamento de Aids do Ministério da Saúde. Foi reatado algum tempo depois, mas, naquela ocasião, reafirmou o papel das prostitutas não apenas na luta contra a Aids no Brasil, mas, sobretudo, na defesa de um projeto democrático de sociedade orientado pela gramática dos direitos humanos, uma vez que sem reconhecimento de direitos, a começar por direitos identitários, não há como se falar em saúde integral. Desafios na vinculação com saúde Esta história ainda está em curso, mas parece demonstrar que, não obstante os inestimáveis ganhos políticos obtidos pelo movimento de prostitutas a partir de sua participação e contribuição à resposta brasileira na luta contra a Aids, um longo caminho ainda precisa ser percorrido, em especial no campo dos direitos e cidadania. A persistente vinculação do movimento de prostitutas com as políticas de saúde – necessária à época, pois se reconhece que foi este o campo de maior acolhimento e possibilidade para seu florescimento – se constituiu fator importante de inibição da expansão e interlocução com outras políticas públicas nacionais. Esta constatação não implica afirmar a inexistência ou ausência de esforços para além dos limites deste campo, como demonstram as ações desenvolvidas no âmbito do Ministério da Justiça e o debate sobre tráfico de pessoas, bem como o avanço na área da cultura, a partir de intervenções impactantes no mais diversos espaços sociais e a discussão sobre a implementação de museus temáticos, como em Belo Horizonte e Rio de Janeiro; ou ainda, a incidência junto ao legislativo para elaboração e advocacy pela aprovação de projetos de lei, inicialmente o proposto por Fernando Gabeira, e mais tarde o PL Gabriela Leite, de autoria do deputado Jean Wyllys. Porém, sendo o campo de maior convergência de ações e de financiamentos, que, ao fim e ao cabo, fortalecem os objetivos primários do movimento de prostitutas, a inevitável vinculação com a saúde, de forma paradoxal, torna possível vislumbrar a manutenção de certas representações acerca da prostituição no Brasil, a exemplo de outros lugares no mundo, fazendo-nos colocar em xeque se, de fato, em algum momento, prostitutas deixaram de ser consideradas objetos

de intervenção, como anunciado pelo Previna nos anos 90 do século passado. Uma manchete publicada em uma das redes sociais do Ministério da Saúde, a propósito do VI Congresso Brasileiro de HIV, Aids e Hepatites Virais, é reveladora de como as prostitutas seguem sendo representadas simbolicamente. Lia-se na cabeça do texto “Encontro histórico #hepaids2017 promove mesa redonda com trabalhadoras do sexo, mulheres cisgênero, trans e travestis”, em um claro sinal do não pertencimento de prostitutas na categoria mulheres, uma pauta histórica do movimento, que desde sempre reclama a ausência de reconhecimento da mulher que todas são ao serem interpeladas tão somente da cintura para baixo pelos profissionais da saúde. O tempo passa, muita coisa muda, mas, às vezes, o faz apenas para se manter tudo como sempre foi. Como se vê, temos ainda muitas águas a navegar. ❤

beijo da rua 17


Memórias, histórias e lutas

1989 II Encontro Nacional de Prostitutas, no Rio, tendo a Aids como tema. São lançados manuais de prevenção para prostitutas, travestis e michês, no contexto do Projeto Previna. 1990-3 São criadas associações de prostitutas em diversos estados, como Porto Alegre (NEP), Campina Grande-PB (CIPMAC), Curitiba (Liberdade), Aracaju (ASP), Fortaleza (Aproce), Belém do Pará (Gempac), Rio de Janeiro (Davida). Encontros locais, estaduais e regionais começam a ser promovidos. Associações passam a atuar na prevenção de Aids, com apoio do Ministério da Saúde. Em 1992, Gabriela Leite lança o livro “Eu, mulher da vida”.

1979 Prostitutas fazem passeata e uma assembleia no teatro Ruth Escobar, em São Paulo, revoltadas com prisões, agressões e até assassinatos cometidos pela equipe de um delegado na Boca do Lixo e na Boca do Luxo.

Divulgada primeira pesquisa nacional sobre qualidade de vida das prostitutas, por UnB e Programa Nacional de DST/Aids.I Encontro NordesteSudeste, em Salvador.

1986 Gabriela Leite, que havia participado das manifestações em São Paulo, e Lourdes Barreto se conhecem e compartilham o desejo de organizar um movimento de prostitutas. 1987 I Encontro Nacional de Prostitutas é realizado no Rio, com a presença de prostitutas de 11 estados e recursos do Conselho Mundial de Igrejas, intermediados pelo pastor Zwinglio M. Dias. É criada no Encontro a Rede Brasileira de Prostitutas.

1988 Vila Mimosa funda associação, que anos mais tarde passa a ser controlada por cafetinas. Ato no Circo Voador reage à tentativa de remoção da Vila Mimosa. Lançamento do jornal “Beijo da rua”, no I Encontro Norte-Nordeste de Prostitutas, em Recife.

2003 Apresentado ao Congresso Nacional projeto de lei do deputado Fernando Gabeira, que descriminaliza casas de prostituição. O PL seria arquivado anos mais tarde.

1994 III Encontro Nacional, dessa vez intitulado de Trabalhadoras do Sexo. Os temas do evento no Rio são lei, saúde e fantasias sexuais.

2004 Conferência Nacional de Direitos Humanos tem delegada da Rede Brasileira de Prostitutas. Participação da Rede na Conferência Internacional de Aids em Bangkok, Tailândia.

1995... Criadas novas associações, como em Ribeirão Preto (Vitória-Régia), Salvador (Aprosba), Recife (APPS), Natal (Asprorn), João Pessoa (Aprospb), Belo Horizonte (Aprosmig), São Luís (Aprosma), Teresina (Aprospi), Corumbá (Dassc), Campinas (Mulheres Guerreiras), Manaus (Núcleo Rosa Vermelha e Amazonas), Florianópolis (Estrela Guia).

18 beijo da rua

2002 Ministério do Trabalho reconhece prostituição como uma das 600 ocupações brasileiras. Lançada campanha “Sem Vergonha, garota. Você tem profissão”, em parceria com Ministério da Saúde.

beijo da rua 19


2005 Movimento social dá aval ao governo brasileiro para recusar fundos norte-americanos destinados à luta contra a Aids, devido à exigência dos EUA de que ONGs se posicionassem contra a prostituição.

Lançamento da grife Daspu, no Rio, pelo coletivo Davida. Participação da Rede no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (imagem p. 19). Participação na elaboração de documento da Unaids que recomenda a descriminalização da prostituição para a redução da vulnerabilidade à epidemia de Aids. Projeto Sem Vergonha, para ampliação e fortalecimento da Rede Brasileira de Prostitutas.

2006 Participação da Rede na Conferência Internacional de Aids em Toronto, Canadá, e na Consulta Global sobre HIV e Trabalho Sexual, no Rio. Apresentação do vestido de noiva Daspu na Bienal de São Paulo.

2010 V Encontro da Rede Brasileira de Prostitutas, em Porto Alegre. Lançamento da publicação “Prostituição e Direitos Humanos”. Participação na Conferência Internacional de Aids em Viena, incluindo desfile Daspu. Associações da Rede Brasileira de Prostitutas tornam-se membros da Rede Global do Trabalho Sexual (NSWP) e Gabriela Leite, representante pela América Latina na diretoria. 2011 Encontro em Belém, promovido por Gempac, recomenda que associações de prostitutas deixem de participar de editais que comprometam suas politicas, inclusive na área de Saúde.

2007 Participação na Consulta Latino-Americana sobre Trabalho Sexual e DST/Aids,em Lima, no Peru. Estreia em João Pessoa a Corrida da Calcinha, organizada por Apros-PB, em comemoração ao Dia Internacional da Prostituta. Cemitério das polacas é tombado pela Prefeitura do Rio.

2008 IV Encontro da Rede Brasileira de Prostitutas, no Rio, com lançamento da Carta de Princípios da Rede. Participação na Conferência Internacional de Aids na Cidade do México, incluindo desfile Daspu. Consulta Nacional sobre DST/AIDS, Direitos Humanos e Prostituição, em Brasília. 2009 Lançamento do livro “Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta”, de Gabriela Leite.

20 beijo da rua

2012 Apresentação do projeto de lei Gabriela Leite, pelo deputado Jean Wyllys, em tramitação no Congresso. Gempac lança o Puta Dei, de comemoração do Dia Internacional da Prostituta, o 2 de junho. 2013 Ministério da Saúde censura campanha do Dia Internacional da Prostituta. Criação do Observatório da Prostituição, projeto de extensão do Laboratório de Etnografia Metropolitana/IFCS/UFRJ. Associações da Rede Brasileira de Prostitutas tornam-se membros da Plaperts – Plataforma Latinoamericana de Pessoas que Exercem o Trabalho Sexual.

Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conatrap). Pesquisa do Observatório da Prostituição sobre impacto da Copa do Mundo na prostituição. Participação da Rede na Conferência Internacional de Aids em Melbourne, Austrália. 2015 Observatório da Prostituição promove o curso Uma Revolução Particular - O Movimento Brasileiro de Prostitutas. Gempac promove em Belém a I Oficina Internacional Trabalho Sexual e Políticas Públicas. 2016 Estudo do Observatório da Prostituição sobre impacto das Olimpíadas na prostituição. Fundação do Museu do Sexo Hilda Furacão, em Belo Horizonte, por iniciativa da Aprosmig. 2017 Coletivo Davida e Observatório da Prostituição promovem em cinco cidades o ciclo de debates Um Século e Meio de Abolicionismo: Prostituição, Criminalização e o Controle da Mulher. Encerramento tem Puta Festa, na CasaNem, no Rio, comemorando os 30 anos do movimento de prostitutas.

Setembro, VI Encontro Nacional de Prostitutas, em São Luís do Maranhão. Evento promovido pela Rede Brasileira de Prostitutas e Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (Cuts), com participação de Articulação Nacional de Profissionais do Sexo, reúne prostitutas de 15 estados, aliadas e parceiras.

2014 Daspu faz desfile-homenagem a Gabriela Leite, falecida em 2013. Abia promove no Rio seminário Desafios contemporâneos na Promoção de Direitos e em DST/HIV/Aids entre Prostitutas. Prostitutas de Niterói (RJ) fazem manifestação contra fechamento ilegal pela polícia de apartamentos onde batalhavam no Centro da cidade. Posse do coletivo Davida como membro do

beijo da rua 21


Carta de Princípios da Rede Brasileira de Prostitutas

A

provada em plenária no IV Encontro da Rede Brasileira de Prostitutas, em 2008, esta Carta de Princípios resume as principais posições do movimento organizado. Deixa claro o que se combate e o que se defende, baseada no essencial da luta: a prostituição é uma profissão, trabalho sexual é trabalho. A Rede considera a prostituição uma profissão, desde que exercida por maiores de 18 anos. A Rede é contra: • a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, em consonância com a legislação brasileira. A Rede repudia: • a vitimização das prostitutas; • o controle sanitário de prostitutas; • e combate a criação e a existência de zonas delimitadas e confinadas; • e combate a criminalização dos clientes; • o oferecimento de exames e outros procedimentos médicos nos locais em que se exerce a prostituição, a não ser em casos que envolvam a população em geral; • que se associe prostituição com criminalidade; • o tráfico de seres humanos. A Rede defende: • a regulamentação do trabalho da prostituta; • e promove a auto-organização das prostitutas; • e promove o acesso aos insumos de prevenção de DST/Aids; • o acesso aos serviços de saúde integral; • o direito de migração para o trabalho legal; • que o trabalho sexual é um direito sexual; • que as prostitutas se assumam como prostitutas/putas em todos os espaços.

22 beijo da rua

Foto: Jacqueline Silva

A Rede combate: • a discriminação, o preconceito e o estigma dirigido às prostitutas. A Rede atua: • em parcerias nos cenários nacional, regional e internacional com outras redes de prostitutas e aliados. A Rede vê: • o turismo sexual como uma forma de trabalho para maiores de 18 anos. A Rede entende: • que a prostituta não vende o seu corpo. Ela presta serviços sexuais. A Rede recomenda: • aos seus integrantes a realização de encontros municipais, estaduais e nacionais. Critérios Quem pode entrar na Rede: • Associações, núcleos, prostitutas e grupos de prostitutas que respeitem os princípios desta Carta. • A Rede pode convidar pessoas que contribuam e respeitem esta Carta. • Para entrar na Rede e na lista eletrônica é necessário ser indicado por grupo já integrante. Quem não pode entrar na Rede: • Entidades ou empresas dirigidas ou controladas por cafetinas, cafetões e/ou outros exploradores da prostituição. • Associações, grupos e indivíduos que não respeitem os princípios desta Carta.

Prêmio O Prêmio Puta Política nasceu durante o VI Encontro, homenageando prostitutas e aliadas. Na estreia os troféus foram para: Lourdes Barreto e Maria de Jesus Costa (na foto). Maria Nilce. Rosarina Sampaio e Lair Guerra de Macedo (in memorian). Elisiane Pasini. Zwinglio M. Dias. Adele Benzaquem. E para este orgulhoso jornal, o ‘Beijo da rua’. Parabéns gerais! Deputado presente O deputado Jean Wyllys, autor do projeto de lei Gabriela Leite, não tinha agenda para ir ao VI Encontro. Mas deu seu jeito: gravou e enviou um vídeo em que relata como a proposta foi construída com o movimento. As participantes apreciaram o conteúdo e o gesto. Eu estava lá Me lembro como se fosse agora. Pareciam poucas, mas eram muitas. Mulheres prostitutas. Suas vozes ganhavam força e potência a cada instante do seu I Encontro Nacional, naquele 1987, no Rio. E mais jornalistas, políticos, aliados de primeira hora, pesquisadores, curiosos, funcionários, o ambiente no Calouste Gulbenkian era de efervescência. A última noite, no Circo Voador, colocou prostitutas e outras pessoas públicas, como artistas e escritores, lado a lado no palco, tão importantes uns quanto os outros. Jorge Amado mandou carta de apoio ao movimento que nascia, se juntando às suas putas queridas na denúncia de discriminação e violência. Aqueles dias de julho de 1987 estão vivos para sempre, e se renovam em cada esquina e em cada encontro. (Flavio Lenz)

Casamento de puta Indianara, a supertransputativista, e Mauricio se casaram! De papel passado. A megacomemoração, na rua da CasaNem, em plena Lapa bandida, teve performance da Daspu, Ateliê de Modelagem CosturaNEM, homenagens a duas veteranas ativistas do movimento de prostitutas, Maria Nilce e Nilza Marinho, de Davida, e a uma das pioneiras, Lourdes Barreto, que também foi madrinha de Indianara! Uma noite de sonhar realidade!

beijo da rua 23


A SANTA CEIA FEMININA: EMPODERAMENTO ATEMPORAL Beatriz Kushnir

Historiadora. Autora, entre outros, de Baile de máscaras: mulheres judias e prostituiçāo. As polacas e suas associações de ajuda-mútua (Imago, 1996). Ver também: polacas.blogspot.com

D

elongou-se muito tempo a minha espera por conhecer pessoalmente Gabriela Leite. Sabíamos uma da outra. Um jornalista paulista, amigo em comum, tinha o desejo (quase um fetiche) de apresentar a socióloga que se tornara prostituta à historiadora que estudava um aspecto da prostituição. Não conseguiu. Só estivemos juntas quando, em 2005, fui conversar com as moças na casa do bairro da Glória, sede do Coletivo Davida. Ali roda partilhamos histórias. Conheci diversas prostitutas em diferentes etapas da vida e vivendo em várias regiões do país. Basicamente contei o processo de pesquisa que realizei quase duas décadas antes, sobre as mulheres de origem judaica e que exerceram a prostituição na virada do século 19 para o 20. As polacas se tornaram mais do que um mote de pesquisa, são hoje e desde sempre, uma militância pessoal. A experiência do associativismo das polacas instigava Gabriela. E foi essa experiência das associações de ajuda-mútua que esmiucei para aquelas mulheres na casa da Glória. Para onde se deslocaram, desde a Europa Oriental a Xangai, América Latina, EUA, e mundo a fora construíram teias de proteção que permitissem a vivencia comunitária enquanto judias. Narrei a elas as histórias que me acompanham. Por alguns anos estudei um grupo de imigrantes judeus em algumas cidades do Brasil e mesmo fora dele. Meu trabalho foi também uma caminhada envolta em paixão. Enamorei-me por essas narrativas e desejei muito que um trabalho acadêmico pudesse interferir e transformar uma dada realidade. De muitas maneiras, posso dizer que carrego orgulhosa essa glória, dividida certamente com muitos que pelo caminho também se apaixonaram por elas. Quando comecei a pesquisa, em 1988, era um tabu mencionar essa história. Em um país que editar uma tese já é um milagre, fazê-la um agente transformador é algo inominável. A cada palestra que era convidada a falar sobre as polacas, sublinhava o estado lastimável dos seus cemitérios e descortinava um passado, obrigando os que me ouviam a adentrar em um espaço envolto por mistérios e segredos desnecessários. Localizei o histórico de cinco sociedades fundadas por homens e mulheres judeus envolvidos com a prostituição: a do Rio de Janeiro – Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita

24 beijo da rua

(ABFRI) – fundada em outubro de 1906; a de São Paulo – Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita (SFRBI) – fundada em 1924; a de Santos – Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos – fundada em 1930; a de Buenos Aires – Sociedade de Ajuda Mútua Zwi Migdal – fundada em 1906; e a de Nova York – The New York Independent Benevolant Association – fundada em 1896. As duas primeiras concentraram as minhas reflexões, pois são delas os documentos originais examinados: atas, estatutos, livro-caixa, material iconográfico e depoimentos de funcionários e/ou descendentes. A entidade carioca, dirigida ora por homens ora por mulheres, pode ser mais bem percebida como uma irmandade centralizada em poucas figuras que tentou sempre superar crises, dando a impressão de um eterno recomeço e sucessivas reestruturações para levar a cabo seus objetivos. A noção de irmandade está presente em dois momentos: primeiro, quando o grupo de mulheres vinculado à assistência social se auto intitula as irmãs do Chesed shell emes – ou da Caridade de Verdade, aquela que não busca recompensa. E a materialização desta noção de irmandade se encontra no cemitério fundado pela entidade carioca em 1912, que se localiza no bairro de Inhaúma – este é o primeiro cemitério judeu da cidade. Demônios, fantasmas, sigilos e segredos são os invólucros que rondavam as tentativas de uma possível abordagem da temática e, principalmente, da aceitação da existência de polacas no Brasil. As rugas que estas mulheres produziam em uma parcela da comunidade judaica, transformaram-nas tanto em mulheres poderosas, como em vítimas que o tempo deveria calar. A questão central era entender como um determinado grupo, marginalizado na sua dupla condição de imigrante e, portanto, não brasileiro-nato, e de fora da lei, já que o cafetismo é crime, viabilizou mecanismos de autoproteção. Estas instituições lhes permitiram romper a exclusão religiosa e social, na qual os legisladores do país e os dirigentes das comunidades judaicas os colocaram. Assim, para além de percebê-los como vítimas sociais da miséria e dos processos migratórios, buscou-se compreender seus mecanismos de sobrevivência e de construção de uma identidade social tida como positiva. Esta engrenagem para separação gerou neste grupo excluído um interessante artifício de sobrevivência: a necessidade de organizar instituições que refizessem uma vida social e religiosa e lhes permitissem reconstituir uma identidade pelas práticas coletivas. E foi para encontrar tais traços que se localizaram os envolvidos nesta atividade e, assim, abandonou-se as leituras de terceiros acerca de

Foto: Marcelo Gatti

sua existência. Neste sentido, a imagem central é a de um baile de máscaras. Desejando apreender rostos e não rótulos, objetivou-se encontrar tais pessoas e suas histórias particulares, rompendo com as máscaras sociais previamente estabelecidas. O desejo maior era o final do baile, quando se tiram as máscaras e podemos ver faces. A opção feita partiu da premissa de que este deixou registro sobre sua trajetória. Algo por si só intrincado e raro, pois, lidou-se com pessoas marginalizadas que ou tem seu passado “alterado” nas narrativas de descendentes pouco a vontade com suas “origens” ou não têm possibilidades de preservar seus trajetos. É por isto que se torna tão árdua a tarefa de compreender a história de excluídos sociais para além do discurso de terceiros e centrando-a nos traços deixados pelos próprios grupos. A partir desse breve relato de um mergulho em um aspecto específico da prostituição, pode-se perceber porque o encontro com Gabriela Leite seria importante para nós duas. Muito antes do termo empoderamento tornar-se um hit, Gabriela queria que suas amigas de Davida vivessem isto. E as vezes que com elas estive e escutei delas

terem lido o meu livro, mais me certificava disso. Assim, três anos depois daquela tarde na casa da Glória, Gabriela me convidou para a mesa de abertura do 4o. Encontro Nacional de Prostitutas. Vinte e um anos depois do 1o., aqui no Rio, a Rede Brasileira de Prostitutas era uma realidade e foi nessa ambientação que discutimos as questões do associativismo. Tão pouco tempo nos separa de 2008, quando esse click foi feito, e havia esperança palpável em nossos olhos e vontades. Se estivesse aqui, Gabriela estaria indignada e buscando formas de lutar. Mais do que nunca, teria certeza que é o associativismo vence o imobilismo e nos dá corpo, voz, possibilidades. Talvez, como muitos de nós, não suportaria confirmar o quanto de conservador e autoritário existe na sociedade brasileira. E são em momentos assim que percebemos o quanto é corajoso vencer a inercia e valorizar as experiências das polacas e da Rede de Prostitutas. Quando a avalanche é monumental, experiências que nos inspirem são formas de resistir e seguir em frente com planos e projetos. Que façamos isto por nós e por você, Gabriela. ❤

beijo da rua 25


VI Encontro Nacional de Prostitutas Zwinglio M. Dias “Para Lourdes Barreto e Gabriela Leite ( in memoriam), artífices visionárias deste Puta Movimento!!” “... Vamos derrotando afrontas.” (Ernesto “Che” Guevara) Elas foram chegando algumas sozinhas, outras em grupos, mas todas com sorrisos nos lábios, repartindo abraços e beijos solidários! Mulheres da vida cheias de vida e coragem, poderosas e intrépidas recusando o estigma e a discriminação, dispostas a lutar por respeito, justiça e direitos! Era o VI Encontro Nacional de Prostitutas celebrando os 30 anos do primeiro e planejando as novas fases de uma luta, que não termina, pelo reconhecimento profissional, de uma atividade secular ao mesmo tempo acolhida e, hipocritamente, rejeitada pela sociedade dos homens que dela se beneficiam e, ao mesmo tempo procuram ignorá-la. Mulheres fortes que sustentam maridos e famílias, que vivem amores proibidos e sofrem violência, em nome do amor e do desejo

26 beijo da rua

regrado e contido, por uma sociedade erotizada que reprime o sexo, o afeto e todas as manifestações humanas que celebram a graça da vida, em nome de uma ordem que cultua o poder, rejeita o diferente e afirma a supremacia do macho egoísta perdido em seus parcos limites... Pois estas mulheres, vindas de mais de 20 Estados, representando suas valorosas companheiras, quase chegando a uma centena, se juntaram no centenário convento das Mercês, que um dia abrigou o grande Padre Antonio Vieira, na cidade de São Luís do maranhense Josué Montello! O encontro era de trabalho mas também de festa: celebração do 30º aniversário de organização da Rede Brasileira de Prostitutas! A grande ausente: Gabriela Leite se fez presente nos vídeos, nas fotos e nas falas solidárias, nos testemunhos memoriais de companheirismo, reivindicando a dimensão política de um movimento que desnuda a falsidade de um discurso moralista e desumano e que revela a opressão e a sujeição secular do segmento feminino no contexto de uma sociedade que se diz “cristã” e “democrática” em meio a profundas práticas de desigualdades. Mas elas e seus outros companheiros e companheiras de vivências sexuais alternativas, não estavam sozinhos! Graças às lutas dos últimos 30 anos contavam com o apoio de significativos representantes da sociedade civil organizada,

estamentos governamentais federais, estaduais e municipais, representantes de universidades, articuladores de políticas públicas e ações nacionais referentes ao trabalho sexual e às questões de saúde pública preventiva em relação as DSTs e Aids. Expressivo o apoio de organismos de promoção e defesa dos Direitos Humanos dos direitos das mulheres, OAB do Maranhão, governo do Estado e da cidade além de destacados segmentos do Ministério e Secretarias da Saúde! Encontro vibrante, altamente participativo, que me trouxe à memória o entusiasmo do primeiro! E eu ali, pastor protestante, representante de um mundo evangélico marcado por um moralismo desumanizante, que nega a graça do sexo, a alegria da vida e a liberdade da plena comunhão humana! Mas minha leitura do evangelho, que nos marca como cultura cristã ocidental, tem um outro viés: fundamenta-se na contribuição essencial de Jesus de Nazaré com seu chamamento à liberdade e à humanização plena da vida humana. Humanização esta que só se torna possível quando fazemos a saída de nós mesmos, de nossa autocentração e nos abrimos aos nossos semelhantes, tornando-nos, assim como ele, “uma-pessoa-para-as-outras-pessoas”, voltados para o exercício objetivo do amor e da justiça: porque não podemos subsistir na solidão de nossa individualidade! Sua mensagem foi, fundamentalmente, uma mensagem ética radical, que só se operacionaliza a partir do olhar solidário ao rosto do outro/a. Ao rejeitar os poderes político-ideológicos e religiosos de seus dias Jesus

voltou-se para os mais vulneráveis: as prostitutas, os pobres, os postos à margem e abandonados pela sociedade, aos quais dirigiu sua mensagem utópica e desafiadora fundada numa visão outra, de que um outro mundo, uma outra vida é possível para os humanos (o Reino de Deus) ou, como o expressou com profundidade e poesia R. Garaudy: “Viver sua vida, seu despojamento, cria um novo olhar, profético, um olhar que não se apega ao parcial, mas que nele descobre o todo e o futuro que aponta. (...) Ver a borboleta na larva, a santa na prostituta, a águia no ovo, o irmão em meu próximo e em meu distante, e, no sorriso efêmero do jasmim, a ressurreição eterna da primavera. Tal é olhar de Jesus sobre o mundo.” As prostitutas organizadas, politicamente articuladas, ganharam um novo olhar sobre si mesmas, sobre a sociedade injusta e desigual, recuperando sua auto-estima e descobrindo a vocação humana e a maturidade política de sua luta por direitos e respeito como parte da luta maior do povo brasileiro, de todos os povos! E eu, pastor de sonhos e esperanças, graças ao empenho, dedicação e coragem destas mulheres guerreiras, saudei a visão de um novo tempo que começa a emergir das entranhas doloridas da vida brasileira!

Puta pelo chifre Mauricio Toledo No princípio era o verbo, numa paisagem onde todos os corpos eram nus e nus se experimentavam. Um dia o desejo irrompeu humanizando um ser, que flexionando o verbo desestabilizou o caos. Foise a era do É, e tudo o que era deixou de ser para apenas significar. Tudo o que era nu e concebível passou a ser vestido com as roupas das palavras, dos nomes, das classificações. A cada descoberta um novo nome, uma nova roupa. E fomos enchendo nossos guarda-roupas com muitas peças, para combiná-las em discursos, para nos cobrir, para seduzir ou ameaçar, para projetar introjeções, tudo conforme interpretações convenientes. Assim somos atraídos ou repudiamos as vestes, supondo o nu. São muitas roupas (sem falar nos acessórios): leves, pesadas, harmoniosas, estranhas, bonitas, feias, customizadas, em camadas, armaduras... São fantasias, na realidade (ou são realidades, na fantasia?). Somos movidos pelas fantasias, pelas representações. Cada vez sabemos mais do que não é. Vestes, combinações de roupas, discursos, notícias... jamais revelarão o âmago do que quer que seja e do que acontece de fato nas inter-relações. Ou sugerem ou confundem. Na comunicação por palavras o que melhor traduz e se aproxima da essência daquilo que percebemos existindo é o seu nome primordial. Simplesmente o nome. Não ser o nome primordial parâmetro para o discurso decorrente, é indício de que o assunto quer ser mudado. Mas o nu é o mistério que apavora e por isso, para ‘proteções’, mais nomes revestindo, camuflando, desintegrando, abafando, visando à extinção da ameaça. Nome por cima de nome é roupa por cima de roupa. É mudança de significado. É deixar de ser por substituição. PUTAS, especialistas em desnudar, descubram o valor dessa palavra, porque “se a gente não toma as palavras pelo chifre e assume elas, a gente não muda nada” (Gabriela Leite, no documentário “Um beijo para Gabriela” de Laura Murray).

__________ O autor é doutor em Teologia pela Universidade de Hamburgo (Alemanha); pastor-emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil; professor-convidado da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG); membrocolaborador de Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço. Membro do Coletivo Davida

beijo da rua 27


Coluna da Gabi

Putas políticas

Mais um número do Beijo, mais um Encontro Nacional. Motivos de sobra para comemorar, por isso estou muito, muito feliz. No entanto, apesar de toda alegria, tenho uma pontinha de tristeza, bem lá no fundo do coração. Quando realizamos o I Encontro de Prostitutas, em 1987, o clima reinante de romantismo e coração aberto era a grande força do movimento em início. Hoje não, hoje somos políticas e coerentes. Na medida do possível, evitamos a contradição. Nos tornamos politicamente corretas. Assim é que de outros Estados já chegaram algumas colegas: umas “das bases”, outras “lideranças”. Houve uma reunião no bar somente paras as lideranças -, onde senti um clima de “já vi esse filme antes”, ou seja, discussões sobre hegemonia, sobre lugar de poder, etc. etc. Etc. … Meus sentimentos são ambíguos. Sentada no bar fico feliz de ver, através delas, um movimento já estruturado. Também fico triste porque isso que vejo eu já vi e não gosto e nem tenho paciência de viver em outros grupos. E agora, terei paciência com essa mesma questão no grupo do qual faço parte?

28 beijo da rua

Existe um modelo concebido de como deve ser e agir o movimento popular: sério, racional, com discursos prontos e decisões de lideranças. Não há lugar para poesia, o romântico, o contraditório. Tudo isso me veio à cabeça ontem, no botequim, a dois dias deste III Encontro Nacional das Trabalhadoras do Sexo. Como era bom o tempo em que vivíamos a época de inocência. Como era bom quando minhas colegas não me chamavam de “companheira”, como era bom o tempo em que não havia palavras de ordem, nem frases prontas. Passados dez anos, cá estamos nós: putas políticas. Somos hoje um movimento estruturado e respeitado como sério e eficaz. Era isso o que queríamos. Ganhamos essa batalha; mas além das muitas outras batalhas que ainda temos pela frente, temos também um grande desafio: não deixar a racionalidade nos vencer. Não podemos perder duas grandes características lapidadas pela antiguidade da profissão: a sedução e o clima de mistério das luzes vermelhas. Temos que nos mirar na languidez e sensualidade dos traços de Lasar Segall nas suas mulheres do Mangue. Era assim que ele nos via, é assim que os homens nos veem, é assim que me vejo, e é assim que somos. (Coluna escrita em 1994)


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.