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Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Núcleo de Antropologia Visual - Banco de Imagens e Efeitos Visuais
Editoras Ana Luiza Carvalho da Rocha, UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Cornelia Eckert, UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Comissão Editorial Camila Braz, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — caamilabraaz@gmail.com Fabricio Barreto, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — fabriciobarreto@gmail.com Felipe da Silva Rodrigues, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — felipe.editoracao@gmail.com Guillermo Gómez, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — guillermorosagomez@gmail.com Joanna Sevaio, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — jmsevaio@gmail.com José Luis Abalos Junior, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — abalosjunior@gmail.com Leonardo Palhano Cabreira, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — leo.csociais@outlook.com Manoela Laitano Chaves, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — manoelalaitano@gmail.com Marcelo Fraga, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — mrsfraga@gmail.com Matheus Cervo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — cervomatheus@gmail.com Thiago Batista Rocha, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — thiago.batista@ufrgs.br
Conselho Editorial Angela de Souza Torresan, University of Manchester, Inglaterra Carlos Masotta, UBA, Argentina Carmen Sílvia de Moraes Rial, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Christine Louveau de la Guigneraye, Centre Pierre Neville, Université d’Évry-Val-d’Essonne, Maître de conférences en communication, França Daniel Daza Prado, IDES, Argentina Daniel S Fernandes , UFPA, Universidade Federal do Pará — Campus Bragança Fernando de Tacca, Unicamp, Brasil Flávio Leonel da Silveira, Universidade Federal do Pará, Brasil Gisela Canepá Koch, Departamento de Ciencias Sociales de la Pontificia Universidad Católica del Perú, Perú Jesus Marmanillo, Universidade Federal do Maranhão, Brasil João Braga de Mendonça, Universidade Federal da Paraíba, Brasil Luciano Magnus de Araújo, Universidade Federal do Amapá, Brasil Luiz Eduardo Achutti, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Milton Guran Paula Guerra, Universidade do Porto, Portugal Renato Athias, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Rumi Kubo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Sarah Pink Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, Austrália Sylvaine Conord, Université Nanterre, França www.ufrgs.br/biev/ medium.com/fotocronografias fotocronografia@gmail.com +55 (51) 3308 6647
num. 15 3
vol. 07
Organização Bruno Rodrigo Carvalho Domingues - Mestrando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS), Brasil Igor Erick - Doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA), Brasil Matheus Cervo - Mestrando em Comunicação Social (PPGCOM/UFRGS), Brasil Fotos da Capa e Contracapa Guilherme Fernandes, Gabi Faryas, João Pedro Dutra H. da Silva, José Sena e Everson Borges Diagramação e Editoração Felipe da Silva Rodrigues - Pesquisador Voluntário Biev UFRGS, Brasil Matheus Cervo - Mestrando em Comunicação Social (PPGCOM/UFRGS), Brasil
foto crono Imagem, divers idade sexual e de gênero, decolon ialidade: olhares "de fora do eixo"
2021
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Sumário vol.07 num.15
Imagem, divers idade sexual e de gênero, decolon ialidade: olhares "de fora do eixo"
Imagem, diversidade sexual e de gênero, decolonialidade: olhares “de fora do eixo” — Apresentação
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Curupiranha, a viada da Amazônia
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Caboquética: Sophia vivendo um dia de cada vez
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Femininos transgressivos no maracatu de baque virado
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“Quando estou montada posso ser o que eu quiser”: Corporalidades e identificações nas experimentações Drag de Isabelly Popovick
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Performances Drag Queen em Santarém no Pará
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Bruno Rodrigo Carvalho Domingues Igor Erick Matheus Cervo José Sena Everson Borges
Pedro Olaia Jessica Leite
Kelwin Marques Garcia dos Santos
Rafaela Oliveira Borges
Pedro Jorge Rodrigues de Alcântara
Uma Parada da Diversidade no interior do Rio Grande do Sul Wagner Ferreira Previtali Igor Neto Paz
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5 O cinema como prática de resistência: Olhares fora do eixo e diversidade no curta Abjetas 288
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“(Re)Tratando das Masculinidades Negras”
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DESPIR
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Imagens de Campo — Apresentação fotoetnográfica dos jogos de identidade quilombola do Marajó
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Partejar na Resex Mapuá: parteiras e cenários marajoaras
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Por onde flores serão diversas
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Danielle Parfentieff de Noronha
João Pedro Dutra H. da Silva
Guilherme Fernandes Gabi Faryas
Felipe Bandeira Netto Denise Machado Cardoso Paulo Henrique Santos dos Santos Natalia Monge Zúñiga
Carlos Eduardo de Souza Pereira
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2021 7
Apresentação Bruno Rodrigo Carvalho Domingues ¹ Igor Erick ² Matheus Cervo ³
vol. 07 num. 15 Imagem, divers idade sexual e de gênero, decolon ialidade: olhares "de fora do eixo" Quando submetemos a proposta do dossiê, constante se fazia presente o medo de não conseguirmos a quantidade de ensaios necessários para viabilizar a publicação devido à pandemia e à severa crise sanitária, econômica e, sobretudo, política a qual estamos submetidos. Relembramos dos constantes ataques que sofremos enquanto pesquisadores sexodissidêntes/da sexodissidência no Brasil bolsonarista e ficamos receosos se conseguiríamos trabalhos fotográficos suficientes sobre a temática. Que bom que estávamos errados, que bom que esses estudos resistem em meio a tanto retrocesso, que bom que pessoas transgridem as normas e (r)existem produzindo conhecimento! Com este dossiê, queremos refletir acerca das formas de viver a diversidade sexual e de gênero para além dos grandes centros e/ou dos convencionais campos/temas de pesquisa, situando essa experiência como “fora do eixo” da produção de conhecimento na área temática. Recentemente, escrevemos que há, na concepção de interior e interioridade, questões sócio-históricas que situam a relação interior-capital ou interior-interior a partir das dinâmicas de poder (DOMINGUES; GONTIJO, 2021). No fluxo do sistema-mundo, as grandes cidades reproduzem dinâmicas que se assemelham à lógica centro-semiperiferia-periferia de Immanuel Wallerstein (2001), visto que os contextos metropolitanos ainda são vistos como lócus privilegiado da “civilidade” e da heterogeneidade cultural.
1 - Mestrando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES. E-mail: brunodomingues121@gmail.com; ID Lattes: 6185114678136038. 2 - Doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Pará. Bolsista CAPES. E-mail: igorufopa@gmail.com; ID Lattes: 9213171810596429. 3 - Graduado em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atual mestrando em Comunicação pela mesma universidade. Bolsista CAPES. E-mail: cervomatheus@gmail.com. ID Lattes: 8290548520385605.
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Nas pequenas e médias cidades — sobretudo na Amazônia que é o local de origem de alguns dos organizadores desta edição -, a noção de incivil/rústico/ natural continua a traçar determinações exteriores aos territórios e aos sujeitos. Por isso, esses lugares são vistos como avessos à diversidade sexual e de gênero, percepção esta que gostaríamos de refutar através de fotografias feitas por pessoas que moram e pesquisam nessas territorialidades. Logo, achamos importante falar que essa proposta de dossiê só se concretizou da forma como o apresentaremos devido aos anos de normalidade democrática no Brasil e do processo de expansão das Instituições Federais de Ensino. Com a difusão do conhecimento científico nos interiores, foi possível outras agendas de pesquisa, outros referenciais teóricos e, sobretudo, a produção de conhecimentos que não se amedrontam por serem corporificados. Assim sendo, os ensaios aqui presentes nos brindam com imaginações de mundos possíveis para muito além do que se conformou enquanto eixo. Feito na Amazônia Atlântica, o ensaio de José Sena e Everson Borges, “Curupiranha: a viada da Amazônia”, demarca a ruptura com o que se convencionou chamar de queer por acreditarem que a denominação não contempla as realidades vividas nesta região. Desafixar as fronteiras de gênero tão solidificadas pela norma no contexto analisado é trans-formar-se em curupiranha. Esse termo que demarca uma identidade se tornou um substituto do queer na Região do Caeté, inclusive na sigla do coletivo LGBT[C]I+ de Bragrança, no Pará, onde a relação entre a diversidade e os encantados produz novas autoafirmações num contraponto às generalizações do viver/fazer/desfazer o gênero e a sexualidade no país. É ainda neste pedaço salgado da Amazônia Paraense que Pedro Olaia e Jessica Leite nos apresentam o ensaio chamado “Caboquética: Sofia vivendo um dia de cada vez”. A autoetnografia nos conduz por um processo de cura e reencontro com o (e a partir do) tempo-espaço amazônida. Entre encantarias e caboquices, Sofia (drag queen) nos conduz a Pedro (performer e pesquisador) pela encruzilhada reflexiva sobre o tornar-se caboka. O ensaio interpela um eixo dentro do próprio Estado — as assimilações impostas a Pedro na capital (Belém) versus a caboquice de Sofia no interior (Bragança) -, permitindo-a remodelar e trans-formar o corpo-memória de Pedro pelas margens. “Feminismos transgressivos no maracatu de baque virado” é o belo ensaio assinado por Kelwin Santos. Em contexto de deslocamento, o Maracatu de Recife desembarca na cidade de São Paulo e possibilita que, através das vestes de baianas, homossexuais, mulheres trans e travestis possam, ainda
9 que nos efêmeros giros entre um e outro xaxará, expressar suas identidades de gênero sem a constante vigilância ou ameaça aos seus corpos. Mesmo em uma megalópole, suposto berço das ideias de diversidade, o jogo entre tradição, religiosidade e identidade sexual e de gênero perfaz o Ouro do Congo como um espaço de socialidade LGBTQIA+ alternativo que possibilita o ser e o viver. “Ser o que quiser” é a força motriz para as montações e experimentações da drag queen Isabelly Popovick em Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul, retratada por Rafaela Oliveira Borges. Em uma narrativa visual potente, centrada em Isabelly durante a montação e desmontação, a autora nos conduz por reflexões sobre como as coisas — perucas, cílios, maquiagens, roupas — produzem vida, expressam subjetividades e conformam identidades que estão o tempo todo em jogo, em movimento, em transformação. O ensaio de Pedro Jorge Rodrigues de Alcântara nos possibilita ver a experiência Drag a partir de uma outra parte da Amazônia, o Sudeste do Pará, na cidade de Santarém. Sem espaços de sociabilidade planejados para pessoas LGBTQIA+, diferente de várias cidade dentro do eixo, a noite drag santarena passa a ser um cenário de ocupação. Corpos alheios aos convencionais passam a utilizar da montação para a demarcação de suas presenças por vezes negociadas com o público ali presente. Em “Uma parada da diversidade no interior do Rio Grande do Sul”, Wagner Ferreira Previtali e Igor Neto Paz nos possibilitam tornar a cidade de Bagé um espaço também de “corpos estranhos” (LOURO, 2008), contrapondo o imaginário que se convencionou sobre a região fronteiriça do Estado: uma cidade tradicionalista e um suposto lugar inato do “gaúcho macho”. Em sua 4ª versão, a parada da diversidade coloriu as ruas de Bagé numa variedade de corpos, expressões e performances, colaborando para a desessencialização de um interior cristalizado na ausência de diversidade. Da Região Nordeste, Danielle Parfentieff de Noronha nos conduz à reflexão do cinema como prática de resistência a partir das imagens do making-off do curta ficcional “Abjetas 288” de Júlia da Costa e Renata Mourão. As autoras mostram que, no panorama geral do cinema nacional, constata-se uma presença majoritária de produções feitas por corpos brancos, cisgêneros e masculinos, centralizados no eixo Rio de Janeiro — São Paulo, o que confirma as desigualdades de marcadores sociais da diferença na produção cinematográfica. Como contraponto, mostram e falam sobre seu trabalho com cinema feito fora do eixo.
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Em “(re)tratando das masculinidades negras”, João Pedro Dutra H. Silva nos coloca diante de uma narrativa visual acerca das situações que acompanham as masculinidades negras na construção das subjetividades dos homens, apontando para o limiar de se estar entre as imagens de controle e de liberdade. Esse ensaio fotográfico se conecta com a noção de liberdade como prática de cura dos estereótipos raciais das fotografias de Guilherme Fernandes e Gabi Faryas. Mostrando o “fora do eixo” no centro histórico de Porto Alegre, a série “Despir” retira o “Véu do Racismo” analisado por João Pedro, possibilitando outras masculinidades negras possíveis que não aquela determinada no curso de uma história colonial e colonialista. Felipe Bandeira Neto, Denise Machado Cardoso e Paulo Henrique Santos fazem reflexões sobre os Jogos de Identidade Quilombola da Ilha do Marajó (Pará) a partir da articulação entre masculinidade na luta marajoara e militância política em prol da defesa de seus territórios e identidades. As competições em modalidades esportivas acontecem uma vez ao ano em diferentes localidades, momento em que é feito um panorama das necessidades e reivindicações de cada comunidade. Natalia Monge Zúñiga nos coloca diante do ato de parir e de partejar na Resex Mapuá, em um ensaio que entrelaça paisagens marajoaras, cosmologia, cuidado e gênero entre mulheres ribeirinhas. Os cuidados ao parir representam o momento onde se partilha transmissão de conhecimentos ancestrais entre mulheres que se perduram ao longo do desenvolvimento da criança que passa a ser reconhecido como um filho-afilhado da parteira. Por fim, Carlos Eduardo de Souza Pereira nos acalanta com “Por onde flores serão diversas”, uma esperança vinda da luta de mulheres do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra em uma intervenção feita contra o monocultivo de eucalipto. A intervenção possibilitou um insurgir de flores em meio ao deserto, flores representadas pelas histórias de mulheres negras, agricultoras, extrativistas, ribeirinhas na trincheira de luta contra o agronegócio. Aqui lembro-me do rapper Emicida, do Pastor Henrique Vieira, de Fabiana Cozza e Pastoras dos Rosário: “enquanto a terra não for livre, nós também não somos”. A todas, todes e todos, uma boa leitura.
11 Referências DOMINGUES, Bruno Rodrigo Carvalho; GONTIJO, Fabiano de Souza. Como assim cidade do interior? Antropologia, Urbanidade e Interioridade no Brasil. Ilha: Revista de Antropologia, no prelo, 2021. LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e a teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo Histórico & Civilização Capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
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José Sena ¹ Everson Borges ²
Curupiranha, a viada da Amazônia Resumo: Como parte de uma pesquisa mais ampla sobre o cuidado em saúde sexual da população LGBTI+ na Amazônia Atlântica, o presente ensaio problematiza o queer/cu, por meio de um ensaio fotoetnográfico. O ensaio posiciona a categoria êmica curupiranha com base na experiência artivista da caboka dissidente MC Pokaroupas, em diálogo com os debates sobre pertencimentos e identidades encruzilhadas, feito pela artivista e pesquisadora caboka dissidente José Sena, também amazônida. Palavras-chave: Curupiranha; Interseccionalidade.
Queer;
Artivismo;
Amazônia;
Curupiranha, the amazon queer Abstract: Part of a broader research on the sexual health care of the LGBTI + population in
the Atlantic Amazon, this text discusses queer / cu, through an ethnophotographic essay. The essay positions the émica curupiranha category based on the artivist experience of the dissident caboka MC Pokaralhas, in dialogue with the debates about belongings and crossroads identities, made by the dissident caboka artivist and researcher José Sena, also amazonida.
Key words: Curupiranha; Queer; Artivism; Amazon; Intersectionality.
1 - Artisvista Amazônida Contra-colonial, José Sena é doutor em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ e pesquisador do NUDES — Núcleo de Estudos em Discursos e Sociedade (UFRJ/CNPq). E-mail: senaufrj@gmail.com Orcid: https://orcid. org/0000-0003-4422-8800. Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/5791372279187707 . 2 - Everson Borges, de nome artístico MC Pokaroupas, é artivista amazônida independente. E-mail: eversonborgesn@gmail.com
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Eles não tão entendendo 2x se sou homem ou mulher, o que diabo que tu é? 2x Curupiranha, curipiranha, curupiranha, curupiranha a viada da Amazônia 2x Tu pega ou não pega hein boy? Tu pega ou não pega hein bofe? 2x ³
15 3 - Música de MC Pokaroupas, artista da Amazônia Atlântica, gravada pela Curupira Records, disponível em: https://www.youtube.com/channel/UC6sUr8WmV3rfA1mum212TTQ.
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Caboka ⁴ indígena ⁵, Caboka negra ⁶, periférica, em diferentes colorismos e pertenças, curupiranha ⁷ é uma produção epistêmica que nasce da experiência das bichas racializadas da porção Atlântica da Amazônia ⁸. Termo êmi-
co criado pela artista local MC Pokaroupas, curupiranha nasce como mais uma rasura nos modos coloniais de nomear nossos corpos dissidentes, não apenas no gênero, sexualidade, raça/etnia e classe, mas no território.
Se a linguagen importa, curupiranha cumpre um importante papel de nomear e criar um pertencimento encruzilhado (RUFINO, 2019) e interseccio-
nal (LORD, 1984) para não sermos meramente generalizadas e apagadas sob a escritura do queer. Compreendendo que já sofremos a constante generali-
zação por sermos amazônidas, região que no imaginário sudestino brasileiro e internacional interessa apenas pelas questões capitalistas sobre o meio ambiente, é necessário criarmos “condições de enunciação (…) nos reapropriando das tecnologias de poder que [nos] constituem como abjetos” (PRECIADO, [2008]2019, p.32)
Para além da importante contribuição do ocidente, narrativas dissidentes
locais têm produzido, em lugares pouco visibilizados, suas demandas de luta
e resistência. Baseado em Colling (2016; 2018), argumentamos que há uma genealogia local em curso das sexualidades críticas, o que demanda a recusa a uma identificação direta com o Queer.
Fundamentalmente, a Teoria Queer reúne uma diversidade de reflexões de
natureza socioantropológica, histórica, política, filosófica, linguística que
confrontam normatividades no âmbito do gênero e das sexualidades. Não se trata apenas de gerar uma oposição a tais normas, mas de instaurar um es-
tado de reflexividade que questiona a binaridade, a heteronormatividade, a heterossexualidade falocêntrica compulsória, sustentando, de dentro desse
domínio contestador, a celebração de multiplicidades que se erguem desse exercício reflexivo (MOITA LOPES, 2008; BORBA, 2015; PELÚCIO, 2014; 2016; COLLING, 2018).
17 Sem pretensão alguma de desconsiderar os importantes contributos do movimento Queer ocidental/global para as demandas locais, pretendemos re-
forçar esse lugar político, mas a partir de um repertório que faça sentido para nós e nos ajude nas nossas lutas. O Queer não faz sentido para nós
amazônidas desta porção atlântica. Concordando com a observação de Ben-
to (2017, p. 257) sobre a importância dos nomes, reforçamos as palavras de Malene Mayar, por ela citada: “as palavras me constituem, por isso não pos-
so ser queer”. Se o Queer é uma injúria e por isso seu efeito é forte quando usado subversivamente no contexto anglófono, então se torna mais produ-
tivo o uso de outros modos de nomear. É assim que curupiranha enfatiza nossa experiência territorial-local, levando, inclusive, a integrar a letra “C”
de curupiranha na identidade do coletivo LGBTCI+ de Bragança do Pará, em substituição ao “Q” de queer.
4 -Caboka é um termo êmico. Enquanto a nomenclatura oficial identifica caboclo/cla referindo-se a perspectiva da mestiçagem: branco + índio, neste texto, trata-se daquele/a que vem do mato, que vive outras lógicas nas florestas, praias e rios, e por isso está aliançado/a aos povos originários do Brasil e das Áfricas (ver SENA, 2021). 5 - Embora ser indígena no Brasil seja considerado apenas aqueles/as que são aldeados e reconhecidos em documento pelo Estado, uso o termo como autofirmação política de nossa ancestralidade. 6 - É comum em alguns territórios da Amazônia, devido à forte influência indígena e africana, pessoas se identificarem como negras e indígenas, tendo em vista pertencimentos culturais cruzados e não apenas de cor. 7 - Neologismo que une a palavra curupira e piranha. Curupira, palavra de origem tupi, se refere a um ser mítico da floresta, protetor das matas e que tem os pés virados para trás. E piranha é uma metáfora para pessoas que tem uma vida sexual livre, desprendida de valores monogâmicos. 8 - A Amazônia Atlântica é composta por quarenta e nove municípios divida em três regiões: a Guamá, a Capim e a Caeté (BRITO, SARAIVA & SILVA, 2019; SENA, 2020). Autores/as amazônidas têm utilizado nomes que caracterizam as diferentes regiões da Amazônia no intento de confrontar a generalização colonizadora e subalternizante que historicamente insiste em apagar a diversidade humana, cultural, política, socioeconômica desse vasto território (ver SENA, 2016; 2020; SENA FILHO, 2014; 2018). Nesse sentido, a Amazônia Atlântica, localizada no Estado do Pará, faz parte da Amazônia Oriental constituída pelos estados do Maranhão, Amapá, Tocantins, Mato Grosso e Pará.
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Sob esse horizonte reflexivo, o corpo político da caboka índia-preta amazônida Everson Borges, trans-formada na artista dissidente MC Pokaroupas,
produz uma experiência visual e imagética que juntas debatemos na pers-
pectiva de um ensaio fotoetnográfico (ACHUTTI, 2004). Ao narrar sobre a construção de curupiranha, Everson reflete:
23 eu não me vejo um menino, eu não me vejo uma menina, mas eu gosto muito de maquiagem, adoro passar uma base, um pó, um rímel, sei lá, me vejo um existente assim, sabe (…) mas não sei, não me vejo assim, nem trans, nem travesti, acho que eu sou um pouquinho de cada um, um pouco daqui, um pouco dali (…) por isso eu fiz o curupiranha, sabe, eles não estão entendendo se sou homem, se sou mulher, que diabo?! Curupiranha é uma coisa diferente, não é um homem, não é uma mulher, é uma coisa totalmente diferente, um outro ser, uma outra coisa, é inexplicável, que até a gente não sabe, a curupira, a gente realmente não sabe o que a curupira é né, se ela é homem se ela é mulher, se ela é uma trans, se ela é um viado, se ela é uma sapatona, (…) ninguém consegue afirmar qual é o sexo da curupira. ⁹
9 - Entrevista concedida por Everson Borges em novembro de 2019, no contexto da pesquisa de doutoramento sobre microbipolíticas de resistência e saúde sexual LGBTI+ na Amazônia Atlântica (SENA, 2020).
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“O tempo é o tempo, o tempo é babado com as gatas” ¹⁰
25 10 - Não se trata de legendas, a partir desse momento, destacamos trechos das músicas de MC Pokaroupas.
26 “E pra não dizer que eu sou preconceituoso eu vou chamar o héteros, pra chupar meu ovo”
27 “Hoje eu quero ficar loka, vou revirar meu cu com a mão! Cuidado com a tia!”
28 Referências ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Tomo Editorial, 2004. BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: EDUFBA, 2017. BORBA, Rodrigo. Linguística Queer: uma perspectiva pós-identitária para os estudos da linguagem. Revista Entrelinhas — Vol. 9, n. 1 (jan./jun.), p.91–107, 2015. BRITO, Jakeline. SARAIVA, Joecylene & SILVA, Juliana. Região de integração do rio caeté: uma visão socioeconômica e histórico-cultural do município de Bragança-PA. Revista GeoAmazônia Belém v. 07, n. 13 p. 168–182, 2019. COLLING, Leandro. Dissidências sexuais e de gênero. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2016. COLLING, Leandro. A emergência dos artivismos das dissidências sexuais e de gêneros no Brasil da atualidade. Sala Preta, 18(1), 152–167, 2018. LORD, Audrei. Sister Outsider. Trumansberg: The Crossing Press, 1984. PELUCIO, Larissa. O Cu (de) Preciado ? estratégias cucarachas para não higienizar o queer no Brasil. Iberic@l: Revue d´études ibériques et ibéro-américaines, v. 1, p. 123–136, 2016. PELUCIO, Larissa. Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil? Revista Periódicus. n.1, p.1–24, mai./out. 2014. MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Gêneros e sexualidades nas práticas discursivas contemporâneas: desafios em tempos queer. In: Antônio Pádua. (Org.). Identidades de gênero e práticas discursivas. Campina Grande: Editora da Universidade Estadual da Paraíba, 2008, 13–20. PRECIADO, Paul. Terror Anal: notas sobre os primeiros dias da revolução anal. Trad. De Inaê Diana Ashokasundari Shravya. Imprensa Marginal: Rio de Janeiro, [2008]2019. RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019. SENA, José. Teatrinhos Elétricos: experiências com imagens no Marajó de Florestas. Nova Revista Amazônica, v. 8, p. 1–10, 2016. SENA, José. Corpos Dissidentes e Biopolítica na Amazônia Atlântica: disputas metapragmáticas no cuidado em saúde. Tese — [Doutorado] Programa Interdisciplinar de Pósgraduação em Linguística Aplicada. Rio de Janerio: UFRJ, 2020. SENA, José. Caboka Dissidente: rastros, tezturas, encruzilhadas amazônidas. In: COSTA, Marcilene; MIRANDA, Daniele (Orgs.) Perspectivas Afro-Indígenas da Amazônia. 2021; No prelo. SENA FILHO, José (Org.). Olhares em Movimento — Cinema e Cultura na Amazônia Marajoara. 1. ed. Belém: Açaí, 2014. SENA FILHO, José. Masculinidades e Práticas Sexuais na Amazônia Oriental: notas de campo com base em uma experiência etnográfica. In: CAETANO, Marcio e MELGAÇO, Paulo (Org.). De Guri a Cabra Macho: masculinidades no Brasil. Lamparina: Rio de Janeiro, 2018, p.107–125.
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Pedro Olaia ¹ Jessica Leite ²
Caboquética: Sophia vivendo um dia de cada vez Resumo: Memórias da família remetem à exaltação dos “traços brancos” e o quase apagamento total das descendências caboclas por uma cultura cristã evangélica assembleiana de minha mãe, herdada de meu avô, seu pai, que era pastor. Como as relações humanas estão intrinsecamente ligadas à natureza que se vê e não se vê, caboclos, guias, encantarias, Pambu Nzila, Mavambo e Nkosi garantiram os conhecimentos e oralidades dos antepassados no corpo-amazônia Pedro reverberado em Sophia. Esse ensaio é suplemento à pesquisa acadêmica transdisciplinar sobre a identificação de Sophia na transmarginalidade da encruzilhada entre teoria e prática cabocla em processos de transcendência e cura antes, durante e pós pandemia. Palavras-chave: cuír caboca; neocabanagem; corposamazônias.
transmarginalidade;
caboquética;
Caboquética: Sophia living one day at a time Abstract: Family memories refer “white lines” exaltations and the almost total obliteration of the caboclo descendants by the mother’s evangelical Christian culture, inherited from my
grandfather, her father, an evangelical pastor. The human relations intrinsically was linked to the nature that is seen and not seen, cabocos, guides, enchanters, Pambu Nzila, Mavambo and Nkosi guaranteed the ancestors’ knowledge and orality on my amazon-body Pedro reverberated on Sophia. This essay is a supplement to transdiciplinary academic research about the identification Sophia in the caboca transmarginality of crossroad between theory and practice on transcendence and healing processes before, during and after pandemic. Key words: caboca queer; transmarginality; caboquética; neocabanagem; amazonsbody
1 - Mestre em Linguagens e Saberes na Amazônia (UFPA-Bragança, PPLSA), engenheiro, professor, ator e performer. Bolsista CAPES (2017–2018) E-mail: pedrolaia@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5518-4837 Lattes: http://lattes.cnpq.br/0465791843917688 2 - Mestre em Linguagens e Saberes na Amazônia (UFPA-Bragança, PPLSA), pedagoga e autora das fotos do ensaio. E-mail: etieljessica@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4135-4895 Lattes: http://lattes.cnpq.br/3899704557705100
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33 Quando criança, a palavra cabocla (caboca) no ambiente familiar tinha um
sentido pejorativo. Caboca era aquela pessoa que estava fora dos padrões da sociedade moderna, víamos alguém se comportando diferente do que achávamos normal ou vestindo roupas que achávamos que estava fora da moda
e logo falávamos: “toda caboquinha do interior”. Naquele período de tempo, eu não tinha conhecimento sobre o quanto a colonização impôs regras em
nossos corpos-amazônias ³, e que minha bisavó materna era uma indígena e deixou seu povo em direção à cidade após casar com um homem branco. As ascendências indígenas e africanas estavam ocultadas do histórico familiar
e somente depois de adulto, conversando com minha mãe sobre meus avós, consegui encontrar em seu discurso a exaltação dos fenótipos brancos e o
apagamento das culturas indígenas e negras. O caso de minha família não é um caso isolado, muitos corpos-amazonias desconhecem as histórias des
primeires ⁴ habitantes da região bem como suas relações políticas econômi-
cas e sociais indígenas, cabanas, tapuias e caribenhas que influenciam os corpos-amazônias e como estes se comportam.
3 - Corpos-amazônias são corpos que nasceram, moram e/ou têm estreitas relações com os espaços e os tempos amazônidas (nas Amazônias). Sophia é corpo-amazônia acabocado (OLAIA, 2019), que está na região dos Caetés na Amazônia Atlântica (SENA, 2020a). 4 - Utilizaremos o “e” para desconstruir a binaridade de gênero da língua, como é colocado o uso do “x” na dissertação de Sophia (OLAIA, 2019). Neste ensaio preferimos o uso do “e” para uma linguagem não sexista e que dialogue com a necessidade de inclusão de deficientes visuais no entendimento do texto enquanto utilizadoras de decodificadores para a leitura (LAU, 2017).
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Minha avó, caboca tapuia, apreendeu com a colonização que era proibido
falar sobre povos colonizados, e que sua ascendência europeia valia mais do que qualquer outra ascendência em processos de embranquecimento, dizimação e escravização de nações indígenas e africanas. Minha mãe evangélica, caboca embranquecida, administrava orações e repreensões de demônios para que meu corpo fosse “liberto” das tradições ancestrais fora do
padrão eurocêntrico colonizador. E apesar dos esforços, minha mãe nunca conseguiu apagar de meu corpo-mente memórias, traços, encantarias e en-
cantamento reservados a mim pelos que vieram antes. Da infância, tenho no peito a imagem daquele Rei Preto que via toda noite quando ia dormir na rede. Via o Rei Preto dentro da escápula que sustentava a minha rede,
a escápula parecia uma caverna, como um nicho onde um rei preto estava
imponente sentado em um trono e na sua frente estava um cachorrão preto
deitado, e em seus dois lados haviam dois homens guerreiros em pé com grandes lanças em punho (OLAIA; CORDEIRO, 2016).
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Tu não conseguiu tirar meu Rei Preto de lá de dentro da escápula da rede! Meu Rei Preto, tu não conseguiu tirar!
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A caboca — pessoa que vem do mato e que mantém estreitas relações com
os povos originários do Brasil e das Áfricas, diferente do termo linguístico ca-
boclo que se refere a processos de mestiçagem (OLAIA, 2019; SENA, 2020b) — é conhecedora das ervas, das encantarias, dos causos e causos de vira-
-bicho, é a que adentra as mata (linguagem acabocada), conhece as trilha e já bateu um papo com Curupira e enfrentou Ataíde, que é um encantado do mangal com uma mala odarelzidrimiklircimirckley! ⁵.
39 5 - Do bajubá: mala, alcânia é pênis; odara é enorme; um malão, keridã. Odarelzidrimiklircimirckley é uma variação do bajubá que refere-se a uma odara muito odarèlzidrimi.
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A caboca não necessariamente vévi (linguagem acabocada) nas mata, ela
também pode vever na cidade, na manutenção de seu corpo como resis-
tência mítica, receptáculo de encantaria, que quando esgotado e findo este quebra, mas a energia da encantaria permanece. Receptáculo e encantaria são frágeis e precisam de manutenção para estar neste plano, e por isso é
tão necessário que estejamos cientes de nossas encantaria e cuidemo de
corpo-mente-encanto para que não o perdemo na curva da próxima esquina.
41 Escolhi a fuga do eixo centro-belém, moro em Bragança, município paraen-
se às margens do Rio Caeté e próximo do Mar. Utilizamos a autoetnografia (VERGUEIRO, 2015) como metodologia para compreender processos de com)
vivência com sophia como transmarginal caboca (OLAIA, 2019), encantarias (o que ela sempre foi, e já afirmava desde a época de Sophia Christi: Louvores em Tons de Rosa, vídeo registro, 2013).
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A percepção identitária “curupiranha” — como nos autodenominamos por aqui por essa região (curupiranha vem da música de MC Pokaroupas da região dos Caetés, 2019) — acontece a partir das interações encantadas dos
rios e matas, parcerias, afetos, conversas, dizações, esquizos e desejos do
desejo de se ter um dia. E indígene Timbira (FERNANDES, 2016, p. 17–18) mesmo com seu receptáculo partido ao meio, eterniza-se como corpo-resis-
tencia “pintado para a festa e para a guerra”, citando a oralidade de Arthur Leandro, cabocona porreta, na emergência neo-cabana (LEANDRO, 2013) fi-
lha de Nzazi, Senhor da Jusiça (tradição Bantu), e que agora descansa com Nzambi (Ser Supremo), dançando encantarias que não existem mais aqui.
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A etnofotografia como um trans-acontecimento (MINH-HA, 2015, p. 21–28) da caboca cuír (COLLING, 2016; SAN MARTIN, 2011) trabalhada na ancestra-
lidade dos Caeté, que se isola e sobrevévi a este período de tempo pandêmico pós-pandêmico sem vacina e na tentativa de cura, é minha face antropológica — sophia’s make — que revela a cena de muitos corres e loucuras pandêmicas do aparente “está tudo bem! está tudo ótimo!”, mas na real somos
filhes de Nzumbaranda (Nkissi do mangal, a mamãe mais velha) — Mukuiu Mametu Nangetu ⁶ ! Mukuiu Nzambi! –, tijuco, lama acinzentada do mangue, moldáveis moldadas no que se tem, escorre e vai.
45 O peso cristalizado sai das costas de Pedro e passa para as mãos de sophia-
-massa de modelar caboquética que afina, liquefaz e esvai entre dedos na ressignificação do olhar (MINH-HA, 2015, p. 29–50); na encruzilhada (BIÃO, 2009; OLAIA; SARAIVA, 2019) mato-cidade as tecnologias ancestrais e futuras pelas dobraduras do tempo alteram a percepção de espaço e há caminhos de cura. Laroyê!
6 -Mãe caboca da tradição bantu do terreiro Mansu Nangetu Mansubantu Kekê Neta. Mukuiu é como uma dispensação de bençãos advinda do ser supremo Nzambi.
46 Referências BIÃO, Armindo. A comunicação nas encruzilhadas da Esfinge, de Hermes, Mercúrio, Exu e Maria Padilha: ditos, não-ditos, interditos e mal-entendidos. Revista Famecos, Rio Grande do Sul, v. 16, n. 40, p. 91–96, 2009. CARMO, Eliane Fátima Boa Morte do. História da África nos anos iniciais do ensino fundamen-tal: os Adinkra. Salvador: Artegraf, 2016 COLLING, Leandro. Dissidências sexuais e de gênero. Salvador: Editora da UFBA, 2016. FERNANDES, Estevão. Homossexualidade indígena no Brasil: um roteiro histórico-bibliográfico. Revisa de Antropologia do Centro-Oeste — ACENO, v. 3, n. 5, p. 14–38, 2016. LAU, Héliton Diego. O uso da linguagem neutra como visibilidade e inclusão para pessoas trans não-binárias na língua portuguesa: a voz “del@s” ou “delxs”? Não! A voz “delus”! In: Simpósio Internacional em Educação Sexual, 2017. Anais… Maringá: SIES (UEM), 2017. LEANDRO, Arthur. Güera. Amazônia, lugar de experiência. Orlando Franco Maneschy (Org.). Belém: Editora da UFPA, p.121–37, 2013. Catálogo MC POKAROUPAS, Curupiranha. Música. 2019. MINH-HA, TRINH T. Não pare no escuro (declaração da artista). O cinema de Trinh T. Minh-ha. Rio de Janeiro: Caixa Culural, p. 21–28, 2015. Catálogo. __________________. A busca totalizante do significado. O cinema de Trinh T. Minh-ha. Rio de Janeiro: Caixa Culural, p. 29–50, 2015. Catálogo.
47 OLAIA, Pedro; CORDEIRO, Rosilene. Ferreiros de Ogum. EAVAAM, 2016, Belém-PA. Anais… Belém: EAVAAM 2016. OLAIA, Pedro. Sophia Christi: louvores em tons de rosa. Vídeo registro da performance. 2013. _____________. Transmarginalcaboca: sophias, drags e outras dissidências nas amazônias. Orientador: Prof: Luis Junior Saraiva. 2017. 213f. Dissertação (Mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia) — UFPA, Bragança-PA, 2019. OLAIA, Pedro; SARAIVA, Luis Junior. Fia sophia: performance e antropologia. GIS –Gesto, Imagem e Som, São Paulo, v. 4, n.1, p. 211–236, out. 2019. SAN MARTIN, F. R. Diga ‘queer’ con la lengua afuera: Sobre las confusiones del debate latino-americano. In: CUDS (Ed.). Por un feminismo sin mujeres. Santiago: Alfabeta Artes Gráficas, p. 59–75, 2011. SENA, José. Corpos Dissidentes e Biopolítica na Amazônia Atlântica: disputas metapragmáticas no cuidado em saúde. Tese — [Doutorado] Programa Interdisciplinar de Pósgraduação em Linguística Aplicada. Rio de Janerio: UFRJ, 2020a. __________. Caboka Dissidente: rastros, tezturas, encruzilhadas amazônidas. In: COSTA, Marcilene; MIRANDA, Daniele (Orgs.) Perspectivas Afro-Indígenas da Amazônia. 2020b; No prelo. VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Orientador: Prof. Dr. Djalma Thürler. 2014. 243f. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) — UFBA, 2015.
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Kelwin Marques Garcia dos Santos ¹
Femininos transgressivos no maracatu de baque virado Resumo: O ensaio, parte de uma pesquisa que se insere no projeto temático da FAPESP O Musicar Local, novas trilhas para a etnomusicologia, é um exercício de olhar para os corpos que se constroem como baiana rica, uma importante personagem das cortes de maracatu. Algumas dessas são encarnadas pelo que chamei de femininos transgressivos. As imagens acompanham a preparação d’A Princesa da Zona Urbana e sua participação, com outras baianas, em uma festa do Ouro do Congo, maracatu da Zona Sul de São Paulo. Palavras-chave: corpo, maracatu, baiana, festa.
Transgressive females in “maracatu de baque virado” Abstract: The essay, which is part of a research that FAPESP’s thematic project Local Musicking — new pathways for ethnomusicology, is an exercise of locking to the bodies that construct themselves as baiana rica, an important character in the courts of maracatu. Some of them are embodied by what I’ve called transgressives femininities. The pictures accompany the preparation of A Princesa da Zona Urbana and their participation, with other baianas, in a party of Ouro do Congo, maracatu from the South Zone of São Paulo. Key words: body, maracatu, baiana, party.
1 - Graduando em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Bolsa de Pesquisa de Iniciação Científica FAPESP (01/09/2019–31/07/2021) junto ao projeto temático “O musicar Local: Novas trilhas para a etnomusicologia’’. E-mail: kelwin.santos@usp.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6791-1832 Lattes: http://lattes.cnpq.br/6156131362150086
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O Maracatu é uma manifestação cultural herdeira de tradições híbridas que
misturam desde práticas católicas do baixo medievo ibérico até elaborações
sócio-religiosas afro-ameríndias. Esse universo complexo tem como bastião as nações de maracatu, grupos que tradicionalmente atualizam uma tradição de coroação de realezas negras.
O ensaio apresentado foi elaborado em 2018 e 2019, no contexto de duas
festas do Maracatu Ouro do Congo: II e III Xaxará Congo em Festa. O Ouro
do Congo, importante maracatu de São Paulo, é filiado a duas nações per-
nambucanas: a Nação Encanto do Pina e Nação Porto Rico. O Maracatu Ouro do Congo não constitui uma nação. Existem outras conformações que sur-
giram, sobretudo, após a popularização do maracatu enquanto ritmo com o
movimento Mangue Beat. Os termos para estes novos coletivos ainda estão em disputa, e novas configurações estão surgindo a partir dos fluxos entre Pernambuco e o restante do país.
Algumas leituras sobre a história do Maracatu podem nos levar a uma compreensão de certa vocação para a inovação. Uma das recentes emergências nessa tradição foi a saída de homens como Baianas Ricas. Não é o caso de
construir aqui uma elucidação histórica, mas apontar para a agência dessas figuras presentes em muitas nações e grupos de maracatu. É importan-
te ressaltar que essa figura também sai “no corpo” de travestis e mulheres transgêneras. Aurélio Prates, um importante interlocutor da minha pesqui-
sa, diz sobre as baianas: “Se há homens héteros dançando de baiana, eu,
Aurélio, desconheço. […] E aí eu acho que não é uma coincidência homens gays, não binárias, travestis dançarem na figura da baiana.”
No II Xaxará Congo em Festa, encontrei Aurélio e sua baiana, A Princesa da
Zona Urbana, e pude fotografá-los em um momento liminar em que eles se
mesclam e se constroem mutuamente. Camadas de tecidos, saias, adornos
e alguns metros de uma tira de metal que deve ser moldada para dar forma às saias. A aparente leveza na dança é resultado de um corpo que sabe, que se modifica e que responde.
51 Se a construção da performance do maracatu é multivocal, as respostas desses corpos são muitas. Eles respondem a certas exigências da própria construção do feminino, à música e à imagem das entidades para quem se
está cantando/tocando/dançando. E isso não diz respeito à uma emulação, mas às agências do sagrado que está sendo mobilizado.
Laís Salgueiro Garcez (2017) faz um importante trabalho com o Mestre Maurício, baiana rica da Nação Estrela Brilhante de Recife. Ele aponta a impor-
tância do gingado na dança da baiana rica. Essa enunciação corpórea está imbricada na experiência dialógica do cortejo. Nas minhas conversas com
Aurélio essa compreensão também parece importante: “Essa ginga da musicalidade não é diferente da ginga do nosso corpo”, aponta.
François Laplantine (2015) compreende a ginga brasileira como uma linguagem corporal, como uma forma comunicativa não verbal que se relaciona
simultaneamente com uma certa plasticidade, flexibilidade, mas também
determinação. Esse movimento enérgico, mas rítmico, determinado, mas curvilíneo parece para o autor uma boa imagem para pensar modos próprios de ser brasileiro.
O autor ainda aponta para as tentativas de correção por parte dos colonizadores deste modo oscilante de andar dos negros escravizados. É importante lembrar que um número considerável de “batuques” no Brasil Colonial e Imperial eram considerados divertimentos desonestos, a contrapelo dos
divertimentos honestos permitidos pela Coroa e pela Igreja, como aponta Marianna Monteiro (2011).
Para a compreensão dos estigmas sobre esses corpos, temos de reconhecê-los como herdeiros de uma tradição a todo tempo rechaçada, perseguida,
cujas agências foram consideradas imorais, perversas, desonestas e que, no caso das baianas ricas, é agora atravessado também por uma feminilidade
dissidente e transgressiva. Os femininos que esses corpos aludem, constroem e vivem não cabem em elaborações polares.
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Mariana Leal de Barros (2012, p. 509) aponta saídas possíveis para pensar femininos marginais e discriminados a partir da lógica dual que cinde o fe-
minino entre “as santas e as putas”. Este exercício tem como partida a figura da Pombagira, uma entidade feminina da umbanda que, embora carregue nela as marcas da sensualidade, do não encaixe aos ditames patriarcais, é
amplamente cultuada em todo o país. As saídas são justamente olhar esses femininos-encruzilhada a partir de outras ontologias, de constituições de mundo onde caibam para além dos velhos e sempre renovados estigmas.
Sobre essa possibilidade de existência, sobre esse espaço, Aurélio me disse em uma conversa algo que me ajudou a olhar para as fotos que desejo mostrar:
“A quantidade de travas dançando como baiana é muito grande, e sair do armário é dolorido. Então o maracatu possibilita, pelo menos ali, durante vinte minutos […] aquele momento em que a gente é aplaudido. Isso é muito importante pra autoestima dessas pessoas, como eu também. […] O maracatu que me fortalece na defesa de quem eu sou.”
É esse espaço de vigor, de beleza, e sobretudo de possibilidades de existência que pretendo mostrar com este ensaio.
Referências BARROS, Mariana Leal de. “Os deuses não ficarão escandalizados”: ascendências e reminiscências de femininos subversivos no sagrado. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v.21, n.2, p.509–534, ago. 2013. GARCEZ, Laís Salgueiro. Dança do Maracatu — Aprendendo suas formas com Mestre Maurício. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia, Niterói, v. 1, n. 40, p.128–155, 18 jun. 2017. LAPLANTINE, François. The Brazilian Art of the Ginga: Walking, Dancing, Singing. In: LAPLANTINE, François. The Life of the Senses: introduction to a modal anthropology. Londres: Bloomsbury, 2015, p. 3–13. MONTEIRO, Marianna Francisca Martins. Dança popular: espetáculo e devoção. São Paulo: Terceiro Nome, 2011, 239p.
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Rafaela Oliveira Borges ¹
“Quando estou montada posso ser o que eu quiser”: Corporalidades e identificações nas experimentações Drag de Isabelly Popovick Resumo: Neste ensaio fotográfico, apresento uma narrativa de fotografias sobre o devir Drag de Isabelly Popovick interlocutora nesta pesquisa etnográfica que desenvolvo no doutorado. No verão de 2020, realizamos este ensaio no apartamento de outra artista interlocutora, na cidade de Santa Maria, RS, Brasil. Este espaço tornou-se um ateliê permitindo-nos explorar as temporalidades do fazer-se Drag. Por fim, sobre este processo de construção, ressalto identificações que permeiam e constituem tal processo. Palavras-chave: Drag; Identificações; Corporalidade; Gênero.
“When i’am in drag queen, i can be whatever i want”: Corporealities and identifications in Isabelly Popovick’s Drag experimentations Abstract: In this photographic essay, I present a narrative of photographs about the Drag
becoming of Isabelly Popovick interlocutor in the ethnographic research that I develop in doctorate. In the summer of 2020, we managed this essay in the apartment of another interlocutor artist in the city of Santa Maria, RS, Brazil. This space became a studio, allowing us to explore the temporalities of becoming Drag. Finally, on this construction process, I point to identifications that permeate and constitute such process. Key words: Drag; Identifications; Corporeality; Gender.
1 - Universidade Federal de Santa Maria UFSM — PPGCSociais — Doutorado. Bolsa: CAPES. E-mail: rafaelaoborges@hotmail.com ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0890-5851 Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9824767539802585 Artista: Drag Queen Isabelly Popovick
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“Minha carne é de carnaval o meu coração é igual” Novos Baianos
Em muitas narrativas sobre fazer-se Drag são relacionadas identificações advindas do reality show norte-americano RuPauls Drag Race. Essa relação
é mais bem compreendida dentro de um enquadramento, principalmente,
geracional e de classe. Algumas interlocutoras atrelam suas trajetórias ao referido reality tanto por conhecerem através dele a arte drag, quanto pela predileção às estéticas das Drags que desta competição participam. São jovens, algumas universitárias, que possuem acesso à internet e às platafor-
mas de streaming para assistirem ao programa. Dizer que RuPauls influencia
Drags brasileiras, bem como corrobora em visibilidade para seus trabalhos, são afirmativas relacionadas a diferentes contextos socioculturais e econô-
micos e aos diferentes atores sociais que deles fazem parte. São afirmativas que não constituem regras a serem generalizadas frente à diversidade dos fatos etnográficos.
As/os/es artistas Drag e o circuito on/offline drag de Santa Maria fazem parte do meu tema de estudo desde o mestrado. Santa Maria é uma cidade interiorana localizada no centro do estado do Rio Grande do Sul; conhecida
como “Coração do Rio Grande”, possui importante movimento histórico de
ativismo LGBTQIA+. Através da etnografia que vem sendo realizada, desde 2017, busco compreender as interações das Drags com os espaços urbanos e as mídias digitais. Sugiro a constituição de um circuito drag em um contínuo
on-off de espaços urbanos e ambientes digitais com performances, sociabilidades e experimentações de si das Drags em termos de corporalidades
e deslocamentos dos gêneros enquanto expressões artísticas. Atualmente, estudo também suas experiências “desmontadas” e as diversas identificações que constituem esses sujeitos.
Isabelly Popovick é uma artista Drag Queen santa-mariense e interlocutora desta pesquisa. Em 2009, no carnaval da cidade, se montou pela primeira vez identificando-se como Transformista ². Para essa ocasião considera-
da um marco, agenciou sua entrada no carnaval confeccionando parte das 2 - Identificação historicamente anterior à identificação Drag no Brasil (BORGES, 2019).
“aquendar a neca”, termo nativo que designa o ocultar do pênis, para, assim, vestir seu vestido, peruca, salto alto, bem como desenvolver maquiagem em
seu rosto para viver aquele carnaval montada. Popovick ressalta possuir “fa-
cilidade para encarnar outro personagem […] como a Xuxa ou o Faustão”.
Começando como palhaça em festas infantis da sua escola de samba, assim como Transformista no referido carnaval, passou a perceber que, quando está montada, pode ser o que quiser.
Em 2015, com a cena drag santa-mariense repleta de Drags se montando e começando a se montar, e com os espaços urbanos propiciando festas e performances drag, Popovick passa a identificar-se como Drag Queen. Atual-
mente, é reconhecida e prestigiada no circuito drag local. Entre 2009 e 2015, Popovick ficou algum tempo sem desenvolver em si a montação artística por questões pessoais, mas ressalta que não parou de vestir-se com roupas femininas. Tal fato faz alusão a uma questão importante relacionada às suas
experimentações como Transformista e Drag, pois essas experiências e vi-
vências fazem parte do processo de identificação de Popovick como mulher
trans. Nas suas palavras: “mulher trans, negra, drag, de origem periférica […]” que descobriu montada a saída “do casulo”.
Neste ensaio fotográfico, arrisco-me enquanto fotógrafa amadora realizando uma narrativa de fotografias sobre o devir Drag de Isabelly Popovick. Enfoco na fabricação de sua corporalidade, ao passo que a persona
Drag corporifica-se e experimenta o gênero enquanto expressão artística, e, por fim, no se desmontar Drag. Convido a um olhar sobre esses trânsi-
tos experimentados pela Popovick, pois a não-naturalidade da sua Drag nos permite refletir sobre o quanto todos nós produzimos nossas corporalidades através das “coisas” (MILLER, 2013), como indumentárias, perucas, maquiagens etc. E, reinventando femininos, Popovick repete e subverte
traços culturais que marcam esse gênero, lembrando-nos, também, que
nos constituímos como sujeitos de gênero através das normas socioculturais de nosso tempo (BUTLER, 2014). Assim, usando e abusando da paródia,
Popovick imita identidades de gênero tidas como naturais, demonstrando, com seu corpo fabricado e sua persona corporificada, o caráter cons-
truído dessas dimensões e suas efetivas possibilidades de deslocamentos.
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“coisas” que a ajudariam na fabricação de sua corporalidade, aprendeu a
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Brevemente, então, ressalto o quanto fazer-se Drag é relacional e que muitas identificações Drag são, assim, contingentes. E, quando experimenta-
das “fora do eixo”, revelam-nos através da experiência etnográfica outros marcadores sociais da diferença (BRAH, 2006), constituindo a materialização de uma Transformista, Drag Queen, santa-mariense e brasileira. Isa-
belly Popovick traz em suas identificações, sobretudo, o carnaval como sua
marca registrada, escancarando, ainda, que fazer Drag não se restringe a determinada identidade de gênero e/ou sexual. É uma “mulher trans, negra, de origem periférica, filha de Xangô e Iansã”, que corporifica em si essas e outras múltiplas possibilidades de identificações, suscitando pensar-
mos, desde “Santa Maria da Boca do Monte”, que a “identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2006, p.13).
Referências BUTLER, Judith. Regulações de gênero. Cad. Pagu, Campinas, n. 42, p. 249–274, 2014. MILLER, Daniel. Trecos, Troços e Coisas: estudos antropológicos sobre cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
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Pedro Jorge Rodrigues de Alcântara ¹
Performances Drag Queen em Santarém no Pará Resumo: Este ensaio fotográfico apresenta o modo como a diversidade sexual e de gênero operam através dos corpos dissidentes e da performatividade durante a realização das festividades locais, especificamente na cidade de Santarém, interior da Amazônia. As dez primeiras fotos retratam os preparativos de um grupo de dança chamado “As virgens do beco”. A segunda parte do ensaio é uma coletânea de fotos dos circuitos de festas LGBTQI+. E por último, uma descrição breve de como eu fui inserido no campo. Palavras-chave: performance, performatividade de gênero, interioridade.
Drag queen performances in Santarém — PA Abstract: This photo essay presents the way in which sexual and gender diversity operate
through dissident bodies and their performativity during local festivities, specifically in the city of Santarém, in the interior of the Amazon. The first ten photos depict the preparations of a dance group called “The virgins of the alley”. The second part of the essay is a collection of photos from the LGBTQI + party circuits. And finally, a brief description of how I was inserted in the field. Key words: performance; gender performance; interiority.
1 - Graduando de Antropologia da UFOPA. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5948-7904 Lattes: http://lattes.cnpq.br/2511611563474396
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Carluxa Tsunami era abre alas de um grupo tradicional da cidade, o bloco da pulga. Hipnotizava-me com seu leque gigante, sua maquiagem extravagante e gestos que soavam engraçados e intrigantes. Curiosidade que se foi com o bloco e voltou. Nas noites de pós festas, eu prestava serviços como
barman e garçom em um bar local. Eram tempos de muita agitação: traba-
lhava no período noturno servindo bebidas, petiscos e lanches. O bar era um espaço de sociabilidade conhecido por ficar aberto até o raiar do dia. Minha curiosidade era estimulada por seus frequentadores e frequentadoras, se-
jam homens, mulheres ou até mesmo pessoas que não se enquadravam ao
binômio cisgênero heteronormativo, como as gays afeminadas, travestis e transexuais².
Pelo fato dos seus corpos não serem inteligíveis por todos e todas que estavam presentes no bar, eu percebi que a atenção que se criava naquele mo-
mento era uma forma de tentar entender se aqueles corpos eram ou faziam parte daquela realidade no contexto do interior da Amazônia. O fato é que
essa indagação, principalmente sobre a noite santarena, o local onde ocorria e as pessoas que lá transitavam, permaneceu. Alguns anos se passaram e
eu entrei no curso de antropologia em 2014. Na atividade final da disciplina chamada introdução à etnografia, fomos instigados a adentrar o campo e
produzir relatos de observações sistemáticas. A princípio, busquei algo que estivesse bem distante de meu universo de significação. Escolhi observar um
fenômeno que considerava bastante intrigante naquele momento, a prática
de prostituição de travestis e transexuais em um ponto da cidade. A partir da formação do meu olhar como neófito ao ofício de antropólogo, estava afetado pela célebre passagem do texto de Roberto da Matta (1978), “O ofício do an-
tropólogo, ou como ter Anthropological Blues.”, onde pretendia transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico.
2 - Iniciei esta pesquisa em meados de 2014, quando entrei pela primeira vez no campo conversando com travestis de um ponto de Santarém. A partir disso, passei a fotografar diversos espaços de sociabilidade. Quando delimitei meu tema de pesquisa — Performances Drag Queens em Santarém — , passei a negociar a entrada com vários interlocutores, uns já conhecidos, onde propus inicialmente a troca de fotografias pela estada no espaço. Antes de entrar em qualquer espaço, eu comunicava-os sobre o objetivo da pesquisa. Não tive respostas negativas até então. Todas as fotografias neste ensaio foram distribuídas antes para os respectivos interlocutores. Posteriormente, comuniquei cada um por escrito via mensagens de whatsapp sobre a intenção de usá-los neste ensaio.
85 Paralelamente ao meu trabalho e à Universidade, eu fotografava. No meu
tempo livre à noite, eu registrava algumas festas que ocorriam na cidade de
Santarém. Nessas festas, algo sempre me chamava atenção: a ocorrência de pessoas que se transvestiam nos diversos espaços de festa em Santarém. Travestis, drag queens, gays, transexuais, sapatonas, homens, mulhe-
res, enfim, um universo de significação se descortinava quando enquadrava a imagem por minha lente. Algo me afetou e pôs-me a refletir e não sabia
exatamente o que era. Entretanto, seduzia-me a continuar a fotografar um fenômeno que muita gente olhava com reprovação ou desprezo.
A partir disso, comecei a indagar sobre a normatividade que envolvia nossas performances enquanto corpos generificados e sexualizados no interior. Há uma norma social que diz que um homem não pode se vestir de mulher. E
vice e versa. Mas afinal, existem quantos tipos de homens e mulheres? O que eu observara na noite era completamente diferente do que era estandardizado. Quantos tipos de masculinidade existem? E ainda há aqueles que tencionam ainda mais esta regra, que se transformam quase que completamente.
São as drag queens — mas tenho que explicitar que asdrag queen não são
transformações de gênero. Trata-se de uma performance, um alter ego, uma
persona que o indivíduo (aí dentro, pode se encontrar, homens gays ou não, mulheres, transgeneros e por aí vai) encarna para um fim, seja para entreter por meio de dança ou dublagem (no caso, mais conhecido como lipsync), uma cena teatral cômica ou trágica ou mesmo tudo isso junto. O fato é que há uma construção dinamizada de relações entre o performer drag queen
e o público (seja um consumidor consciente da performance como produto apresentado em festas LGBTQI+ ou não, como um espectador de uma performance de protesto).
Na ocasião, registrei um universo inteiro de performatividades de gênero
naquela noite: em Santarém, assim como no carnaval, é comum que haja inversão de gênero nas apresentações de danças folclóricas. Mas, mais do
que isso, há um fluxo contínuo de reaprendizado sobre noções do binômio homem/mulher.
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Gontijo & Erick (2015) apontam o silenciamento e/ou falta de pesquisas sobre experiências sexuais e de gênero em contextos rurais e interioranos, inclusive em contexto de situações etnicamente diferenciadas como as indígenas, as quilombolas e as caboclas na Amazônia. Desta forma, os autores propõem
a noção de “interioridade”, cujo o significado resulta em “um espaço-tempo que transita entre ruralidade e urbanidade, confundido pela dinâmica da
etnicidade, em contexto amazônico, nas figuras do caboclo e do ribeirinho,
além do indígena e do quilombola” (GONTIJO; ERICK, 2015, p. 31). Esta noção apresentada dialoga com parte deste projeto, onde situa dois tempos-espaços diferentes (90/00–2016/presente) que informam ou pelo menos dese-
nha-se a configuração aproximada das permissividades correntes da época e como a heteronormatividade é/era exercida em um contexto interiorano amazônico.
Referências DA MATTA, Roberto. O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological blues. Boletim do Museu Nacional: Antropologia, n. 27, maio de 1978, p.1–12. GONTIJO, F, ERICK, I. A Diversidade Sexual e de Gênero em Contextos Rurais e Interioranos no Brasil: ausências, lacunas, silenciamentos e… exortações. ACENO: Revista de Antropologia do Centro-Oeste, v. 2, n. 4, 2015, p. 24–40.
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Wagner Ferreira Previtali ¹ Igor Neto Paz ²
Uma Parada da Diversidade no interior do Rio Grande do Sul Resumo: Através do projeto de pesquisa “Memória LGBT em Bagé”, sediado na UNIPAMPA, realizamos o movimento de investigar e evidenciar as vivências de pessoas LGBTTQIA+ na cidade de Bagé/RS. Nesse ensaio fotográfico apresentamos registros da 4ª Parada da Diversidade de Bagé, buscamos evidenciar estas vivências ao pôr em questão (LOURO, 2018) que as cidades de interior não sejam também espaços de subjetividades LGBTTQIA+. Palavras-chave: queer, LGBT, Bagé, parada da diversidade, interior
A Pride Parade in the countryside of Rio Grande do Sul Abstract: Through the research project “LGBTQ+ Memory in Bagé,” based out of UNIPAMPA,
we created a movement to investigate and uncover the experience of LGBTTQIA+ people in the city of Bagé/RS. In this photoessay we present records of the 4th Annual Pride Parade in Bagé to challenge (LOURO, 2018) the notion that rural cities are not also spaces for LGBTTQIA+ identities. Key words: queer, LGBT, Bagé, pride parade, countryside
1 - Mestrando em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pelotas. Email: wagnerfprevitali@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/7141730522834344 2 - Licenciando em Música pela Universidade Federal do Pampa/Bagé. E-mail: ighpaz@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/9120161857592592
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Através do projeto de pesquisa “Memória LGBT em Bagé”, sediado na UNI-
PAMPA, realizamos o movimento de investigar e evidenciar as vivências de pessoas LGBTTQIA+ na cidade de Bagé/RS³. É neste sentido que apresentamos este ensaio sobre a 4ª Parada da Diversidade de Bagé. Reconhecemos
que as paradas possuem força pela afirmação de existências LGBTs no espa-
ço público pois “desafiam as lógicas heteronormativas que haviam lhes dado o armário como única possibilidade” (DA SILVA, 2017, p. 148).
Bagé é uma cidade de médio porte localizada próximo à fronteira na região
sul do Rio Grande do Sul. Presente na região do pampa gaúcho, é conhecida popularmente como uma cidade tradicionalista, que representa uma visão
do gaúcho “macho”, principalmente popularizado pelo personagem “O Analista de Bagé” (2002) de Luís Fernando Veríssimo.
Pensar o interior como também um lugar de vivência para pessoas LGBTs
difere da compreensão de que seriam somente os grandes centros urbanos
responsáveis pelos avanços para essa comunidade. Essa visão da preferência pelas grandes cidades foi caracterizada como uma metronormatividade
por Jack Halberstam (JOHNSON, 2013, p. 9). Haveria nas cidades de interior “um espaço-tempo que transita entre ruralidade e urbanidade” (GONTIJO;
ERICK, 2013, p. 31), sendo as pessoas dessas cidades de interior, assim como
os sujeitos rurais, demarcados por uma discursividade que delimita posições relacionadas “às de crescer, multiplicar e se sustentar com o suor do seu
próprio rosto” (GONTIJO; ERICK, 2013, p. 34), privados assim de desejos que fogem dessa lógica.
Realiza-se então o movimento queer sobre a cidade, a partir dos textos de
Guacira Lopes Louro (2018). Queer, que pode ser traduzido como estranho,
e era um termo originalmente usado de maneira pejorativa contra pessoas LGBTs, assume um posicionamento pós-identitário, sempre se posicionando contra uma normatização dos corpos (SPARGO apud LOURO, 2018, p. 63). A
autora (LOURO, 2018, p. 63–64) então aproxima o queer da expressão gaú-
cha “tá me estranhando”, que remete a uma desconfiança e provocação. É nesse sentido então que optamos por estranhar — queering — a cidade dita ser uma coisa só, com a intenção de trazer um olhar sobre essas multidões queer (PRECIADO, 2011) que também “fazem a cidade” (AGIER, 2015). 1 - O site com o projeto pode ser encontrado no link: https://www.memorialgbtbage.com/
de Bagé, reunindo a comunidade local na praça Silveira Martins, no centro
da cidade, conhecida também como praça do Coreto. Tomando o contexto histórico local, em 2001 surgiu uma proposta na câmara dos vereadores para
a criação do “dia do orgulho gay”, sendo na época rejeitada e retomada em 2013 a partir de uma outra proposta, porém só em 2016 ocorreu a primeira Parada da Diversidade, sendo mobilizada por membros da comunidade
bajeense e não partindo de entidades políticas. As paradas da diversidade
permitem ocupar espaços privilegiados da cidade, ainda que de maneira provisória (DA SILVA, 2017, 148), comandada e coordenada por uma equipe
diretiva, a 4º Parada contou com apresentações artísticas, temáticas raciais e debates sobre questões da saúde física e psicológica.
As praças são ambientes comuns de socialização nas cidades e ao longo das horas que ocuparam aquele primeiro domingo de dezembro a rua se transformou em palco de diversos tipos de apresentações: danças, shows musicais e performances que contavam com artistas e membros da comunidade local e regional. Assim como em Da Silva:
grupos de amigos das escolas, as famílias inclusivas, os estabelecimentos voltados para o público LGBT, os casais de namorados e namoradas, as corporalidades de travestis, transexuais, ursos e “vadias” […] encenam a metáfora da cidade ocupada e do território conquistado (DA SILVA, 2017, p. 163)
À noite ocorreu mais uma transformação e a rua se tornou uma festa emba-
lada por funk e músicas pop. Mesmo que distante 380 km da capital gaúcha, a parada atraiu pessoas das cidades menores, vizinhas de Bagé, que veem nesse momento meios de explorar suas existências.
Aqui afirmamos as cidades de interior como possibilidades de vivências para pessoas LGBTs, lembrando que as paradas “sinalizam uma possibilidade de
poder político e de existência” (DA SILVA, 2017, p. 164), estranhamos a afirmação de uma cidade exclusivamente conservadora e normativa ao “pôr em
questão o que é conhecido e a forma como chegamos a conhecer determi-
nadas coisas e a não conhecer (desconhecer) outras” (LOURO, 2018, p. 65).
Seguimos na luta por perceber e pelo pertencimento dessas multidões que fazem parte das cidades.
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No dia 1° de dezembro de 2019 ocorreu a 4º edição da Parada da Diversidade
104 Referências AGIER, Michel. Do direito à cidade ao fazer-cidade. O antropólogo, a margem e o centro. Mana, v. 21, n. 3, p. 483–498, 2015. DA SILVA, Marcos Aurelio. O CORPO NA CIDADE: FESTA, MILITÂNCIA E OS CAMINHOS DAS POLÍTICAS LGBTS EM MATO GROSSO E NO BRASIL. Amazônica-Revista de Antropologia, v. 8, n. 1, p. 142–171, 2017. GONTIJO, Fabiano; ERICK, Igor. Diversidade Sexual e de Gênero, Ruralidade, Interioridade e Etnicidade no Brasil: Ausências, Silenciamentos e… Exortações. ACENO-Revista de Antropologia do Centro-Oeste, v. 2, n. 4, p. 24–40, 2015. JOHNSON, Colin R. Just queer folks: Gender and sexuality in rural America. Temple University Press, 2013. LOURO, Guacira Lopes. U m corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Autêntica, 2018. PRECIADO, Paul B. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Revista Estudos Feministas, v. 19, n. 1, p. 11–20, 2011. VERÍSSIMO, Luís Fernando. Todas as histórias do analista de Bagé. Objetiva, 2002.2020.
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Danielle Parfentieff de Noronha ¹
O cinema como prática de resistência: Olhares fora do eixo e diversidade no curta Abjetas 288 Resumo: Este ensaio apresenta imagens que foram realizadas durante a filmagem do curta-metragem ficcional Abjetas 288, trabalho de conclusão de curso de Júlia da Costa e Renata Mourão, realizado na Universidade Federal de Sergipe, que narra a busca de Valenza e Joana, duas jovens residentes em uma cidade distópica nordestina, pela utópica Aracaju Gardens. Palavras-chave: Audiovisual. Cinema. Diversidade. Resistência.
Cinema as a practice of resistance: Views off-axis and diversity in the short Abjetas 288 Abstract: This essay presents images taken during the filming of the fictional short film Abjetas 288, a conclusion work by Júlia da Costa and Renata Mourão, from the Universidade Federal de Sergipe, which tells the story of Valenza and Joana, two young people living in a dystopian tropical city, in search of utopian Aracaju Gardens. Key words: Audiovisual. Movie. Diversity. Resistance.
1 - Professora substituta do Departamento de Comunicação Social (DCOS), no curso de Cinema e Audiovisual, da Universidade Federal de Sergipe (UFS). danielledenoronha@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-9167-9674 http://lattes.cnpq.br/5042750795002390
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Este ensaio apresenta imagens que foram realizadas em fevereiro de 2020
no set de filmagem do curta ficcional Abjetas 288 ², trabalho de conclusão de
curso de Júlia da Costa e Renata Mourão, responsáveis pelo roteiro, direção e montagem do filme ³. Como orientadora do projeto, que ainda conta com coorientação da professora Damyler Cunha, estive presente em algumas di-
árias da filmagem e pude observar o desenvolvimento prático do trabalho que eu vinha acompanhando desde o projeto. Assim, captei imagens dos elementos que estão fora do quadro, mas — de diferentes formas — presentes no filme.
Abjetas 288 narra a história de Valenza ⁴ e Joana ⁵, duas jovens que vivem em
uma cidade nordestina num futuro distópico, onde performam o que sentem enquanto vivem nessa sociedade tentando entendê-la. Através do diálogo com aspectos do cinema experimental, acionados principalmente através
da montagem, da trilha sonora e da música techno que dita o ritmo das per-
formances, o filme constrói a busca das personagens pela cidade utópica Aracaju Gardens, ao mesmo tempo em que questiona o capitalismo, o neoliberalismo, a meritocracia e as possibilidades que são apresentadas para as juventudes atuais.
O cinema e audiovisual comerciais brasileiros são majoritariamente produzidos por homens brancos, de classes mais altas, localizados principalmente
no eixo Rio-SP. Como consequência, grande parte dos filmes e demais produtos audiovisuais que chega ao público traz em suas narrativas os pontos
de vistas desse grupo hegemônico, que acaba ignorando outras experiên-
cias e novas possibilidades de imagens, sons e perspectivas. Neste sentido, ampliar a pluralidade do que vemos nas telas, como em relação a gênero, raça, sexualidade, região, etc., passa, necessária e obrigatoriamente, por
ampliar a pluralidade das pessoas que estão atrás e na frente das câmeras em todas as equipes e funções.
2 - Mais informações podem ser encontradas no perfil do Instagram: @filmeabjetas 3 - O curta será apresentado no curso de Cinema e Audiovisual do Departamento de Comunicação Social (DCOS/UFS) no primeiro semestre de 2021. 4 - Interpretada por Dandara Fernandes, uma travesti multiartista, nascida e criada na Bahia, estudante de teatro pela Universidade Federal de Sergipe, usa a sua corporalidade enquanto ferramenta de discurso, poeta, costureira, figurinista, desenhista, DJ e atriz. 5 - Interpretada por Débora Arruda, poeta, performer e por meio do seu contato com o teatro, o corpo passou a ser envolvido nos seus mais diversos trabalhos artísticos.
121 Em 2018, a Ancine divulgou um estudo sobre a diversidade de gênero e raça
no cinema brasileiro a partir da análise dos longas lançados comercialmente em 2016 ⁶. Como exemplo, a pesquisa mostrou que 75,4% dos filmes foram di-
rigidos exclusivamente por homens brancos. As mulheres brancas dirigiram sozinhas apenas 19,7% dos projetos, também exercendo pouco outras funções como roteiro (16,2%) e fotografia (7,7%). Os dados são ainda mais alar-
mantes quando olhamos para a diversidade de raça: naquele ano, nenhuma mulher negra ou indígena assinaram a direção de um longa⁷ e apenas 2,1% dos projetos contaram com direção de homens negros. Essa invisibilidade
também é percebida na grande maioria dos livros e cursos que tratam da história do cinema⁸. Entretanto, apesar das mulheres (e aqui pensando no plural) não estarem presentes na história oficial e nos dados oficiais da produção comercial, elas estiveram, em diferentes momentos, produzindo suas
histórias⁹. Assim como outros grupos subalternizados, que também têm
suas narrativas invisibilizadas nos grandes meios de exibição, as mulheres têm utilizado o cinema e o audiovisual em produções mais independentes,
em distintas metragens, para construir narrativas outras, relacionadas às
suas vivências particulares, (re)pensando — muitas vezes — tanto forma quanto conteúdo.
O cinema e o audiovisual são entendidos como instrumentos potentes tan-
to para auxiliar na reprodução das opressões quanto para serem utilizados como ferramentas de resistência. Por um lado, podem reproduzir as estruturas machistas, racistas, classistas, heteronormativas e colonialistas de nossas sociedades, atuando para que diversas desigualdades sociais e estere-
ótipos sejam naturalizados. Por outro, as produções audiovisuais realizadas por aqueles(as) que não se sentem representados(as) — e satisfeitos(as) —
com o que veem nas telas podem ser também instrumentos de luta, que se 6 - Disponível em: https://www.ancine.gov.br/sites/default/files/apresentacoes/Apresentra%C3%A7%C3%A3o%20Diversidade%20FINAL%20 EM%2025-01-18%20HOJE.pdf. Acesso em setembro de 2020 7 - A pesquisa ainda aponta que nenhum homem indígena esteve a frente da direção de um longa e que nenhum filme nesta metragem foi realizado no Norte do Brasil, questões importantes para pensarmos a diversidade das imagens que circulam no País. 8 - Sobre esse tema, ver Holanda, 2019. 9 - Nos últimos anos temos acompanhado um crescimento de iniciativas tanto de profissionais do audiovisual quanto de pesquisadoras que buscam tornar visíveis os trabalhos realizados por mulheres, como coletivos (Movielas, DAFB e Bra.da); associações (APAN); livros e pesquisas (Holanda; Tedesco, 2017; Holanda, 2019; Lusvarghi e Silva, 2019 e de Noronha e Ezequiel, 2020); e filmes (E a mulher criou Hollywood (2016), dirigido por Julia e Clara Kuperberg, Alice Guy-Blaché: a história não contada da primeira cineasta do mundo (2018), de Pamela B. Green; e À Luz Delas (2019), de Luana Farias e Marina Tedesco).
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tensionam para apresentar novas histórias, rostos, personagens e regiões.
Neste caso, exibem olhares fora do eixo, onde se produzem muitas versões que questionam os padrões impostos pelas estruturas das colonialidades do poder, gênero, ser, saber e ver¹⁰.
Esse é o caso do Abjetas 288. Com uma equipe majoritariamente feminina e LGBT+, o curta apresenta alternativas criativas — e coletivas — para a
produção de um filme com baixíssimo orçamento realizado em um estado que recebe pouco investimento, seja público, seja privado, no mercado au-
diovisual¹¹. Neste sentido, sua produção é um exemplo de resistência, tanto pela forma como foram pensadas e desenvolvidas as personagens, o tema e a narrativa, quanto pelo modo como a equipe trabalhou para sua realização.
Como dito, as fotografias selecionadas para este ensaio, em preto e branco como o filme, têm o intuito de revelar o que está fora de quadro, mas em constante presença em cada minuto do curta. Sem esgotar o tema e as pos-
sibilidades, a ideia é apresentar uma etnografia visual do set de filmagem para pensarmos como a pluralidade atrás das câmeras se traduzirá no que
veremos na frente das telas. Em diálogo com bell hooks (2013), que a partir
de Paulo Freire pensa a educação como um processo transformador, minha proposta é que pensemos cada vez mais o processo transformador do cinema, tanto para quem produz quanto para quem assiste.
10 - Sobre colonialidade, ver autores(as) como Lugones, 2008 e Quijano, 2009. 11 - O problema ainda é ampliado pela forma como o atual governo vem tratando a cultura. Sobre esse tema, ver a reportagem especial que realizei para o site da Associação Brasileira de Cinematografia. Disponível em: <https://abcine.org.br/site/fora-do-eixo-o-cinema-e-audiovisual-para-alem-de-rio-e-sao-paulo>. Acesso em setembro de 2020. Referências DE NORONHA, Danielle; EZEQUIEL, Maíra. Mulheres nas telas e atrás das câmeras. LATC: Rio de Janeiro, 2020. HOLANDA, Karla; TEDESCO, Marina (orgs.) Feminino e Plural: Mulheres no Cinema Brasileiro. Campinas, SP: Papirus, 2017. HOLANDA, Karla (org.). Mulheres de Cinema. Rio de Janeiro: Numa Editora, 2019. HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013. LUGONES, María. 2008. Colonialidad y género. Tabula Rasa, nº 9, p. 75–101. LUSVARGHI, Luiza; SILVA, Camila (orgs.). Mulheres atrás das câmeras: as cineastas brasileiras de 1930 a 2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019. QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: B. S. Santos. & M. P. Menezes (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 73–117.
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João Pedro Dutra H. da Silva
“(Re)Tratando das Masculinidades Negras” Resumo: Este projeto de antropologia visual tem como objetivo principal retratar e debater acerca das diversas expressões das Masculinidades Negras, capturando parte do que é inviabilizado pelo racismo e sexismo. Traz pra tela as vicissitudes imersas sobre a condição social de Negro: Racismo, Violência, Hiperssexualização Passado, Resistência, Presente, Beleza, Potência, Vida, Amor, Cultura, Morte e Fé. Não nos permitimos sequer o ímpeto de registrar qualquer essencialidade ou até mesmo qualquer tipo de completude sobre um tema de tamanha diversidade, ainda um tanto quanto inexploradas. Este projeto consiste numa humilde e sensata tentativa de retratar algumas situações socialmente comuns na construção da subjetividade dos homens negros na sociedade brasileira e ao mesmo tempo fornecer luz à uma singela parte da diversidade de ser dos homens negros, que transcende os arquétipos racistas e sexistas, revelando potencias, sofrimentos e alegrias, que atravessam esse escopo de identitário tão complexo, invisibilizado e assassinado, tanto no eixo da identidade racial e de gênero, quanto de sua agência e importância histórica e social. Palavras-chave: Racismo, Masculinidade, Homens Negros.
(Por)Treating the Black Masculinities Abstract: The main objective of this visual anthropology project was to portray and debate the various expressions of Black Masculinity, capturing part of what was unfeasible due to racism
and sexism. It brings to the screen the immense vicissitudes about the social condition of the black: Racism, Violence, Hypersexualization, Past, Resistance, Present, Beauty, Power, Life, Love, Culture, Death and Faith. We do not even allow ourselves the urge to register any essentiality or even any kind of completeness on a topic of such diversity, still somewhat unexplored. This project consists of a humble and sensitive attempt to portray some socially common situations in the construction of the subjectivity of black men in Brazilian society and at the same time to provide light to a part of the diversity of to be a black men, that transcends racist and sexist archetypes, revealing potentials, sufferings and joys, which cross this scope of identity so complex, invisible and murdered, both in terms of racial and gender identity, as well as its agency and historical-social importance. Key words: Racism, Masculinity, Black Men.
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Este projeto de antropologia visual tem como objetivo retratar e debater acerca das diversas expressões das masculinidades negras, capturando par-
te do que é inviabilizado pelo racismo e sexismo. Traz à tela as vicissitudes imersas da condição social do negro: racismo, violência, hiperssexualização, passado, resistência, presente, beleza, potência, vida, amor, cultura, morte e fé ¹.
O imaginário social construído sobre os homens negros que vigora até os
dias de hoje é fruto da herança histórica, política e cultural do colonialismo.
O estigma sobre os homens negros ainda repousa sobre a alegoria caricata de seu corpo — a sua anatomia e a sua forma física (Cleaver, 1971; Fanon,
2005). Este imaginário, no Brasil, é fruto do discurso racial-biologizante utilizado para justificar a escravidão e a dominação dos humanos europeus sobre os povos destituídos de humanidade — essa condição marcadamente
europeia e colonial (Ferreira da Silva, 2019). Esse mecanismo de domina-
ção sofisticou-se e se diluiu nas dinâmicas raciais brasileiras que, apesar de
sustentar uma nítida e crescente desigualdade racial e uma intensificação
contínua nos números de violências e mortalidades contra pretos negros e pardos (Souza, 2005), paradoxalmente ostentam uma fantasiosa harmonia e igualdade típica da democracia racial.
O racismo alinhado a uma política das masculinidades (Connell; Messersch-
midt, 2005; Connell, 2005) que significa a disputa pela posição de hegemonia
sobre ser “homem de verdade” (Fry, 1982; Fry; MacRae, 1983) subalterniza o homem negro, aprisionando-o numa espécie de estigma do “criado supermasculino”, como chama Edrige Cleaver (1971). A afirmação de uma subjetividade masculina estigmatizada como hipersexual-viril, violenta e irracional
acaba se tornando a principal norma de masculinidade, via de acesso e re-
conhecimento de uma suposta humanidade. O racismo junto ao sexismo, ao machismo e à LGBTQIA+fobia tendem a desumanizar, degenerar e justificar
a dominação e o extermínio de homens negros. Forjam socialmente esses homens como seres matáveis, expondo-os aos riscos de morte, matando-os e fazendo-os viver sobre condições de mortos-vivos (Foucault, 1999). Dessa forma, demonstra-se como e quanto o racismo é determinante na construção das masculinidades dos homens negros (Pinho, 2004; Faustino, 2014).
137 O ensaio foi realizado como trabalho de conclusão do curso de fotografia oferecido pela Central Única de Favelas (CUFA) de Madureira, Rio de Janei-
ro (RJ). A proposta de produzir um ensaio sobre questões sociais ligadas às masculinidades negras surgiu durante o curso de fotografia, trazendo para as lentes o tema que pesquiso em minha monografia da graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). As fotografias foram feitas em um único dia, em lugares marcantes à história afro-bra-
sileira no centro da cidade do Rio devido à memória colonial e escravocrata como o Campo de Santana, o Jardim Suspenso do Valongo e o Cais do Va-
longo. Trata-se de uma tentativa de retratar algumas situações socialmente comuns na construção da subjetividade dos homens negros na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, fornecer luz a uma singela parte do que é o
ser para esses homens. A vontade é de transcender os arquétipos racistas
e sexistas, revelando potencias, sofrimentos e alegrias que atravessam esse
escopo de identidade que é invisibilizado e assassinado — tanto no eixo do racial e do gênero quanto no da sua agência e importância sociohistórica.
A narrativa construída pela sequência de imagens, ainda que fora de uma formatação cronológica ou linear retilínea, empenha-se em “desvelar” re-
alidades que são historicamente negadas, assassinadas e violentadas, por debaixo do “véu do racismo” e do patriarcado. Para além do “Preto e Branco”,
busca-se vislumbrar e reconhecer as diferentes cores, vibrações e possibilidades de vida que extrapolam o monocromático, o binário e o racista.
As telas coloridas representam potências e esperanças, carregam traços de
resistência e diversidade. Em suma, são sobrevivências férteis que colorem
o horizonte onde as terras já estão encharcadas de sangue, e semeia vida na cidade dos mortos-vivos.
Neste trabalho, pesquisador e objeto se encontram sobre as lentes da câmera. As telas não são produtos do esforço de fotografar o exótico, movimento
contrário à antropologia visual clássica. O próprio pesquisador construiu o campo visual diante de suas lentes, já que a masculinidade negra está presente em todas as esferas da produção do ensaio. De uma forma bastante
artística, sem medo de se ater às fronteiras entre arte e ciência, abordam-se com minuciosa sensibilidade temas de extrema violência e poder através de
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fotografias que foram planejadas pelo fotógrafo. Os homens nas fotografias são amigos de grande estima que sempre provocaram-me aos debates, conversas e inspirações acerca da masculinidade
negra e se tornaram referências pessoais de masculinidades e de críticas a esta. Para além de suas imagens, suas respectivas ideias, pertencimentos e relatos estão presentes no ensaio.
1 - Gostaria de agradecer imensamente ao Bruno Domingues pela paciência, tempo e dedicação em me ajudar na construção e finalização deste texto.
139 Referências CLEAVER, E. Alma no exílio: autobiografia espiritual e intelectual de um líder negro norte americano. Trad. Antonio Edgardo S. da Costa Reis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. CONNEL, R. W. Políticas de masculinidade. Educação e Realidade, Porto Alegre. v.20, n.2, p.185–206, 1995. CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Hegemonic Masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, n.19, v.6, p.829–59, 2005. FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. Rio de Janeiro. Fator, 1983. FAUSTINO, D. M. O pênis sem falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. In: BLAY, E. A. Feminismo e masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violências contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. p. 75–104. FERREIRA DA SILVA, D. A dívida impagável. Casa do Povo: São Paulo, 2019. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FRY, P. Da hierarquia à igualdade. In: FRY, Peter. Para Inglês Ver: Identidade e Política na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. FRY, P.; MACRAE, E. O que é homossexualidade. Brasiliense. 1983. PINHO, O. O efeito do sexo: políticas de raça, gênero e miscigenação. Cadernos PAGU, Campinas, 2004 _________ Relações raciais e sexualidade. In: PINHO, AO., and SANSONE, L., orgs. Raça: novas perspectivas antropológicas [online]. 2nd ed. rev. Salvador: EDUFBA, 2008, pp. 257–283. SOUZA, E. R.. Masculinidade e violência no brasil: contribuições para a reflexão no campo da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n.1, p. 59–70, 2005. SOUZA, H. R. C. O duelo viril: confrontos entre masculinidades no Brasil mestiço. In: SOUZA, R. R; SOUZA, H. R. C. Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2019. p.21–52. SOUZA, R. R. As representações do homem negro e suas consequências. Fórum Identidades, ano 3, v.6, jul.-dez. 2009.
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Guilherme Fernandes ¹ Gabi Faryas ²
DESPIR Resumo: Em uma sociedade estruturada pelo racismo, concretizar processos de cura se torna uma necessidade básica para homens negros. As fotografias que compõem a série Despir foram realizadas no Centro Histórico de Porto Alegre, mais especificamente, na Praça da Alfândega. As fotografias foram produzidas por nós, dois homens negros e artistas independentes, Guilherme Fernandes (fotógrafo) e Gabi Faryas (performer), com o objetivo de resgatar a autonomia de nossas narrativas e o olhar sobre nossos corpos. Palavras-chave: Masculinidade Negra; Transformação; Imagens de Controle.
UNDRESS Abstract: In a society structured by racism, healing processes becomes a basic necessity for black men. The photographs that make up the “Despir” series were taken at the Historic Center of Porto Alegre, more specifically at Praça da Alfândega. The photographs were produced by us, two black men and independent artists, Guilherme Fernandes (photographer) and Gabi Faryas (performer), with the aim of rescuing the autonomy of our narratives and the look on our bodies. Key words: Black masculinity; Transformation; Controlling Images.
1 - ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5389-471X 2 - ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4490-8315 Lattes: http://lattes.cnpq.br/2343461922332468
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A obra DESPIR nasceu da necessidade de falar sobre o homem preto e suas particularidades em relação à masculinidade e à liberdade. Com essa obra,
buscamos questionar os mecanismos de defesa que adotamos automaticamente perante o racismo e nos libertarmos dos mesmos. Também procuramos debater acerca da imagem do homem negro na sociedade brasileira e
como essa imagem atravessa as percepções e construções de nossas identidades.
Em uma sociedade onde policiais “confundem” guarda-chuvas com fuzis quando portados por homens pretos, quais mecanismos de defesa tais ho-
mens precisam para sobreviver sob esse olhar? Como podemos nos esquivar dessa ameaça? Como essa ameaça influencia nossa experiência de vida enquanto homens pretos? O quanto tal ameaça nos forma ou deforma?
Diante dessa realidade concreta, onde corpos de homens pretos são lidos como perigosos; crianças, jovens e adultos pretos acabam encontrando maneiras de se proteger de tais leituras, quando não tem vergonha de seus cor-
pos. Nesse âmbito, a autoestima e o bem estar próprio mostra-se abalado e o
olhar-se no espelho torna-se um ato de desapreço. Tal leitura nos influência
psíquica e fisicamente. Se de um lado é exigida uma força para combater o sistema racista que nos oprime, não dando espaço para que nós pensemos
sobre nossos desejos e subjetividades, de outro lado se cobra um corpo atlé-
tico e uma sexualidade aflorada. Tal lógica racista ignora um processo de autoconhecimento e nos limita a imagens estereotipadas, pois:
De modo geral, potência sexual, privilégios sociais limitados, estereótipos de não-humanidade simbólica, de impotência social, subordinação política, animalização e sexualização exacerbada são elementos que aparecem nas representações em torno da masculinidade negra, sendo objetos de diferentes reflexões e estudos. (FANON, 2007; WEST, 1994; GATES, 2001)
Observando a imagem de periculosidade e sexualização que é investida historicamente sobre os corpos de homens negros sem camisa nas mídias como
157 no olhar da sociedade, buscamos, através da fotografia, trazer e produzir outras leituras para tais corpos que realmente simbolizem nossa subjetividade, ou seja, nos humanizem. Se não houver um movimento intelectual,
político e artístico que contraponha esse sistema que oprime e representa
homens pretos com características somente violentas e sexualizadas, tais representações acabarão se tornando a verdade socialmente aceita perante estes corpos. Assim, como nos diz Patrícia Hill Collins (2019) ao discorrer acerca do conceito de imagens de controle:
Todos os grupos: de homens brancos, de mulheres brancas, de homens negros, de mulheres negras e até indígenas tem imagens de controle que se aplicam a eles; eles acreditam nas mesmas imagens e agem de acordo com elas. As “imagens de controle” servem ao mesmo propósito no sentido de dar uma visão equivocada dessas populações para a sociedade. (COLLINS, 2019)
Com base neste conceito, acreditamos que novas imagens precisam ser fa-
bricadas sobre homens negros para que novas perspectivas sejam postas à vista, se tornem possíveis de serem vividas e que outras pessoas pretas possam se despir de concepções já impostas.
Outro impulso que nos levou a criar a série Despir foi pensar a obra de arte como um processo de cura, pois nós dois — fotógrafo e ator — envolvidos na
criação da série, além de sermos homens pretos, passamos por esse proces-
so de desconstrução dessas epistémes e, a partir da obra, nos permitimos
viver para além dessas narrativas racistas e pré-concebidas que nos foram colocadas até então. Percebendo nossas particularidades no mundo e na sociedade, concebemos uma reflexão na forma de um ensaio fotográfico, tomando para nós o controle da narrativa dos nossos corpos. Em contraponto
às imagens difundidas em boa parte das mídias, fomentamos a necessidade de perceber o corpo do homem negro no mundo com uma ótica humaniza-
dora, sensível, alegre e também observar como a sociedade e as imagens produzidas por ela nos atravessam na construção do Eu. Desejamos transformar e nos curar. Desejamos voar, nos Despir.
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é sobre se abraçar é sobre nos abraçarmos é sobre nos dispirmos é sobre amar as suas imagensemelhanças. é sobre estar no meio do furakão, sempre no centro num território, sim preto, amada PoA é sobre a vantagem e desvantagem de se dispir é sobre revelar suas marcas é sobre amar andar sem camisa? é sobre a possibilidade de andar sem camisa não sei. é sobre traumas para com seu tronco-imagem encarar de peito alerta ou dançar de peito aberto onda dos braços quando peito virou mar aberto! teve que construir fortaleza só com corpo desfazendo com o mesmo uma marca na minha casa-tronco onde me permiti entrar com um toque de cuidado sendo o suficiente pra de vez se acompanhar um movimento de se centrar pra dois de se expandir as suas mão dadas, fechadas pra logo depois despir flutuindo sobre o centro enquanto os carros cinzas tão. te vendo poder e carinho. a vantagem de andar ou (flutuar) despido se torna perigo poder ter carinho no meio das mãos é despir do planejado.
159 Referências KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. RIBEIRO, Alan Augusto Moraes. Homens Negros, Negro Homem: sob a perspectiva do feminismo negro. Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, Pernambuco, ano 2, volume 2, 2015. MARTINELLI, Andréa. Feminismo precisa ser cuidadoso para não ‘perder sentido’, diz Patricia Hill Collins. HUFFPOST Brasil, 2019. Disponível em: https://www.geledes.org.br/feminismo-precisa-ser-cuidadoso-para-nao-perder-sentido-diz-patricia-hill-collins/. Acessado em : 29 de set. 2020.
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Felipe Bandeira Netto ¹ Denise Machado Cardoso Paulo Henrique Santos dos Santos
Imagens de Campo — Apresentação fotoetnográfica dos jogos de identidade quilombola do Marajó Resumo: Neste trabalho apresentamos, um ensaio fotoetnográfico sobre os jogos de identidade das comunidades quilombolas de Salvaterra, na ilha do Marajó. Lutas, resistência e re-existencias. Apresentamos as imagens de campo feitas no ano de 2019 e intuímos a partir destas refletir e compreender a realidade do Outro, em especial a questão da masculinidade expressa na luta marajoara. Palavras-chave: Jogos Quilombolas; Fotoetnografia; Imagens de Campo; Cultura Quilombola.
FIELD IMAGES — PHOTOETNOGRAPHY PRESENTATION OF MARAJÓ’S QUILOMBALL IDENTITY GAMES Abstract: In this work, we present a photoethnographic essay on the identity games of the
quilombola communities of Salvaterra, on the island of Marajó. Fights, resistance and reexistences. We present the field images made in the year 2019 and intuit from this reflection and understand the reality of the Other. Especially the question of masculinity expressed in the Marajoara struggle. Key words: Quilombola Games; Photoetnography; Field images; Quilombola Culture.
1 - Antropólogo Visual e Fotógrafo. Mestrando em Educação em Ciências. Professor/Pesquisador na área de Ensino de Ciências e Sociologia e Antropologia da Educação no Clube de Ciências da Universidade Federal do Pará — CCIUFPA. Membro do Grupo de estudos (Trans)Formar. Membro do Grupo de Pesquisa em Antropologia Visual e da Imagem — VISAGEM. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9262054664287179
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Os Jogos de Identidade Quilombolas de Salvaterra — Ilha do Marajó, Pará — possuem um extenso significado e valor para as comunidades remanescen-
tes desta região. Para além disso, percebemos o quão relevante são estes jogos na questão da masculinidade dos homens destas comunidades quilombolas. Embora não se restrinja aos participantes do sexo masculino, a participação de mulheres é significativamente menor.
Há várias modalidades esportivas e apresentações neste jogos que buscam, segundo relatos e nossa percepção, a união dessas comunidades constituídas através da luta pela conquista por espaço e reconhecimento de seus co-
nhecimentos e de sua identidade. Nesse contexto, emerge o ser quilombola
e o quanto os jogos reforçam os aspectos da masculinidade na modalidade
de luta marajoara . Embora não restrita à esta luta, por certo é algo marcante nas narrativas, no ideário, nas representações e nos principais elementos referentes a estes homens e suas masculinidades.
Trazemos neste trabalho a proposta de dialogar, a partir do uso de imagens,
o quão inquietante são as performances que lembram nesta luta: os jogos de sedução e ato sexual, as lutas romanas e contemporâneas tão divulga-
das pelas mídias em geral. Assim, as imagens produzidas foram captadas
durante a realização dos jogos quilombolas de Salvaterra no ano de 2019, quando estivemos presentes com funções diversas e indicadas para quem é
convidado para lá estar. Como fotógrafos, jurados de algumas competições,
ajudantes na logística, dentre outras funções, realizamos a inserção com fins etnográficos e como “meros convidados” deste evento que marca identidades destas pessoas.
Os jogos, suas modalidades e as dinâmicas desde a preparação Para trazer o debate que envolve a questão da masculinidade expressa na luta marajoara, necessário se faz adentrar no contexto no qual ela se desenvolve. Embora não restrita a este momento, é durante os jogos que as competições de maior relevo ocorrem no município de Salvaterra.
173 Em 2019, ocorreu 16ª edição, na qual foi a vez da comunidade de Boa Vista receber quinze comunidades — Bacabal, Bairro Alto, Caldeirão, Campina,
Deus Ajude, Mangueiras, Paixão, Pau Furado, Providência, Rosário, Salvá, São Benedito, Siricari e Vila União.
Os jogos tem inicio com a cerimônia de abertura na noite do primeiro dia,
e conta com apresentações diversas — miss mirim, banda de carimbó, ca-
poeira, grupos de dança –, membros da comunidade que desenvolveram trabalhos científicos de pesquisa sobre suas realidades apresentam seus
resultados para os demais colegas. Ao final destas apresentações, ocorre a chamada de cada comunidade para o centro do barracão, onde todos vão
se unindo e recebendo banho de cheiro (preparado com ervas aromáticas e plantas medicinais). Para além dos jogos Há uma variedade de relações sociais que permitem pensar as sociedades
a partir do que se estabelece culturalmente como ser homem e ser mulher, e a luta marajoara saltou-nos aos olhos devido à performance que remete à
masculinidade, bem como ao processo de elaboração de identidades destes homens e mulheres. Por certo, há muito ainda a ser investigado sobre estas
questões que envolvem identidades de gênero, tal como indicado por Welzer-Lang (2001).
Os jogos de identidade constituem-se como um processo de reafirmação cultural, social, histórico e de vida de diferentes gerações destas mulheres e
homens, principalmente de crianças. Como o principal objetivo das reuniões
anuais dos Jogos de Identidade Quilombola é combater essas colonialidades e valorizar suas identidades e conhecimentos ancestrais.
Diante disso, um aspecto a ser salientado diz respeito à incorporação de outros marcadores sociais, em especial os marcadores de raça e classe. No
Brasil, é fundamental perceber que além das questões de gênero, há que
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se considerar que o quesito cor e identidade étnico racial (em especial as pessoas negras), trazem um complexo sistema de exploração, dominação,
racismo, e toda sorte de violências, tal como explicitado nos trabalhos desenvolvidos pela antropóloga Lélia Gonzalez (2016).
Referências ACHUTTI, Luiz Eduardo. R. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora da UFRGS: Tomo Editorial, 2004. 319 p. BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2015. GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem política- econômica. In: RODRIGUES, Carla; BORGES, Luciana; OLIVEIRA RAMOS, Tânia Regina (Org.) Problemas de gênero. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2016. WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: A construção do masculino: A construção do masculino: dominação das mulheres e dominação das mulheres e homofobia. Estudos Feministas. 461–484 2/2001.
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Natalia Monge Zúñiga ¹
Partejar na Resex Mapuá: parteiras e cenários marajoaras Resumo: Em 2016, visitei a Resex Mapuá, na Ilha do Marajó no estado do Pará, como parte da mina pesquisa de mestrado no Programa de Pós-graduação em Agriculturas Amazônicas da UFPA. Nas comunidades de Bom Jesus e São Benedito, fui descobrindo as histórias das mulheres parteiras. Neste ensaio etnofotográfico, apresento as paisagens, parteiras e seres marajoaras que me mostraram sobre os saberes de partejar. Neste mundo de conhecimentos femeninos, ressalta-se o papel de resistencia política e cultural que elas carregam, além da sua capacidade resiliente de transformar e abracar a metamorfose da arte de partejar (FLEISCHER, 2011). Nas memórias dessas mulheres, são guardados os segredos e experiências das suas ancestrais que, em conjunto com as crenças e cosmologias, mostram-se como relatos mágicos e marcantes no contexto da atual sociedade urbana que incorporou o que lhe é imposto, um mundo tecnicista, cirúrgico e industrial (BARROSO, 2001). Palavras-chave: Mulheres, Parteiras, Saberes e Conhecimentos Tradicionais, Resex Mapuá.
Midwifery in the Extractive Reserve Mapuá: widwives and Marajo’s backgrounds Abstract: IIn 2016, I visited the Extractive Reserve of Mapua, on the Marajo Island. In the communities of Bom Jesus and São Benedito, the stories of midwives were discovered. In this
ethnophotographic essay I present landscapes, midwives and marajoaras beings that showed me about the knowledge of midwifery. In the memories of these women, the secrets of the experiences of their ancestors are kept, and in a complex set of beliefs and cosmologies, they take care for pregnant women in these Amazonian communities. Key words: Women, Midwives, Traditional Knowledge, Extractive Reserve Mapua
1 - Natalia Monge Zúñiga do Chaperno Colectivo Agroecológico. Graduada em Agronomia e atual mestranda em Agriculturas Amazônicas. E-mail: natymonz@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3668-2088; Lattes: http://lattes.cnpq.br/3363512135880848
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“Que céu azul tão lindo e o Marajó sorrindo para Deus lhe abençoar…” Letra de música de Magno Sousa morador da Resex Mapuá
Na beira
a dum rio
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A paisagem é formada por casas rodeadas de palmeiras de açaí na frente do rio, com uma ponte ou trapiche na entrada. Na fotografia, a parteira Maria Esteni espera a minha visita.
Não posso deixar de falar do Mapuá sem mencionar o açaí. Tive a sorte de chegar na melhor época: a safra do açaí. Toda refeição que eu fiz na reserva, tinha uma tigela com açaí, farinha e boa companhia. Olhando para qualquer
canto da beira do rio, aparece a palmeira mais amada da região. Do açaizal, extrai-se o palmito e o fruto, sendo que o último é o principal produto tanto
para o consumo quanto para a venda. A fotografia mostra a colheita de açaí do dia da família Araújo: Simone, Eduardo e Sidiney..
“Eu perco a fome se não tiver meu açaí, nunca comi sem ele…” Simone, neta de parteira
193 A benção da Avó Joana
Joana Ferreira do Nascimento, conhecida como a Velha Joana, Mãe Joana e
Avó Joana. Viúva e mãe de 10 filhos. Por todas as comunidades é reconhecida como uma benzedeira-parteira com um poder especial de cura. Dona
de um conhecimento ancestral herdado de sua mãe, que se transmuta num dom de aliviar doentes, de auxiliar gestantes e de receber crianças. Perdeu
a conta de quantos filhos-afilhados já pegou nas mãos. Na fotografia, prepara-se para rezar numa criança recém-nascida e uma mãe de outra comunidade.
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“Eu não sou parteira dessas de carteira, só puxo barriga e só corto umbigo” — Dona Julieta, parteira
Julieta Balieiro Leão, conhecida como Júlia do Chiqueiro e Tia Júlia. Parteira
do Rio Coqueiro que pertence à Comunidade Bom Jesus. De 54 anos de idade
e casada com Seu Humberto com quem criou 6 filhos. Começou no ofício por
necessidade aos 29 anos, acompanhando a sua prima no parto. Tia Julia é uma mulher apaixonada pela floresta e pelo Rio Coqueiro que percorre para chegar até sua roça.
195 Dona Martinha Borges, parteira da Comunidade Bom Jesus, de 74 anos de idade. Gosta de uma conversa e uma boa companhia. Costumava plantar sua roça, cuidar do açaizal e de criar porcos e galinhas quando morava nas
cabeceiras do rio. É aposentada como trabalhadora rural e não trabalha mais como parteira por questões de saúde. Teve a experiência de ter gêmeos na Resex, e foi acompanhada por uma antiga parteira que lembra com muito carinho.
“Graças a Deus, filho que eu peguei nas mãos nunca morreu” — Dona Martinha, parteira.
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197 “Eles me chamam só de mãe, porque fui eu que endireitei essas crianças… nasceram nas minhas mãos” — Dona Joana, benzedeira-parteira.
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Sorori
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Como falar de parteiras sem a palavra sororidade? É um elemento fundamental observado na relação entre as parteiras e outras mulheres, que aflo-
ra em momentos e situações de proximidade. Schallman (2012) descreve esta interação de solidariedade mulher-mulher que se manifesta através de
oferecer companhia, cuidado ou ajuda de forma desinteressada, com pro-
fundo sentimento de irmandade. Na fotografia, pode-se ver a parteira Julieta com suas filhas e sua nora no quintal da sua casa.
Um grupo de mulheres da família da parteira Julieta se reúnem para fabricar cestos, paneiros, abanos, peneiras, razas e brinquedos para uso doméstico e para venda. Enquanto fazem os artesanatos, conversam sobre plantas, banhas de animais e recursos da floresta.
Espaços e tempos de saberes femininos
201 Puxar barriga de mulher
Puxar a barriga da mulher é um dos mais importantes atendimentos que as
parteiras desta Resex oferecem para as gestantes. Fleischer (2006) expli-
ca que consiste em uma massagem abdominal para conhecer como está à saúde da criança, a idade dela e algumas vezes para saber o sexo. Os atendimentos pré-natais que as parteiras tradicionais da região amazônica oferecem têm um papel fundamental na saúde das gestantes e das crianças
por nascer. Elas “puxam”, “endireitam a criança na barriga” quando está incomodando a mãe e algumas rezam. Além da questão física, o momento da
massagem se presta para compartilhar saberes, conhecer sobre o estado emocional da parturiente, saber as múltiplas situações que podem acompanhar o parto e para comentar sobre acontecimentos recentes na Resex. Na
fotografia, Dona Joana com suas pequenas e delicadas mãos, puxa a barriga de uma vizinha grávida.
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203 “Me valendo de Deus primeiramente” — Dona Iracema, parteira
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Foi essa a resposta quando lhe perguntei como ela fazia para começar o trabalho de parto ou ao puxar. Enquanto ela me respondia, ela fazia o sinal da
cruz, levando sua mão direita primeiramente para sua testa, depois tocan-
do suavemente seu peito, ombros e finalmente a boca. Na fotografia, Dona Iracema puxa as costas da sua neta Simone, que depois de um forte dia de
trabalho na colheita de açaí, precisa do carinho da avó com “mãos abençoadas”.
Referências BARROSO, Iraci de Carvalho. Saberes e práticas das parteiras tradicionais do Amapá-Histórias e Memórias. 2001. Dissertação de Mestrado (Dep. História) — UNICAMP, São Paulo, 2020. FLEISCHER, Soraya. Puxando barrigas para puxar assuntos: a massagem abdominal como uma fonte de saber e significados entre parteiras marajoaras. MNEME Revista de Humanidades, v. 7, n. 19, pp. 239–272, 2006. FLEISCHER, S. Parteiras, buchudas e aperreios: uma etnografia do cuidado obstétrico não oficial na cidade de Melgaço, Pará. Belém: Paka-Tatu; Santa Cruz do Sul: EDUNISC; 2011. MONGE, Natalia. Saberes, práticas e histórias de vida de parteiras tradicionais da Resex Mapuá, Ilha do Marajó — 2015/2017. Dissertação (Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável) — INEAF, Universidade Federal do Pará, Belém, 2020. SCHALLMAN, Raquel. Parir en libertad: en busca del poder perdido. Buenos Aires; Penguin Random House Grupo Editorial; 2012.
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Carlos Eduardo de Souza Pereira ¹
Por onde flores serão diversas Resumo: A série de fotografias “por onde flores serão diversas” foi realizada em março de 2018, mesmo mês e ano que Marielle Franco e Anderson Gomes foram assassinados no Rio de Janeiro. Os retratos foram feitos na ocupação da fazenda Céu Azul, em Teixeira de Freitas-BA. Mulheres Sem Terra ocuparam uma das fazendas que pertencem à empresa Suzano Papel e Celulose, numa área de monocultivo de eucalipto transgênico. São mulheres camponesas Sem Terra lutando diariamente contra todas as formas de violência. Palavras-chave: Mulheres Sem Terra; Deserto Verde; Luta Camponesa.
Where flowers will be diverse Abstract: The series of photographs “where flowers will be diverse” was held in March 2018, the same month and year that Marielle Franco and Anderson Gomes were murdered in Rio de
Janeiro. The portraits were taken during the occupation of the Céu Azul farm, in Teixeira de Freitas-BA. Landless Women occupied one of the farms that belong to the company Suzano Papel e Celulose, in an area of transgenic eucalyptus monoculture. They are landless peasant women fighting daily against all forms of violence. Key words: Landless woman; Green Desert; Peasant Fight.
1 - Mestrando em Educação do Campo na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia — UFRB. Orientação: Profª Dra. Ana Cristina Nascimento Givigi. carlos.carloseduardo@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6896-280X Lattes: http://lattes.cnpq.br/3335797291053320
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Em 1997, em uma conferência na 1ª Jornada Cultural Lélia Gonzalez, realizada pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão e pelo grupo de Mulheres
Negras Mãe Andreza, que discutia sobre a imagem da mulher negra na sua relação cultural, Ângela Davis — uma das convidadas — falou sobre as mu-
lheres negras na construção de uma nova utopia ² e reforçou a importância de aprender a estabelecer a relação entre gênero, raça, classe e sexualidade. Ela enfatizou a luta por saúde física, mental, emocional e espiritual e a importância de reverenciar as nossas ancestrais, permitindo que elas nos alimentem, que sua semente germine para que possamos continuar a nossa
luta. E, naquele momento, o grande desafio nos Estados Unidos da América
(EUA) era fazer a ligação entre público e privado para entender a relação entre a violência doméstica e a violência pública.
Na madrugada do dia 05 de março de 2018 ³, mais de mil mulheres cam-
ponesas Sem Terra ocuparam a frente da fábrica que pertencia até então à empresa Suzano Papel e Celulose ⁴ que, meses depois, foi vendida para Fibria, tornando-se a maior produtora de celulose de eucalipto do mundo. A manifestação em frente à fábrica durou toda manhã, onde não circulou ca-
minhões, ônibus e nem carros como era comum. Foram oito horas de fábrica parada para explicitar a violência que a empresa causa no território com alteração da vegetação, do solo, da água, do uso de espécies transgênicas, da
manipulação e pulverização aérea de agrotóxicos, da crise hídrica e de todas as vidas que ali resistem.
Depois, elas seguiram para o município de Teixeira de Freitas, ocupando a fazenda Céu Azul ⁵, que também pertence a empresa Suzano Papel e Celulose. Nessa área, existem mais de 1,2 hectares de eucalip-
tos transgênicos plantados. A ação fez parte da Jornada de lutas das Mulheres Sem Terra. Enquanto desciam dos ônibus com seus colchões, barracas, panelas e alimentos, circulavam ferramentas, tecidos, lonas.
2 - Discurso completo no livro Testemunhos da utopia. / Pepe Mujica, Papa Francisco, Hugo Chaves, Ângela Davis. — 1.ed.-São Paulo: Expressão Popular, 2016. p. 87 3 - Matéria do dia 05/03/2018, no site do MST. Link: https://mst.org.br/2018/03/05/no-extremo-sul-da-bahia-mil-mulheres-sem-terra-ocupam-a-fabrica-de-celulose-da-suzano/ 4 - Em janeiro de 2019 a Suzano Papel e Celulose, maior produtora de celulose de eucalipto do mundo e a Fibria, outra multinacional do mercado de celulose de eucalipto se fundem, tornando uma só, a Suzano S.A. 5 - Matéria do dia 08/03/2018, no site do midia ninja. Link: https://midianinja.org/news/2018m-mil-mulheres-ocupam-fazenda-ceu-azul-na-bahia-2/
209 Eram mulheres, crianças e homens construindo e semeando um novo ambiente em meio aos eucaliptos. Essas pessoas chegaram carregadas de indignação e sonhos. Construíram plenária, ciranda para as crianças e cozinhas coletivas, bem como plantaram sementes de feijão, abóbora e milho, cultivos que realmente alimentam.
Abre o olho com ele companheira, não é flor que se cheire.
Frase dita por muitas companheiras, alertando a possível relação de abuso, de traição, de violência. O agronegócio chama a monocultura do eucalipto
de “floresta”, nós chamamos de “deserto verde”. Só compara a monocultura do eucalipto com floresta quem não tem relação nenhuma com a terra e que
não se importa com o processo destrutivo e violento que o capitalismo causa na biodiversidade. A violência de um companheiro contra uma mulher é tão ruim quanto a violência do agronegócio.
Os retratos que estamos chamando de “por onde flores serão diversas” foram
realizados nessa ocupação. Em meio aos eucaliptos, levantamos um tecido de chita florida e fixamos em seu tronco. Naquele momento, conseguimos
esconder o monocultivo e trazer outras cores, já que queríamos ressaltar a diversidade da vida sobre aquela terra degradada. São histórias de mulheres negras, agricultoras, sem terra. Imagens de mulheres que pararam para
serem fotografadas. Algumas contavam suas histórias enquanto acontecia o
registro, queriam se ver, nem sempre gostavam, pediam pra tirar outra. Não entenda como um retrato narcísico ou individualista, mas como imagens e histórias que se complementam em imagens de sujeitos coletivos alegres pela possibilidade de serem protagonistas. São retratos de mulheres Sem
Terra que carregam na vida a história de luta e resistência. Tatiana Emilia Dias Gomes, professora de direito agrário na Faculdade de Direito da UFBA
(Universidade Federal da Bahia) e assessora jurídica popular, diz que: “Fa-
lar de terra no Brasil é falar de algo manchado de sangue”. E nós sabemos e sentimos, diariamente, de quem é o sangue.
Foram mais de 30 retratos, e escolhemos para essa série apresentar Zé Linda,
Virgulina Neves, Romilda Alves, Maria da Purificação, as Marias e Joaquim, Elisene e Simone, Ana, Ana Lucia, Shirley, Sandrielle, Benjamim e Charles.
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Todas são da região do extremo sul da Bahia. São mulheres e crianças que lutam diariamente pela reforma agrária, pela transformação radical da so-
ciedade. São as sementes que florescem no caminho. Naquele momento não sabíamos que em alguns dias iriam assassinar Marielle Franco ⁶ e Anderson
Gomes. Quem mandou matar Marielle Franco não sabia que ela era semente. E por onde for, flores vão germinar a revolução. Marielle Presente!.
6 - No dia 14/03/2018, foi assassinada Marielle Franco e Anderson Pedro Gomes em um atentado ao carro onde estavam no Rio de Janeiro. Foram disparados 13 tiros contra o automóvel que eles estavam. *A expressão “deserto verde” é para denominar os plantios de um só tipo de árvore, como nas grandes extensões de terra destinadas para a produção de celulose, madeira ou carvão vegetal. As consequências deste tipo de plantação para o ambiente são: desertificação, erosão e redução de biodiversidade.
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