Doen莽a de Alzheimer Desafios
Maria Cristina Cust贸dia Maia
Escrevo no momento em me que preparo. Olho para o passado e convoco as memórias paradas no tempo e a vida que muda, sem outra opção que não seja a resignação. Perpetuo lembranças quase adormecidas pela violência do presente e contemplo o silêncio do entardecer… Na lonjura do tempo uma luz irradia ainda, enquanto se afasta em direção ao outono. Voltarei aqui para permanecer, para de novo estar presente. Será então um outro tempo.
O regresso Mulher aguerrida, determinada, calejada pela vida, pela dor e pelo trabalho, acompanhava o marido. Fazia-o por imposição sua, não se permitia deixá-lo nas lides mais duras, mesmo que ele insistisse e que ela reconhecesse que seria mais benéfico não o fazer. Gostava do campo onde sempre vivera. Na sua memória estavam os terrenos herdados e os tempos de antigamente em que a vida se fazia de sol a sol. Naquele dia de abril de 2010, lembrara a conversa tida com Cristina. Estranhava alguns acontecimentos que lhe diziam ser verdadeiros e por ela presenciados, mas que a sua memória não reconhecia: a mudança de cor das divisões da casa, os filhos de pessoas amigas, o reconhecimento da sua própria roupa, as romarias a festas religiosas… Estava Dulce nestes pensamentos e duplamente confusa por não saber como era possível que a memória a atraiçoasse (a ela, que na Escola Primária, como se designava na altura, até tinha tido um diploma de louvor) e por considerar ser normal para a sua idade, não querendo reconhecer a dificuldade de lidar com isso. Tinha já setenta e três anos. Portanto, como mulher definida que era, não autorizava que a desdissessem e tinha deixado bem claro que aqueles lapsos faziam parte da vida. Era tudo tão mais simples assim, não era? Pois assim seria. Imbuída por estes pensamentos, estremeceu quando ouviu a voz de José. Acabara a semente e teriam de voltar no dia seguinte. Não achou bem e prontificou-se a ir buscar mais a casa, afinal o sol ainda ia alto e no dia seguinte haveria muito mais que fazer.
Sentou-se esbaforida. Sabia que tinha de voltar, mas algo se passava. Resolveu chamar pela filha e pedir ajuda. Explicou que se perdera e que quase fora atacada por cães. A sorte fora que estavam presos e não tinham podido atacar.
O quê?! Por cães?! Mas não há cães presos por correntes na estrada… Bem, teria de resolver o problema mais imediato no momento. Depois de se abastecer de sementes, foi levá-la junto ao terreno. Voltou aos seus afazeres, pensativa. De novo ouviu chamar o seu nome. Nem queria acreditar! O que se passara?! Inacreditável! Enganara-se no caminho para chegar ao terreno onde o marido a esperava já seriamente preocupado pela demora. Foi lá levá-la, voltou para casa e fez algumas pesquisas. Marcou então consulta numa neurologista.
Indignação Evidente contraste entre a elegante roupa que veste e o seu semblante. Alguém diria que a magoaram irremediavelmente. No consultório médico não contém a indignação por muito tempo. Nunca esperou que a sua própria filha lhe fizesse uma coisa daquelas! Levá-la a um médico da cabeça! Ela estava bem e não entendia e não merecia tal coisa! Queixumes repetidos vezes sem conta, visivelmente alterada, quer na sala de espera, quer na entrada, para onde Cristina a arrastara com o objetivo de fugir aos olhares dos outros, alguns insidiosamente incriminadores. -Então, menina Dulce, diga lá porque é que está aqui.- Convida a médica, com voz melodiosa e ar risonho, pegando-lhe na mão e olhando para a sua expressão facial. A indignação não se fez esperar. Vociferou: - Olhe, não sei. O meu pai e a minha mãe, que estão aqui, que lhe digam! O diagnóstico foi quase imediato. No entanto, houve ainda uns testes. Três palavras para memorizar (casa, mação e gato), rapidamente esquecidas, apesar da instrução dada inicialmente e repetida para que fosse bem percebida; umas contas de somar e subtrair, em que acertou, e questões de localização espácio-temporal em que se perceberam sobretudo dificuldades a nível de localização temporal. Seguiram-se exames médicos: análises ao sangue e uma TAC. Depois medicação para a Doença de Alzheimer e recomendações sobre como lidar com a doente: olhar nos olhos, falar com calma, propiciando sempre um clima de confiança e, a parte mais difícil, reconhecer que é uma doença progressiva e irreversível em que a medicação apenas atenua a progressão da doença nas fases iniciais. Atinge a memória e, progressivamente, as outras funções mentais, acabando por determinar a completa ausência de autonomia dos doentes. O mundo desabou. Bem lhe dissera Ana. Pensava agora nisso e em como a vida era caprichosa. Em Coimbra sempre se tinham dado muito bem, dividiram o quarto, as conversas, as alegrias, as tristezas e assim continuaram pela vida fora. Agora, além da mesma paixão pela profissão tinham ainda em comum a doença das mães. Também a mãe dela era doente de Alzheimer, embora tivesse começado a terapêutica vários anos antes e fosse oito anos mais nova. Saberia mais tarde que a evolução seria também diferente.
Adaptação e mudanças Em 2010 e 2011 proteção e vigilância passaram a fazer parte integrante do vocabulário e de cada minuto todos os dias. Valeu essa vigilância para evitar danos maiores ao constatar, por exemplo, o gás do fogão aberto mas sem chama ou o manípulo de uma torneira retirado de tanto desenroscar e um jato de água a inundar a cozinha. Passou também pelo vestuário: depois de vestida, retirar uma camisola interior que surgiu inesperadamente por cima da blusa ou dois pares de cuecas vestidos por cima das calças… A confusão mental era cada vez maior. Insistia em fazer algumas tarefas domésticas sozinha, afinal, sempre as fizera e sempre gostara de libertar aos outros o trabalho que podia fazer. No entanto, cada vez se verificava mais dificuldade. Algumas dessas coisas passariam até a ser, mais tarde, vistas como episódios anedóticos, contados ou relembrados com um sorriso, contrariamente ao sentimento de fúria que imperava quando se tinha de repor a ordem das coisas. Fazem parte desses episódios anedóticos a roupa que aparecia no guarda-roupa de algum outro elemento da família, uma salada de alface temperada com vinho do Porto e um molho de talheres muito bem guardados numa gaveta da cómoda no seu quarto. Algumas vezes foi encontrada a vestir umas calças enfiando a cabeça numa das pernas e um braço na outra e furiosa e insistentemente procurava algo onde pudesse enfiar o braço que faltava.
Estes
pequenos desvarios não eram questionados ou referidos em sua presença, porque não valia a pena e só a iriam deixar angustiada e triste, caso estivesse num breve momento de lucidez. Observando-a, a tentar realizar uma qualquer tarefa e vendo a sua frustração por não saber como a fazer, fazia-se imediatamente o confronto com a Dulce de outras épocas. A mulher ágil que labutava para ter o quintal cultivado e a casa farta, o jardim e a casa arranjados já não existia, era apenas uma sombra do passado. Era rigorosíssima com o preceito com que as coisas deviam ser feitas e com os horários. Não se permitia alguma descontração se algo não fosse feito conforme o previsto. Imperava frequentemente no espírito de Cristina a interrogação “Como é possível?!”. O conflito entre o lado racional e o emocional passou a ser também uma constante. Investigara, recolhera muita informação em diversos meios sobre a doença, as suas fases, a mudança de comportamentos dos doentes e a (in)eficácia da medicação. Tudo o que sabia não ajudava muito, porque mentalmente estabelecia a diferença entre o que já era habitual no seu quotidiano e o que fazia parte habitual da vida das outras pessoas. Não havia comparação possível. A clivagem foi-se agudizando aos poucos; eram dois mundos completamente diferentes e incompatíveis. A vida de Ana também era pautada por estas mesmas interrogações e pelo mesmo tipo de vivências, embora a sua mãe mantivesse um grau de autonomia bem diferente.
Esquecia o sítio das coisas, mesmo das mais comuns e de uso quotidiano, não sabia se estava na sua própria casa ou não, embora conseguisse ainda vestir-se e cozinhar, sob vigilância. As rotinas de Dulce passaram a ter de ser acompanhadas por Cristina, por José ou por outras pessoas significativas, da família ou do seu círculo de amizades. Estar sozinha passou a ser impensável. Havia o risco de se perder novamente e até de não ser capaz de voltar à residência. O apoio familiar foi muito importante, embora nem sempre tenha sido muito bem recebido por Dulce, apesar de ser apresentado da forma mais camuflada possível. Havia sempre que arranjar um pretexto para que alguém estivesse presente. Questionava o porquê de estar sempre alguém a vigiar. - Olha lá, tens de me manter aqui fechada à chave? Porquê?- inquiria. - Sabes que tem havido muitos assaltos e ficamos melhor e mais seguros se o portão estiver fechado. Se vier alguém toca à campainha. Era a resposta possível. Havia que manter alguma coerência no diálogo, tendo em conta também que o discurso ou os questionamentos de Dulce pertenciam já a um domínio diferente da realidade. Se insistia em ir a casa dos pais e disso não abdicava sem exaltação, uma solução era telefonar a Laura, uma prima, que a ouvia e respondia às suas inquietações como sendo a sua própria mãe. Dulce dizia-lhe então que jantava ali, que só iria para casa no dia seguinte e serenava. Até dentro da vila, José a acompanhava nas suas frequentes deslocações ao Centro de Saúde. Nalgumas atividades recreativas, e sobretudo em locais povoados por muita gente, redobrava-se a atenção. Em setembro de 2011, em Aveiro, perdeu-se por breves minutos, o pânico foi imediato! E agora? Dulce não conseguiria procurar ajuda junto de um agente da GNR e dizer-lhe quem era! Felizmente, a família separou-se e foi encontrada!
Exaustão Os episódios de fuga tornaram-se frequentes. E a confusão espácio-temporal também. Insistia em saber dos seus pais, questionava por que razão não a vinham ver. - Deve ter-lhes acontecido alguma coisa… Tenho de lá ir. Tenho mesmo de ir. Anda comigo, se eles estiverem bem, voltamos. – dizia. Por vezes, curiosamente próximo da hora das refeições principais e ao pôr-do-sol, insistia em ir ver aqueles a quem chamava a sua família (os pais já falecidos há mais de trinta anos e a irmã há mais de vinte), levando inclusivamente alguns objetos: roupas, calçado ou louça. Nessas alturas achava que tinha vindo para aquela casa de manhã, para ajudar e que teria de regressar a casa. Revoltava-se quando não conseguia os seus intentos, argumentando que não lhe podiam fazer aquilo, que tinha o direito de ir embora e que nunca se vira tal coisa! Nalguns desses dias, em que a estratégia do telefonema ou a dispersão da conversa para outros assuntos não surtiam efeito, a agitação levava-a a ser levada para a cama apesar da sua resistência e contestação. Gritava então a plenos pulmões que a deixassem ir embora, que iria mesmo que fosse só com a roupa que tinha vestida, porque queria o seu pai e a sua mãe. A sua família era então vista como um bando de malfeitores que importava denunciar. E fazia-o tão alto quanto podia. Quando contrariada, reclamava veementemente. Fingia acatar a explicação de que não tinha acontecido nada e estavam bem, mas à primeira oportunidade que tivesse, saía sorrateiramente, sem avisar. Era incrível, dada a diminuição das suas faculdades cerebrais, o grau de premeditação destas fugas. Para evitar alguns conflitos, por vezes, ia sendo vigiada à distância por Cristina. Quando disso de apercebia, reclamava: -Não preciso de guarda-costas! Sei muito bem o caminho! Julgam de sou tolinha e me perco?! Não, não sou! O comentário e o tom de voz em que foi proferido ecoaram, com rigorosa exatidão, durante anos na sua mente. Setembro de 2010, dia da festa religiosa da freguesia. Religiosa e cumpridora dos preceitos impostos pela religião, Dulce sempre fora à missa. Nesse dia, Cristina prontificara-se a acompanhá-la, Dulce recusou veementemente, agredindo-a verbalmente. Acabou por a acompanhar à procissão religiosa, mesmo sendo confrontada em público com palavras de rejeição, que provocaram nos circundantes olhares intrigados e insistentemente perscrutadores .
Sentiu-se horrivelmente. Queria poder explicar-lhe que corria, de facto, o risco de se perder, que queria protegê-la. Mas como o fazer, perante alguém a quem devia respeito e que rejeitava a sua presença, argumentando estar em seu pleno juízo? Proteger Dulce
de si mesma era
prioritário, por isso, ignorou os seus comentários, apesar de desgastada emocionalmente. Gradualmente, a desordem ou até o caos passou a evidenciar-se, exigindo constantes reajustamentos. Deixou de conseguir fazer uma refeição completa (cozinhar implica uma série de etapas de previsão e sequencialização), de pôr a funcionar a máquina de lavar roupa, apesar de estar assinalado de forma bastante visível o botão de ligar, ou de fazer a limpeza da casa. A doença foi exigindo à família alterações bastante significativas na sua dinâmica quotidiana, pelo que, desgaste e frustração emocional eram nalguns dias constantes desde manhã até à noite. Dias houve em que Cristina desejou que a noite chegasse para ter um pouco de paz de espírito e tempo para si mesma. Lera algures uma frase que lhe ressoava com frequência na mente: “Sinto-me uma enfermeira a quem não é permitido ter folgas”. Era exatamente isso que sentia. Qualquer atividade tinha de ser cronometrada e planeada ao segundo para que as tarefas domésticas fossem feitas e os cuidados diários se mantivessem. Era impensável fazer algo que surgisse espontaneamente, que não fosse premeditado. Tempos cronometrados para a infinita missão de cuidar de alguém dependente. Refugiava-se nesses momentos naquele que era o seu porto de abrigo de todas as horas. Sentia-se em segurança, protegida, compreendida, amada. Sentia que tinha identidade própria e que a sua vida não se fazia apenas de cuidados para com os outros, ainda que tal pensamento pudesse parecer cruel. Entendia bem os momentos de sofrimento e as angústias pelas quais passa o ser humano, permanecia forte apesar das intempéries por que já passara, sorrindo para a vida e para os outros. Sabia que a vida não era uma meta, mas um caminho. Conseguia antecipar-se a alguns acontecimentos, descrevendo com exatidão as dores da alma que a atingiriam. Essa era uma ajuda preciosa, era como se vivesse antecipadamente a realidade que se lhe depararia. Não falava muito, porque não é a quantidade de palavras que indica a sabedoria. De resto, o olhar e os gestos diziam o indizível e ela precisava apenas do seu abraço e de respirar fundo para se sentir retemperada. Num dia de outono de 2011, José ao sair de casa não fechou o portão, prevendo demorar-se pouco. Ao voltar e apesar do pouco tempo decorrido, procurou-a no lugar habitual -E agora, onde a vou encontrar? Para onde terá ido? – questionava-se. - Deve ter ido procurar a casa dos pais. A casa onde Dulce vivera toda a infância e juventude até casar ficava ao fundo da rua, pelo que as suas deslocações a essa casa na tentativa de procurar os pais eram rápidas. Mas não estava lá. Aterrado e sem conseguir pensar, correu toda a vila. Perguntava a quem encontrava se
alguém a tinha visto. Rapidamente várias pessoas se voluntariaram para a procurar. Percorreram as ruas, viram os poços e terrenos nas proximidades da casa que pudessem ter valas onde poderia ter caído… Depois de alguns longos, melhor dizendo longuíssimos, minutos de procura, José . foi procurar na direção da casa onde vivera alguns meses depois do casamento. Encontrou-a finalmente! Conversava ela animadamente com uma amiga que, sabendo do seu problema de saúde, a retivera um pouco. Nada de mal lhe acontecera, felizmente! A confusão de papéis familiares tornou-se muito frequente. Dirigia-se a José , seu marido, dizendo ser seu padrinho ou pai. Cristina por sua vez, era apelidada de mãe ou irmã. Pensando bem, ao chamar mãe à sua filha até fazia algum sentido, porque os papéis há muito que se tinham invertido. As dificuldades de linguagem aumentaram: as frases começaram a ficar truncadas ou em aberto, dizia por exemplo: “Viste a …, a…, a…, aquela mulher?”), o que prejudicava muito a capacidade de comunicação e não possibilitava aos outros entenderem o que ela pensava ou precisava. O ser humano é um ser em constante mudança e adaptação. Perante esta dificuldade, Cristina passou a observar os gestos e as expressões enquanto ela falava. Essa comunicação não-verbal dava-lhe pistas do que ela queria comunicar. Se é verdade que a vida é uma aprendizagem constante, maior verdade adquire esta premissa para os cuidadores de doentes de Alzheimer. A doença exige uma aprendizagem diária de novas formas de relacionamento, a descoberta de outros meios de comunicação possíveis independentes da fala ou da razão, como sejam o olhar ou o toque. A linguagem passou também a ficar comprometida. As dificuldades de compreensão, de nomeação e de associação decorrentes da falta de memória marcavam cada vez mais frequentemente
o discurso de Dulce, um discurso
desorganizado, vazio, muitas vezes
incoerente.
Vítima de Alzheimer, Dulce experimentou talvez a mais temível de todas as perdas: a perda de si mesma e o esquecimento do seu mundo de afetos, e, em decorrência disso, momentos de ostracismo, de isolamento, de solidão… Diversas vezes Cristina percebera que algumas pessoas vizinhas ou que se diziam amigas de Dulce a visitavam ou perguntavam pela sua saúde, no entanto, quando não recebiam notícias animadoras ou quando dela não recebiam uma reação clara e visível de interesse e agrado, afastavam-se num ápice, sem terem em conta se a sua atuação não estaria a ser cruel, quando pretendiam ser (ou parecer) misericordiosas.
Desde 2012 a dependência aumentou, bem como as suas ausências. Até aí tinham acontecido, sim, mas momentaneamente, recuperando
algum tempo depois. Tornaram-se
evidentes e arrepiantes os momentos em que apresentava um olhar vazio, um olhar perdido e confuso. Começou também a ter lugar incontinência urinária e fecal. Novo redobrar de vigilância, cuidados e preocupações. Dulce, que sempre fora muito recatada, púdica até, nunca ousara mostrar um pouco mais do decote ou qualquer transparência na saia, neste momento permite que a dispam e a lavem. Sem usar as palavras reconhece que precisa dessa ajuda. A mobilidade diminuiu, obrigando-a a ficar longos períodos no sofá. Não reconhece a sua própria casa, negando-a até. Verificou-se alteração dos padrões do sono, sendo frequente ter alucinações em que via muita gente na casa e refugiava-se em qualquer lugar, às escuras, até que alguém a encontrasse. José encontrou-a algumas vezes a meio da noite sentada nalgum lugar da casa, com frio, e sem saber como voltar para a cama. Encontrou-a também diversas vezes a vestir-se a meio da noite e a preparar-se para sair de casa. As chaves de casa já tinham sido há algum tempo retiradas das fechaduras e guardadas num local de difícil acesso. A vida deixou de seguir o fluir natural oferecendo apenas em todos os momentos um terreno árido. Registou-se um declínio neurológico mais rápido, sendo frequentes gestos obsessivocompulsivos como o de esfregar as mãos uma na outra ou o de puxar a ponta de um qualquer pano ou toalha que estivesse perto e rasgar até o desfazer em tiras. Não sabia porque o fazia. Ficava até com um olhar interrogativo por não entender a razão da pergunta “Porque fizeste isso?”. Cristina tinha saudades do seu sorriso, do seu sentido de humor, do seu altruísmo e da sua prontidão para ajudar quem pudesse. Mas sentia saudades, sobretudo, da sua voz! A demência é sempre profundamente trágica, quer para os doentes, quer para a família e amigos mais próximos. Existe, porém uma enorme diferença entre uma tragédia na qual as pessoas estão ativamente envolvidas e a submissão cega e sem esperança às leis do destino.
Com a exigência crescente dos cuidados a ter, é difícil à família não perder a noção de que o seu papel não é o de um profissional, mas sim o de filha, marido, sobrinhos, amigos... É importante não se deixar absolver na totalidade. Há que reaprender a ser, reaprender a adormecer e acordar. Há dias em que se quer dormir para que o tempo passe. Há dias em que se quer ficar acordado com medo dos maus sonhos. Por vezes, o passado recente
torna-se
longinquamente distante, como se fizesse parte de outra vida, tal a rapidez das mudanças provocadas pela degradação neurológica. O que se fazia até há dois ou três dias, agora já não é possível, é preciso mais, mais, sempre mais. Percebia-se a olho nu a sua ausência, a ausência de si mesmo como se de um ácido corrosivo se tratasse. A perda gradual da memória é também o apagar da própria identidade.
Na primavera de 2012 começou a ser necessário tornar as rotinas mais funcionais, nomeadamente as relacionadas com o banho e a higiene diária. José pensou então partir um lagar de vinho e aproveitar esse espaço para uma casa de banho adaptada (com poliban , apoios laterais nas paredes, maior espaço onde fosse possível circular em cadeira de rodas, se necessário, etc.). O lagar já não tinha utilidade. Tempos houve em que se produzia vinho (entre muitas outras coisas: batatas, couve , feijão…) em grande quantidade, chegando-se até a contratar pessoas para a vindima, pagando-se-lhes o dia de trabalho. Havia também o espírito de ajuda e economia trocando mão-de-obra por mão-de-obra. Cristina lembrava-se das vindimas como uma festa, com cantigas, anedotas e o sumo das uvas a escorrer das mãos e a manchar a roupa. José, como sempre gostara de fazer tudo o que pudesse pela sua própria mão, pôs mãos à obra. Tarefa imensa, trabalho hercúleo, moroso e quase infindável, paulatinamente realizado. Dulce não chegaria a usar a casa de banho, tal a rapidez dos acontecimentos que se seguiram.
Vertigem As férias de verão de 2012 de Cristina não tiveram o mar como fundo nem os tons da serra como cenário constante, foram antes um verdadeiro corrupio. Dividiu sempre o tempo entre a companhia de amigos que tradicionalmente a visitavam no verão, em sua casa, e a casa dos pais onde tinha de cuidar da higiene da mãe, das refeições, da roupa… A pouco e pouco foi percebendo maior rigidez muscular, maior apatia, menos interação da mãe com tudo o que a rodeava. E assim continuou inexoravelmente. Setembro aproximava-se a passos largos quando pediu apoio domiciliário. Urgia tomar medidas para que pudesse iniciar mais um ano letivo. O centro social que escolheu foi inexcedível: atento, esclarecedor e diligente. As funcionárias eram, além de muito profissionais, afetivas e cuidadosas, requisitos fundamentais. Os últimos dias de agosto e os primeiros de setembro foram vertiginosos! Dulce deixou de conseguir comer sozinha e até de mastigar, deixou de conseguir andar, embora apoiada por duas pessoas… Foi feita a inscrição na lista de espera do lar. Nessa mesma semana surgiu uma vaga. Nem sabia o que dizer! Dulce nunca fizera sequer um internamento hospitalar e, de um momento para o outro teria de lhe fazer a mala para sair da casa onde vivera quase toda a vida, e onde não sabe se tornaria. Passou a tarde toda arranjando pretextos para adiar essa tarefa. No dia seguinte, a manhã foi agitadíssima. Dulce, deitada na cama, recebeu a visita da enfermeira, do médico e de pessoas amigas e alguns familiares. Os amigos opinavam, uns a favor do ingresso no lar, outros não. Resolutamente, Cristina e o pai mantiveram a decisão tomada e a confiança na instituição que a iria acolher. Vieram visitá-la todos os elementos da família, como se de uma despedida se tratasse, e era-o efetivamente. À tarde, uma tarde de sol, Dulce entrou na cadeira de rodas na carrinha que a levaria. Cristina acompanhou-a com Laura, a prima presente em todos os momentos, e chorou todo o caminho. Nos dias que se seguiram, os lugares vazios, as roupas que permaneciam penduradas ou a
escova na casa de banho desafiavam a lucidez.
A mesa com um lugar a menos,
tenebrosamente diminuta, o silêncio, a falta da agitação dos últimos dias, das inúmeras tarefas, do tempo cronometrado… Imperava um sentimento de vazio, no coração sobretudo. Valia a certeza de que Dulce era bem cuidada. Todas as dores vividas e até as imaginadas são degraus no nosso crescimento pessoal, no fortalecimento da nossa robustez. E cada nova dificuldade permite olhar do cimo desse
degrau e sentir, como o fazem os anciĂŁos com impressionante serenidade, que essa dificuldade passarĂĄ e darĂĄ lugar a uma outra.
A presença As primeiras manifestações da doença de Alzheimer são sempre desafiantes, insidiosas. Inicialmente pequenos lapsos de memória, passando por vezes despercebidos, evoluíram até Dulce esquecer o endereço de casa ou estranhar as fisionomias daqueles com quem sempre viveu. Preservar a vida é o mais arraigado dos instintos, todavia, será sensato mantê-la a qualquer custo? A perda irreversível da memória configura uma dessas situações. Incapazes de lembrar quem somos e de entender o que se passa a nossa volta, de que vale a condição humana? Estas questões, de violência atroz, povoam a mente. Mas há um laivo de vida, há um rosto, uma pele, que são de um ser que pode já não ser, mas que foi e nesse pretérito há vida e razão de ser e de amar. A doença de Alzheimer provoca-nos, desafia-nos a, numa primeira instância, a entender; depois, a viver com ela, conduzindo-nos a descobertas várias, dos outros e de nós mesmos.
O céu pinta-se de um tom cinzento um pouco mais escuro do que o habitual. As folhas das árvores que rodeiam a casa libertam-se dos ramos e viajam pelo ar numa dança sem destino. Sabe bem estar em casa, no conforto. Lá fora, o contraste de um ambiente agreste. Enquanto o vento assobia lá fora, Cristina lembra imagens de sua mãe no lar, da sua pele envelhecida e enrugada, primeiramente na sala de convívio, depois no quarto, já acamada, muitas vezes ausente de si mesma. Recorda, em câmara lenta, a passagem da vida que Dulce tinha até ao estado vegetativo em que se encontra, sem poder fazer nada. E percebe que há elos que se mantêm e que se ela não lhe dá um abraço é porque os seus braços não lhe obedecem. E que se não expressa reconhecimento pela dedicação e pelo amor é porque a ponte se partiu e ela se perdeu no caminho.