FREUD DIALOGANDO COM AS ARTES: A ESTÉTICA NO PENSAMENTO FREUDIANO. Autor: Alex Wagner Leal Magalhães
Nota curricular: Psicólogo, formado pela Universidade Federal do Pará, mestrando do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Social (UFPA). Membro Pesquisador do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará.
Versão Completa
A psicanálise nasce problematizando o status da tradição epistemológica centrada na razão, a questiona como único acesso à verdade, proclamando um sujeito alicerçado em seu inconsciente, nos seus desejosinconfessos e pulsões que precisam a todo custo de controle, ocasionando assim um impacto inegável no pensamento ocidental. Freud preconiza este descentramento da razão ao declarar que “... o inconsciente é a base geral da vida psíquica. O inconsciente é a esfera mais ampla, que inclui em si a esfera menor do consciente”. (FREUD, 1900, pg. 554). Assim, o século XX trouxe consigo a inquietante e constrangedora idéia de que o homem racional, iluminista, não sabe de si. Garcia-Roza (1996), Herzog (1996) e Mezan (1982) consideram este descentramento da razão promovido por Freud como um verdadeiro “corte epistemológico” no pensamento ocidental ao avaliarem os efeitos da introdução e sistematização do inconsciente como instância determinante da vida psíquica, fato que acaba se estendendo a outras esferas da experiência humana. Surge, então, a necessidade dos saberes sobre o homem serem repensados, levando em consideração a lógica do inconsciente. Assim, os discursos da Ética, da Epistemologia, das Ciências Sociais, da Filosofia, da Moral, da Religião, das Teorias Antropológicas, entre outros,
precisaram conhecer, aceitar ou repelir este novo homem desejante fundado na “desrazão”, que ao mesmo tempo conflitua e engendra a cultura. Entre estes saberes abalados pelo pensamento freudiano, temos a Estética como campo da criação artística e os sentidos dados à mesma, sendo que, do seu encontro com o pensamento freudiano encontramos a necessidade de articulação entre estes importantes campos do conhecimento: como analisar a criação artística do homem motivado por desejos inconscientes? De que forma Freud concebeu, durante sua obra, a questão estética? Mezan ajuda a problematizar esta relação afirmando que
“A estética se vê constrangida a absorver ou a refutar a análise da sublimação e da problemática da imaginação criadora que emerge de conceitos como os de ‘processo primário’, ‘formação de compromisso’ e ‘realização de desejo’. A mística da inspiração é severamente abalada pelo desvendamento dos processos de criação, e a incorporação de certas teses freudianas no Surrealismo, no teatro da crueldade e em outras manifestações artísticas demonstra a necessidade de se levar em conta os resultados da investigação analítica”.(MEZAN, 1982, pgXIV).
Ou seja: Freud veio acrescentar importantes elementos para o estudo da Estética, seja desvendando os processos de criação artística, ou articulando-a com processos psíquicos inconscientes, é inegável a marca e o potencial de análise, introduzidos por Freud nesta área. Dentro desta perspectiva, Rivera (2005), Jimenez (1999), França (1997) e Eagleton (1993) estudando a relação entre psicanálise e estética, enfatizam a dimensão pulsional desta, colocam a criação artística na ordem da sexualidade, maculando assim “a mística da inspiração artística” (MEZAN, 1982) compreendida de forma idealizada, pois, até então, a arte expressava somente o que havia de mais elevado no espírito humano:
“Este pensamento [o de Freud] desconstrói qualquer idealização sobre a estética, aquela do Belo e precioso momento onde o sujeito idêntico a si mesmo encontra o objeto. Fica desvirginada a inocência desta forma de prazer”.(FRANÇA, 1993, pg 138).
Para Jimenez (1999) Freud compara o processo de criação artística ao mecanismo de formação dos sonhos e sintomas, sugerindo um parentesco entre o artista e o neurótico, onde a criação artística se nutre de afetos e percepções inconscientes. O desdobramento disto é que a obra de arte é passível de ser interpretada, de ser analisada em seus sentidos e motivações inconscientes. E é isto que vemos Freud realizar no texto “Uma lembrança de Infância de Leonardo da Vinci” (1910), onde a criação artística está posta em uma relação direta com a sublimação de pulsões sexuais infantis de Leonardo da Vinci, sendo que, a partir de sua produção artística e intelectual, Freud tenta reconstruir importantes momentos de sua constituição psíquica. Ainda neste texto Freud mostra de como a arte incita em quem cria e em quem a admira uma importante sensação inconsciente, uma sensibilidade que não passa pela razão.
“A natureza deu ao artista a capacidade de exprimir seus impulsos mais secretos, desconhecidos até por ele próprio, por meio do trabalho que cria; e estas obras impressionam enormemente outras pessoas estranhas ao artista e que desconhecem,
elas
também,
a
origem
da
emoção
que
sentem”. (FREUD, 1910, pg 64)
Esta discussão é retomada em outros dois importantes textos de Freud sobre este assunto: “Moisés de Michelângelo” (1914) e “O Estranho” (1919), sendo que no
primeiro, Freud expõe a força que esta sensação lhe causa. Neste sentido, ele nos fala que:
“as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura, e com menos freqüência, a pintura. Isso me levou a passar logo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim
mesmo
a
que
se
deve
seu
efeito....
Uma
inclinação racionalista ou talvez analítica, resiste em mim contra o fato de comover-me sem saber porque me comovo e o que é que me comove.” (FREUD, 1914, pg 103)
Freud retoma esta questão no texto “O Estranho”, (1919). Nele, a Estética não está resumida ao belo, ao grandioso, ao atrativo, o que o Freud chama de “sentimentos de natureza positiva” [1], que norteiam as principais análises desta área, mas uma estética voltada às qualidades do sentir, a uma percepção através do afeto, de uma realidade psíquica inconsciente e não material. Neste sentido Freud nos diz que:
“ele [o psicanalista] trabalha em outras camadas da vida psíquica e pouco tem a ver com as moções emocionais inibidas em seus objetivos, amortecidas, demasiado dependentes de constelações acompanhantes que, em geral, são matérias da Estética”. (FREUD, 1919, pg 85).
Freud complementa seu pensamento expondo que “por estética se entende não simplesmente a teoria da Beleza, mas a teoria das qualidades do sentir” (op. Cit.)[2]. Ainda neste estudo Freud analisa a palavra “estranho” (Unheimlich), e nos mostra que a mesma relaciona-se diretamente com o seu sentido contrário, ou seja, o “familiar”.
Desta forma a sensação de “Unheimlich” consiste no estranho que nos é familiar, e ele utilizará isto como princípio estético: “o prazer estético sempre implicaria na vivência do das Unheimlich, trazendo à tona fantasmas infantis recalcados, o que implica fascínio e repulsa.
O Unheimlich é
aquela
variedade
do terrorífico que remonta ao já sabido há muito tempo, ao familiar” .(CHNAIDERMAN, 1997, pg 220)
Ainda em “O Estranho”, Freud utiliza os contos “O Homem da Areia” e o “Elixir do Diabo” do escritor E. T. A Hoffman (importante escritor do romantismo alemão), para exemplificar esta sensação Unheimlichcomo princípio estético. Cabe neste momento um breve comentário sobre a importância da estética romântica alemã na forma de Freud elaborar suas concepções sobre esta questão. Tal influência foi analisada por Loureiro (2002) e Andrade (2000). Para estes o romantismo alemão e sua estética, tiveram grande alcance na forma de Freud perceber e elaborar suas idéias sobre este tema ao longo de sua obra. Neste sentido Andrade (2000) coloca que “a estética romântica serve para nomear o objeto da psicanálise, influenciando ‘portanto’ seu destino e a própria situação de sua identidade – Freud é um autêntico herdeiro da estética romântica alemã.” (ANDRADE, 2000, pg. 29). Todavia, este mesmo autor suaviza o peso da estética romântica no pensamento de Freud, salientando que tal influência incide diretamente sobre a estética freudiana, não havendo maior peso dela no plano epistemológico da psicanálise. Neste sentido, buscar as formas literárias e filosóficas que influenciaram as elaborações de Freud sobre a Estética, torna-se de grande importância em um debate que visa entender a forma pela qual o pai da psicanálise concebia esta importante área do conhecimento humano. Assim sendo, Loureiro (2002) nos mostra que:
“... é a partir da influência, do desvio, da inflexão e da transformação em relação à herança romântica (e da cultura germânica como um todo) que vamos entender a obra freudiana e situar aqueles pontos em que seu pensamento parece mais próximo
e,
sem
dúvida,
tributário
do
Romantismo
Alemão.” (LOUREIRO, 2003, pg. 27)
Vimos então que em “O Estranho” (1919) Freud elabora uma concepção de estética, que já poderíamos encontrar nos escritos sobre Leonardo da Vinci (1910) e o Moisés, de Michelangelo (1914). Mas, será esta a única concepção de Estética na obra de Freud? Nada mais precisa ser estudado neste assunto ou temos aqui um amplo campo de pesquisa? Lembremos, a propósito, a grande presença de obras de arte nas elaborações teóricas de Freud, o que levou Jimenez (1999) a comentar que:
“é interessante observar o fato de Freud recorrer à mitologia grega ou latina, quer se trate dos próprios mitos, dos deuses ou dos heróis. São eles que infiltram, por assim dizer, a terminologia e determinam as noções essenciais: catarse, Édipo, Eros (pulsão de vida), libido,Narcisismo, etc.”(JIMENEZ, 1999, pg. 269)
Dado este importante papel da arte, não fica difícil entender porque a mesma foi tão utilizada por Freud, usando-a sempre para falar de suas idéias e acompanhando os diferentes momentos pelos quais passou o pensamento freudiano, como bem nos mostra Birman (2002) ao falar que Freud utiliza o texto “Uma Lembrança de Infância Leonardo da Vinci.” (1910) para marcar uma importante mudança no seu modo de pensar a sublimação, pois “baseado nas imagens da pintura de Leonardo da Vinci, o discurso freudiano passou a interpretar a sublimação por um outro viés, no qual a perversidade
polimorfa
se
plasmaria
espírito”, (BIRMAN, 2002, pg. 106).
numa
valorizada
produção
de
Nesta mesma perspectiva CHNAIDERMAN (1997) mostra que “O Estranho” (1919) foi escrito em um momento de transição rumo a uma nova teoria das pulsões. A discussão sobre o eterno retorno do recalcado e da compulsão a repetir presentes neste texto, antecipa o que seria mais tarde conhecido como pulsão de morte. Dentro desta ótica “É interessante observar que o texto que prenuncia a última elaboração freudiana da teoria das pulsões tenha como horizonte o sentimento estético, unindo a questão do belo a indagação sobre a morte.”(CHNAIDERMAN, 1997, pg 219). Sendo assim, entendemos que pesquisar a Estética em Freud é falar sobre questões epistemológicas centrais de sua metapsicologia, é caminhar pelo percurso psicanalítico, contribuindo para o desenvolvimento da ciência psicanalítica, expandindo seu potencial de ação para além do divã; é ter em mente o fato de que o alcance do método psicanalítico está onde haja uma produção humana, pois a pesquisa em psicanálise ocorre sempre quando há uma tentativa de busca, de interpretação de determinados aspectos subjacentes à experiência humana.
Bibliografia:
ANDRADE, R. A face noturna do pensamento freudiano: Freud e o romantismo alemão.- Niterói: EdUFF, 2000. BARBOZA, Jair. Infinitude subjetiva
e
Estética:
Natureza
e
arte
em Schelling e Schopenhauer – São Paulo: Editora UNESP, 2005. BIRMAN, J. “Fantasiando sobre a Sublime Ação”, in BARTUCCI, G (org) Psicanálise, Arte e Estéticas de Subjetivação. Rio de Janeiro: Imago Ed. 2002. CHNAIDERMAN, M. “Rasgando a fantasia para outras tantas mil e uma noites”. in ALONSO, S. L. & LEAL, Ana Maria S. - Freud: um ciclo de palestras. São Paulo: Editora Escuta: FAPESP, 1997. EAGLETON, T. A Ideologia da Estética - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. FREUD, Sigmund, Edição Standard Brasileira das Obras Completas – (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1980.
_______. (1900). A interpretação de sonhos. In: ESB. V. IV ________.(1910). Uma Lembrança de Infância Leonardo da Vinci. In: ESB. V. XVI. ________.(1914). O Moisés de Michelângelo. In: ESB. V. XIII. _______. (1915). O inconsciente. In: ESB. V. XIV _______.(1917). Uma lembrança de infância de Dichtung und Wahrheit. In: ESB. V. XVII. ________. (1919). O Estranho. In: ESB. V. XVII. ________.(1930-[1929] ). O Mal-estar na Civilização. In: ESB. V. XXI FRANÇA, M. I. Psicanálise, Estética e Ética do Desejo - São Paulo: Perspectiva, 1997. GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. HERZOG, R. “Psicanálise e verdade”. in COUTO, L. F. (org). Pesquisa em psicanálise - Belo Horizonte, SEGRAC, 1996. JIMENEZ, M. O que é estética? São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 1999. KOFMAN, S. A infância da arte, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. LINO, M. E. O estudo do aparelho psíquico. in COUTO, L. F. (org). Pesquisa em psicanálise - Belo Horizonte, SEGRAC, 1996. LOUREIRO, I. O carvalho e o pinheiro: Freud e o estilo romântico - São Paulo: Escuta: FAPESP, 2002. MEZAN, R. Freud: A trama dos conceitos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987. _________. Freud, pensador da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997. NUNES, B. Introdução à Filosofia da arte. São Paulo: Ática, 1993. RIVERA, T. Arte e Psicanálise - 2º ed. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
[1]
Arthur Schopenhauer (1788-1860) pode ser visto como importante pensador que influenciou Freud nesta forma de pensar a Estética, já que é um dos primeiros a introduz no discurso estético importantes considerações sobre o feio, o repugnante, infligindo um corte, ou uma descontinuidade na tradicional
Estética do Belo. Esta influência de Schopenhauer é ressaltada pelo próprio Freud, que citado em Barboza (2005, pg. 10), reconhece as “amplas concordâncias da psicanálise com a filosofia de Schopenhauer”. [2] Nunes (2003) coloca que a Estética nasce como disciplina filosófica no século XVIII, tendo como objetivo estudar o Belo e suas manifestações na Arte, sendo seu fundador Alexandre Gottlieb Baumgartem (1714-1762). Em 1750 Baumgartem publica “Estética ou Teoria das Artes Liberais”, dando nome a esta disciplina, conceituando-a como “ciência do Belo e da Arte”. Assim, a Estética nasce como ciência fundamentada na apreciação da Beleza, encarando a “Arte como aquele produto da atividade humana que, obedecendo a determinados princípios, tem por fim produzir artificialmente os múltiplos aspectos de uma só beleza universal, apanágio das coisas naturais”. (NUNES, 2003, pg 10)