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DORALICE GOES Sobrevivendo ao botulismo
Doença rara paralisa músculos e ameaça vida de moradora de Águas Claras; molho pesto causou grave – e raro – botulismo
Por Vin Cius Neves
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Era para ter sido apenas mais uma ida ao trabalho comum, rotina normal na vida da servidora pública Doralice Carneiro Sobreira Goes quando, durante a condução do carro, ela começou a sentir fortes dores no corpo e paralisia muscular – que fizeram com que ela alterasse o trajeto e fosse apressadamente até um hospital. O que ocorreu exatamente a tempo dela estacionar o carro e ser levada, em cadeiras de rodas e com urgência, para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do hospital, onde começaram a investigação sobre a doença que viria a paralisar os músculos – e a vida –– de Doralice por mais de um ano: o botulismo, uma doença rara, que pode ser fatal e requer cuidados emergenciais. “Eu pensei estar tendo um AVC devido à fraqueza”, relembra ela. “Vim dirigindo da Asa Norte até Águas Claras e, quando cheguei, minhas pernas não estavam funcionando mais”. Ela celebra ter conseguido chegar a tempo ao hospital e ter evitado uma tragédia ainda maior: “Já pensou se eu fico paralisada enquanto dirijo?”, questiona.
No hospital, Dora fez tomografia com contraste e, durante o procedimento, começou a sofrer com vômitos e sua respiração parou, o que a fez ser entubada. “Se eu não tivesse ido ao hospital ou tivesse ido para a casa, eu teria morrido. Minha respiração parou por completo”, relatou. Por causa disso, ela foi entubada no mesmo dia que chegou ao hospital, meia hora depois de dar entrada na unidade. “Nada no meu corpo mexia”. Após ficar 14 dias entubada, foi submetida a uma traqueostomia, que a fez ficar nove meses respirando por aparelhos: “Não tinha força para respirar”.
“FUI SALVA POR UM ANJO”
Ela disse ter sido abençoada por um milagre: enquanto os médicos não tinham certeza sobre o que ao certo ela tinha, um neurologista de São Paulo foi chamado para visitá-la na UTI para emitir um parecer. “Ele foi a única pessoa, ao fazer o exame clínico, que desconfiou que eu estivesse com botulismo. Ninguém acreditou nele”, contou a servidora pública. Outros médicos – cardiologistas, neurologistas – não acreditaram, inicialmente, no diagnóstico. “Esse médico vindo de São Paulo disse ter estudado a doença por dez anos e nunca ter visto um caso com os próprios olhos”.
Ele, então, acionou a Vigilância Sanitária do Centro-Oeste para que Dora tomasse o soro anti-botulínico. Ela suspeita que o médico perspicaz foi desacreditado devido à sua aparência jovem, algo que é
Folha De Guas Claras
ISSN 2357-8823
Editor: Alcir Alves de Souza (DRT 767/80)
Reportagem: Rafael Souza (DRT 10260/13)
Endereço: SM IAPI ch. 27 lotes 8 e 9 71070-300 • Guará • DF
Comercial: Vanessa Castro - (61) 986191821 frequentemente associado à inexperiência – muitas vezes interpretado como desconhecimento. A equipe regular do hospital só teria acreditado na palavra do neurologista de SP quando a Vigilância Sanitária recolheu amostras de alimentos guardados na geladeira de Dora (que pudessem estar contaminados) e o Instituto Adolfo Lutz, em SP – o único que faz essa análise no país –, concluiu, dois meses depois: botulismo alimentar no molho pesto consumido por ela.
Acompanhado de uma taça de vinho, sua bebida favorita, ela se alimentou uma porção de torradas com um molho pesto em conserva que tinha comprado, há alguns dias, em uma feira de produtos artesanais que aconteceu no Lago Sul. Foi aí o começo do que Dora classificou como um “seu maior pesadelo”: o envenenamento que causou a paralisia de todos os músculos do corpo, órgãos e o sistema respiratório. “Só não parou o coração e o cérebro”, relatou Dora. O botulismo cresce nos ambientes – e recipientes – que não são adequados à conservação, e é mais observado no caso de embutidos e conservas. Em 2018, foi registrado um caso em um paciente que consumiu salsicha. No Rio de Janeiro, em uma pizza de palmito. Já em São Paulo, na água de coco.
O botulismo é uma doença neuroparalítica grave, rara,
"Eu não queria ficar tetraplégica, em cima de uma cama, aos 46 anos. Chegou a ser indiferente para mim viver ou morrer, mas os meus gatos me fizeram querer viver. Queria passar mais tempo com os meus gatinhos”, conta Dora não contagiosa, causada pela ação de uma potente toxina produzida por uma bactéria que se forma, geralmente, em produtos em conserva como palmito, salsichas, mel e molhos – o que envenenou Dora.
“Fui tratada por dois meses como se estivesse com outra doença, fiz nove proce-
Circulação dimentos de limpeza do sangue e vários exames” relatou ao complementar: “Começaram procedimentos de fazer novas conexões neurais no meu corpo, que foram perdidas por causa do botulismo”. Diariamente, ela fez sessões de fisioterapia três vezes, fonoaudióloga duas vezes, além de tomar banho no leito e continuar respirando por aparelhos. “Tive até sinusite que me fez passar por cirurgia”. Foi submetida também ao procedimento de broncoaspiração – para limpar o catarro e secreções – várias vezes.
A Folha de Águas é um produto da Editora Jornal do Guará, há 34 anos no mercado de comunicação comunitária. A edição impressa semanal da Folha de Águas Claras e distribuída aos sábados gratuitamente no comércio da cidade, em padarias, prédios comercias, agências bancárias e grandes condomínios residenciais. Editada por jornalistas profissionais compromissados com o desenvolvimento da cidade, a Folha de Águas Claras acredita no protagonismo do jornalismo comunitário.
“Se você estiver ouvindo, mexa qualquer parte do seu corpo”, teria dito o médico a ela. “Eu mexi dois dedos do pé direito – nesse momento ele percebeu que eu estava consciente e orientada, presa dentro do meu próprio corpo”, contou a moradora de Águas Claras. “Compreendia e escutava tudo, apesar de ter sentido algumas alucinações durante esses quase um ano inteiro de internação”. Ela passou e acompanhou todo o período eleitoral e Copa do Mundo de dentro das unidades médicas. Dora ficou em hospitais (dois deles) de 25 de janeiro a 5 de dezembro de 2022. Esse período foi extremamente turbulento: “Eu tomava laxantes, injeções musculares e urinava via sonda. Não tinha movimentos voluntários e me alimentava por sonda gastrointestinal, que vazou e trouxe outras complicações, como uma quase infecção generalizada. Os meus tratamentos e exames não paravam nem por um dia. Fiz dois meses de hemodiálise por causa dos rins, que pararam. Colocaram também uma bolsa de colonoscopia”, relatou a brasiliense. Além das dolorosas sessões de fisioterapia, ela passou ainda por quatro transfusões de sangue, além de contrair KPC (superbactéria) e Covid-19 nas dependências do hospital. Mas o baque maior foi quando a equipe abordou a possibilidade de perda permanente dos movimentos das pernas e braços: “Nessa época eu nem abria os olhos, mas ouvia tudo. Eles disseram que eu estava tetraplégica”.
“EU SÓ PENSAVA EM SOBREVIVER”
Ela relatou ter quase morrido no dia que chegou ao hospital – e quando vazou a sonda gastrointestinal. “Todas as noites passava mal e sentia dificuldades para respirar. Eu tomava quatro remédios para dormir e não dormia”, contou.
Apaixonada por gatos, ela tem muito amor por seus três pets, já tendo, inclusive, trabalhado como cuidadora de bichanos em necessidade, o que a motivou a escrever um livro sobre o comportamento dos felinos – um guia para adestrar os companheiros felpudos e os tornarem mais confortáveis dentro de seus lares. Estar novamente com seus companheirinhos a fizeram ter força para lutar contra a doença. A moradora de Águas Claras também é entusiasta de vinhos (um de seus gatos se chama Malbec em homenagem à marca de bebida alcoólica à base de uvas).
Kiwi, Apple Alaska e Ayo Malbec, os seus três gatos, ficaram aos cuidados da irmã durante as internações. Os bichanos tiveram autorização para visitá-la no hospital, onde ela também pode matar a saudade de tomar uma taça de vinho. Até “visitou” uma praia do Caribe por meio de óculos de realidade virtual, pôde assistir Netflix e escutar músicas internacionais dos anos 80 da programação da rádio Antena 1. “Passou a ser menos árdua a jornada”, relembra.
Botulismo No Distrito Federal
Além de ser rara e gravíssima, a bactéria que causa o botulismo também é muito desconhecida por muitos profissionais de saúde, segundo Dora. “Nem os médicos que me trataram já tinham visto um caso de botulismo”, alegou. No DF, apenas três casos foram registrados (2001, 2018, e nela, em 2022). “Os médicos não estão preparados para lidar com a doença", afirma. “Acharam que eu estava com alguma forma do vírus do Covid-19 ou alguma complicação por causa da vacina”, ressaltou. “Dos casos no DF, eu fui a pessoa que ficou mais tempo no hospital”, contou Dora, que impressiona com o quanto se informou sobre a doença que a acometeu.
Além dos danos à saúde, doença trouxe prejuízo financeiro
Além de todo esse sofrimento passado por Dora, ela teve que adotar uma série de medidas para conciliar o tratamento com as contas e despesas: entregou o apartamento que alugava, doou os móveis e foi morar, junto com seus gatos, na casa da irmã, que sempre deu o maior apoio em toda essa jornada pela vida.
“Estou devendo mais de
1 milhão ao meu plano de saúde, por conta dos meses na UTI e quarto individual”, lamenta.
Ela ainda não descarta entrar com medidas judiciais contra o estabelecimento que comercializou o molho pesto envenenado que quase lhe tirou a vida: “Eles têm responsabilidade nisso”, afirma.
Caminhando Rumo Melhora
Em suas redes sociais, a cada vez mais recuperada Dora registra os momentos que passou na prolongada rotina hospitalar que a acompanhou por quase um ano inteiro, os progressos no tratamento e novos passos dados rumo a uma vida normal. Participou, utilizando seu andador, de um desfile em que representou os excluídos.
Ela saiu do hospital dois dias antes de seu aniversário: “Foi muito boa a sensação de voltar à vida, de ver o pôr do sol, tomar um vinho e estar em casa com meus gatos”, comemorou.
Agora, ela planeja passar por uma operação de catarata, que foi acelerada por con- ta do botulismo e recuperar a habilidade de salivar, outra sequela da doença.
Experi Ncia De Quase Morte Inspira Escrita De Novo Livro
Agora, os planos para o futuro incluem melhorar cada vez mais, continuar com os tratamentos fisioterápicos, voltar ao trabalho que está afastada (e tem um prazo apertado para retornar) e escrever um livro sobre a experiência de quase um ano na luta contra o botulismo, além de começar um tratamento na Rede Sarah Kubitschek, hospital em Brasília que é referência internacional em neuro-reabilitação e recuperação de movimentos corporais em pacientes.
Ela também nutre uma vontade de dar palestras e congressos para a área médica, mostrar o lado e o sentimento do paciente que sofre de doenças raras e pouco conhecidas pelos profissionais técnicos. “Eu sinto que tenho um dever de alertar os médicos e conscientizar as pessoas sobre a doença”.