Cafe cartel 2014 coletanea pronta para publicacao

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FÓRUM DO CAMPO LACANIANO -­‐ SÃO PAULO Café Cartel 2014

Um saber-­‐fazer que se transmite Textos Café Cartel 2014 Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo Coletânea de textos apresentados no Café Cartel 2014

Silvana Pessoa -­‐ Como se transmite -­‐ a aposta de Lacan? Conrado Ramos -­‐ Do um saber-­‐fazer que se transmite à transmissão de um fazer-­‐ saber Luciana Guarreschi -­‐ Notícias do sertão ou de uma diz-­‐posição Ana Paula Gianesi -­‐ Savoir faire – Savoir y faire. Gisela Armando -­‐ Porque cartel? Ingrid Ventura -­‐ Do cartel ao coral. Paul Kardouz -­‐ Um tetraedro. Glaucia Nagen -­‐ O savoir-­‐faire e a formação do analista. Leandro dos Santos – O primeiro passo: como iniciar um cartel, depois do fogo de palha? Laura Gomes – Sobre o Cartel. Heloísa Ramirez -­‐ O cartel... uma constituição às avessas. Carolina Geocze -­‐ O que “passa” no cartel? Um breve apontamento sobre a questão da transmissão. Daniela Salfaltis -­‐ A questão, o produto e o desejo no cartel. Marina Graminha -­‐ O cartel não parava nunca pra gente saber direito, concertado? 1


Como se transmite -­‐ a aposta de Lacan? Silvana Pessoa Écoutez-­‐vous: savoir-­‐faire, savoir-­‐y-­‐faire Como se transmite a aposta de Lacan nos cartéis? Foi o que me interroguei ao tentar pensar com as minhas colegas de Comissão um nome para este Café Cartel. Rapidamente respondi que não é dando informação ou fazendo “propaganda” deste dispositivo, mas sim utilizando operadores estéticos, polêmicos e éticos, bem fundamentados por Michel Certaux1, que mais se aproximam dos processos de um ato criador. Por operadores estéticos entende-­‐se uma prática que abre espaço numa ordem imposta, tal como o uso da de uma língua. Um gesto poético, por exemplo, que abre um espaço numa língua comum usando-­‐a num reemprego transformante. Por operadores polêmicos entendemos que são aqueles que alguém, ao apropriar-­‐se das informações, colocá-­‐las em série, montá-­‐las de acordo com o seu próprio gosto, pode apoderar-­‐se de um saber e com isso mudar a direção do “totalmente” feito e do “totalmente” organizado; polêmico, pois traça o próprio caminho na resistência do sistema social com operações quase invisíveis e inomináveis, conhecidos na filosofia dos dispositivos. Por último, os operadores éticos, a possibilidade de restaurar a autonomia, criar um espaço de liberdade, uma resistência à imposição externa e a possibilidade de fazer algo próprio. Mais uma vez... encore... como se transmitiu a aposta de Lacan nos cartéis, desta vez, aqui em São Paulo? Em 2005 foi criado um Café Cartel para quem desejasse ser autor de uma lauda, fazer um ato criador. Em 2014, re-­‐colhemos, “colhemos mais uma vez” as suas consequências. Há um movimento de cartel na comunidade. Um saber-­‐fazer, estético, polêmico e ético, que em quase 10 anos se transmitiu. Um conhecimento por contato, um savoir-­‐faire, um sábado por ano, que não objetiva “a” verdade sobre os cartéis, 1

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, vol.2. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

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mas a possibilidade da transmissão de um conhecimento trivial das coisas, aqueles que adquirimos pelo desejo de aprimorarmos uma habilidade, como tocar um instrumento, por exemplo, ou, pelas circunstâncias fortuitas ou não, já que estamos num Campo – o Lacaniano -­‐ e dele extraímos as suas consequências. Uma experiência. Escutem. Écoutez-­‐vous. Uma chamada de uma rádio francesa final dos anos 70. Uma rádio independente, Lorraine Coeur dÁcier (LCA) que inaugurou um acesso livre de pessoas à antena de transmissão. Quem desejava falar, projetar sua voz pelo rádio, dirigia-­‐se ao estúdio ou telefonava. Criou-­‐se com isso uma dinâmica de apropriação do aparelho radiofônico por uma população pouco habituada ao discurso público. A experiência serviu de revelação estimulo para muitos, pois focalizando a atenção num objeto – aquilo a ser transmitido -­‐ e na palavra comum, o francês, no caso – a LCA, segundo seu slogan, Écoutez-­‐vous, restituía à palavra a sua dignidade, como definiu um participante da experiência: “era possível fazer a palavra descer aos lares no mesmo instante em que o ouvinte se tornava ator e forçosamente a palavra subia de novo (...). Era um reflexo da vida, uma vida em desordem, uma liberdade em desordem”, (CERTAU, op.cit., p. 340) que os colocava em outro lugar. Esperamos que neste Café Cartel, mais um na série, aqueles que decidiram tomar a palavra possam fazer-­‐com a leitura e a voz, aqui e agora, mais uma transmissão daquilo que manipularam, combinaram, inventaram, modificaram de tudo que havia como dado, para começar a nossa língua portuguesa, o nosso léxico, e os princípios do funcionamento dos cartéis, todos estes também dados. Ouçam. Écoutez-­‐vous, desta vez, savoir-­‐faire… savoir-­‐y-­‐faire. Uma transformação linguística e semântica que se percebe melhor em Francês e que será trabalhada por alguns hoje aqui. Resta uma questão; o cartel, não mais o Café Cartel, será um savoir-­‐ faire ou um savoir-­‐y-­‐faire? Écoutez-­‐vous/ Escutem: 3


Do um saber-­‐fazer que se transmite à transmissão de um fazer-­‐saber Conrado Ramos Um saber-­‐fazer que se transmite. Esse é o tema de nosso café-­‐cartel deste ano. Começo por interrogar: será o cartel um artifício da ordem do saber-­‐fazer? Se tomarmos o saber-­‐fazer como um conjunto de aptidões e técnicas adquiridas pela experiência, ou como a competência na execução de determinadas tarefas, tendo a dizer que não necessariamente. Caso contrário, que conjunto de conhecimentos seria necessário a um cartelizante? Ou então: como verificaríamos se alguém está apto ou não para arriscar-­‐se num cartel? Uma prova de seleção? Teríamos que supor um corpo fechado e verificável de características esperadas para um bom rendimento dos participantes de um cartel. Seria possível, inclusive, a montagem de consultorias para melhorar o desempenho, o rendimento de um cartel; propor metas e avaliar a produtividade. Não creio, assim, que haja um saber-­‐fazer transmissível de um cartel, muito embora eu deva considerar que a prática de cartéis permita, por meio da experiência, a constituição de um saber-­‐fazer, mas aí trata-­‐se, justamente, de saber o que fazer com este saber-­‐fazer. Aquele que, depois de muitos cartéis adquire a expertise em relação aos cartéis, corre riscos de não mais poder extrair deles a transmissão que implicam enquanto artifício de Escola. É preciso ser tolo dos cartéis, como Lacan propõe sermos tolos do inconsciente. Os não-­‐tolos erram, nos cartéis (ou pelos cartéis), também.

Peço desculpas pela aparente intolerância e pelo tom polêmico que dou a esta

lauda, mas há um risco à concepção de cartel ao se pensá-­‐lo como um saber-­‐fazer que se transmite. Proponho que a subversão do cartel, enquanto artifício de Escola, está na aposta de que possibilita o fazer-­‐saber que se transmite, se operarmos uma inversão no título deste ano, ou ainda, a transmissão de um fazer-­‐saber, se operarmos duas inversões no mesmo título. Num ou noutro, o que quero ressaltar é a dimensão de ato implicada no fazer de um cartel, do qual se espera sim uma produção, um saber que se constitua a partir do forçamento do sentido diante da abertura da significância que o 4


real nos coloca enquanto furo no saber. É este ato de forçamento do sentido, forçamento a ser entendido num sentido lógico ou matemático, como o conceito de limite, que estou chamando de um fazer-­‐saber. De outro modo, caímos no entendimento da produção do saber como do alcance da certeza ou dos a prioris de sentidos que ali estavam desde sempre à nossa espera.

Meu tom polêmico visa destacar que, enfim, um cartel não se funda em a

prioris de saber a ser conquistado e repassado, mas na suspensão real do sentido que nos põe o saber como campo a ser inventado, a partir da experiência, sim, mas enquanto um se virar (savoir-­‐y-­‐faire) com a incompletude da experiência, que não é platônica, mas aponta para um S(A/).

Não se trata, pois, de pensar o cartel como artifício de verificação e transmissão

da veracidade ou falsidade de um saber dado, mas sim da construção/invenção de um artifício a partir de um saber não-­‐todo diante do qual o impossível do sentido prévio coloque a potência da significação como algo que se adquire por um desejo singular de saber, um desejo de um saber singular, um singular desejo de saber. Notícias do sertão ou de uma diz-­‐posição Luciana Guarreschi “Desobstruímos vias e caminhos e lá esperamos que aquilo a que se chama virtude venha a florescer.” (Lacan, S. 7 -­‐ A Ética, p. 19) Conforme prometido, cá estou. Para refrescar a memória dos que estavam e para aqueles que não estavam aqui, é preciso lembrar meu pequeno anúncio do ano passado, que hoje reescreveria assim: “praticante da psicanálise, desejosa de saber, procura comparsas para empreender leituras lacanianas em formato de cartel”. O convite partiu desse desejo e se encontrou com outros três. Engatou, é verdade. Funcionou, é bem verdade. E fracassou, essa a mais impura verdade. Qual a impura verdade desse fracasso? 5


Tenho para mim que o do que se trata em um cartel, do alto de minha de-­‐vasta experiência em cartéis (e só daí posso dizê-­‐lo), é que os chamados cartelizantes, mais-­‐ uns obviamente incluídos, devem ocupar certa posição perante o saber, que resumiria assim: suportar não saber. Desresumindo agora: suportar as idas e não vindas dos outros; suportar que as coisas não se fecham no próximo capítulo; suportar as “viagens” e referências alheias; suportar que as questões mudem ao sabor das leituras encontradas; suportar que a coisa não tem fim, que dirá começo, ainda que as agendas estejam sendo respeitadas; suportar que não há comunicação sexual, que onde se cria haver-­‐se compreendido, o tempo e a pergunta bizarra de um angustiado parceiro, mostrará que a compreensão havia sido rápida demais. Porém, esse suportar não é uma virtuosa tolerância, mas sim um fazer-­‐se suporte desse não saber e, só a partir daí (daí – como advérbio de lugar), contribuir com o saber, que ainda assim será capenga, manco. Diria Freud: “o que não alcançamos voando, alcançamos mancando”. Para quem adora correr, não é manobra fácil. A impura verdade é que essa posição está em praticamente todo não-­‐todo da Psicanálise. “Faz dez anos que avanço no desconhecido”, diria um analisante. “Precisei esperar a leitura do seminário 7, para me aproximar dessa questão”, diria um estudioso lacaniano. Ou ainda “Terei que ouvir suas próximas palavras, numa próxima sessão”, diria um supervisionando analista aguardando as consequências de seu possível “ato”. Não estou dizendo que para fazer cartel é preciso estar em dia com a análise, a supervisão, os congressos, etc, mas sim que essa disposição para aquilo que manca é o que é próprio à Psicanálise, desde a ruptura freudiana. Ruptura que indica o impossível de saber A para se tornar B e com isso dominar (maîtriser) AB. Posição inscrita nas voltas em torno do vazio, seja no divã, nas supervisões, nos cartéis, nas conferências, nas leituras, na vida. Mas é preciso ficar atento: isso não é um vale-­‐tudo, embora às vezes sangre, não é um “toda e qualquer coisa” vale. É uma aposta. Uma aposta de que o repúdio à falta de um saber pronto transmute-­‐se em atração da falta de saber e, num aprofundamento desse universo faltante, favoreça a função fecunda do desejo. Lá onde se cria, criar. Esta a diz-­‐posição de que se trata. 6


Savoir faire – Savoir y faire Ana Paula Gianesi Em “Palavras sobre a Histeria” encontramos uma aposta na transmissão que assim se enuncia: provocar no outro savoir y faire. Trata-­‐se mesmo de saber se virar com o saber, com aquilo que se traduz como efeito de significantes e que aponta para o gozo. Já pudemos recolher muitos dizeres sobre este saber que lança seus dados e que conclui pela satisfação. Um saber que leva em conta o incalculável, um saber que contra-­‐diz o sentido, que equivoca. Um saber real com seus caroços. Dizemos, enfim, que o saber próprio a este savoir y faire é marca da contingência. E é isso que se transmite, contingencialmente. Que a contingencia possa escrever a não relação sexual e assim provar/degustar o impossível, isso faz furo, força o vazio e enoda a quatro. Enodamento que cria um nó heterogêneo, não equivalente aos nós revirados e envelopados da neurose, ou mesmo ao nó contíguo da paranoia. Este savoir y faire que se refere ao conhecer (no sentido sexual), ao reconhecimento no escuro do enodamento pelo sintoma, pode evocar um desejo inédito, ponto de partida do Discurso do Analista. A partir da desordem de um encontro, poder inventar, tentar desembaraçar-­‐se com isto, a cada vez. Neste desembaraço, podemos deixar de viver em cubos. Podemos apostar, com os nós, em outra geometria, que não a da esfera. O savoir y faire do nó não é esférico como o savoir faire. O “se faire” é esférico. A justa recorrência ao imaginário para se fazer ideia do real. Como o discurso corrente gira em círculos, o savoir faire diz respeito ao automatismo do mestre e ao modo de um círculo vicioso, do pensamento em círculos que nos é próprio. Savoir y faire opera ai um corte. 7


A emergência do Discurso do Analista traz a abertura de um saber sem autor (como o supõe o Discurso Universitário), de um saber não sustentado unicamente na fantasia ou na recorrência do saber do escravo (savoir-­‐faire), para dali produzir mais-­‐de-­‐gozar (como o Discurso do Mestre) ou mesmo na séria produção de saber, enquanto impotência de saber (que anima o desejo Histérico). O saber de que se trata, a cada vez que o DA emerge, é um saber circunscrito em sua impossibilidade. Quanta responsabilidade nos abre a contingência. Apostamos na transmissão sem podermos contar (no sentido matemático) com ela. Não podemos predizê-­‐la, prescrevê-­‐la nem mesmo anunciá-­‐la. Talvez ato e silêncio conversem a viva voz na sustentação e no suporte desta orientação. Diante do impossível: que se diga... sem que qualquer coisa garanta que algo como um encontro aconteça. Porque cartel? Gisela Armando Ao decidir constituir um cartel, este parecia ser um espaço para se estudar Lacan. Eu e um amigo, decidimos que montaríamos um. Conversamos sobre isso durante alguns meses até que decidimos. Convidamos mais duas pessoas para integrar isso que sabíamos que não podíamos chamar de grupo, mas que era assim que me parecia. Em algumas reuniões tínhamos quatro pessoas interessadas em trabalhar juntas. Quatro amigos, o que era melhor. Então um problema: e o mais-­‐um? Foi-­‐nos sugerido que escolhêssemos entre os quatro o mais-­‐um, afinal, já éramos quatro. Nenhum de nós se sentia apto a uma tarefa da qual não sabíamos nada. Em teoria, e para nós o cartel era até então apenas em teoria, o mais-­‐um é aquele que faz circular a palavra. Mas o que é fazer circular a palavra? Decididamente, buscamos alguém mais experiente que pudesse estar neste lugar, e quem sabe nos ensinar a fazer cartel! Ensinar implica em ser portador de um saber fazer, mas no nosso caso naquele momento talvez muito mais implicado com o vício de uma época: tudo o que se faz é 8


da ordem de um saber fazer técnico. Em psicanálise o saber fazer é de outra ordem, que hoje penso poder dizer como um saber fazer de um sujeito. Queríamos estudar a direção da cura, porque era o que nos parecia mais próximo das questões da clínica e do lugar do analista. Eu fiquei feliz em não ser um texto como “Psicanalise. Razão de um Fracasso”, no qual me aventurei em 2012 e que até hoje me dá nó nos neurônios. Naquela ocasião descobri que estudar Lacan ia me dar mais trabalho do que eu imaginava. Dizem que algumas pessoas quando começam a estudar Lacan ficam gagas, eu pessoalmente fiquei meio muda. O que há nisso de mutismo vem arrefecendo com a experiência de cartel, que nesta experiência fez circular a palavra. Penso ser este um ato de difícil descrição, porque se trata de fazer funcionar uma apreensão singular do texto lacaniano e da clínica psicanalítica dentro de um grupo de pessoas. Há duas palavras que me ajudam a falar do que tem sido isso: experiência e dispositivo. O cartel tem sido uma experiência. Estudar Lacan com mais quatro pessoas, mas cada uma singularmente. O que é isso? Cai por terra a percepção de que estudaríamos juntos e produziríamos juntos. Não foram poucas as vezes que saí de nossas reuniões sem saber o que fazer com aquilo. Havíamos falado muito, discutido, discordado, concordado, mas não havia uma produção ou um estudar junto. No meu caderno, só as anotações do texto que eu já tinha feito, com um ou outro adendo. Além disso aquelas reuniões não tomavam consistência de lugar. Não era um lugar para estudar Lacan. Estudávamos seus textos, mas não se consistia um lugar, mas talvez um momento de parada do cotidiano, um tempo de falar e ouvir. Precisei de algum tempo para me habituar a trabalhar de maneira diferente do que até então experimentara. Há aí algo de um incômodo, um vazio: não há coordenador, não há aquele que sabe, não há um mestre. As vezes penso que é um dos aspectos que faz com que o cartel não se consista como um lugar. O curioso é que esta forma de trabalhar tem efeitos. A cada encontro, diante do vazio de uma produção conjunta ou da fala de um mestre, surge a pergunta: e o que eu faço com isso? Essa pergunta me remete a pensar em meu trabalho, tanto com os textos 9


quanto com a clínica. O que quero com isso? É a pergunta seguinte. As respostas a essas perguntas vem surgindo aos poucos, mas o efeito primeiro aqui é da implicação que a irrupção dessas perguntas como efeitos vem fazendo surgir. E talvez a implicação seja uma resposta. Quanto a palavra dispositivo, esta é sinônimo de mecanismo. Mas também diz respeito à “que contém disposição”. Na experiência, não um lugar, mas um mecanismo que tem a possibilidade de fazer surgir algo de um vazio que proporciona aos dispostos uma experiência de implicação com a psicanálise. Uma implicação que é de cada um. Do cartel ao coral. Ingrid Ventura* Em 1971, Lacan propõe o dispositivo do cartel no Ato de Fundação da Escola Francesa de Psicanálise: Para a execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo. Cada um deles (temos um nome para designar esses grupos) se comporá de no mínimo três pessoas e no máximo cinco, sendo quatro a justa medida. MAIS UM encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um. [...] Após um certo tempo de funcionamento, os componentes de um grupo verão ser-­‐ lhes proposta a permuta para outro. (p. 235)

No entanto, como não cair na armadilha do discurso do mestre, onde não se considera a inacessibilidade da verdade? Como fazer o lugar do mais-­‐um girar e mostrar que “um” cartel é feito de “uns”? Grande desafio! Lacan nos ensinou que a verdade se mantém inacessível ao saber por conta dabarreira do gozo. No entanto, para que algo desse real seja acessado é preciso que ocorra um casamento fictício entre o saber e a verdade, já que o saber é um meio de gozo e a verdade é irmã de la jouissance (uma mulher!), o que nos remete à inexistência da relação sexual para a linguagem. No cartel, deparamo-­‐nos com a experiência da falta-­‐a-­‐saber, ou seja, com o não-­‐saber. Em Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-­‐Anne (1971-­‐1972/2011), Lacan nos adverte que a verdade é o não-­‐saber. 10


E ao nos depararmos com esta impossibilidade de alcançar a verdade, guiados pelo nosso desejo de saber, o que fazer no cartel? Saber-­‐fazer a partir do que Lacan nos propôs como o aturdimento (1972/2003) da linguagem a partir de lalíngua, rompendo com o princípio de não contradição,onde só pode haverum sentido único para a verdade. Que se prolifere o sentido, então! Não foi à toa que Lacan (1976-­‐1977) recorreu à poesia chinesa, que ao insuflar o vazio mediano produz um canto, onde está em jogo o tom que determina o sentido. Nesse caso, parece possível fazermos uma analogia do cartel com um coral, onde o canto dependedo tom, além da altura e da curva melódicadas vozes. Porém, essa analogia é passível de discussão. O coral possui um regente que, suponho, pode ocupar o lugar de mestre e ter, muitas vezes, momentos de uníssono. O coral/cartel que propomos seria composto por gagos e mudos2, pois diante dessa inacessibilidade da verdade que aponta para um vazio a ser bordejado com lalíngua, cada um vai tentando encontrar o seu tom, o seu estilo, produzindo a ressonância de um algum sentido. No final das contas, ou dos cantos, o que se pode ter a partir do cartel é isso: no um a um de cada voz, inventa-­‐se um cartel/coral, mas que só pode serproduzidoa partir da singularidade. Aí, talvez, seja possível o efeito de furo que, imagino, se espere de um cartel. A produção de cada um e o desenlace do grupo, ao final, que ao levar em conta esse real, mostra a possibilidade de um novo coro de vozes. *Membro da IF-­‐EPFCL-­‐Fórum-­‐SP. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LACAN, J. (1971) Ato de fundação. In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 2003. p. 235-­‐247. ______. (1971-­‐1972) Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-­‐ Anne. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011. 103p. ______. (1972)O aturdito. In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro.Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 2003. p. 448-­‐497. 2

Preciosa contribuição dos colegas Gisela Armando, Conrado Ramos e Ana Paula Pires, durante o Café Cartel de 2014.

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______. (1976-­‐1977)Seminário L’insu que sait de l’unebévues’aile à mourre.Inédito. Um tetraedro Paul Kardous Um tetraedro... Um Um Um Um Um Tetraedro O savoir-­‐faire e a formação do analista. Glaucia Nagem Buscando o significado de “savoir faire” encontrei que ele “é o conhecimento de meios que permite realizar uma tarefa. O termo equivalente em inglês é know-­‐how é regularmente utilizado... O savoir faire é diferente dos outros saberes como o conhecimento científico pois ele pode ser diretamente aplicado a uma tarefa. Uma das limitações do savoir faire é a dependência a um trabalho; assim ele tende a ser menos geral que o conhecimento.” (wikipédia) Apesar de vir de uma fonte não tão nobre ainda assim aproveitarei para o que pretendo apresentar hoje aqui. Se cada um nesta sala recebesse uma placa de cobre e as seguintes instruções: lixe com lixa de metal da mais grossa para a mais fina até polir ficando espelhado. Chanfre 12


a placa para não rasgar o feltro na hora da impressão. Para ponta seca utilize qualquer material pontiagudo e duro e desenhe sobre a placa o que quiser. Todos os materiais dispostos sobre uma mesa. Voilá, teríamos aqui o tanto de gravuras em ponta seca quanto temos de ouvintes? Respondo rapidamente e penso que a grande maioria concorda: não. Precisa de tempo, alguém do lado e ao lado, errar, acertar, ouvir as soluções dadas por outros, ler, olhar o resultado que outros conseguiram. Assim, forma-­‐se com tempo e paciência um gravador. Por que então para a psicanálise tantas vezes se tem a impressão de que alguns acreditem que ler com afinco, escrever com presteza sejam as bases para a formação de um analista? E o "alguém" do lado e ao lado? Por que seria a psicanálise ‘ensinável’? Como transmiti-­‐la? Tempo: tempo de estudo, de análise, de supervisão. Tempo, tempo, tempo. Dar tempo e ter tempo. Tempo de ir até a esquina, de ver uma exposição, de ouvir música, de olhar o que passa, ir ao cinema. Orientação: o que estudo? Onde estudo? Com quem estudo? São perguntas que orientam não só a psicanálise, mas tantas outras disciplinas. Na arte o artista se pergunta o que faz, com quem sua obra conversa, quem antes dele já fez algo semelhante? Não da pra atirar pra todo lado. Diálogo: ser orientado não é sinônimo de fechamento. O que meu vizinho faz que pode entrar numa conversa. Na discordância muito se pode avançar na construção do saber. Questão pessoal: mesmo que estando em um coletivo, em um grupo, sem uma questão pessoal o sujeito papagueia. Não sei quantos aqui já tiveram a oportunidade de encontrar um papagaio pessoalmente. Minha tia tinha um. Gritava “Valéria!” “quero biscoito”. Papagaio é isso, um ser que fala pela voz alheia. Como criar uma voz própria, dizer em nome próprio? Se apresentar: se fazer presente, como diz no popular "dizer a que vem". Como ouvir a voz sem que esta se apresente? Bem, essa singela lista faz parte do que penso ser a base para a formação de um analista. Não à toa são os pressupostos para um cartel funcionar. Parece que se trata do que permite a transmissão de um saber que não é apenas o do conhecimento. Um 13


saber que passa pelo tal tripé: teoria-­‐análise-­‐supervisão. Um saber que inclui o real além do imaginário e do simbólico. Durante a semana me ocorreu uma questão: Sim, assim podemos pensar a transmissão, mas isso faz um analista? Receio que isso cabe em outra lauda por isso deixarei para um próximo encontro. Só adiante, para além da transmissão, tem o autorizar-­‐se analista. Mas isso é outro texto!

O primeiro passo: como iniciar um cartel, depois do “fogo de palha”?

Leandro Alves Rodrigues dos Santos (FCL-­‐SP e EPFCL-­‐Brasil) Começar qualquer coisa na vida, na maioria das vezes, demanda certo esforço, alguma dose de preparação prévia e, como a Psicanálise nos ensina, um cálculo muito bem efetuado. Mas, e quando estamos falando de um cartel, projeto que inclui mais de uma pessoa, mais de um planejamento, de preparação e de cálculo? Qualquer sessão de análise mais corriqueira pode explicitar como é difícil a passagem de um projeto individual para um projeto coletivo. Como se dá então esse processo para que a coisa se desenrole e o cartel de fato aconteça, para além da publicação na lista de “cartéis em funcionamento”? Tais interrogações não são gratuitas, pois minha experiência pessoal demonstra que muitos cartéis morrem antes mesmo de nascer, quase sempre vitimizados por dois fatores bem característicos da neurose, se assim posso dizer: a preguiça e a inibição, elementos que condensam desdobramentos de questões subjetivas muito significativas, já esmiuçadas pela literatura psicanalítica. Nesse sentido há um paralelo com aquele que tenciona começar um cartel e o analisando: comece! Parta já! Movimente-­‐se! Afinal, é mais do que comum bravatas e declarações de intenções na poltrona e no divã e, ao sair do consultório, movimento zero, que se transmutará em queixa de que nada acontece na vida daquele pobre infeliz. Passado esse momento inicial paralisante, cumpre-­‐se definir um tema que o fisgue e que seja suficientemente interessante, um arremedo de objeto que capture sua libido, proporcionando o contato a outros colegas, mesmo que por identificação ao entusiasmo que pode estar se delineando. Posto isso, alguns encontros, quase 14


sempre estimulantes, bastam para se desenhar uma ideia central e, com isso, então eleger um possível mais-­‐um, que se afine ao rol de boas intenções, expectativas e curiosidade. Uma enunciação permanece no ar: seremos aceitos? Conseguiremos? Vingará? Ora, como qualquer projeto coletivo, é impossível saber de antemão aliás, como qualquer análise nas entrevistas iniciais, como o casamento, a escolha de um curso superior e outros nessa mesma linha da condição humana, demasiadamente humana. Parece-­‐me que não se trata de minimizar ou subdimensionar esses aspectos, mas também vale um alerta para que não ocorra o contrário: superdimensionar, dar consistência extrema a esses elementos que, senão ao menos previsíveis, certamente passiveis de enfrentamento, elaboração e outros endereçamentos, como por exemplo, um desvio libidinal para a tarefa em si: afinar as questões, “amarrá-­‐las” com a experiência pessoal, clinica ou não, usar de bom senso na escolha de literatura especifica de apoio, considerar o possível mais-­‐um como um par e, por fim, dignificar o projeto, entendendo-­‐o como uma contribuição para o avanço de nossa Escola e, por extensão da Psicanálise. Isso não é pouco! Sobre o Cartel Laura Gomes Uma vez, muito no começo do meu estudo sobre Lacan, ouvi dizer que existia método distinto de estudo e transmissão do conhecimento. Pela primeira vez, ouvi a palavra cartel dentro da psicanálise. Esse método me pareceu bastante diferente e era difícil compreender o que se propunha. Amigos tentavam explicar: “cartel é tipo um grupo de estudos, só que não é um grupo”. “É um “dispositivo” de quatro pessoas mais um”. Quatro mais um? O que é isso? Quatro pessoas e um Mais Um. E esse um? Ah, ele é o Mais Um. Ele é uma pessoa que está lá para não deixar que o grupo se configure como tal. Para não ter um mestre, sabe? Não. Mestre? Todo ensino tem um mestre! Era o começo do meu 15


estudo em Lacan. Não conhecia os discursos e, para mim, naquele estágio, ler Lacan era um jogo de paciência para driblar a angustia. Assim, decidi que valeria a pena me submeter a esse dispositivo de transmissão de conhecimento. Demorou anos até que eu conseguisse disponibilidade para fazê-­‐lo. Disponibilidade minha e dos outros. Rapidamente entendi que cartel é um dispositivo que de saída funciona como uma convocação para os sujeitos que se interessam por ele. Não é somente estudar um texto, tema e escrever um trabalho. É um método que chega a ser analítico pelo o que ele provoca. Mesmo sem saber exatamente o que é um cartel o sujeito, de alguma forma já é mobilizado e se depara com as próprias resistências. Nos três últimos anos me dediquei a um trabalho que não era dentro da psicanálise. Não era feliz. Então conclui que para manter minha sanidade voltaria a estudar Lacan. Assim três amigos me chamaram para montar um cartel sobre a “direção do tratamento/cura e os princípios do seu poder”. Sem saber se era isso mesmo que gostaria de estudar percebi que este seria um tema intrinsicamente ligado a prática clinica e topei imediatamente. Sentamos para planejar. Nenhum de nós havia participado de um cartel anteriormente, e, por isso, ninguém sabia ao certo como era. O mais um.... O que é um mais um? As respostas mais próximas eram frases montadas como axiomas lacanianos. As perguntas seguiam: “Ele deve ser alguém que domina o tema?” “Ele organizará o estudo?” “Dará diretrizes? Explicará a teoria? Teremos sua aprovação como um grande Outro Mestre Professor?” Não! Isso de alguma forma sabíamos. Mas ainda não sabíamos como ele não seria essas coisas. Depois de algumas frustrações para eleger e encontrar o mais um, uma Pessoa aceitou o convite. Assim inauguramos o cartel que, nesse exato momento, deixou de ser um grupo. Por questões pessoais e por conta de meu outro trabalho, no início, foi muito difícil entrar na dinâmica do cartel. Mas, mesmo com todas as minhas dificuldades, eu 16


não faltava aos encontros. Tinha um compromisso assumido. Ainda não sabia ao certo com quem. Se era comigo e meu desejo de ser analista, ou com meus amigos que me convidaram a viver esse momento único com eles. Mas o que sei, agora, é que só de estar ali, de corpo presente, com o livro na mão, já tinha uma função. Como aqueles pacientes que vem para análise, não falam nada, mas ainda sim não faltam. Não desmarcam. Trabalham num ritmo que nós, como analistas ainda iniciantes, as vezes temos dificuldade de enxergar. Assim, aos poucos, a minha analise pessoal e o cartel foram me convocando a “volta” a psicanálise. É claro que esse era um movimento do meu desejo. Frequentava outros grupos de estudos, mas o cartel teve uma função interessante. Seu horário era no meio do dia, no meio da semana. Mesmo assim, foram pouquíssimas faltas. No final do primeiro ano do cartel, consegui sustentar meu desejo de ser analista decidi trabalhar somente no consultório. O cartel me convocou a estudar. Fui me posicionando, contribuindo mais para as discussões. Apropriei-­‐me de um espaço que me convocava e eu assumidamente aceitava essa convocação. Não que meus colegas ou o mais um me cobrassem presença ou participação. Respeitando o meu tempo, encontrei amparo. Aos poucos fui entendendo a função do mais um. A função de serem quatro pessoas. Quer explicação? Vá viver isso, monte um cartel! Como a discussão de textos num dispositivo como esse é rico. Por mais que tenha tentado nesse texto, ainda não sei ao certo, colocar em palavras como o processo de cartel foi analítico para mim. O quanto ele me ajuda enquanto analista. O quanto ele me ajuda enquanto paciente. Mas me provocou transformações. Inúmeras, que talvez, somente depois, mais além... eu possa contar. O cartel... uma constituição às avessas. Heloísa Ramirez 17


No primeiro tempo, o da organização, realizou-­‐se algumas reuniões que se constituíram numa espécie de sondagem, algo meio que de esguelha, de soslaio, uma tentativa de perscrutar o desejo de cada uma. Encontros que tiveram o objetivo inicial de se constituírem em reuniões organizadoras. No entanto, não conseguimos situar o tema de estudo e menos ainda, escolher o nome daquele que responderia pelo “Mais Um”. Era preciso compor para que o cartel começasse a funcionar. O grupo formado aleatoriamente caminhava a passos curtos em relação ao cartel, mas ia a passos largos em relação à transferência de trabalho e a cada encontro era possível teorizar sobre as experiências e tantos temas da psicanálise. Debruçamo-­‐nos sobre alguns textos na tentativa de entender a função do “Mais Um”. Esta escolha foi a que mais demandou e nos causou. “Ele” deveria minimamente pertencer ao FCL São Paulo, instituição previamente escolhida para endereçarmos nosso trabalho. “Um significante a mais”, o outro da transmissão, da transferência de trabalho, ponto nodal da relação. O “Mais Um”, no nosso entender, também deveria ter uma aproximação de produção com o tema escolhido. Depois, percebemos que isto seria tolice, não era o suposto saber que estava em jogo, o saber epistêmico da mestria ou da pedagogia, mas concluímos que não seria algo tão impertinente se o saber fosse tomado pelo viés do compartilhar a busca de “Um” com o pequeno grupo. O segundo momento foi o da frustração diante da impossibilidade do “mais Um” eleito, que declinou o nosso convite. Novamente ao início, Da fantasia do “Mais Um” ao fantasma (particular) do não cartel. Isto permitiu que um de nós sugerisse “encontros de grupo”, sem a formalização, sem o escopo de cartel. Era o que faltava. Diante da privação, da possibilidade de não constituição, do reconhecimento da castração... o ponto de basta (ao gozo). A provocação funcionou como corte. Terceiro tempo, o da constituição. Escolhemos alguém para falar da dificuldade, do não saber fazer um cartel. Alguém nos acolheu e escutou a angústia do grupo sobre os impasses da constituição e sugeriu que passássemos os impasses a limpo, colocássemos tudo no papel. Um pequeno texto, um parágrafo sobre o percurso vivenciado, um comentário sobre cartel. Diante disto, mais uma reflexão tomou sentido: numa reunião fala-­‐se sozinha e isto não propícia uma 18


produção de trabalho. Ou seja, seria preciso minimizar os efeitos imaginários que se cristalizaram no movimento de grupo, como diria Lacan, seria necessária certa plasticidade para que a coisa pudesse acontecer. Um novo encontro e desta vez tomamos aí a decisão de constituir, de fato, um cartel, nossa resposta à Lacan sobre a estrutura matêmica dos “quatro mais um”, propícia aos efeitos de discurso e de sujeito. Assim elegemos quem nos apontou o caminho da organização como a “encarregada da seleção, da discussão e do destino reservado ao trabalho de cada uma de nós”. (J.Lacan -­‐ Ata de Fundação da Escola Freudiana de Paris, 1964). Mesmo porque ela já havia assumido para si esta função ao nos convidar a falar da experiência vivida. Pois não é isto que se espera de um cartel? “Uma periódica exposição dos resultados, um empuxo à escrita, para que o analista, confrontado com a solidão que caracteriza sua práxis, no encontro-­‐desencontro com seus pares, faça sustentar a psicanálise”? Foi assim que começamos. Às avessas! Há que se começar pelo equívoco para saber para onde ir! O “não” saber-­‐fazer, o avesso, verso e reverso de “saber fazer” foram se transformando ao longo da experiência vivida no savoir-­‐y-­‐faire, que como efeito evocou um desejo singular de saber, à medida que o gozo que estava implicado ali, o de querer saber fazer (um cartel), tomou uma nova feição. O que “passa” no cartel? Um breve apontamento sobre a questão da transmissão Caroline Geocze O cartel não é um grupo de estudos. O cartel é um grupo de trabalho: 4+1. Cada um responsável por uma pesquisa singular referente a um tema de interesse coletivo. Não há coordenador, professor ou alguém que assuma a tarefa verticalizada de difundir conhecimentos. Mas há um lugar e uma função que podem funcionar como transmissão da psicanálise: a do mais um. Diferentemente do discurso do mestre ou do discurso universitário, que produzem dogmas, imperativos ou um conhecimento idealizado, o mais um parte do discurso analítico para fazer o grupo caminhar, para que algo se produza. Mas isso é transmissão? 19


A partir da delimitação das questões nos diferentes momentos do dispositivo pode-­‐se pensar em como o mais um fez incidir nos sujeitos algo de uma responsabilidade, por exemplo: sobre o que cada um irá pesquisar? Qual a sua questão nesse momento do trabalho? O que você tem a dizer sobre isso a partir do seu percurso? Como você pode contribuir? Quer apresentar um trabalho? Quer escrever? Como vai se resolver com as questões do final do cartel? O que caí e o que permanece? E nesses questionamentos o mais um também se inclui, pois tem sua pesquisa particular, declarando interesse no tema escolhido. O cartel é um grupo. Mas é um grupo onde cada sujeito lida com suas questões de forma singular. Ele é feito de uns: um, mais um, mais um, mais um, além do mais um. Para mim, o que passa no cartel é algo que é do um a um. Cada um sozinho, mas com outros. A experiência de cartel convoca o sujeito em um engajamento em sua formação a partir de uma postura ativa na construção de respostas. Ele não recebe pronto, ele constrói junto. O mais um sustenta essa aposta. Esse modo de transmissão da psicanálise mobiliza algo da ordem do desejo. Assim como o psicanalista, o mais um pode provocar o movimento, provocar o sujeito sobre sua formação e sobre sua posição na sustentação de sua fala, por meio no discurso do analista. O cartel produz um desejo que movimenta. Um desejo de saber. A questão, o produto e o desejo no cartel. Daniele Guilhermino Salfatis

Em D’Écolage, Lacan formaliza o cartel em cinco tópicos. O primeiro deles

escrito assim: “ Quatro se escolhem para levar a cabo um trabalho que deve ter seu produto. Preciso: um produto próprio de cada um e não um coletivo.”

Um produto próprio de cada um…uma produção de saber singular.

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O cartel, considerado por Lacan a base da Escola, abre a possibilidade de que cada cartelizante produza um saber a partir de uma questão que é única, sua. E faz toda a diferença do ponto de vista da produção e da (de) formação de um analista.

Poder fazer da sua questão a regra do jogo, permite que o sujeito se coloque

enquanto desejante, movido por algo que o empurra para o trânsito teórico sustentado por vias significantes nascentes de suas encruzilhadas subjetivas.

Claro que em outras atividades de (de) formação construtos teóricos são

metabolizados, conhecimentos são adquiridos, mas não na radicalidade da diferença. Em um seminário, a questão é daquele que profere o seminário, partiu de seu desejo. Em uma rede de pesquisa, a produção é proveniente de um trabalho coletivo. No cartel, o privilégio é dado à singularidade. Singularidade que coloca em cena o desejo de saber via a questão que norteará os trabalhos. Tal questão, índice do desejo, marco inicial do percurso no interior de um cartel, é formulada não só a partir do percurso teórico/clínico, bem como aquilo o que marca sua história, sua estrutura, sua posição.

Norteados pela ética do desejo, tanto na análise, quanto no cartel, algo pede

deciframento, pede escrita. Algo que não quer calar, que por vezes incomoda, outras movimenta, outras paralisa. Um enigma que insiste em se reapresentar e pede texto. Texto que deve ser escrito nas bordas da falta irremediável que faz trabalhar, que faz produzir conhecimento. Deste lugar singular, mas não solitário, afinal um cartel é formado por outros 3 +1, a transmissão se faz na báscula entre intensão e extensão, algo do privado que pode vir a público via produto final. Termino com Lacan também em D’écolage: “ A Causa Freudiana não é Escola, e sim Campo – onde cada um terá liberdade para demonstrar o que faz com o saber que 21


a experiência decanta”. Experiência de cada sujeito, desbravando o seu curso, driblando “o narcisismo das pequenas diferenças” e se descolando da figura do mestre de saber absoluto. Referências Bibliográficas: LACAN, J. (1980). D’Ecolage. In: Letra Freudiana -­‐ Documentos para uma Escola, ano I, n. 0, pg.50. LACAN, J. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. – In: Outros Escritos. Rio de Janeiro, 2003. QUINET, A. (2009). A Estranheza da Psicanálise: a Escola de Lacan e Seus Analistas. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. O cartel não parava nunca pra gente saber direito, concertado? Marina Rachel Graminha Cury “A vida não parava nunca, para a gente poder viver direito, concertado?”. Da frase de Guimarães Rosa, em “Primeiras Estórias”, derivo outra: “o cartel não parava nunca pra gente saber direito, concertado?”. Estou na minha segunda experiência como cartelizante. Em ambas, eu tinha uma expectativa de que seguíssemos uma linha reta, direita, a linha que projetamos pra chegar ao final. Em ambos, aprendendo mais pelas curvas e produzindo ali onde não se sabia que sabe. Os cartéis, para mim, funcionaram nesta lógica. Foi como a Cibele Barbará disse no último café cartel, “de partida declaramos nossas questões de pesquisa. Fio condutor, que se ramifica, se desdobra, sem de fato se fechar. Podemos até segurar obsessivamente o fio da questão, mas em geral a questão anda, passa. Sim, claro. Algo fica. Mas daquilo que se tentou concluir descobre-­‐se certamente que, não era bem isso!”. É pela lógica do não-­‐todo que ele funciona. E funciona. Funcionar, verbo intransitivo, que significa trabalhar, mover-­‐se. Não é a toa que o próprio discuso analítico é definido por seu movimento, por fazer girar os outros discursos. E assim, fazer funcionar o desejo. 22


Retomando a frase de Guimarães Rosa, destaco, que o concertado, dele, é com c. Não é “emendado, remendado, arranjado”3, como seu homofônico 'consertado” com s. É “ajustado, tratado, que não é espontâneo ou improvisado, harmonioso, afinado”4. Particípio de concertar, “é combinar, ajustar, conciliar, acompanhar (com voz ou instrumento)”5. Nestes sentidos que se abrem, o cartel seria um concerto, acompanhado por algumas vozes, que se propõe a fazer funcionar uma sinfonia por algum tempo, mas feita de vozes únicas. Mas nem sempre afinado ou harmonioso. No mesmo texto, Guimarães, sob a voz de um menino, afirma: “a gente nunca podia apreciar, direito, mesmo, as coisas bonitas ou boas, que aconteciam. Ás vezes, porque sobrevinham depressa e inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou esperadas, e então não tinham gosto de tão boas, eram só um arremedado grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam também, de lado e do outro, não deixando limpo o lugar. Ou porque faltavam ainda outras coisas, acontecidas em diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas, para o completo” (p. 227/8). Para mim, o cartel marca este impossível de completude, a castração, a barra. E por isso a produção é possível. E, sem saber, direito, noto que neste pequeno texto eu começo com a literatura (tema do meu primeiro cartel), passo pela formalização do discurso analítico (tema do meu segundo cartel) e termino dizendo do não todo, do impossível de se escrever. Assim, sem ensaio, imprevisto, visto só depois. Como a vida. Referências Bibliográficas: www.priberam.pt Barbará, C. Não é isso. Apresentação oral. Café Cartel. Fórum do Campo Lacaniano-­‐ SP, 2013. Rosa, J. G. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 2001. 3

Dicionario Priberam: www.priberam.pt

4

Idem.

5

Idem.

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