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Ciclo da Maçã

Domingo, 1

Comecei, hoje, a escrever este breve diário, que só fecho quando nos encontrarmos.

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Saí de manhã, cobri-me de linho fino, muito branco, apesar de ter chovido cedo. Refresquei nas covinhas cheias de água um rosto mais bonito que o meu. Como se fosse ter contigo.

Caminho banzo de saudade, nem reparei nisso. O regresso é um caroço de pedra a rasgar a garganta. O caminho dissolve-se numa nuvem que lhe come o chão. O caroço é uma ilha fechada pelo marulhar da brisa.

Dás-me a chave para abrir a ponte que interrompe e vence o abismo largo do tempo e das palavras. E espero, atento, como um condenado espera pelo perdão.

Segunda, 2

Quando me sento a escrever e a pensar, aqui, recordo as janelas abertas e solitárias devoradas pela fome de nos vermos, os arquipélagos dispersos como passos numa vida, os muitos quilómetros entre estar encolhido à noite com frio enquanto avisto no fogo as luzes longínquas da cidade em que tu moras.

Queria ser a manhã. Escrevo por isso. Quase um vício, um banzo uma saudade que não se troca a si própria pelo sabor da ausência. Mas amanhã, outro dia, aquele que nunca foi exatamente previsto.

Ainda matinal, entregara-me a luz a tua carta. O carteiro levou nas mãos o carvão já frio da fogueira em que arderam as fronteiras do mundo. Entre os meus olhos flutua o íntimo aroma de rosas longínquas.

Reinvento as horas felizes para entorpecer o travo amargo do cálice nas tardes frias.

Caminho pelos picos das montanhas. Os meus passos tentam engolir a noite oculta para te ver.

Estás longe. Não ouço nada

Na serra verde e calada.

Terça, 3

As linhas nítidas e gélidas do horizonte irrigam-se com a seiva quente e vermelha do sangue. Um trilho circular, angustiado, mas inquebrável. Veios no vazio, fixos e vãos.

Gostava que fossem de água ardente e perfumada. Que neles mergulhasse fecunda a brisa que os meus lábios entreabrem e lhes cobrisse de luz solar o brilho dos olhos, o fio d’oiro que nos liga à vida. Como um artesão moldando a quente um vidro prenhe de palavras,

A lua acomoda sobre o palco a tua ausência.

Quarta, 4

Olhamo-nos mudos, impossíveis. Descobri agora que és a minha própria infância ternamente inacabada. Ao sair de casa, passa uma luz rápida a cegar os morros. Descubro-a fora da pálida memória da razão, com a clareza das horas óbvias, e sigo-a. Sigo-a de lábios cerrados, apesar de nada me fazer falta já. Por adivinhar a felicidade cobri de glória a seda macia da pele e, para tocá-la, andei na espuma das tempestades a recolher a voz dos búzios. Por ter conseguido, continuo mudo.

Quinta, 5

O amor acaba e começa ao mesmo tempo. Medito nisso metido no caroço da noite, na cinza do céu esvaindo a suave poeira levantada pela dança dos teus passos... Abandono a casa: somos imortais só quando partimos, Alma da minha igual e, como ela, mortal.

Sexta, 6

Passo a passo penso em ti sem os sinos da voz e a ondulante leveza do perfil, asa e azul a pastar a distância. Depois vem o medo de que seja verdade. Por isso caminho, silencioso. Ceguei também. A voz dos pássaros é o meu bordão mas fecha-me em círculos, ensurdece-me e regressa atordoada, sem forças, à tona dos trilhos desertos.

Sábado, 7

Não nos ensinam a procurar, mesmo o que nós encontramos. Quando estou em ti, oiço as palavras todas juntas e calo-me. Acompanho-te no rumor contagiante e fugitivo dos teus poros:

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