O Ressurrecto Intermitente

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O RESSURRECTO INTERMITENTE


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Sumário I – primeiro cenário: tempestade no Nilo....................................................................................... 4 II – trama e reconhecimento ......................................................................................................... 6 III – catastrophe ............................................................................................................................ 15 IV – peripécia................................................................................................................................ 17 V – remate de males .................................................................................................................... 19


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I – primeiro cenário: tempestade no Nilo Após o canto luzidio das escravas, Nuvens que exilam balas De sol, azul de chumbo e transparências No pano prenhe que cicia do Cordame altíssimo da chuva. Pequenos barcos de fumo, Assim genuínos, do chão Vão recolher a tradição Trovejante na poeira Do arco tenso em grandiosa voz Que abriu as cordas insuspeitas. O sol retoca-nos depois o rosto Molhado num chão de lama seca e Arrasta os nossos olhos para o mar Com doçura. Uma noite amadurece e a brisa puxa do rasgado bolso Uma cobra infinita, Mãe de si própria, o país duplo da verdade.


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II – trama e reconhecimento A cidade insana senta-se no cenário. Jogam bombas químicas para o palco de vidro. Não Entrevejo a praça dos escravos. O Nsaku1 está no caminho, Na dança agora redonda do pano de mabangas. Um rei antigo e louco Declama: “eis que voltas, homem sem idade! Redime o nosso medo! Que o sal e o ferro subornem as paredes! Que um nome digno povoe a orfandade dos mapas Circunscrito ainda pelos passos firmes dos destemidos guerreiros, filhos das tuas filhas. Nós somos o sangue onde fermenta a lúcida simetria do nome ancestral. Aqui nos reunimos incandescentes para resgatar a voz antiga”. — O mundo é uma grande cidade, Declinava colhendo os olhos surpresos da multidão o regressado. Hordas Banzas de saudade na conjugação inédita das coisas — E como pedras lisas O austero sacerdote mais o povo discreto colaram a cabeça no chão para que ele passasse num silêncio reverente – um deus sobre o deserto. — Realmente o mundo É uma grande sanzala2. E o que está no fim estava também no princípio. Não Somos capazes de morrer. Saltam como noivas 1

Entre outras aceções: quem autoriza o rei. Na rede semântica e lexical em que vive está a imagem de crescimento, acumulação, cintilação, aumento.

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Povoação.


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E dançam, aquelas que nos esperam na poeira cardada Com as ofertas alegres da colheita Tranços de pemba branca e ucusse dançam: Pés descalços com(o) chocalhos O ngoma copula com os chocalhos Desde que vim, desde que vim! Aiué Tunde ki ngeza tunde ki ngeza, Nga-i-jikila ngó ku itanda As borboletas esvoaçam e ela fechada Na kitanda do ngoma, as borboletas Mbuã! Mbuã! Mbuã! No sangue desde que vim Pergunto pelos colonos da memória, pelo capim levado para cobrir a casa irrequieta, pela saudade banza a remover das cinzas antigos cronistas, irrequieta a remover das cinzas quentes A brasa viva do cachimbo; e fala a maviosa princesa lá dentro, a quem um deus do mar Leu nos ondinos anéis a sereia. Pergunto: a cabaça do pai? A cabaça do Pai? Não se cose com quaisquer cordas: a mãe dos nove seios, investida para pacificar a terra, a terra onde fica, passa curva ondulosa e canta a maviosa princesa lá dentro, animal quimérico: é mesmo verdade, vaguear com o húmbi, mesmo verdade? Meu salalé não tem árvore? E pergunto, ainda, pelas conchinhas de zimbro3: Cresceram cordalua nas espirais irregulares do seu destino, olhos vibráteis, fugitivos? Iam vinham elétricas nervosas a mão dareia buscando ai esse calor, fugitivas… mesmo com pai-mãe? Era um homem justo, o regressado: tranquilo escorria para a morte. Aquela de que somos incapazes. Vira os aços frios dos edifícios empertigados escoar a chuva que não mata a sede, os portões de ferro da quinta idade — longínquas também havia — vira com a beleza dos próprios olhos … a saudade múrmura do que não há 3

Conchinhas da ilha de Luanda que serviam de moeda no Reino do Congo.


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E retornara do céu com reconhecidas graças, crias, choros de alegria e danças e fogo, fogo ancestral Arrancado ao inquieto aviso do corpo: ki u-suke, ki u-konde! Retornara, feliz, para fecundar os elementos, as mãos agitadas, frenéticas, arejadas ondulantes divagantes oferecendo gesticulando o aviso ki u-suke!


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Fixa, A cruz do templo recortava-se na cintilante especulação das ondas. Repentinas térmitas de som agitavam o cálido sangue das areias, Marcada a circular dos passos com a doçura hábil dos olhos finos e antigos No terreiro das esperas onde uma flor de Songo fita o mar. Era certo que trazia muitas lendas, Espumas recolhidas a norte, fogueiras cuja luz entra no túnel dos faróis, dos faraós, muitos faraós em tamanho de ratos abastados pelos olhos, outras onde zuniam as abelhas os cantos-cisnes-chifres dos avós, cheios de sol, escrito póstumo. A pedra tem musgo de várias cores. Ele reza: o mundo é o santo que transborda Comsentido. O dia em que se parte é o mesmo do regresso, E nos dois estava só uma desconhecida caligrafia, germinal, a triangular a Escorrer sem que o fio de sangue termine. Subo as duas escadas incontornáveis Das pernas ágeis da bailarina. Subo ngoma quem tropeçou escusa esticar os lábios. Desço Às terras do parto, estendo as mágicas sementes. Um comboio lento fuma o sono coruscante das estrelas. Os meus lábios são as margens variáveis Dos grandes rios– balanga diavula minango. Os dentes riem-se nas neves eternas do Kilimanjaro. Respira em mim A argila de que sou feito: wenda kiiadi, wáfwa kiiadi. Rega-me a pele o suor dos povos dispersos, ntotila, sóis e soyos4

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Sôyo ou Nsôyo – região do antigo reino do Kongo decisiva para a escolha do rei; a palavra significa também ‘terra levada para fazer casas’ e ‘capim levado para fazer o telhado’.


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Consignando-se, indefinindo-se (canta, arcaico, para os súbditos no palco): “sempre a morte Extraía o diamante quem vivesse transitando na memória”. Dulce, uma escrava cativa, dizem que Trazida por Diogo Lopes de Siqueira, o mulato assombroso] lhe respondia por ela Por ela rasgo os peitos no chão. Redes de luz e sombra pego fogo pego-o-a mata pegou fogo x No pórtico dos olhos, lâminas de eróticas dispersões fundiam-se por ela cabaças de água sagrada e sementes de luz fundiam-se, por ela. Penetram O teatro colorido missangas, tacula de barro cromático e faíscante, as pedras Negras do nDongo5, seu cão 5

Formações rochosas volumosas e invulgares nas quais, ao partir para o silêncio, terá deixado suas pegadas o rei Ngola Kilwanji Kia Samba acompanhado pelo cão fiel. Outros dizem que as pegadas são da rainha Nzinga, a emanação feminina do que teve emanação masculina incorporada no rei Kilwanji-kia-Samba.


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— as pegadas do nGola Ngongo6 No cadáver irradiante da princesa maiombolada quando penetrou Dentro da rocha pela nascente fresca na cabaça intermitente que é a noite. Dito isto regressou Por instantes à trama das mortes e das vidas, dissolveu por inter mináveis segundos a assembleia dos espelhos palpitantes e meditou

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Entre outras aceções, foi o terceiro filho de Vundjanga, soba e sacerdote Ngangela; este filho é que herdou o trono e tinha por cognome ‘o pacífico’. Ngongo significa também ‘acordo entre duas partes’ e os gémeos são chamados ‘jingongo’.


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III – catastrophe …entre sete ramos de palmeiras maruvo Sanzala sem batuque, meditou com vinte e sete lanças7 e os calores de Mbângala8 Meditou: (no cruzar da encruzilhada A cobra mordeu) Onde estavas não vias enquanto Humedecia o incauto som da pele? Houve uma ausência repentina do seu canto Sem o azeite de palma, sem a chuva reclinando O capim, muito breve, rente assim Uma espécie de impedimento pendia Sobre todos nós com seu ferro quente Caiu a árvore do ninho, os passarinhos do ovo saíam tu foste O primeiro a acordar. Ubeka uami, êe… 9 As doze coroas de saliências ágeis e ásperas exalavam no miúdo grão do tempo a presença Irrepetível e corpórea de uma rainha morta na mortífera conjugação da vida.

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Segundo uma lenda Yaka só quem juntasse 27 lanças poderia matar Sa Makonde, heterónimo de Yala Mwaku, pai fundador que gerou Tsinguli (Kinguri), Tsinyama (Chinhama) e Lueji. Quem o diz é o próprio Yala Mwaku aos seus netos.

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Terra quente, terra de onde vem o sol, terra das origens.

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“Minha solidão, êe…” – a frase foi também refrão de música popular: “ubeka uami ngó, ubeka uami, aiuê...”


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IV – peripécia A noite recolheu as sementinhas milagrosas de sol. A grande muralha reergue-se, Larvamos-lhe o louvor em fina pedra, e o capitão casa com a filha Do rei deposto – quem amasse o próprio inimigo – Seu cão fareja no fogo frio: A grande muralha azul reerguesse A terra branca de Okaaya Enquanto o pássaro cantasse Minha vida minha vida sentemo-nos só O louvor da manhã na fina pedra de milho rumoreja o nó do mundo sai das águas oh Tchoya yetu 10 braceletes de ouro agitam-se fora dos pulsos do teu sono líquido, erguem-se, dançam, xinguilantes o que é que disseste? o capitão casa com a filha do rei deposto como quem amasse o próprio inimigo novamente

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“Nossa Tchoya”. Féti, o primeiro homem, caído do céu para terras acima do Cunene, sentia-se muito só. Acabou tentando caçar um hipopótamo para ter alimento e gordura. Cansou-se de esperar por um, junto ao grande rio (Cunene), e adormeceu. Quando acordou, quem saía das águas era Tchoya, a primeira mulher.


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V – remate de males Vinha D. António Mbaxe montado num bífido cavalo branco entre maboques e jacintos. E proclamou: wakaya! wakaya!11 – começarei por sinais; os pássaros estranhos, que durante a fatídica batalha tinham coberto o côncavo céu de Salvador, como se estivesse para cair pedra, afastaram-se bruscamente e não voltaram mais. À sua passagem, uma geração infeliz inclinava silenciosa E reverencial o medo. Permanecendo sentado com solenidade no seu cavalo branco, D. António Sebastião Mbandi Manuel nSuku, lágrimas de Madalena aos pés de Jesus Cristo, juro muenle!12 pelos quatro santos entronados, ele mesmo abriu o ventre da sobrinha e foi tirando, com a ponta de uma lança incandescente, a carne da sua carne, e a deu aos seus guerreiros a comer na catedral do Salvador. Ainda hoje lá está, na Igreja onde rezou D. Pedro II13, a dar ao sabor dos súbditos a hóstia branca da sua carne e o vinho de palma do sangue, estipêndio estipulado em festa pública.

E ruína.

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“Ele dará presentes! Ele dividirá entre os outros!”

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Mesmo!; reforço de sentido.

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Rei católico exemplar. No seu curto reinado congolês acabou sendo vítima de um padre perverso, mais que dos ídolos que ele combatia. Passados mais de duzentos anos, incorporado branco, veio a ser Imperador do Brasil – e também não terminou mandato, vítima dos seus generais mais que dos fantasmas que eles combatiam – fantasmas de escravos fugidos para Palmares.


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NOTAS Este livro foi terminado em Évora em Janeiro de 2017 por obra e graça dos ímpetos imprevistos e naturalmente se oferece ao leitor indefinido. Referenciação: Francisco Soares. Ngola. Évora: FS, 2017. Pedidos: samfdv6@ymail.com


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