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Textos complementares de apoio -Diagnóstico e Planejamento
A fim de elaborar o programa de atendimento a crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência é necessário, inicialmente, realizar um diagnóstico sobre a rede de proteção existente no município, fundamental para o estabelecimento de fluxos de atendimento específicos aos casos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, como veremos adiante. Ademais é preciso compreender qual a estrutura de atendimento que o município disponibiliza ao referido público e seus familiares, bem como os recursos destinados para tal.
Para tanto, é importante conhecer os serviços que compõem a referida rede de proteção assim como as formas de atuação no campo da proteção de crianças e adolescentes, os dispositivos de articulação existentes, principais parceiros, bem como outros aspectos que possibilitem conhecer a realidade dos serviços que compõem a rede intersetorial de proteção do município bem como os modos de entrelaçamento entre eles. No que diz respeito ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e de seus familiares, importa ter informações sobre a atribuição de cada serviço nesse campo, os recursos utilizados e os resultados que têm sido obtidos.
Com o intuito de efetivamente conhecer a realidade da rede de proteção local e a estrutura de atendimento específica ao público em tela, será necessário não somente o levantamento de informações, mas especialmente reservar as primeiras reuniões com a Comissão Intersetorial para análise conjunta das informações coletadas, sob a luz da Lei n° 13.431/2017 e do Decreto 9.603/2018 que regulamenta a referida Lei. A proposta é construir um panorama sobre a realidade da rede de proteção e entrelaçamentos, especialmente quanto ao atendimento prestado a crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, e promover o reconhecimento, pelos(as)profissionais envolvidos(as), da urgência da implantação de um programa específico de atendimento de caráter intersetorial ao referido público. Caso o município tenha iniciado a construção de uma estrutura de atendimento articulada e integrada, caberá ao (à) promotor(a) de justiça e equipe técnica da NAT responsável acompanhar essa construção de modo a garantir que a proteção se constitua como o principal objetivo do atendimento. Nos municípios que possuírem uma estrutura de atendimento organizada, o objetivo da aproximação e intervenção do(a)promotor(a) de justiça e equipe do NAT será o fortalecimento da perspectiva protetiva.
O diagnóstico constitui a etapa fundamental para construção do programa de atendimento aludido anteriormente, pois ao possibilitar o conhecimento da realidade local, elucida as
principais dificuldades e necessidades a serem tratadas de acordo com os recursos e possibilidades de cada município.
Especificamente quanto aos recursos, especialmente financeiros, salienta-se que o fato do município não dispor de previsão orçamentária para ações no campo da prevenção, enfrentamento e atendimento a crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, não deve se configurar como impeditivo à construção do programa de atendimento mencionado, uma vez que muitas ações a serem implementadas dizem respeito ao estabelecimento de fluxos específicos, qualificação de pessoal, reordenamento institucional, dentre outras que não demandam aporte financeiro.
Dadas as considerações anteriores, entendemos que não é possível estabelecer previamente um programa de atendimento, ou mesmo fluxos, que possa ser aplicados a quaisquer realidades. Para se garantir uma estrutura que efetivamente ofereça um atendimento protetivo às crianças ou adolescentes vítimas ou testemunhas de violência é fundamental que a rede de proteção local estabeleça suas bases, de modo a garantir a construção de um trabalho coordenado, comprometido e que faça sentido para os(as) envolvidos(as) e não a aplicação de um programa imposto desde fora que tende a funcionar de forma burocrática.
O planejamento da etapa diagnóstica ficará ao encargo da equipe do NAT junto ao(à) promotor (a) de justiça local, sendo este (a) último (a) responsável por encaminhar aos órgãos os ofícios solicitando as informações, conforme demonstrado no passo a passo do Guia. A equipe técnica subsidiará o membro do MPSP na definição das informações e dados a serem solicitados a cada serviço, bem como na organização das reuniões da Comissão Intersetorial, desde a definição das datas à elaboração de estratégias voltadas para a análise conjunta das informações coletadas, a qual possibilitará a realização do diagnóstico da situação atual do município quanto à rede de proteção e o atendimento a crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. É importante ressaltar que as discussões e análises para elaboração do diagnóstico devem ser feitas no espaço da Comissão Intersetorial.
Superada a etapa diagnóstica, inicia-se a elaboração do programa de atendimento a crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, o qual deverá prever um plano de ação para sua implementação. A base do referido programa de atendimento é a atuação em rede, caracterizada pela cooperação, conectividade e compartilhamento de responsabilidades, o que requer o estabelecimento de alianças entre pessoas e instituições baseadas na horizontalidade.
Uma vez que a Comissão Intersetorial deu início aos trabalhos, por meio das reuniões intersetoriais, discutindo inicialmente a construção de um diagnóstico, identificando os problemas existentes na rede de proteção social e nos serviços que a compõem e propondo soluções para superá-los, entende-se que seja o momento de iniciar a criação de um fluxo intersetorial de atendimento às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, sendo o fluxograma o resumo e o retrato dessa construção.
Nesse ponto, tendo conhecimento de toda a rede, inclusive do sistema de Justiça, dos serviços que a compõem e do trabalho que cada um deles realiza, a Comissão Intersetorial vai identificar o caminho que a criança ou adolescente e sua família percorre dentro da rede protetiva, visando seu acolhimento, atendimento e proteção. Com esse material em mãos, será possível avaliar as fragilidades da rede protetiva e discutir os ajustes necessários na estrutura e organização de alguns serviços para garantir que o programa de atendimento, que está sendo construído, atenda à Lei 13.431/2017 e ofereça de fato o acolhimento, atendimento e proteção das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
Ao construir esse fluxo, onde será possível estipular com clareza a função e o papel que cada serviço desempenha e visualizar os próximos passos que a rede intersetorial dará para atender a situação, todos(as) os(as) profissionais, principalmente aqueles(as) que atuam na base dos serviços, se sentem mais seguros(as) para acolherem a criança ou o adolescente porque vislumbram um cenário de cuidado compartilhado, não tendo que lidar com a situação sozinhos(as).
Destaca-se que esse fluxo intersetorial a ser construído precisa ser amplamente discutido pela Comissão Intersetorial de forma bastante horizontal e construtiva, entendendo que esse fluxo traduz um trabalho articulado da rede, entre todas as políticas e serviços envolvidos, buscando o acolhimento dessa criança ou adolescente. O acolhimento é primordial nesse contexto, pois é o que permite a construção de vínculo e confiança, possibilitando que a criança ou adolescente se abra para as intervenções propostas e participe ativamente desse processo.
Assim, a escuta especializada entra como um dos elementos de um programa de atendimento amplo, que compreende uma sistemática de trabalho intersetorial que vai abranger diversas ações. Desde o momento em que a criança ou adolescente relata espontaneamente uma situação de violência ou se a rede recebe uma informação nesse sentido, essa articulação intersetorial vai buscar acolher e proteger essa criança ou adolescente, sendo o espaço da escuta especializada primordial para o planejamento de todo o atendimento posterior.
O relatório da escuta especializada é um dos documentos essenciais que precisam ser produzidos por este programa de atendimento, bem como deve ser definido o fluxo que irá percorrer. Tratase de um documento fundamental, pois indica a importância da participação da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência na construção do trabalho de proteção e atendimento.
Nesse sentido, é importante apontar a existência de outros quatro documentos essenciais dentro do programa de atendimento que são produzidos por pontos de atenção específicos, em diferentes etapas do fluxo de atendimento, cujos caminhos a serem percorridos pela rede também devem ser estabelecidos. Um é o relatório da revelação espontânea, onde deve constar o conteúdo do evento tal e qual ele foi revelado. Destaca-se que a pessoa escolhida pela criança ou adolescente para contar o que se passou com ela não deverá buscar mais detalhes nem confirmar o fato, apenas acolhê-la/lo, recolher e registrar tudo aquilo que ele ou ela decidir relatar.
Outro documento essencial é a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e a outras Violências, que depois de preenchida gera dadosque alimentam o módulo no Sistema de Informação de Agravos de Notificação -SINAN. A notificação das violências é contemplada na Portaria GM/MS nº 1.271/2014 - Ministério da Saúde, e a referida ficha de notificação deverá ser preenchida por profissional da rede de atendimento o mais rápido possível para, nos casos de violência sexual, a vítima ter acesso imediato à medidas profiláticas de doenças sexualmente transmissíveis e hepatites virais e à contracepção de emergência. Além disso, o preenchimento da ficha de notificação e posterior registro no sistema, gera dados fundamentais para a avaliação epidemiológica e consequente formulação de políticas públicas de prevenção e proteção.
O terceiro documento essencial é a análise de risco, que tem por objetivo basicamente identificar o contexto social dos fatos, as potencialidades e fragilidades do núcleo familiar para proteção da criança ou adolescente e a rede de apoio familiar e/ou comunitária com a qual esse núcleo familiar pode se apoiar. Esse estudo, juntamente com o relatório da escuta especializada, traz elementos para planejar a intervenção mais adequada, levando em consideração as particularidades e singularidades de cada caso, com estratégias mais assertivas que evitem a revitimização da criança ou do adolescente.
A partir da escuta especializada e da análise de risco, serão indicados profissionais da rede de proteção que poderão intervir no caso e serão convidados(as)a elaborarem o quarto documento essencial, que denominamos de plano de intervenção intersetorial para a criança/adolescente e sua família. Este, por sua vez, traduz a estratégia de atuação da rede, apresentando quais as
demandas da criança ou adolescente e sua família, os serviços que farão os atendimentos e os objetivos de cada intervenção. Tal plano é importante para direcionar o trabalho da rede e deve ser elaborado com a participação ativa da criança ou adolescente e sua família, tendo como pano de fundo o princípio da intervenção mínima, que garante aos sujeitos os atendimentos estritamente necessários de acordo com a necessidade de cada um. É importante destacar que o nomeado plano de intervenção intersetorial não substitui os planos de atendimento individuais que cada serviço/equipamento tem por prática realizar para atender aos objetivos específicos de sua intervenção.
Nesse sentido, faz-se necessário ressaltar que os documentos essenciais citados anteriormente, enquanto instrumentos de planejamento e troca de informações, foram nomeados a partir do lugar ocupado dentro do programa de atendimento, além de observar o objetivo e a função de cada um deles. No entanto, cada rede deve identificá-los a partir da realidade local, inclusive podendo utilizar instrumentos já conhecidos que possam cumprir as funções observadas para cada etapa, sem perder de vista o significado que cada um desses documentos essenciais representa.
Ao considerar a essencialidade dos referidos documentos no atendimento e proteção às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e seus familiares, é fundamental ser bastante preciso quanto ao caminho que cada um deles percorre ao longo do processo. Logo, a construção de um fluxograma, onde estejam estabelecidos os percursos de cada um dos documentos mencionados e de outros que forem considerados pertinentes conforme a realidade local, deve ser igualmente priorizada pelas ações da Comissão Intersetorial.
Como posto anteriormente, ao se tratar de um projeto de trabalho intersetorial que abrange diversas etapas de atendimento articuladas, além dos integrantes da Comissão Intersetorial, é pertinente que haja a participação de outros atores que estejam de alguma forma envolvidos e podem ser essenciais no processo de construção.
Uma vez finalizada a construção do fluxo intersetorial que dá forma ao programa de atendimento organizado no município, é importante que cada ponto de atenção discuta internamente e elabore um fluxo interno, que será posteriormente apresentado ao comitê intersetorial e validado pelo grupo.
Nesse contexto o (a) promotor (a) de justiça entra como integrante da rede, para compor as discussões contribuindo com o quecabe à atuação do Ministério Público e fomentando que esse
fluxo seja construído da forma mais democrática, participativa e articulada possível entre os atores envolvidos. Vale ressaltar que o protagonismo nesse processo deve ser da rede local, enquanto um coletivo de profissionais que atuam no cotidiano das políticas públicas e diretamente com os casos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
Em conjunto com o (a) promotor (a) de justiça, o Núcleo de Assessoria Técnica – NAT, por meio de seus/suas profissionais espalhados(as) pelo estado todo, pode contribuir muito com essa construção. Adotando a mesma postura de horizontalidade com os(as) demais participantes, o NAT pode estar nesse espaço como mediador das discussões, no sentido de que nem sempre os discursos dos(as) promotores(as) de justiça e demais operadores do direito são compreendidos pelos técnicos da rede e vice-versa. Dessa forma, o NAT pode ser uma ponte nessa relação entre Ministério Público e rede protetiva, principalmente quando não há um contato mais próximo estabelecido previamente.
Além disso, os(as)técnicos(as)do NAT, pela experiência de trabalho com as políticas públicas e o conhecimento acumulado dessa temática, se mostra um importante ator dentro dessa discussão que pode trazer questionamentos, tensionamentos e sugestões de encaminhamentos e ações por um ponto de vista externo, “de alguém que está de fora” e que não está envolvido(a)diretamente e afetivamente com o trabalho desenvolvido junto às crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência. Ainda, por ser alheio (a) à estrutura do executivo municipal, tem mais autonomia que os(as) técnicos(as) dos serviços para problematizar determinados pontos das políticas públicas, uma vez que nem sempre as relações estabelecidas entre técnicos(as)“da base” e gestores são horizontais, que permitem esses apontamentos e divergências.
Posto isso, de forma resumida, o (a) promotor (a) de justiça pode atuar nessa fase fomentando que a Comissão Intersetorial elabore um cronograma de reuniões periódicas e participando, em conjunto com o NAT dessas reuniões, tendo em vista todo o direcionamento apontado até aqui.