Foto Europa - Uma lição de vida

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Uma lição de vida Um caso inédito, de pastor a fotógrafo Esta é a história de António Cruz, um dos Antónios da região de Leiria - um caso considerado perdido, mas que, com uma pitada de sorte, chegou a algum lado. De onde partiu, o que sofreu, por onde passou e onde chegou, graças ao seu grande público, por todo o Portugal e além-fronteiras. Graças a Deus também e a todas as pessoas que, ao longo da sua conturbada história, acreditaram no seu bom coração, na sua honestidade e nas suas qualidades enquanto pessoa e profissional. Nesta história se fala das fomes e miséria do pós-guerra, da infância de crianças que, como o António, se entretinham pelas ruas, criando as suas próprias brincadeiras, de como foi afastado da escola primária, sem saber ler nem escrever para ir fazer pastoreio. De como um dia, ao descobrir uma pequena máquina fotográfica, no retorno a casa da mãe, a sua vida deu uma reviravolta para não voltar a ser a mesma.

UMA LIÇÃO DE VIDA - Um caso inédito, de pastor a fotógrafo

António Cruz

UMA LIÇÃO DE VIDA Um caso inédito, de pastor a fotógrafo António Cruz


UMA LIÇÃO DE VIDA Um caso inédito, de pastor a fotógrafo António Cruz

Dezembro 2010


O ANTÓNIO E A SUA HISTÓRIA Um dos Antónios da região de Leiria - um caso considerado perdido, mas que com uma pitada de sorte chegou a algum lado. De onde partiu, por onde passou e onde chegou, graças ao seu grande público, por todo o Portugal e além-fronteiras. Um dos Antónios da região de Leiria, que milhares de pessoas conhecem, nasce a 2 de Fevereiro de 1944, em regueira de Pontes, e é registado no dia 20 do mesmo mês na Marinha Grande. Com uma vaga ideia de onde partiu e por onde passou, sabe que chegou felizmente ao melhor termo que um homem pode desejar. Nasceu prematuro de 700gr. Sua mãe viajava de comboio, vinda de Leiria para Regueira de Pontes e o nascimento foi provocado pelo temporal que veio encontrá-la pelo caminho. Nessa noite, após a mãe ter saído no apeadeiro do dito lugar, surge um vendaval com

Igreja da mais antiga freguesia de Leiria, sua terra natal, Regueira de Pontes. 4

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chuva torrencial. Encontrava-se só. Ninguém ali a esperava, pelo que se abrigou, naquele momento, junto a um velho carvalho que estava junto à estrada, muito perto do cemitério. A chuva e o vento continuavam a soprar, fazendo acenar toda a rama do dito carvalho. Muito assustada, a mãe começou a sentir as dores de parto e de tal forma que, a determinada altura, já gritava com dores insuportáveis. Pôs-se ao caminho gritando “Ai Jesus, o meu filhinho!” Sua mãe corria desalmadamente. Tanto correu que chegou a casa finalmente e assim nasceu o António. Foi um autêntico milagre ter, o António, resistido ao temporal. Ainda na mesma noite, providenciaram um meio de transporte para fazer chegar o seu prematuro ao hospital. Ninguém dava nada por ele. Era um autêntico “rato pelado”, que cabia entre duas mãos encostadas uma à outra. Foi imediatamente assistido pelo obstetra, o Dr. António Dias, no antigo hospital de Leiria. Neste hospital, lá conseguiu sobreviver vários meses, embrulhado em algodão em rama, usado na altura como incubadora. Consegue, desta forma, sobreviver ao impacto do rigoroso ambiente externo, regressando a sua casa bem, fisicamente, mas ainda de tamanho muito pequenino. O recém-nascido António gritava desalmadamente junto de sua família. O Sr. João Cruz, seu pai, já com alguma idade e pouca paciência para ouvir a criança a berrar com tantas dores, instava com a sua esposa, mãe de António: “Leva-me esta criança daqui! Coze-o, frita-o ou atira-o ao poço!” O património do velho Cruz, que já tinha sido de altos valores, estava na altura completamente esgotado! Este seu casamento em segundas núpcias ressentia-se disso e a desarmonia entre os pais do António era constante, ao ponto de sua mãe não poder suportar mais os desaforos de seu pai. Indignada com tantas palavras agressivas, a mãe sai de casa dias depois desta cena, não aguentando continuar a viver naquele ambiente insuportável. Já não dava para continuar. Deixa o marido, com um enteado menor e mais três enteados já adultos e com as suas vidas já feitas. E parte para a Marinha Grande com os seus três filhos mais velhos, Maria da Luz, a mais velha, Adelino, o segundo e o João, este ainda criança de colo. Por necessitar ainda de cuidados diários no hospital, o António foi deixado no hospital. Com o seu estado frágil, o bébé tinha que continuar nas consultas externas do Hospital de Leiria e do dispensário, o que não conseguia fazer todas as semanas se fosse com a mãe para a Marinha. Ao chegar à Marinha Grande, a mãe procura a sua tia Adelina Morgado, a costureira do lugar da Ordem, na Marinha Grande, pedindo-lhe guarida, o que lhe foi concedido ficando assim a residir numa das suas casas. Já com o bébé em casa, mas ainda fraquinho a mãe tinha que manter as idas até Leiria. Por ter poucos recursos, Maria da Encarnação Silva, tinha que se deslocar a pé da Marinha Grande a Leiria com o menino ao colo, situação que, para além de ser excessiva para UMA LIÇÃO DE VIDA

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a mãe, o era também para a criança ainda muito debilitada. Algum tempo se passou, até que sua mãe, com os seus conhecimentos, arranjou quem lhe ficasse com o António em Leiria, evitando desta maneira o esforço redobrado da viagem com um bébé, muitas vezes a pé. Na casa onde ficou, contudo, o cuidado era relativo, dada a idade das pessoas que o abrigavam. Recorda-se, lá por volta dos seus quatro ou cinco anos, de beber com regularidade leite azedo, facto que o transtornava e o fazia gritar por todos os cantos. Recorda também a senhora da casa, que morava junto à fonte da Barosa, Leiria. Entretanto, a mãe arranja uma segunda casa para ele ficar, de um casal amigo A velha igreja matriz da Marinha Grande, onde também de uma idade muito avançada. António foi baptizado à pressa, devido a não haver Aqui, António recorda-se de fazer chichi garantias da sua sobrevivência. na cama. O casal, o chamado Ti’ Joaquim da Marinha e sua esposa, com pouca tolerância pelos descuidos de uma criança, castigava-o, não só batendo, mas também esfregando o seu rabinho com um molho de urtigas. Adicionalmente, era ainda encerrado numa retrete malcheirosa da casa velha onde o casal residia. E não saía, por muito que gritasse, chamando-lhes todos os nomes feios que existiam então e que permanecem ainda agora. Essa casa, que ainda hoje existe, situava-se numa transversal saída da Estrada da Marinha, A casa onde o António foi urtigado, travessa da Estª em direcção ao castelo de Leiria e que ainda Marinha Grande, junto ao castelo, em Leiria. da hoje os Leirienses usam para aceder a este monumento. Sua mãe nunca chegou a descobrir os maus tratos perpretados contra o seu filho. António era muito pequeno, mas muito esperto e sociável, dando-se com todas as crian6

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ças da vizinhança. Ali perto morava a família “Os Filipes”, que tinha vários filhos. Juntava-se a eles e outras crianças das redondezas para, na época das vindimas, saciarem as suas barriguitas, recolhendo os pequenos galhos de uvas que os trabalhadores do campo deixavam para trás. Muitos eram os miúdos e, neste afã, pareciam bandos de pardais de volta dos bagos lá para os lados dos Capuchos, bairro Jericó e Moagem da cidade, junto ao rio Liz. Tempo passado, vamos encontrá-lo noutra casa, por sinal do filho do Ti’ Joaquim. O Ti’ Afonso, era bagageiro da rodoviária Capristano e, nas horas vagas, andava por toda a Leiria, de casa em casa, a entregar cântaros de água, numa carroça puxada a cavalos. Este senhor Afonso era mais compreensivo, uma vez que tinha metade da idade do pai. Aí, António sentia-se feliz só pelo facto de andar em cima da carroça, ao lado do Ti’ Afonso, por toda a cidade. O cavalo que os puxava era muito bonito e toda aquela vivência o marcou como um momento de felicidade na sua vida atribulada de criança. O Ti’ Afonso era como um pai, substituindo o seu pai biológico do qual António já não se recordava. Além do mais, gozava algumas idas ao cinema D. Maria I, situado onde se encontra a actual fonte luminosa em Leiria.

A casa do Ti’ Afonso, na Av. Paulo VI, em Leiria. UMA LIÇÃO DE VIDA

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A determinada altura, o Ti’ Afonso e muitos outros homens de Leiria foram contratados para a apanha de azeitona em lugar incerto. António seguiu com o Ti’ Afonso, com ou sem autorização de sua mãe, numa viagem infinda, dormindo a maior parte do tempo. Ao chegarem ao local, os trabalhadores da apanha de azeitona, deixaram os seus haveres num barraco que ali se encontrava, bem como o António, que continuou a dormir. Nesses primeiros dias trabalharam nos olivais mais próximos, mas chegou finalmente o momento em que tiveram que fazer serviço em pontos mais distantes. Talvez tivesse sido no dia seguinte, ou muitos dias depois, a madrugada em que se viu sózinho no barraco, debaixo de um céu bastante estrelado, sem porta nem janelas que o guardassem, e sem ninguém à vista. Para cúmulo do susto, no meio do barraco encontrava-se um alçapão bastante fundo, o que fez António gritar desesperadamente, chamando pela mãe. As suas lágrimas pareciam dois rios. Ninguém o ouvia, já que os trabalhadores da apanha da azeitona tinham partido para locais bem longínquos. Deixado ali à mercê dos elementos, foi sorte os seus gritos terem mantido as raposas e lobos à distância. Naquele momento, ao olhar para os céus, vê uma estrela verdadeiramente incandescente, que se reflectia nas suas lágrimas. A estrela parecia que acenava sob o seu olhar. António chorou longamente, durante toda a noite e madrugada e, sem dar pelo passar das horas, o dia foi nascendo e a estrela desaparecendo. E assim António adormeceu e dormiu o que restava da noite e todo o dia seguinte. Era já noite, quando acordou com vozes. Eram os trabalhadores da apanha da azeitona, que regressavam junto ao barraco, onde António ainda se encontrava. O Ti’ Afonso trazia muitos caracóis para, em seguida, se fazer um arroz com eles. António estava esfomeado, porque não tinha comido durante todo o dia. O arroz e os caracóis estavam muito gostosos! O seu gosto ainda hoje está na sua memória. A apanha durou ainda algum tempo, findo o qual António voltou a Leiria, encontrando-se de novo em casa do Ti’ Afonso, na avenida Paulo VI. Uns dias depois, a mãe chega para o levar consigo de regresso a casa, na Marinha Grande. António é surpreendido com dois novos irmãos, Armando e Florinda, filhos do seu padrasto, Fernando Elias, homem com cara de poucos amigos e que pouco tempo depois o fazia já estrear o peso das suas mãos. António, agora com 6 anos, pelo tempo passado fora de sua mãe e dos seus irmãos mais velhos, nada deles se lembrava. O João tinha sete anos, o Adelino dez e a Maria da Luz doze anos. Sua mãe trabalhava a dias em casa de várias senhoras. Maria da Luz, por sua vez não habitava com a família, pois encontrava-se em Lisboa, a servir em casa de senhores, desta forma suprindo, também ela, as necessidades familiares.

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Natal com brinquedos Em Portugal, sofria-se ainda o impacto da guerra em que a Europa tinha mergulhado anos antes, causando pobreza em numerosas famílias. Em 1954, vivia-se ainda em recessão por todo o país, e os alimentos faltavam, sobretudo nas famílias que nada tinham, como a de António. António e os seus irmãos mais novos saíam de casa pela manhã, em direcção à casa da Sopa dos Pobres. Lá comiam e ainda transportavam uma panela cheia de sopa para que à noite se pudessem alimentar e assim as suas barrigas ficassem bem aconchegadas. O seu irmão João já andava na escola, por isso já não os acompanhava. António, Armando e Florinda tornaram-se assim mais livres. Depois da sopa do meio-dia, toda a tarde era uma brincadeira pegada. Se, a meio da tarde, lhes dava fome tinham duas tácticas: ou iam pedir umas sandes de casa em casa ou recorriam aos pomares alheios. Assim se passavam muitos dias, enquanto a sua mãe trabalhava em casa desta ou de outra senhora, regressando a casa já de noite. António certo dia trocou as voltas aos irmãos mais novos, ficando só e entregue às suas aventuras, passando todo o dia e toda a noite fora de casa. Todos o procuraram, até as autoridades. Nada se sabia dele. Sua mãe, muito preocupada pelo seu desaparecimento, procurava por toda a Marinha Grande e arredores. Já se pensava o pior. Sendo época do Natal, e tendo uma papelaria ardido nessa altura, muitos brinquedos tinham sido resgatados para uma divisão ao lado. António, tendo sabido disso, arranjou maneira de entrar sem que ninguém se apercebesse e, como nunca tinha visto tantos brinquedos em seu redor, adormeceu consolado no meio deles. Já era de manhã quando finalmente António saiu de junto dos brinquedos, levando consigo a maior quantidade possível. Regressava a casa, com a intenção de os distribuir pelos seus irmãos. Sua mãe, contente de o ver, ainda para mais com este carrego de brinquedos, nem coragem teve de o repreender da sua aventura. Sorriu para a sua mãe e a sua mãe para ele. O António mais parecia o Pai Natal com tantos brinquedos às costas.

Truqes para comer bem Tinha nesta altura cerca de seis ou sete anos e já gostava de ter uns tostões para gastar em rebuçados. Tinha várias senhoras amigas, que lhe davam a oportunidade de ganhar algum dinheiro. Uma das tarefas que fazia para uma dessas senhoras, era limpar as capoeiras de coelhos e galinhas. Como António era pequeno, facilmente entrava nesses cubículos, assim removendo UMA LIÇÃO DE VIDA

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o estrume e ganhando desta forma o lanche e uns tostões. Numa outra senhora fazia-lhe recados trocando carrinhos de linhas vazios por outros cheios. Noutro senhor, que tinha uma taberna, ganhava mais uns tostões acartando canecos de água do jardim para a sua taberna. Mais umas sandes, mais uns ganhos. Assim se compunham os dias de António que ganhava, desta foma, o seu sustento. António fazia o possível por não ir à Sopa dos Pobres, tanto mais que era obrigado a comer a pouco gostosa refeição confeccionada por uma amiga de sua mãe, a cozinheira dessa instituição. Além de muito colorau, tinha muitos talos e olho de couve de repolho o que era feito propositadamente pela cozinheira para que, especialmente as crianças, a não comessem e sobrasse o mais possível para o seu gado. Por isso, António preferia fazer recados de casa em casa. Certo dia, António já virado com o mau gosto da dita sopa, resolve por si próprio um domingo pela manhã invadir a Sopa dos Pobres, uma vez que estava seguro que neste dia não funcionava. No interior da instituição, pensa em fazer uma pequena maldade. Ao encontrar várias talhas cheias de batatas já descascadas para a sopa do dia seguinte, não tem mais nada: agarra em garrafões cheios de vinho tinto e despeja-os para dentro das referidas talhas! António mudaria desta forma o gosto à sopa, não tendo no entanto intenção de comparecer no dia seguinte no local para a provar sequer! Na segunda-feira, a polícia pôs-se em campo para descobrir o autor de tal façanha. Ora, António não compareceu nesse dia e isso logo o tornou suspeito! Adicionalmente, quando a polícia o encontrou e lhe fez várias perguntas sobre o sucedido, começou a chorar ficando da cor de um tomate. Foi quanto bastou para que a polícia tivesse a certeza que teria sido ele a cometer esta audácia. Em face disso, é agarrado pela mão e encaminhado para o posto da polícia, onde permaneceu desde essa manhã até à noite. Pelo menos nesse dia, António comeu sopa em condições em conjunto com a polícia, mas a saudade da rua e da sua mãe foi mais forte e António quase não parou de chorar durante toda a tarde, pedindo pela mãe. Ao fim do dia, esta foi informada que o seu filho estava entregue à polícia, tendo-o então ido buscar. Apesar de ter apenas ficado no recinto da dependência da polícia, passando o dia na companhia dos agentes, e não propriamente prisioneiro, nunca mais fez coisa igual. António tinha cerca de sete anos e já conhecia muitos quintais com árvores de frutos. Com esta idade, era só apetite e nada melhor que comer os frutos alheios! Num certo quintal, brilharam aos seus olhos uns lindos pêssegos douradinhos. Além dos pêssegos, havia outros frutos, mas eram os pêssegos que o António queria! E daí António prepara o salto e cai com os seus pés descalços numa armadilha. Mesmo por baixo do muro, estava uma tábua cheia de pregos escondida debaixo da terra com todos os preguinhos à espera dos seus pezinhos! Ficou bem crivado. Nem um ai disse para não correr o risco do dono aparecer! Tratou de se sentar e despregar a tábua dos pés 10

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descalços. Estes, mais pareciam a fonte das sete bicas. Cada passo, cada rasto deixado pelo António. Pelo sucedido, nem sequer foi ao médico. Remédio santo! A essa quinta nunca mais voltou.

As tropelias do António António tinha um fascínio por tudo quanto tinha rodas. Um dia passa uma camioneta descapotável, devagar, na que logo se empoleirou. Quando a mesma já ia muito depressa resolve largar-se da carroçaria, mas mal os seus pés tocaram no chão, não tendo conseguido acompanhar a velocidade de saída, caiu no chão e ficou de cabeça aberta. Ficou de facto muito maltratado, pelo que uma das comadres da sua mãe, que se encontrava ali perto e assistira a tudo, o transporta imediatamente para o médico, onde leva alguns agrafos na cabeça e fica minimamente tratado. Os agrafos permaneceram por uns dias na sua testa, até sarar. Não contente com esta aventura, algumas semanas mais tarde, eis que, ao passar um coche puxado por dois lindos cavalos, aí vai o António: dá a sua corridinha e empoleira-se na parte traseira do veículo. O condutor apercebeu-se imediatamente do peso extra e mandou umas chicotadas para trás do coche, apanhando o António em cheio nas costas. O intruso desprendeu-se imediatamente, evitando assim de levar mais umas quantas, mas perdendo desta forma a boleia da sua predilecção. Outra viagem mal sucedida para o António! Num desses dias de aventuras, era noite escura e António já ia atrasado para casa. Ao longe, avista uma carroça puxada por um burro e pensou: ”Que linda boleia para chegar a casa mais depressa!” Deixa passar a carroça, dá a sua corridinha e, logo de seguida, de novo se empoleira. A carroceira, guia do burro, apercebeu-se e logo reagiu, mas desta vez não foi um chicote e sim um ancinho com muitos pregos. Um deles acertou em cheio na cabeça do António! António apercebe-se do sangue a escorrer pelo rosto abaixo e correu o mais depressa possível para casa. Lá se encontrava o seu irmão Adelino, o irmão mais velho, que o socorreu com o que tinha mais à mão. Não havia álcool, mas sim um candeeiro de petróleo. Tirando o seu bocal, despeja-lhe o petróleo pela cabeça abaixo, ficando assim desinfectado milagrosamente! Um lindo dia de sol, António e o seu irmão João, foram às canas da Índia que havia junto a um riacho que, ainda hoje, atravessa a Marinha Grande. António, como sempre aventureiro, começa a pendurar-se entre canas, andando de um lado para o outro na margem do curso de água. A determinada altura, desiquilibra-se, escapa-lhe um pé e vai de cabeça à água. Safa-o o seu irmão, que o agarra imediatamente pelo outro pé, desta forma livrando-o de um possível afogamento. Ainda bem que ele estava ali por perto! UMA LIÇÃO DE VIDA

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Transportes criativos Quase com oito anos, e a entrar no Verão, vários miúdos se juntaram e pensaram como passar a tarde. Resolveram invadir a serração do Laranjeiro, junto à estação de caminhos-de-ferro, onde havia alguns vagões vazios e descapotáveis sem que ninguém por ali os guardasse. António e uma parte dos miúdos faziam-se de passageiros num vagão, enquanto os outros o empurravam até ao extremo da respectiva linha. Desta vez, ninguém se aleijou e todos se divertiram à grande! António continuava a ser apaixonado pelas rodas. Esperto para a sua idade, sabia que o seu padrinho, António Castela, natural de Cernache, era carpinteiro na fábrica Guilherme Stephens. António fez-lhe um pedido para que lhe fizesse oito rodas. O seu padrinho perguntou para quê ao que António respondeu que era para fazer um carro especial. O padrinho satisfez-lhe o gosto. Ao obter as oito rodas, António agregou-as a uma caixa de sardinhas que tinha cerca de 70 a 100 cm por 50 cm de largura, completando esta improvisada vagoneta com dois eixos feitos de cabos de vassoura e obtendo assim um transporte exclusivo para deslocações a S. Pedro de Moel. Tocado com uma vara à força de braços, o vagão iria deslizar pelos carris da linha do comboio a vapor. Mas como o Verão já estava passado e o Inverno a chegar, António acabou por esconder o seu meio de transporte até que o bom tempo voltasse de novo. Várias vezes visitou o seu invento no esconderijo em que se encontrava. O mesmo iria ser utilizado na linha do comboio de lata, assim chamado apesar de ser de ferro e a vapor. Era assim que se chamava o transporte das madeiras das matas nacionais para as serrações servidas pela linha do Oeste, que no Verão, especialmente aos Domingos, era utilizado como meio de transporte dos marinhenses para a praia de S. Pedro de Moel. Passou-se um ano, com novo Verão à porta, mas o António tinha perdido entretanto o seu meio de transporte, roubado por alguém desconhecido! Não queria de maneira nenhuma depender do comboio de lata, porque nele era obrigado a esconder-se debaixo dos bancos dos passageiros evitando o revisor, mas, uma vez que o Verão estava a decorrer, e não tinha tempo para construir outra geringonça como aquela, teve que se sujeitar. Como queria ir e vir, tratava-se de se esconder debaixo das pernas dos passageiros, viajando assim sem pagar o respectivo bilhete. António continuava sempre livre e criança, perdido entre aventuras e percursos até S. Pedro. Uma das formas alternativas de transporte que encontrou foram as camionetas do Vilela, a que recorreu graças a um feliz acaso. De facto, certo dia, encontrando-se com um colega dentro da praça Municipal, este encontrou uma nota de 20 escudos junto aos pés de ambos, tendo-a agarrado primeiro. António reclamou a nota como sua apesar de não o ser, ao que o colega acabou por ceder apesar das muitas dúvidas. Esta nota era 12

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muito dinheiro na época e deu para comprar muitas deslocações a S. Pedro de Moel, viajando assim confortavelmente, como gostava, todas as idas e vindas. O dinheiro acabou-se, mas as viagens continuaram, ida e volta, para a praia de S. Pedro de Moel. Durante a carreira regular para a praia, as camionetas do Vilela, típicas da época, afrouxavam inevitavelmente nas subidas, momento que o António aproveitava para dar uma corridinha e empoleirar-se nas suas escadas traseiras. Ele e outros. E assim se fazia uma viagem menos confortável, mas sem pagar. António, por essa época, já gostava de ter uns tostões no seu bolso. Ia regularmente à praça das pexinas e, junto às pernas das freguesas, encontrava um tostão aqui outro ali, garantindo desta forma uma fonte de rendimento. Como António era muito miúdo, as freguesas mal se apercebiam que ali andava um pequeno garoto, não se importando com que ele andaria a fazer. Tantos eram fregueses e tal o barulho da praça que, ao fazerem o pagamento do seu peixe, não ouviam o cair dos seus trocados no chão, o que António aproveitava. Juntava à Quarta e Sábado os trocos perdidos, para gastar no transporte ao Domingo. Ainda conseguia que sobrasse algum para alugar pequenas bicicletas e passear nas ruas de S. Pedro. Uma vez, uma das bicicletas em que rodava teve uma falha de travões, precisamente na descida principal da praia. António quase voava. Naquele momento, atravessa-se o Carlitos Anão com o seu tabuleiro de chupa-chupas e o António inevitavelmente embateu, Carlitos para um lado e António para o outro, ambos rebolando pela estrada abaixo. O Carlitos, que era redondo e tivera sorte na queda, pouco se aleijou, mas o António, muito magrinho, rompeu não só as calças como rasgou os joelhos. Pobre Carlitos e os seus chupa-chupas espalhados pela estrada! António lá se conseguiu levantar e Carlitos também. Algumas pessoas assistiram ao desastre e socorreram-nos, ajudando a salvar todos os chupa-chupas que o António e o Carlitos recolhiam nesse momento. António, no final, ainda recebeu alguns de gratidão, o que foi um lindo gesto. António, um pouco envergonhado, mas também um pouco descarado quando lhe dava na veneta, ia à catequese só para estar com os outros garotos e ver desenhos animados projectados num pano branco. Só que a catequese não era consigo. Apesar disso, um dia vendo passar uma procissão, resolveu participar nela para se juntar à sua madrinha de quem muito gostava e que nela seguia. Mas para o António havia um problema: as suas calças estavam rotas. Escondeu-se atrás de uma esquina e resolveu tirar as perneiras às calças. Transformadas em calções, não embaraçavam ninguém.. E lá vai o António para junto de sua madrinha na referida procissão!

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António e o seu apetite Nos difíceis tempos de então, uma sardinha tinha que ser dividida por três irmãos ou quatro. Por isso, a vontade de comer que António todos os dias sofria era forte. Tão forte que o iria fazer ultrapassar obstáculos que, de outra forma, seriam intransponíveis pelo medo que lhe causavam. Havia, com efeito, uma vinha com lindas uvas douradinhas que eram uma tentação impossível de negar face ao seu apetite de criança. Mas, ai, as uvas encontravam-se do outro lado de um grande perigo: uma vala que cruzava a estrada e que escondia bichos de toda a espécie, como saramantigas às pintinhas amarelas, sapos e outros, todos bichos que o António odiaria tocar. Mas a fome era negra e o medo teve que se esquecer perante tanta vontade: lá passou a vala, passando por cima de tais bichos, e as uvas não deixaram de se comer, saciando, pelo menos momentaneamente, o seu estômago ávido de criança.

Ida para a escola António já tinha mais de oito anos e ainda não andava na escola. Um dia, estava a brincar distante cerca de 6 km de sua casa, no recinto da escola da Embra, na Marinha Grande. Era Novembro de 1952 e os meninos dessa escola estavam em aulas. Eis que surge, entretanto, um homem de bata branca que começa por lhe perguntar: “O que estás aqui a fazer?” António respondeu: “A brincar!” Não contente com tão breve resposta, este senhor fez-lhe uma série de outras perguntas: “Quantos anos tens? Onde moras? Onde estão os teus pais?” E o António respondeu: “Só tenho mãe.” “Afinal andas em que escola?” E o António respondeu: “Não ando em escola nenhuma.” “Então tens oito anos e não andas na escola? Concluiu então o senhor. “Diz à tua mãe para vir falar com o professor Quaresma, desta escola.” António, ao terminar a sua brincadeira, chega a casa já rente à noite e dá o recado à sua mãe. Passado pouco tempo, António é acompanhado pelo seu irmão João, transportando o livro da escola e a pedra de escrever dentro da sua mala, que era um saco de sarapilheira, na realidade não mais que um ex-saco de batatas, tudo o que podia ter como mala da escola. E aí vai o António junto de seu irmão. João apresenta-o à sua primeira professora, a D. Inácia, na escola da Ordem, que era a escola mais próxima de sua residência e ficava a três quilómetros de distância. E assim se dá início às suas primeiras aulas. A senhora professora já tinha uma certa idade e muitos alunos, talvez mais de 40. Só que o António valia por 80, uma vez que não sabia estar quieto, nem calado. Por outro lado, nada ajudava a esse objectivo já que mesmo os seus colegas o picavam para que lhes 14

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respondesse à letra. Por isso António não se sentia bem na escola, vivendo agora num permanente mau estar. Um certo dia, a senhora professora, já com pouca paciência para crianças difíceis como o António, pediu-lhe para estar quieto mas isso era algo impossível. “António, está quieto!”, ordenou a professora. “Olha que eu vou bater-te!” António respondeu-lhe à letra: “Se me vens bater, levas com a pedra de escrever em cima!” A professora não tem mais nada: dirigiu-se ao António, ameaçadora e de régua na mão, mas o António, mais rápido, mandou-lhe a pedra, tipo ventoinha, em direcção ao corpo, quase no momento em que a professora o alcançava. Lesto, arrancou-lhe a régua, enquanto que, consciente das consequências de tais actos, vendo a janela aberta, se preparava para fugir por ela a toda a velocidade. Os colegas, a mando da senhora professora, correm atrás do António para o apanhar mas, qual! O António parecia um canguru a fugir, pelo que foi impossível apanhá-lo! Depois disto, António nunca mais apareceu naquela escola, nem noutra qualquer, até ao ano lectivo seguinte. Sem aulas e com o Verão pela frente, António continuava a andar pelas ruas, livre como sempre, pedindo umas sandes aqui e outras acolá, mesmo até em algumas pensões, como era o caso da Pensão Julião. Nessa mesma pensão, um dia um senhor mandou-o entrar e sentar-se ao seu lado. No lugar de uma sandes, o homem ofereceu-lhe uma refeição completa, comendo em conjunto com ele. António, todo contente, disse-lhe que aquela sopa era bem melhor que a sopa dos pobres. O dito senhor perguntou-lhe a idade e qual a sua escola. É claro que o António lhe disse que já tinha andado numa escola, mas que não tinha gostado nada, nem da professora nem dos colegas. E que, por isso, já não tinha escola nenhuma! No entanto, no ano lectivo seguinte, logo após o Verão, foi colocado noutra escola, a da Embra, só que lá para meados de Janeiro, ainda não tinha ido uma única vez, recusando voltar apesar da insistência da mãe. De tanto ser instigado a ir, lá acabou por fazer a vontade à mãe e muito foi o seu espanto e alegria quando descobriu que o seu novo professor era, nem mais nem menos que o tal senhor que lhe oferecera uma refeição! António não só o reconheceu, como imediatamente gostou dele, da escola e dos colegas. Ninguém fazia pouco de ninguém. E assim António passou a comportar-se como qualquer outro aluno, ajuizado e cumpridor. O Sr. Professor Morais da escola da Embra tinha feito o milagre de o fazer gostar das aulas e dos seus colegas, transformando-o num menino bem comportadinho. Esses bons dias de escola, contudo, não iriam durar muito tempo. Um dia houve em que a mãe lhe pediu para dar um recado ao seu professor Morais de que ele, ajuizadamente, tomou devida nota: “Diz-lhe que a partir de amanhã já não vais à escola.” António ficou UMA LIÇÃO DE VIDA

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muito admirado e perguntou: “Porquê mãe?” E esta respondeu: “Diz lá ao professor que vais para casa de um padre aprender a ler, a fazer alguns recados e até tocar o sino!” O senhor professor Morais ao ouvir o recado do António respondeu-lhe: “Vai meu menino. Um dia serás um homem! E quando fores grande vens-me visitar”.

Professor Morais, aquele que lhe ofereceu comida na pensão Julião.

Partir para servir como criado Nesse meio tempo, a sua mãe trabalhava a dias, a fazer limpeza no Fotógrafo Campos, na vila da Marinha Grande, pelo que aproveitou a sua visita para o levar pela primeira vez ao estúdio de fotografia e, pela primeira vez, ser fotografado. Nunca antes o António tinha posado para uma fotografia! A sua infelicidade ficaria para sempre espelhada nessa imagem.

A primeira fotografia, quase com 9 anos, embora enfezados. Triste pelo seu abandono da escola e por ir servir. 16

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Finalmente, a uma quinta-feira, a mãe apronta-o com uma roupa nova, uma camisola muito bonita, uns calções e umas alpercatas azuis, iguais aos sapatos dos vidreiros. Era dia de mercado na Maceira-Liz, localidade onde a sua mãe vendia umas sandes e uns copos de vinho para se governar um pouco melhor. Nessa quinta-feira, António estava pronto para ir com a mãe até à feira, dando-lhe a mão, até chegar à Maceira, esperando aí junto à barraca onde a mãe vendia até à chegada do referido padre. Quando este chegou, já tarde e a fazer um pouco frio, a mãe apresentou-lhe o António. Poucos minutos depois, António pôs-se ao lado do padre para dar início a uma longa caminhada. Despediu-se de sua mãe e lá vai o António, andando de terra em terra, numa caminhada que parecia nunca mais acabar. Pelo caminho, aqui e ali, ia ouvindo sinos das várias povoações de que se aproximavam e, já noite, ia perguntando: “O sino que estou a ouvir é da sua igreja?” O Padre dizia: “Não é este, mas o outro lá mais à frente.” A cada novo sino assim ia respondendo, até que chegou à frente de uma igreja, perto da qual o padre parou, entrando numa taberna. Nessa altura, António ouviu: “Este menino é meu criado. Fui buscá-lo à Maceira.” Apesar de pensar que aquela igreja seria o seu destino final, o padre respondeu uma vez mais ao António que a sua igreja era afinal, uma vez mais, ali adiante. Continuaram a caminhar. António já chorava e tititava de frio e de tanto andar. Então aí, já noite, o senhor padre despiu o seu casaco e colocou-o por cima da cabeça do António. As mangas do casaco tocavam no chão, por isso imagine-se o tamanho do pequenito. Contudo, este gesto foi o suficiente para se sentir um pouco mais aconchegado e dar-lhe a coragem para caminhar mais uns quilómetros. Chegou assim à terra do seu novo destino: Casais de Santa Teresa, em Aljubarrota. António é apresentado à esposa do padre e aos seus três filhos mais novos, que estavam ao colo da mãe junto à lareira, esperando pelo novo criado. Nessa altura, o António estava já com muito frio e muita fome, pelo que a mulher lhe arranjou um prato de sopa bem quente. Trataram, entretanto, de fazer-lhe a cama num palheiro, junto ao bafo das vacas. António, tendo acabado de comer e exausto pela longa caminhada, não se admirou com o local onde ia dormir. Não se importou, tendo adormecido de imediato. No dia seguinte, quando acordou pela manhã conheceu mais 3 filhas do casal, todas mais velhas que ele. Foi nesse momento, que se apercebeu que tinha uma orelha roída, o que até hoje não sabe se lhe foi causado por ratos, morcegos ou cobras! Foi tratado de imediato, comeu um bom prato de sopa, arranjaram-lhe um farnel de broa, pão e toucinho dentro da sua saca e apresentaram-lhe um grande rebanho de cabras, com muitos chocalhos ao pescoço. O padre, que afinal não era padre nem sequer sacristão, mandou a sua filha abrir a porta do pátio para que as cabras saíssem. A filha mais velha, que conheUMA LIÇÃO DE VIDA

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cia bem todas as redondezas, liderou o rebanho, ensinando o caminho das pastagens ao pequeníssimo António. Comeram o farnel ao longo do dia, enquanto guardavam o gado, e já a chegar a noite regressaram a casa com as cabras. De novo se aqueceu e outro prato de sopa comeu, depois do que ajudou a fazer o comer dos porcos. Por fim, foi-se deitar na cama que já conhecia. Durante toda a semana, esta rotina se repetiu até ao domingo de manhã, dia em que o seu patrão uma vez mais lhe diz: “Vai abrir o curral às cabras.” e o António exclamou: “Mas, olhe, ao Domingo também se guarda as cabras?!” O seu patrão, sem nem hesitar, respondeu-lhe: “Porquê? Ao Domingo não comes?” António baixou a cabeça perante esta afirmação do seu patrão. Apesar de descontente, lá foi mesmo assim. Contrariado, mas foi. A sua patroa Maria acompanhou-o mais uns quantos dias, até o António decorar o itinerário rotineiro das pastagens, mas passando-se semanas, meses e anos sem que o António conhecesse os caminhos de volta à Marinha Grande, para poder fugir. António só via oliveiras, pinheiros, muita pedra e muita serra e teve que aguentar o que queria e o que não queria. Não foi fácil ter que andar os primeiros dias de calções no meio dos carrascos, guardando o gado vestido dessa maneira, entre intempéries, chuva, vento e muito frio. Pouco tempo depois, porém, os patrões ofereceram-lhe umas botas cardadas, umas calças compridas e um velho casaco, que estreou, todo contente. António era agora um pequeno grande pastor, apesar de mal se ver no meio do seu rebanho. Apesar desta benesse e da vida ao ar livre que levava, não podia deixar de pensar no que tinha deixado para trás, ao ter sido enganado pela mãe. Pensava tanto no saudoso professor Morais, que o levaria a obter alguns estudos! Com a decisão da mãe, o resultado foi ter deixado de estudar e ter desaprendido o pouco que aprendeu, ali, naquela sua nova vida! E a verdade, é que, por isso, nunca mais tinha agarrado num livro, nem feito recados, nem tocado sequer o sino! Aproximava-se o bom tempo e, por isso, o António tinha que trazer para casa, todos os dias, um feixe de lenha às costas. Depois fazer o lume, tratar da comida dos porcos, de novo tratar da sua barriguita e, finalmente, deitar. Passou-se o tempo e novo Inverno já se fazia sentir. Anunciava-se um período muito frio e, inclusive, já não era de estranhar quedas de nevão durante a noite e, muitas vezes, até de dia. Apesar do mau tempo, e mesmo assim, o António era obrigado a sair com o seu rebanho. Um dia particularmente agreste, a pastagem estava toda coberta de neve e o gado nem conseguiu comer durante todo o dia. Ao acompanhar os animais, o António acumulou, debaixo das suas botas, tanto gelo que o impedia de caminhar e de acompanhar o gado de regresso a casa. O incómodo do gelo agarrado às botas foi de tal ordem que António 18

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teve que se descalçar para poder acompanhar o rebanho. Só que as suas pernas congelaram de tal maneira, que mais pareciam duas pernas de pau. O gado chegou a casa sem ter comido nada, pelo que o seu patrão dignou-se a arranjar, aos animais, pasto seco para que, ao menos dentro do curral, pudessem saciar-se. A vida às vezes era muito complicada e António metia-se em conflitos: ele era implicações com os seus patrõezinhos uma vez por outra, outra ainda não se entendia com os outros pastores. O resultado era por vezes aparecer em casa com o nariz esmurrado, sem nem se saber como nem porquê. Mas, com o passar do tempo, as sopas fortes que comia iam fazendo efeito no corpo franzino do António. Ia-se desenvolvendo física e mentalmente e recuperando o seu atraso, crescendo para se transformar num rapaz sadio e forte. A título de brincadeira, aqui e ali, António experimentava as suas forças com os seus colegas e, uma vez por outra, com os seus patrõezinhos. Estes, apesar de mais novos, continuavam a ser mais fortes e pegavam-se com ele para o vencer. De um momento para o outro, tudo deixava de ser brincadeira para passar a ser a sério e o António zangava-se ao ponto de lhe chegar a mostarda ao nariz. Ao fim de um tempo, forte como estava, já não se deixava dominar e, pelo contrário, já se virava o feitiço contra o feiticeiro. Com os patrõesinhos, no entanto, a história era diferente: vinha o patrão comia o filho e o criado!

O dia em que o António viu estrelas de todas as cores Apesar do tempo que já passara desde que fora servir de criado, António ainda não estava completamente ciente do seu lugar, sendo um pouco desequilibrado nas suas respostas ao patrão. Certo dia, em plena ordenha das cabras, o patrão faz um reparo ao António: “Faltam aqui cabras!” ao que António respondeu: “Ná, não faltam!” Nesse preciso momento, estava ele a agarrar uma das cabras pelos chifres, enquanto o patrão a ordenhava colocado junto aos seus quartos traseiros, apontando para a púcara que se encontrava entre as pernas do animal. O patrão, sempre a ordenhar, faz de novo o mesmo reparo: “António, falta aqui gado!” António não tem mais nada e, desabridamente, responde o que não devia: “Falta uma poucachinha!...” O patrão, indignado com a rudeza da sua resposta, manda-lhe uma lamparina com as costas e dedos da mão, ao ponto de António ver estrelas de todas as cores! Com tal aparato, a cabra foge para o lado, a púcara quebra-se em mil bocados e o leite derrama-se pelo chão! Com este sucedido, jamais o António voltou a responder mal ao patrão e pode mesmo dizer-se que este acabou por ser o pai que António não teve, educando-o e castigando-o como o fazia com os filhos. Contudo, permanentemente outros pensamentos cruzavam a cabeça do nosso jovem UMA LIÇÃO DE VIDA

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pastor. O que teria sido do António, caso não tivesse sido enganado pela mãe? Que outro futuro poderia ter tido, se o padre que seguira não tivesse sido uma mentira, transformando-se afinal num patrão rigoroso e severo com o António? A estas perguntas juntavam-se incessantemente, na sua memória, as imagens da escola e do professor Morais que lhe dizia no momento da despedida: ” Vai meu rapaz, um dia serás um homem!” Estas palavras ficariam para sempre e era nisso que pensava quase todos os dias. Era assim que António, sózinho, se considerava já: um homem. Certo dia, houve uma festa em casa de um familiar do patrão. Esse seria um dia de muita fartura em que, sabia-se de antemão, iria haver muito que comer e escolher. António resolveu por conta própria não levar farnel para o seu pastoreio, nada comendo ao longo de todo o dia, enquanto guardava o rebanho. Ao fim do dia regressou a casa, não só esfomeado, mas muito fraco por nada ter comido. Foi logo pôr o gado no curral e dirigiu-se a toda a pressa para a desejada festa, uma matança de porco, em casa da mãe do, ainda hoje famoso, Zé Café. Todos os convidados já lá estavam quando António chegou. António, ao ver as mesas com tanta fartura, começou num lado e acabou no outro, até ter enchido a barriga à fartazana, recuperando o dia perdido sem nada ter comido, comendo aqui e ali, um pouco de tudo. Passado um bocado, depois de bem saciado e muito satisfeito pela sua barriguita cheia, começa aos gritos: “Ai a minha barriga!” gritando por todos os cantos e rebolando por todo o lado. A sua sorte foi uma velhinha que lá estava, a avó do Zé Café, que imediatamente lhe prestou socorro, dizendo: “Anda cá meu menino, vou fazer uma massagem à tua barriguita”. Colocaram-no em cima de uma mesa, de barriga para cima, as santas mãos da velhinha passam pelo azeite quente da candeia e começam a esfregar a boca do estômago do garoto. António continuava a gritar e a velhinha a afirmar: “Está quietinho meu menino, que as tuas dores já vão passar”! Passado um pouco, depois de muito ser massajado, António deixou a pouco e pouco de gritar para começar a sorrir e a velhinha diz, contente: “Já temos menino!” O António levantou-se, pronto para outra, desejando no entanto que não voltasse a acontecer!

Um dia negro e chuvoso na vida de António Há dias que se recordam pelas alegrias, outros pelos episódios cómicos, outros pelas tristezas ou mesmo pelos acidentes. Um dia houve que se fixou na memória de António pela grande desgraça que quase lhe acontecia. Era um dia chuvoso e os caminhos estavam cheios de poças de água e lama e ele, como habitualmente, acompanhava calmamente o seu rebanho. Eis senão quando um dos animais se lhe atravessa indavertidamente à frente, levando-o a tropeçar nas suas pernas e, desgraça!, fazendo-o cair para cima dos seus 20

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chifres, onde o seu queixo se foi cravar. Assustado com aquele peso repentino em cima, o animal desata a correr, arrastando o pobre António durante alguns metros. Sempre agarrado por um dos lados do queixo aos cornos do bicho, consegue finalmente soltar-se, ficando, no entanto, bastante maltratado pela corrida desenfreada, preso daquela forma dolorosa. António, rasgado profundamente e ensanguentado até mais não, arrasta-se durante cerca de 2 km até casa. O seu patrão, ao vê-lo naquele estado deplorável, corre para o ajudar e trata-o de forma quase carinhosa. Desinfecta-lhe cuidadosamente o corte e, usando uma daquelas mesinhas tradicionais milagrosas, abre uma fava seca ao meio que coloca sobre o orifício aberto na lateral do queixo. Pega num lenço de cabeça da sua mulher e ata-o a toda a volta da cabeça e queixos do António como forma de manter aquela mistela sobre a ferida aberta. O facto é que, oito dias depois desta aventura, sem mesmo ter ido ao médico, já não era nada com o António. Estava curado! O tempo ia passando e o António pastor lá deambulava com o seu rebanho pela Serra dos Candeeiros. Ao contrário de hoje, durante todo esse período, nunca viu fogos pelas serranias, mesmo com todos os pastores a fazer altas fogueiras para se aquecerem nos tempos mais agrestes. Ao deslocarem-se de um lado para o outro, os pastores tinham artes de manter o fogo aceso e preservar a serra de calamidades tão escusadas, nunca a pondo em risco. Uma das práticas mais usadas era levarem a própria fogueira consigo, recolhendo as brasas, antes que apagassem, para uma lata. Transportavam-na então consigo, pendurada numa asa comprida de arame de forma a não se queimarem. Voltar a ateá-la num outro local era simples desta forma, tanto mais com a ajuda da lenha de pequena dimensão, abundante por toda a serra. Não se usava, contudo, madeira de maior envergadura, já que esta era mais escassa por muito procurada para cozer o pão, a comida e até fazer a cama do próprio gado. Encontramos António, nesta altura, em plena época dos cereais a secar nas eiras. Milho, feijão, trigo e outros abundavam e eram ciosamente trabalhados, secos e guardados. Todos os dias, depois de chegado a casa, e logo após o seu prato de sopa, António ia para a eira a fim de guardar todos os legumes para que não ficassem sem resguardo durante a noite. A sua cama sobre umas palhas, junto à eira, era uma autêntica cabana e uma forma de dissuadir eventuais ladrões de legumes, já que para os poderem surripiar teriam que deslocar o criado durante o sono. Mesmo com sono pesado e sendo apenas um miúdo, era uma pessoa que ali estava e sempre impunha algum respeito, desencorajando eventuais espertinhos. Nem mesmo a possibilidade de alguém aparecer com tão más intenções, impediam o António de dormir a sono solto.

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António pouco culto, sem qualquer instrução primária A sua escola era guardar gado e a verdadeira escola era já uma miragem, lá longe na Marinha Grande, para onde não sabia voltar. Já tinha dez anos, quando um dia o seu patrão é abordado pelas autoridades de Alcobaça, pelo facto de ter um criado com idade de andar na escola e este não a frequentar. Intimado oficialmente, o patrão teria que devolver o seu criado aos pais a fim de receber a instrução primária, sendo obrigado a apresentar o criado às autoridades da Marinha Grande. Um dia pela manhã bem cedo, o patrão agarra no seu criado e põem-se uma vez mais a caminho, desde Aljubarrota até à Marinha Grande, atravessando serras, vales e pequenos lugarejos, em percursos labirínticos e secundários, sempre por forma a que António não ficasse a saber como encontrar o caminho de volta para a sua terra. Depois de chegar à Marinha Grande, o patrão apresenta o caso à mãe de António e, logo de seguida, apresentam-se às autoridades e à delegação escolar. Contudo, a sorte não estava do lado do António e poderá até talvez ter havido alguma mão intencional que fez esquecer os últimos bons tempos do António na escola do professor Morais, momentos felizes que não ficaram registados: a delegação escolar deliberou que o patrão podia levar o menino de volta, dado os seus negros antecedentes com a professora anterior ao professor Morais, que assim o impossibiltavam de continuar na escola. Depois da apresentação, a mãe, o patrão e o próprio António - que era mantido sempre à vista para que não fugisse - conseguiram um documento que validasse o facto de António se manter na sua situação, sem instrução e sem ter que frequentar o ensino básico. Desta forma, as autoridades de Alcobaça nunca mais incomodariam o patrão. E assim foi, lá prosseguindo António no seu emprego de pastor, ganhando o seu próprio sustento, criança feita homem à força, sem instrução e sem forma de a vir a ter. De volta ao mundo que já conhecia, nada o tinha preparado para o que vinha a seguir. Um castigo, por um acto impensado que teria consequências durante cerca de seis meses. Um dia, ao chegar a casa, cheio de frio e todo molhado, preparava-se para acender a lareira, mas não encontrava um único cavaco para a fazer. Na lareira, estava uma trempe sobre o que restava do fogo, umas brasas parcialmente cobertas de cinza. António, sentindo-se terrivelmente desconfortável e de pés molhados dentro das botas estreadas há pouco tempo, descalça-as e pensa resolver dois problemas, colocando-as em cima da trempe, enquanto vai à procura de lenha para re-atear a fogueira. De volta da recolha, pousa a lenha e nesse momento olha, estupefacto, para a trempe. Em cima desta, dois torresmos em lugar das suas botas fumegavam ainda. Não cabia meio pé em cada bota! Perdeu logo o frio. Não sabia como iria contar o caso aos seus patrões! 22

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Finalmente, lá arranjou coragem de participar aos seus patrões o sucedido que logo ali decidiram o castigo do António. “Vais ter que ganhar para outras com o teu trabalho e isso quer dizer que vais andar descalço aí por volta de uns seis meses!” No final, o castigo não chegou a tanto tempo, porque lhe arranjaram umas botas velhas até que ganhasse para umas novas, já que o estado em que o viam era de facto uma lástima. É que, enquanto andou descalço, António pisou muitos bicos de pedras, uma infinidade de tojos e muitos outros perfurantes, que transformaram os seus pés em verdadeiras chagas.

O dia mais negro da vida de António O António, além de ser muito curioso e não saber como se cozia o pão, passava fome dele, sempre substituído por broa de milho na sua alimentação. A sua curiosidade ainda tinha sido mais aguçada, porque em muitas semanas seguidas, se tinha cruzado com o moleiro Jacinto, que se fazia acompanhar de uma mula carregada de sacos de farinha para vários fregueses. Este, vinha dos moinhos da Portela do Vale Espinho, que ficavam lá para trás das serras dos Candeeiros, descendo ao encontro dos seus fregueses nos Casais Sta. Teresa. Pelos vistos, entre esses fregueses encontrava-se também o seu patrão como o António tivera ocasião de confirmar ao perguntar-lhe, em cada um desses três ou quatro encontros, se a farinha também se lhe destinava e ao que o moleiro sempre respondia afirmativamente. Ora, o António raramente via ou comia pão de trigo em casa dos patrões ao passo que as visitas do moleiro eram frequentes. Por isso, pôs-se à coca para vir a descobrir que a cozedura era feita na casa da mãe da patroa, a cem metros de distância. Finalmente um dia, pela azáfama que via, percebeu que era dia de cozer pão, pelo que António chegou a casa, tratou de despachar os seus deveres costumeiros e foi tentar satisfazer aquela sua premente curiosidade e por outro lado garantir que, quando pedisse pão, não lho negariam dizendo que não havia. Só que a patroazinha mais velha entendeu nessa altura mandá-lo buscar lenha para arrumar ao canto da lareira e, com ela, o António tratar de fazer a comida aos porcos. António, assim impedido de cumprir os seus desejos, recusou-se e respondeu à sua patroazinha Maria de forma peremptória: “Não vou!” E a patroazinha repetiu “Vai!” ao que António respondeu da mesma forma. “Não vou!” A patroazinha não tem mais nada e mandou-lhe um empurrão, fazendo com que António caísse. Ele não teve meias medidas e deu-lhe uma valente mordidela na perna! A patroa estava por perto e logo o ameaçou: “O teu patrão está a chegar em breve e irá saber tudo, tal e qual aconteceu.” O patrão chegou finalmente e claro que lhe contaram o sucedido, enquanto o António se encolhia cada vez mais a um canto, qual coelho pronto a fugir. Infelizmente não fugiu e logo foi agarrado pelo braço, começando a apanhar da UMA LIÇÃO DE VIDA

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cabeça aos pés, com a verdasca de marmelo com que o patrão tocava a sua burrinha. A verdasca, contudo, nunca se tinha partido no corpo do animal, mas no seu pequeno corpo acabou por partir, tal foi a quantidade de pancada que levou. Acabou finalmente por perder os sentidos. No dia seguinte, não se podia mexer e estava negro por todo o corpo. Quase toda a população ficou a saber da tareia que levou. A curiosidade de ver fazer o pão não foi concretizada, mas o seu desejo por ele foi satisfeito. Ao sentirem-se culpados por terem levado demasiado longe o castigo, a família acabou por lhe adoçar a boca com o tão ansiado manjar: pão simples. Desde então, António nunca mais pode ver ninguém a brincar com o pão e muito menos a maltratá-lo. Mesmo se caído e pisado por acidente, passou a apanhá-lo, quanto mais não fosse para o dar aos animais famintos.

António recebe a primeira visita de sua mãe, após dois anos de ausência Já depois do dia mais negro da sua vida, António recebeu a visita da mãe. Já não a via há dois anos e muito havia para contar, mas António nada lhe disse do que se havia passado. A mãe tinha vindo para pedir a dispensa do António, para que assistisse ao casamento do irmão mais velho, que iria ser algumas semanas depois. Foi-lhe dado consentimento e é assim que, pela primeira vez, toma conhecimento do percurso feito pela camioneta, na sua carreira até à Marinha Grande, feito em conjunto com a sua mãe. Quando chegou, no entanto, foi surpreendido com a notícia de que afinal o seu irmão não casaria nessa altura e por isso regressa sózinho e contrariado, de novo, à casa do patrão, usando o mesmo transporte e retomando a sua vida de pastor. Chegou, entretanto, a Páscoa, época de confissões religiosas. Os patrões, os filhos e o criado foram à confissão na igreja matriz de Aljubarrota. Claro que todos sabiam que o António nunca tinha aprendido a doutrina, nem mesmo sabia rezar o Pai Nosso nem a Avé Maria. Ainda assim, foi integrado no serviço religioso e lá comungou pela primeira vez na Comunhão anual de Páscoa. Contudo, nem por isso ficou mais santo! Continuou a ser o jovem intempestivo e pecador de sempre. Houve mesmo um dia em que, de tão zangado que estava e arreliado com o seu rebanho e com o tempo, se esqueceu da sua recém-adquirida religiosidade e mandou o Cristo para todos os lados. Mas nem assim Jesus se separou da sua vida, conforme sentia a cada momento. As coisas não iriam melhorar face ao passado. Algumas semanas depois, António apanha outra carga de pancadaria, por motivos vários e onde não era de somenos importância o facto de ter brigado com o seu patrãozito. Este, tinha uma parte importante de culpa, 24

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mas veio o patrão e, uma vez mais, apanhou o filho e o criado. Assunto resolvido! Informam-no, entretanto, da nova data de casamento do seu irmão e, chegando a altura, aí vai o António para a Marinha Grande assistir à cerimónia. Depois das bodas, e passados alguns dias, António informa a mãe que não petende voltar para os Casais Santa Teresa. “E como não, se eu não tenho meios para te sustentar?” Não querendo voltar à sua vida de pastor, arranjou nesse mesmo período um emprego como ajudante de calceteiro de passeios. Só que este novo serviço era muito mais pesado do que guardar o gado e demasiado para o seu corpo sempre franzino. A sua sorte é que, após uns dias neste novo emprego, António recebeu a visita de um potencial novo patrão, conterrâneo do seu ex-patrão, José Adelaide, convidando-o a guardar um rebanho de ovelhas por conta do senhor António Jogo. António não recusou o convite. Ajustou um contrato: uma ovelha por ano e mais os seus cordeiros e 150 escudos por ano. Completava o seu salário um fato completo e umas botas domingueiras. Nesta época com doze anos, o António já era um homenzinho. Já não era respondão nem mentiroso e sabia estar no seu lugar. Aos patrões chamava-lhes tios e, em conjunto, comiam todos da mesma panela. Quando se tratava de batatas com a pele, era comer até não querer mais. A patroa só parava de as descascar quando já todos tinham comido o suficiente e só depois de satisfeitos é que ela própria comia. Apesar de não ter lá ficado muito tempo, por esta e outras razões, toda essa família de António Jogo e sua esposa Vitória, ficou no coração de António. A razão da sua curta estadia de seis meses, na casa destes seus saudosos patrões, foi um pequeno percalço, num verdadeiro dia de azar. António pediu o canivete ao neto do seu patrão e teve a pouca sorte de o perder ou de alguém lho ter roubado no mesmo dia. Ao chegar a casa, rente à noite, acusou-se ao miúdo da perda do seu canivete. O patrão soube no mesmo momento, mas só ficou indignado com o António quando, no dia seguinte, alguém lhe veio contar uma mentira, afirmando que o António tinha vendido o dito canivete. António tinha contado a verdade aos patrões, mas estes não acreditaram e acabou por ouvir deles o que não queria e perante a sua insistência de que não o tinha vendido eles reafirmaram-no, referindo que um tal pastor lhes afirmara que sim. Não estando para ouvir mais injustiças, o António saiu dali disparado, enquanto o seu patrão contava, entretanto, ao seu filho, tio do miúdo do canivete, a história tal como a tinha comprado e dizendo que o António acabara de fugir. O Silvino, filho do patrão e o único pastor que António nunca tinha vencido nos seus confrontos pelas serras, vai ao seu encontro, agarrando-o uns metros mais à frente e dando-lhe uma biqueirada no traseiro, o que o deixou ainda mais indignado, para além de maltratado. Por isso, no dia seguinte foi à procura do mentiroso que o tinha colocado naquela situação e deu-lhe uma enorme sova. Na refrega, teve a sorte de encontrar o dito canivete na zona onde tinham lutado, o que o levou a acreditar que teria sido ele provavelmente UMA LIÇÃO DE VIDA

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quem o teria furtado. Nesse mesmo dia, o António devolveu o canivete ao neto do patrão. No dia seguinte, era suposto o António ir guardar o gado mais o filho do patrão, o tal da biqueirada, pelo que lá saiu com o gado, acompanhando-o. Mas como António tinha ficado zangado com a atitude agressiva e injusta dele no dia anterior, fez ronha, deixando-se ficar para trás, na brincadeira com os outros pastores. No final, o filho do patrão acabou a guardar o gado sózinho durante todo o dia e, ao chegar a noite, António acabou por chegar a casa depois dele. Os patrões ficaram muito zangados com esta atitude do António pelo que lhe disseram: “Amanhã vamos levar-te a casa da tua mãe, porque não te queremos cá, depois desta situação!” Só que ele, já se tinha precavido para esta eventualidade: ao ter ficado para trás durante o pastoreio, não perdeu tempo e foi conversando com os outros pastores, relatando todos os acontecimentos e procurando e discutindo soluções alternativas. Estava decidido a ir-se embora, mas não a voltar para casa da mãe, pelo que no decorrer dessas conversas com os outros pastores arranjou novo patrão, indicado pelo seu grande amigo Néo. Esta nova possibilidade ficava para trás das serras, num lugar chamado Vale da Bezerra, ao pé de Serro Ventoso, no interior da Serra dos Candeeiros. Esta decisão mudou-lhe o destino, uma vez mais. Houve uma última troca de palavras e os seus patrões acabaram por lhe perguntar se ficava ou se queria voltar para casa da mãe, mas que, se esse fosse o caso, ele teria que se desenrascar e ir sózinho. Foi o que quis ouvir: reconfirmou que voltava para a Marinha Grande e arranjou todos os seus haveres num saquinho que pôs às costas, fingindo que se dirigia à paragem do autocarro que o levaria de volta. Passando a perna aos patrões, lá mais adiante, afastou-se da direcção que levava, mudando de rumo em direcção à serra dos Candeeiros, subindo ao planalto e descendo depois ao Vale da Bezerra. Avista os primeiros telhados e encontra algumas pessoas. A uma delas pergunta pelo Sr. Joaquim Deolindo. Calhou que perguntasse precisamente à tia deste. Ela respondeu-lhe que o seu sobrinho tinha saído logo pela manhã, com a esposa. Ainda era bastante de manhã e a senhora perguntou ao António se este precisava de comer. António encolheu os ombros e aceitou uma boa sandes de presunto. Ali ficou a brincar com o filho da senhora, o Silvino, até rente à noite. Já noite, chegou o Sr. Joaquim Deolindo e a mulher e a tia perguntou-lhe: “Querias um criado? Aqui o tens! Chegou pela manhã e por aqui se entreteve com o meu filho. Agora está entregue”. O António, um pouco envergonhado, sendo quase noite, não sabia o que fazer dado que, na realidade, tinha ido um bocado à sorte, sem certezas. Por isso, acabou por perguntar se precisava de um criado ao que o Sr. Joaquim Deolindo respondeu que sim. O futuro patrão fez-lhe umas quantas perguntas, a que António respondeu: de onde 26

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vinha, quantos anos tinha e porque tinha saído de onde saiu. Até mesmo lhe perguntou quanto aí ganhava. De seguida, satisfeito com as respostas, mandou-o entrar para dentro de casa, dando-lhe a comer um prato de sopa e fazendo com que António se sentisse um pouco mais animado. Da conversa entre António e o futuro patrão ficou assente que este ia começar a trabalhar com o mesmo contrato feito com o patrão anterior. Nem sequer lhes veio à lembrança, a qualquer dos dois, se a mãe do António o autorizaria, ou não, a trabalhar para um novo patrão. Como o António já conhecia a serra, não foi necessário o patrão ensinar-lhe o caminho das pastagens, mais ainda sabendo o gado, por si próprio, por onde havia de pastar. Era só necessário o António acompanhar o rebanho de cabras ao longo dos seus percursos habituais. Umas semanas depois, quando António já se sentia bem em casa do novo contratante, a mãe lembrou-se de o visitar, procurando-o ainda na casa do anterior patrão. Este ficou bastante enfadado com o facto, não sabendo responder à mãe de António quanto ao seu paradeiro. Lá houve alguém, entre os outros pastores, que deram a dica de que o António estava atrás da serra, numa nova casa e fazendo exactamente o mesmo. O seu irmão João, em conjunto com o tio do miúdo do canivete, vão à procura do António, na tentativa de o trazer de volta à casa do pai deste ou, alternativamente, para casa da mãe. Mas António aí recusou e fugiu. E ninguém mais o agarrou. O rebanho chegou depois do pastor à casa do novo patrão, nesse dia! Depois desta cena, passaram-se três anos em casa de Joaquim Deolindo sem que sua mãe o visitasse, nem o António a ela. Durante esse período, muitas aventuras lhe aconteceram, mas uma em especial recorda pela ansiedade que lhe causou. Certo dia, muito chuvoso e ventoso, com muito frio à mistura, António sai de casa com o gado para que este pastasse numa zona que lhe era pouco conhecida. Rente à tarde, cai um nevão muito forte, de tal forma que pouco mais de um metro se via à frente do nariz. Com muita aflição, percebeu que tinha perdido o norte, não sabendo para que lado caminhava, imaginando que a casa ficava para um lado e incitando o gado nesse sentido. O gado, contudo, teimava em seguir para o outro e António já chorava, de perdido que estava. De facto, nesta teimosia entre o gado e ele, em tomar direcções opostas, tinha ficado a perder. Acabou por se resignar e seguir o gado, imaginando que se estava a distanciar cada vez mais de casa e chorando sempre. Passado um bom bocado, começou a ouvir cães a ladrar e a descobrir alguns telhados, que com alegria percebeu serem da área onde residia. Só nessa altura parou de soluçar de tanto chorar, pois com alegria verificou que o gado afinal tinha mais sentido de orientação que nós, humanos. Depois de um percurso feito em lágrimas é óbvio que ao chegar UMA LIÇÃO DE VIDA

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a casa, tinha cara de choro, tendo os olhos inchados e o nariz ainda a fungar o que levou o patrão a perguntar-lhe o que tinha acontecido. Às explicações de António, o patrão sossegou-o: “Quando tal acontecer, só tens que seguir o rebanho, pois ele entrega-te sempre cá em casa!” O Inverno continuava e o António, dada a chuva, molhava-se muitas vezes, não havendo chapéu que aguentasse as ventanias e cargas de água. Com a sua esperteza, engendrou uma forma de não acabar sempre encharcado. Resolveu arranjar dois sacos, vazios de pulgueira e forrados a alcatrão, cortando o fundo de um deles e fazendo dois buracos laterais para os seus braços. Enfiou o saco pela cabeça e ficou assim vestido de modo a não se molhar. Do outro saco, fez um capuchinho, o que lhe evitava ter que usar chapéu. Quando chegava a casa só tinha que se enxugar um pouco nas perneiras das calças e nas botas. De resto, ficava enxutinho, poupando assim a roupa, pronto para o dia seguinte!

Aprender a ler António estava com treze anos. Um belo dia, a patroa Albertina dirigiu-se-lhe, perguntando-lhe se ele gostaria de aprender a ler. António mostrou-se interessado e a patroa comprou-lhe logo um livro do catecismo, com muita doutrina e muitas figuras bonitas. Poucos dias depois da estreia do seu livrinho, com as explicações da sua patroa, começou a juntar as letras e em pouco tempo o António estava a devorar o livro, aprendendo toda a doutrina. Algo que não tinha sucedido nem no seu primeiro patrão com pretensões a padre e que nem sequer sacristão era! Para além de aprender a ler, aprendeu a escrever o seu nome e a fazer algumas contas, como somar e multiplicar e até mesmo dividir, recuperando assim um pouco do seu atraso escolar. A patroa Albertina continuava a comprar-lhe novos livros e António A patroa Albertina nunca mais parou de ler nem escrever. De volta ao bom tempo do Verão, e enquanto guardava o gado, o António tinha por sistema dormir a sua sesta ao ar livre. Enquanto o gado ia e voltava, António acordava com o tocar dos chocalhos das suas cabrinhas, som a que se tinha habituado. Numa dessas tardes de sesta, dormia junto ao chamado “pocinho”, local onde muitos pastores paravam por haver uma pequena lagoa que nunca secava. Mesmo com uma água da cor do barro, permitia às cabrinhas, e aos próprios pastores, beberem à sua vontade. Eis que António acorda repentinamente, ao som, não dos chocalhos das suas cabrinhas, mas de um assobio muito esquisito. O assobio era nem mais nem menos do que o silvo 28

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de uma grande cobra que se aproximava, voando por cima do António, apenas com o seu rabo apoiado no chão. Apesar do réptil ter continuado o seu voo sem o incomodar, foi tal o seu susto que o seu cabelo eriçou como os espinhos de um ouriço e a partir daí nunca mais adormeceu enquanto pastoreava.

A música na sua vida António sonhava em ter uma gaita de beiços, instrumento que, na região, era conhecido por realejo e que via, aqui e ali, ser tocado pelos pastores nas serras. Queria aprender algumas músicas para tocar com o realejo, mas não sabia sequer como arranjar um. Uma noite, sentado à lareira da Ti’ Deolinda, mãe do seu patrão, confessa-lhe que gostaria de ter um realejo. O senhor seu marido fez-lhe um prometido: “Se me cortares uma carrada de mato, que os meus bois quase nem suportem a carga, ganhas o realejo!” António não precisava ouvir mais nada: com tanto vagar durante o dia, e as cabrinhas a pastar, era ver o António a cortar o mato. Não descansou enquanto não cortou a grande carrada. Depois, foi só dizer à Ti’ Deolinda e ao Ti’ Zé que o seu mato estava cortado e pronto a carregar.

A “avó” Ti’ Deolinda ofereceu-lhe o seu primeiro realejo, nome vulgar para gaita-de-beiços, a troco de lhe cortar o mato. Nele aprendeu e tocou muitas canções da época. UMA LIÇÃO DE VIDA

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Poucos dias depois, António tinha o almejado realejo em seu poder e lá começou a ensaiar uma quantidade de músicas, enquanto seguia atrás das suas cabrinhas. Usufruiu até mais não desta novidade na sua vida, aprendendo letras e melodias que ouvia aqui e ali. Uns meses mais tarde, encontra o seu amigo Néo, o mesmo que lhe arranjou o patrão onde se encontrava e fez-lhe uma proposta: “Tenho aqui este realejo. Como tu encontraste um enxame de abelhas, podemos fazer uma troca. Dou-te o realejo e tu dás-me o enxame. Que tal? Mas só aceito na condição de a abelha mestra não ter sido morta quando o encontraste, porque senão não me vale de nada o enxame! E se assim for, quero o meu realejo de volta, combinado?” Segundo o conhecimento do seu patrão, que tinha ensinado o António, quem encontrasse um enxame tinha que ter o cuidado de não matar a abelha mestra, de contrário todas as abelhas acabariam por morrer. Néo afirmou que esta estava viva e aceitou a troca e o António levou o seu enxame. Passados uns dias, contudo, António encontra várias abelhas mortas no cortiço onde viviam e informa o Néo, seu amigo, do facto. Néo, seu amigo, ao ouvir as suas palavras não disse nem ai, nem ui, não se acusando de ter morto a abelha mestra. Mais uns dias à frente, António viu a grande maioria das suas abelhas no fundo do cortiço, todas mortas. António vai de novo ao encontro do Néo, apenas acompanhado de um pau para qualquer eventualidade, com o intuito de o acusar da morte de todo o seu enxame e reclamar o seu realejo de volta. Encontra-o a cortar mato, de enxada na mão, com o Zé Zenha e o filho do seu primeiro ex-patrão. Quando António o aborda e diz que quer o seu realejo de volta, todos ouviram, mas António estava só. O Néo, esquecendo-se do acordo feito com o António, e não gostando da sua exigência, levanta a sua enxada para lhe dar com ela e, assustando-o, desta forma o afastar. Só que a razão estava do lado do António e, por isso, apesar da ameaça da enxada no ar, António pensou para consigo, cego de fúria: “Este tipo vai levar uma, a todo o tamanho. Vai ficar por terra a dormir!” E assim aconteceu! De facto ficou a dormir, mas desmaiado pela pancada que levou! Os seus colegas assistiram a todo este aparato e afirmaram: ”Mataste-o!” António ficou um pouco assustado e retirou-se um pouco mais para cima do local do confronto para ver no que dava. Passado um bocado, o Néo acorda, todo transpirado, gritando: “Ai, a minha barriga!” e, levantando-se, foi ao encontro de alguém que o socorresse. Os colegas nada fizeram por ele, porque já em ocasiões anteriores António os tinha dominado, acobardando-se por isso de o enfrentar de novo. Mas em socorro do Néo, para se juntar a estes, vieram várias outras pessoas que trabalhavam no campo, nas imediações, tentando cercar e agarrar o nosso pastor. Nunca antes este tinha subido a serra tão depressa! Correu para um ponto bem mais alto que os atacantes e rapidamente ficou fora do alcance das suas mãos. Contudo, ao ver chover pedregulhos à sua volta, o António desceu os cerca de 100 m que tinha subido e muitos outros mais! Os que o perseguiam 30

UMA LIÇÃO DE VIDA

para o ajuste de contas, perderam-no assim de vista enquanto ele descia a toda a brida, para a planície. Aí encontra o Sr. Manuel Inocêncio, um amigo já com uma certa idade, mas ao querer contar-lhe o sucedido, estava de tal forma sem fôlego que nem o conseguiu. Ao chegar a casa, o António conta a história ao seu patrão, que sorria ao ouvi-la. No dia seguinte, António recusa-se a guardar o gado para os lados onde geralmente todos os pastores se encontravam, sabendo de antemão que ia apanhar de todos os seus colegas. Por António se ter recusado a guardar o gado nestas condições, sabendo o risco que corria, o patrão resolve substitui-lo, mas munido de uma espingarda de dois canos, indo o António por sua vez cortar mato. Lá segue o rebanho com o patrão pelas serras fora. A certo ponto, e inevitavelmente, avistam Néo e os seus colegas. À medida que se aproximava, escondido no meio dos animais, o patrão de António ouve-os dizer: “Se o rebanho dele está aqui, ele deve andar por perto!” Acercaram-se do rebanho, com o intuito de o agarrar ou levarem os animais consigo, quando de repente o patrão de António se levanta, ao mesmo tempo que dava alguns tiros para o ar, afugentando-os, espavoridos. Conforme contou o seu patrão mais tarde, desataram a fugir pela serra abaixo, a tal velocidade que nem os seus próprios cães os alcançavam. Daí em diante, apesar do António não andar muito tranquilo, nunca mais o procuraram, nem para vingança, nem para qualquer outra coisa. António lamentou bastante o sucedido, porque no fundo perdeu um amigo por causa de uma situação sem jeito nenhum. Enxames de abelhas há muitos, mas um amigo valia muito mais! Anos depois teria, apesar disso, uma nova oportunidade de emendar a mão da sua fúria algo despropositada com o Néo, ainda que o reencontro não fosse o suficiente para recuperar o que poderia ter sido uma saudável e duradoura amizade ao longo da vida. Nunca passará a mesma água debaixo da ponte e esta amizade assim ficava pelo caminho, perdida, apesar de mais tarde perdoado todo o incidente.

António e Francisco Póvoa, dois pastores grandes amigos Salvo este percalço, que lamentou durante bastante tempo, a vida corria de feição ao António neste seu novo patrão, podendo mesmo dizer que era feliz. Aliás, depois da lição aprendida, fazia por criar e manter as suas amizades sempre em boa harmonia. Um desses amigos a quem prezava muito era o Sr. Póvoa. Embora António tivesse os seus 13 anos e o Sr. Póvoa 70, não havia diferenças de idades nem de amizade. Enquanto um levava chouriço o outro levava toucinho. Enquanto um levava queijo, o outro levava UMA LIÇÃO DE VIDA

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morcela. Assim se fazia boas “vaquinhas” com a troca de lanches. O Sr. Póvoa, experiente que era sobre as planícies e montes da serra, explicava ao António os seus perigos, especialmente nos dias de nevoeiro, em que qualquer pastor estava sujeito a cair dentro de algares, alguns deles com centenas de metros de profundidade. António foi aprendendo, assim, a respeitar a serra e a ter cuidado. Conheceu muitas grutas, algumas das quais foram local de refúgio para muita gente nos tempos da invasão francesa. Nos dias que corriam, serviam ainda de recurso em dias de temporal, já que era aí que se acoitavam pastores e rebanhos para fugirem às intempéries. Um outro amigo com quem se dava era o Francisco. E partilhava com ele o seu amor às frutas.

António e o seu grande amigo dos tempos de pastoreio, Francisco Refriano. 32

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Uma das coisas que o penalizava na sua nova vida, e que lhe deixara saudades dos Casais Sta. Teresa, era o facto de não haver pomares e fruta abundante. Aqui, atrás das serras, as frutas não se encontravam à mão de semear, o que lhe fazia ansiar ainda mais por elas. Não perdendo o sentido em as obter, pôs a sua mira nas vinhas das charnecas, propondo um pacto ao seu amigo Francisco Refriano: “Ficas com o meu rebanho, eu desço às charnecas, às vinhas que conheço e ficamos, cada um, com metade do que eu conseguir apanhar.” Tanto é ladrão aquele que vai à vinha como o que fica do lado de fora e as uvas eram para os dois, por isso mesmo. António deixou então o seu rebanho com o amigo Francisco, e lá desceu os quase 400 m de altitude da Serra dos Candeeiros, em direcção à charneca. Em kms a descida daria bem os seus dois ou três, que ele fez a correr. Sendo muito esperto, apesar da vontade com que ia, ao chegar ao pé da vinha de uvas douradinhas, e antes de lá entrar, mandou umas tantas pedras para dentro do terreno. De lá só saíram pardais, o queria dizer que o dono não andava por ali! Nessa altura, entrou à confiança e à medida que ia comendo ia também enchendo o saco. Assim que o viu cheio, põs-se de novo a caminho de volta à serra, subindo a mesma altitude de volta, desta vez mais devagar, pelo carrego que trazia. Quando chegou, fez a divisão prometida e ainda levou uma boa parte para casa dos patrões. Passados tempos, dada a cada vez maior proximidade entre os dois amigos de aventuras, nova façanha se passou com os dois, desta vez com outro tipo de fruta. Um belo dia, com efeito, resolveram comparar os seus “amendoins”. Apesar de descontar o facto de ser mais novo, António afirmava que o seu, mesmo assim, não devia estar tão pequeno. Refriano, querendo ajudar e tendo sido aconselhado por um amigo, sugere ao António que use “leitarigas”, umas pequenas ervas, na cabecinha do “amendoim, crente de que era uma boa solução. António seguiu o conselho, sem pensar que poderia ser uma esparrela do amigo de Refriano. De facto, o “amendoim”, logo após a aplicação da mezinha, começou a crescer e de tal forma cresceu e continuou a crescer que, após andar uns tantos kms, no caminho de volta a casa, já não podia com dores, não conseguindo evitar os gritos: “Ai, a minha cabeça!” Já nem jantou e só conseguia mesmo gritar. De tal forma gritava que veio a patroa e lhe perguntou o que se passava. E o António sempre a gritar: “Ai a minha cabeça!” A patroa, convencida que lhe doía a cabeça, com uma enxaqueca ou algo assim, entrega-lhe uns comprimidos dizendo: “Toma para a dor de cabeça. Passa já.” E o António logo a responder: ”Não é esta cabeça que me dói. É a cabecinha de baixo!” A patroa vai-se dali afirmando que então esse problema não era com ela e chegando junto ao marido diz-lhe: “Vai lá ver o que se passa com o criado!” O patrão abordou-o, perguntando: “Afinal o que se passa?” E o António contou-lhe o sucedido. O patrão sai e traz-lhe banha de porco ou um outro produto gorduroso UMA LIÇÃO DE VIDA

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qualquer e diz: “Toma lá esta mezinha, esfrega devagar, devagarinho e amanhã estás bonzinho.” No dia seguinte, na verdade, ainda não estava completamente bom, mas já conseguia andar! Passados uns dias, já António estava bom e em condições de dizer que aquela receita do seu amigo, se bem que fazendo crescer, não era a mais indicada!

Chega o tempo das searas Tempo tórrido, tempo de colheitas e de descamisadas do milho. Eis-nos com o António e suas vizinhas numa eira cheia de maçarocas de milho. Todos juntos enfrentavam uma grande pirâmide de milho por descamisar. Estes eram dias e noites de verdadeira diversão. Fazia parte da tradição que, por cada espiga riscada que caísse na mão de um rapaz, se ganhava um beliscão dado a cada colega ao seu lado. Se, em vez desta espiga, aparecesse uma espiga preta, então daria ao amigo mais próximo um aperto de mão e um abraço à rapariga que mais gostava. Assim se passava o tempo e o trabalho se tornava fácil, durante toda a descamisada. Alegria não faltava e a descamisada estendia-se pela noite dentro, ao fresco e à luz das candeias. António completava 15 anos e era um moço bem-parecido, com muito boas ideias. Nesta altura, já pensava em ter o seu tempo livre para ir à missa ver as raparigas. Elas aperaltavam-se para o efeito, lindamente vestidas, e ele sonhava já em namorar com alguma delas e, quem sabe, até casar e ter a sua própria casa ali por perto. Certo dia, explica os seus desejos ao patrão: deixar de ser pastor e começar a ser agricultor. Talvez por conta da mãe do patrão, a Ti’ Deolinda, a quem António chamava

As visitas, ao longo da vida, à terra que lhe deu tudo. Nesta foto, com aquela a que chamou sempre avó, mãe de Joaquim Deolindo, provando que ainda sabia ceifar o trigo. 34

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avó, e já que a mesma tinha muitas terras. O patrão percebeu logo as suas intenções e respondeu-lhe: ”Tudo pode acontecer. Damos o terreno para a casa, pedra há com muita fartura e podemos ajudar-te nas madeiras. Só não te arranjamos namorada. Quanto a novo patrão também se pode arranjar. Tenho um amigo que tem umas pedreiras, mas aviso-te desde já que é um trabalho muito duro.” E António respondeu: “Não faz mal. Eu quero é trabalhar para ter o meu ordenado e um dia ter a minha casa”. O patrão tirou-se dos seus cuidados e foi um dia ter com um dos seus amigos que tinha pedreiras na freguesia de Alvados, Porto de Mós e, desta forma, lá conseguiu o pretendido trabalho para o seu criado. Um dia à noite, o patrão revela a boa nova dizendo: “Já tenho novo patrão para ti. Vais trabalhar na pedreira do Sr. Margaça.” António ficou todo contente, ansioso por começar o seu novo trabalho, mas só alguns dias depois a mulher do patrão lhe apronta os haveres necessários à partida. Os preparativos que fez incluíam mantas e mantimentos para 15 dias, o que fez com todo o carinho, tal e qual como se de seu filho se tratasse. Eis António, com o seu saco às costas, pronto para partir para a tal pedreira, distante uns longos quilómetros, em conjunto com um outro colega que já sabia o caminho. Juntos, ainda de madrugada, lá foram pelas serranias fora, atravessando montes e vales, chegando ao início da manhã a Alvados, onde iam ambos permanecer num local, em conjunto com todos os seus colegas de trabalho. Às oito horas da manhã, começa o seu primeiro trabalho na pedreira da serra de Aire, acartando sacos de entulho, do fundo da pedreira para fora, um após o outro, durante todo o dia. À noite, regressa à casa perto da igreja, onde todos os trabalhadores, juntos em restolhada, comiam e dormiam. Nesse dia da chegada, início de semana, observou todos os colegas a aprontarem comida em grande quantidade, cada qual nas suas panelas. António, inexperiente e como nada sabia de cozinhar, pede explicações e ajuda para fazer a sua primeira panela de sopa, para o que a sua patroa lhe tinha acautelado todos os ingredientes. Seguiu as instruções dos mais velhos e assim concluiu uma sopa. Ao descuidar-se com a quantidade de arroz a panela transbordou e o arroz mais parecia pipocas a saltar da panela para fora. Com isto garantiu logo uma sopa de longa duração. António comeu da sua sopa, ainda assim, mas mais parecia sopa de pedra. Ao longo da semana, a sua panela manteve-se sempre cheia e até foi melhorando, já que só tinha que ir acrescentando, todos os dias, mais água e sal. Durante 15 dias, o clima manteve-se bastante ameno, mas ao fim desse tempo veio um temporal que quase parecia um dilúvio. Não parava de chover e os trovões pareciam abanar toda a serra. Isto significou vários dias sem trabalhar e sem ganhar. António, desanimado e com os seus mantimentos a acabar, teve que regressar de novo a casa dos seus patrões para se abastecer e voltar ao trabalho. Contudo, o retorno acabou por não acontecer, já que o tempo continuava muito mau. António tomou então uma UMA LIÇÃO DE VIDA

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António, com 16 anos, quando regressa a casa da mãe, após ter servido 5 patrões. Trabalhou arduamente para obter este seu 1º fato.

No dia em que estreou o 1º fato, relógio e botas de domingo (em calfe), oferecidos pelo 4º patrão. Ao não aceitar a bofetada, também não ficou com estes atavios. 36

UMA LIÇÃO DE VIDA

decisão: regressar a casa de sua mãe e tentar aí a sua sorte. E assim foi. Poucos dias depois de voltar à Marinha Grande, António arranjava já trabalho numa serração. Semanas depois é, no entanto, abordado pelo Sr. Manuel Sebastião que lhe propunha um novo contrato de trabalho lá para os lados de Serro Ventoso, perto da família que acabara de deixar e a quem se sentia ligado. O trabalho seria na agricultura, como ajudante do pai de Manuel Sebastião. António continuava a amar as serras e por isso não olhou para trás: seguiu para Serro Ventoso, começando a trabalhar na agricultura com um contrato aliciante: 150 escudos por mês e um relógio de pulso, um fato e botas ao fim de seis meses. Já estava aí há algum tempo quando, certo dia, por algo sem importância passado no trabalho, o patrão, naquele dia mal-disposto, lhe ofereceu uma bofetada. Não lha chegou a dar e no dia seguinte António pediu as contas. Os meses foram recebidos, o relógio e o fato ficaram em casa do patrão. Concluía 16 anos de idade. Não era agora que um novo patrão lhe daria uma bofetada, quando o anterior, sendo ele mais novo e mais reguila, nunca sequer o tinha ameaçado com uma. António já era um homenzinho e, apesar de não ter qualquer grau de instrução, nem a primária, não respondia a ninguém com falta de educação. Entendeu por isso que não merecia tal afronta e assim se foi embora, regressando de novo a casa da mãe. António nunca esqueceria todos os amigos que foi deixando por todo o lado onde passou. Dos Casais de Santa Teresa, não esqueceria o seu primeiro patrão, o Sr. José Adelaide que, apesar de severo, tinha sido como o pai que António não teve. Custara-lhe muito de início a sua rigidez e, na altura, tinha-lhe sido difícil compreendê-la, mas talvez se não tivesse sido isso, e dado o seu passado de rebelde, não seria o homem em que se tornara. Equilibrara-o face ao seu futuro e dera-lhe, de alguma forma, orientação, sem nem esquecer os seus princípios religiosos. UMA LIÇÃO DE VIDA

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Numa das suas visitas ao 1º patrão, o Ti’ José Adelaide, o homem

Por sorte, nessa mesma altura, o irmão Adelino ocupava-se de umas pequenas obras de reconstrução dentro da fábrica de plásticos INA no que António se prestou a ajudar. Durante essas obras, o patrão da fábrica tinha referido a necessidade de um trabalhador para uma pequena máquina de fabricação de plásticos e pediu a dispensa do António, das obras em que participava, para ocupar o posto de operador de máquina de plásticos. Num instante, António adaptou-se ao fabrico de pequenas peças de plástico e foi desta maneira que lhe aconteceu aprender um novo ofício e começar assim uma nova profissão.

que lhe endireitou o destino de miúdo

Na última fábrica

bardina, com a sua

de plásticos onde

justa severidade.

trabalhou, a Upla.

Da Bezerra, não esqueceria nunca a família que o acolhera tão gentilmente e o defendera em circunstâncias às vezes até difíceis, como naquela ocasião de confronto entre pastores. Comiam juntos, patrões e criado, com ele partilhavam a sua vida e respeitavam-no nas suas escolhas como mais nenhuns antes o tinham feito. Nova fase, portanto, se iniciava. António após ter chegado a casa de sua mãe, tinha uma grande preocupação: arranjar rapidamente trabalho para que ela não tivesse que o sustentar nem um dia. Os padrinhos de António, Ti’ Joaquim Deolindo e Albertina, anos depois de trabalhar para eles: os patrões que foram mais que família.

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UMA LIÇÃO DE VIDA

António, com a energia dos seus 16 anos já feitos e querendo impressionar, começou a fabricar peças a toda a velocidade, ao ponto de produzir o dobro dos colegas que trabalhavam na mesma função e máquina. António recebeu do patrão grandes elogios da boa quantidade de artigo fabricado, mas simultaneamente acabou por lhe causar algum incómodo. Com efeito, admirado com tal quantidade produzida o patrão não se coibiu de censurar os outros trabalhadores: “Expliquem-me a razão desta criança conseguir produzir o dobro das peças que vocês produzem!” Apesar desta situação, foi bom que assim tivesse acontecido porque, logo de seguida, o seu ordenado foi aumentado e foi contratado para continuar a trabalhar, não nas obras, mas na fabricação. Para o efeito, pediram-lhe o bilhete de identidade e o diploma da 4ª classe. António, infelizmente, não tinha nem uma coisa nem outra. O Sr. Aires Roque, contudo, deu-lhe a oportunidade de continuar a trabalhar e estudar ao mesmo tempo, de modo que conseguiu tirar a sua 4ª classe nos adultos. Ganhava 35 escudos/dia o que já era um bom UMA LIÇÃO DE VIDA

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ordenado em 1960. Comprou rapidamente os seus livros e foi para a escola dos adultos à noite, conseguindo trabalhar durante o dia. António mostrou desta forma que não era assim tão rude, porque em 3 meses o diploma estava na sua mão. Foi assim que conseguiu mais uma grande vitória na sua vida profissional e formação cultural. Por essa época, a sua mãe trabalhava a dias em casa da Srª D. Delfina Roldão e, nos seus tempos livres, ainda conseguia fazer limpezas no fotógrafo Campos. Certo dia, deu-lhe como presente uma pequena máquina fotográfica de baquelite, também conhecido por plástico prensado, que mais parecia uma peça de pocket mas em ponto grande. A sua marca era Kodak. Foi com essa pequena máquina que o António acompanhou o seu irmão João numa ida de passeio a Lisboa, fazendo por lá lindas fotografias. Belas recordações até hoje!

A primeira máquina fotográfica, que mudou a vida de António

Numa visita, com o irmão João, à

e dos fotógrafos por si formados.

irmã Maria da Luz que servia numa casa em Lisboa. Uma das primeiras fotografias com a nova máquina.

No dia seguinte, o António, curioso com as imagens fotografadas de um rolo a preto e branco, feitas em tal viagem, não resistiu e deu o rolo a revelar ao fotógrafo Jaime Martins, pedindo a este senhor para que lhe explicasse como se dava o fenómeno de aparecer a imagem, a partir de um negativo, no papel. O Sr. Jaime Martins disponibilizou-se para lhe explicar tudo, desde o revelar do rolo até à fotografia. António entusiasmou-se mesmo muito com todo o processo e com as imagens obtidas por aquela pequena máquina Kodak. Ao visitar os seus antigos patrões, na Bezerra na Serra D’Aire, levou a máquina consigo, fazendo mais imagens com eles, sua família e muitos amigos da região. 40

UMA LIÇÃO DE VIDA

A pequena máquina não oferecia muita definição de imagem. Por isso, o Sr. Jaime Martins, vendo o seu jeito, insistiu para que obtivesse uma máquina melhor. Para tal, foi necessário o Sr. Jaime Martins ficar como fiador da nova aquisição, uma máquina de marca Contina, de rolo filme de 35 mm que obtinha 36 imagens com uma alta definição incomparável. O Sr. Jaime Martins tinha na altura alguma quantidade de trabalho e especialmente ao sábado e domingo. Alguns desses serviços dispensava-os ao António para que os fotografasse, já que confiava à partida no seu jeito, desta maneira permitindo-se, o Sr. Jaime, folgar alguns fins-de-semana. Os trabalhos feitos pelo António, granjeavam-lhe sempre elogios, mas não passavam Jaime Martins, o homem que interviu no destino ainda de um passatempo na sua vida. Mande António, dando-lhe oportunidade para se tinha-se a trabalhar na fábrica de plásticos tornar num fotógrafo reconhecido, graças ao 1º onde tinha o seu dinheiro fixo, à medida filme que revelou nos estúdios dele. que ia conquistando fregueses fixos na fotografia, especialmente aos fins-de-semana. Não tinha mãos a medir, fotografando muitas famílias em casa, já que muitas delas não tinham máquina fotográfica. Tornava-se desta forma útil a muitas pessoas, sendo cada vez mais requisitado para registar os momentos da sua vida.

António com os seus 18 anos e com algumas admiradoras Já com os seus 18 anos e com todas estas actividades profissionais, plásticos e fotografia, somava ainda a difícil tarefa de distribuir o seu tempo por umas quantas admiradoras, conquistadas ao longo do seu percurso profissional, de pastor a fotógrafo. Apesar de o seu tempo já não dar para tudo, visitava três raparigas regularmente. Para estar ao fim de semana com todas elas, via-se obrigado a fazer um percurso de mais de 75 Km: na sua bicleta nova, pedalava de Leiria, a Porto de Mós e daí a Aljubarrota, terras onde viviam. Era bastante cansativo, mas quem corre por gosto não cansa! UMA LIÇÃO DE VIDA

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Como não há duas sem três, nem três sem quatro, cansado de tanto deambular, eis que uma quarta admiradora veio resolver a questão, poupando-o em quilómetros nas pernas e deslocações fatigantes. Com menos trabalho, tinha amor concentrado numa mulher só, ficando com mais tempo para gerir as suas tarefas profissionais. Não tinha sido por questões práticas, no entanto, a sua opção por esta quarta apaixonada. Com efeito, esta vizinha marinhense era uma autêntica rosa, não só de nome, como também de feitio e beleza, fazendo-o esquecer todos os seus anteriores amores. Na rotina de fotografar alguns casais e famílias, a Rosa Maria surge no meio de outras amigas como mais uma cliente. Se de início lhe vendia as fotos, a pouco e pouco o interesse foi-se desenvolvendo e as fotos passaram a ser ofertas. Nada, no entanto, se tinha ainda declarado, apesar do óbvio interesse mútuo. Finalmente, tudo aconteceu numa Quinta feira de Ascenção, feriado municipal da Marinha Grande, tradicionalmente passado pelas famílias marinhenses em piquenique pelas matas nacionais e pela floresta. Sabendo haver algumas boas oportunidades para as suas fotografias, e adivinhando o possível encontro com a família da sua apaixonada, o António agarrou na máquina fotográfica, deslocando-se Uma das muitas ofertas fotográficas à Rosinha em flor. de bicicleta em direcção ao Tremelgo. Este prazenteiro espaço de antigas árvores e grandes clareiras junto ao riacho, era um dos locais de maior concentração de famílias, que vinham comemorar o feriado com merenda melhorada. Muitas dessas pessoas e famílias pediam fotografias. Lá estava também a família de que o António se queria aproximar, dado dela fazer parte a dita Rosa em flor. Por ali foi ficando o António, admirando quem mais gostaria de ter na sua vida. E foi nesse dia que António acertou tudo quanto era necessário para um bom princípio de amor: depois de alguma conversa, ali ficou combinado que passariam a ser namorados. Faltava apenas oficializar, num qualquer outro dia, o pedido de sua mão aos pais da menina. Que lindo arvoredo tinha o Tremelgo das matas nacionais do Pinhal do rei D. Dinis. Que linda 42

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tarde de merendas. Tarde inesquecível, em que perdidamente olhava docemente para a sua Rosinha. Ambos sorriam enamorados, cada vez mais próximos um do outro, ele já esquecido dos trabalhos de fotografia que ali ia fazer, mas registando em imagens este dia inesquecível. A tais momentos de amor, capturados em fotografia para todos os tempos, somou-se ainda a tradicional apanha da espiga, para comemorarem um amor que cresceria cada dia mais apaixonante.

Primeiros momentos do namoro oficial

António e a sua pressa de oficializar o namoro Com o seu trabalho nos plásticos, mas especialmente com a fotografia aos fins-de-semana, começaram a pensar em casamento logo após 3 meses de namoro. Como namoravam todos os dias, no fundo, equivalia a 3 anos. UMA LIÇÃO DE VIDA

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Por outro lado, estando em plena época de guerra colonial, um dos aspectos a considerar quanto à pressa do casamento, era também a questão de um possível livramento à ida para a guerra no Ultramar. Com efeito, sendo casado seria mais provável não ir, apesar de ainda assim ir à mesma à tropa. O alistamento obrigatório estava já à porta, pelo que casaram a 19 de Janeiro de 1964, na igreja de Nossa Senhora do Rosário, na Marinha Grande, local onde António tinha sido baptizado, António com 19 anos e a sua Rosinha com 17.

O dia do casamento, com os irmãos João e Maria da Luz, a

O Ford Anglia que serviu de transporte aos noivos à saída da ceri-

namorada do João,

mónia religiosa. Jovensinhos com 17 e 20 anos.

a Susete, o fotógrafo Jaime Martins e um outro amigo.

O matrimónio foi uma linda festa com 60 convidados. Cada um dos padrinhos deu 500 escudos e os convidados em geral também ajudaram à festa. António e sua esposa nunca viram tanto dinheiro junto, o que acabou por ser uma grande ajuda. Oferta especial da mãe do António, dada com muito carinho: um tacho, uma camisa, uma gravata, dois pares de talheres, dois pratos e uma manta de trapos, agregada em rolinhos conforme era tradição. Estas eram as possibilidades de sua mãe. Alguns dias depois, contudo, a mãe ainda compareceu junto de si para lhe pedir a última féria da semana anterior ao casamento, o que António não recusou. Os noivos receberam uma grande ajuda ao poderem ficar com os sogros de António sem nada pagarem pela casa onde passaram a viver, nem pela alimentação. Foi um bom começo das suas vidas para os primeiros tempos, pelo que o dinheiro das visitas recebidas no casamento foi canalizado para pagar toda a despesa da festa: a cozinheira, o aluguer das louças, o talho, a loja da mercearia, a mobília em pinho para o quarto dos noivos, o fato do António. Ainda sobrou algum para a aquisição de uma aparelhagem fotográfica 44

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profissional do último modelo da época. Os noivos foram transportados num lindo automóvel Ford Anglia branco-pérola, do Sr. Jaime Martins, fotógrafo que ainda ofereceu a reportagem aos noivos. António e Rosa Maria, a partir da sua data de casamento, tornaram-se profissionais da fotografia, mas só tendo António deixado os plásticos para ir cumprir o serviço militar, quase um ano depois. Por amabilidade dos seus patrões, apesar de ter de abandonar a Upla por causa disso, estes indicaram-lhe que o seu lugar se manteria disponível para quando voltasse. É durante este período, quase um ano depois de casarem, que nasce a sua filha Ana Paula, em Janeiro de 1965, meses antes de assentar praça no Quartel do regimento de Infantaria 7, em Leiria, em Maio. O juramento de bandeira é feito não só em presença da sua esposa como já também da sua filha.

Aos 20 anos, já a exercer a fotografia como profissional. UMA LIÇÃO DE VIDA

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Dez dias depois deste momento, é transferido para o BC-10 em Lisboa a fim de tirar a especialidade Foto-cine, no Príncipe Real em Lisboa. António aprendeu muito durante António, soldado 80478/65, parecido com um guerreiro, mas incapaz de fazer mal a uma mosca, ou mesmo a uma melga, nas noites ao relento durante a recruta.

o curso, mas fez tudo para chumbar, errando propositadamente no exame final e desta forma não ser mobilizado para a frente de guerra. Com efeito, mesmo sendo casado e com uma filha, um fotógrafo ou operador de camera de filmar era sempre requisitado para registar os eventos da guerra. Ao ficar reprovado, passou 10 dias de férias junto da família, sendo mobilizado de novo, após isso, para Chaves, para tirar a especialidade de atirador, um novo risco na hipótese de ir para a guerra. Por errar sempre o alvo foi de novo reprovado, não servindo para matar ninguém e tendo uma vez mais escapado a essa provável sina. De novo é mobilizado, desta vez para o Quartel da Amadora. Aí foi chamado para a guerra e de novo desmobilizado, uma vez que estava casado e era pai de filha. Por outro lado, talvez lhe tivesse valido ainda o facto de ter irmãos nas colónias a cumprir serviço militar, o seu irmão João em Angola e o Armando na Guiné. E provavelmente por ainda ser amparo de mãe. António, por desta forma ficar sem qualquer função no quartel da Amadora, foi aproveitado como adido electricista, no hospital militar principal da Estrela, em Lisboa, sem O comboio vai subindo a serra, com o António lá dentro, na chegada a Chaves, no dia 04.Out.1965.

António e o seu equipamento fotográfico, no momento em que se apresentou no R.I.-7, em Leiria. Aí passaria a ser o fotógrafo de centenas de militares, nas suas horas livres.

A linda cidade de Chaves, junto ao Tâmega, onde foi incorporado pela 1ª vez, na especialidade de atirador,

Com os seus superiores furriéis, Américo Aurélio de Lisboa e António Cândido de Estremoz, no início da tropa, na carreira de tiro, nos Marrazes. 46

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mas onde sempre falhou o alvo, evitando a guerra colonial. UMA LIÇÃO DE VIDA

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tropa. Na semana seguinte, passou-se exactamente o mesmo, voltando a esposa a dar a mesma informação. Três vezes se deu este caso e o polícia que o procurava acabou por concluir que estava a ser enganado e que provavelmente seria desertor. Ora se o António não estava em casa e o quartel tinha solicitado que o detivessem assim que o avistassem só podia dar-se este caso. A partir das informações da Rosa Maria, entretanto, chegaram finalmente ao Hospital Militar onde concluíram que sempre aí tinha estado. O que de facto tinha acontecido, era que o quartel da Amadora dispensara o António para o hospital militar como electricista, mas esqueceram-se de dar baixa da sua posição na unidade. E se tivesse sido preso provavelmente acabaria por ser dado como desertor no Hospital. Por uma grande falha dos assentos militares a vida de um homem poderia ter dado uma grande volta, sem contudo nunca ter deixado de estar ao serviço. As suas horas vagas de electricista eram muitas vezes passadas no Hospital em visitas aos doentes, de máquina fotográfica em punho. Nas enfermarias, todos os visitantes queriam ser fotografados junto dos seus doentes. As fotos no dia seguinte estavam prontas e eram entregues em mãos, aos próprios doentes. As mesmas no início eram produzidas na própria oficina de electricidade do Hospital, para depois passarem a serem-no num pequeno laboratório improvisado num quarto alugado, onde dormia ali junto à Estrela.

Na tropa, em serviço no Hospital principal da Estrela, Lisboa, de 1966 a 1968

contudo nada perceber da especialidade. O responsável da instituição era o Exmo. Sr. Brigadeiro Ricardo Santos Horta, um bom director, mas que não via tudo em seu redor. António sem nada perceber de electricidade era ajudante de electricista, ficando responsável uma vez por semana pela parte eléctrica do hospital, houvesse o que houvesse de avarias. E tinha que se desenrascar. Sendo soldado raso, acabava assim por ser um pouco importante com esta actividade. Comia por onde queria, na messe de sargentos ou na messe de oficiais e só se chegava ao rancho geral dos soldados, quando se tratasse de bacalhau à Gomes de Sá. E quando nada lhe cheirasse em nenhum dos sítios, chegava a um talhante e pedia-lhe um bife duplo, entregando a metade ao restaurante como pagamento para lhe tratar da outra metade com batatas fritas. Mesmo ali em frente ao Hospital Militar! Já na altura era o salve-se quem puder! António continuava ao serviço militar no Hospital da Estrela. A dada altura, mal acabado de sair de casa na Marinha, para regressar ao serviço em Lisboa, apareceu um polícia da segurança pública à sua procura. A esposa respondeu que já tinha partido de volta à 48

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O pai do Comandante do R.I.-1, nos passeios de António de visita aos doentes. Aproveitava para fotografá-los com os seus familiares, sempre que lho pediam.

O pequeno laboratório fotográfico, montado na oficina eléctrica do exército. UMA LIÇÃO DE VIDA

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A Rosa Maria, por sua vez, estava já responsável de agendar e orientar alguns serviços de casamentos e baptizados. Já ia substituindo o seu marido, evitando que se deslocasse de Lisboa à Marinha Grande, especialmente quando o António ficava de serviço. Na mesma altura, também ele fotografava casamentos em todas as freguesias de Lisboa. Mas nem tudo eram rosas no meio de tantos serviços de fotografia. Já com algumas responsabilidades bancárias, devidas ao desenvolvimento do negócio e compras efectuadas de maquinaria fotográfica, viu-se o António um dia enrascado com falta de dinheiro para satisfazer os seus compromissos financeiros. Sendo uma pessoa bem quista no Hospital, lembrou-se de se dirigir aos serviços administrativos, sabendo que por vezes se adiantava valores por conta do ordenado aos sargentos e oficiais. Nessa altura, era responsável pelo serviço o Capitão Pontes, homem que veio em seu auxílio disponibilizando, talvez do seu bolso, a verba necessária, mesmo não sendo o António um sargento. Na data marcada para a liquidação da dívida, o António estava lá com o valor integral, desta forma confirmando a confiança e o respeito depositado nele por este capitão. Na sua partida, este oficial veio a apresentar o António ao seu sucessor na chefia dos serviços administrativos, informando-o de que, apesar de por vezes poder ter dificuldades financeiras o António era cumpridor, merecendo por isso ser ajudado.

O Capitão Pontes, chefe administrativo do Hospital Militar. Homem inolvidável pelos empréstimos monetários que fez ao António, seguramente do seu bolso, para o ajudar em momentos de aflição com os bancos.

António estava quase no fim do serviço militar. Já tinha cumprido cerca de 36 meses, quando lhe surgiu um convite para fotografar um grupo de estudantes finalistas, num passeio fluvial de Lisboa a Vila Franca de Xira. Apesar de saber que estava de serviço como único electricista do hospital, nesse domingo, arriscou-se, acreditando que iria conseguir passar despercebido nesta situação e sem pensar na falta que iria cometer ou nas graves consequências que daí poderiam surgir. O dia estava limpo. Logo pela manhã juntou-se aos estudantes saindo do cais do Sodré e acompanhando-os pelo rio Tejo acima em direcção a Vila Franca. Lá atracaram para uma breve pausa até às 14 horas. António, tentando gerir a situação com a tropa, procurou 50

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nessa altura uma cabine para ligar aos telefonistas do hospital e confirmar se haveria algo para o electricista fazer. De lá responderam: “Já andam à tua procura há cerca de uma hora!” António respondeu: “Vou já!”. Ora, o tempo necessário para regressar no mesmo barco, ao Cais do Sodré, era um mínimo de 3 horas e, por isso, o resto da tarde passou-a o António em verdadeira ansiedade, não se sentindo bem e imaginando o pior cenário que lhe poderia acontecer. Nada disse onde estava. Só disse que ia já e esse já foi rente à tardinha. Para resolver a situação, a primeira coisa que António Uma reportagem fotográfica a estudantes, numa viagem pelo fez ao chegar ao hospital foi rio de Lisboa a Vila Franca de Xira, que podia ter tido consepreocupar-se em saber quais as quências nefastas na sua vida militar. enfermarias em que não teriam procurado por ele, durante o dia. Finalmente, encontrou uma enfermaria de oficiais em que não o tinham procurado e pediu que, caso o oficial de dia aí se dirigisse para saber se o António aí teria estado ou não, confirmassem que sim. Os oficiais, conhecendo-o e gostando dele, foram unânimes na posição: “Vá descansado, que nós respondemos por si.” Só depois é que o António se apresentou ao oficial de dia, explicando a sua ausência prolongada, através das pretensas complicações eléctricas que tivera na enfermaria dos referidos oficiais. O oficial de dia tirou-se dos seus cuidados e resolveu mesmo certificar-se se António estaria a falar verdade ou não. À partida, este estava em falta por não ter participado a sua ausência, tanto mais num dia em que estaria de serviço e, tal era o medo pela sua falta, que varejava tal qual uma vara verde. Caso os senhores oficiais não lhe garantissem a sua versão, o seu castigo seria ser mobilizado para a guerra. E, no mínimo, teria que cumprir mais três anos na tropa, o que seria terrível estando António, como estava, quase no fim do serviço militar. António respirou de alívio, ao finalmente perceber que tinha sido encoberto pelos oficiais, quando o oficial de dia se foi certificar do seu alibi. Felizmente a mentira tinha sido UMA LIÇÃO DE VIDA

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um êxito. O António ganhou o seu passeio fluvial, só quase não ganhou para o susto! António termina o seu tempo de militar, deixando o serviço de electricista do hospital e regressando ao quartel da Amadora. Aí, entregou a sua farda, ou espólio como se diz na gíria dos militares, deixando com alívio a tropa. Tinha completado 40 meses de serviço, não passando de soldado raso e, desta forma, conseguindo safar-se dos horrores da guerra. Contudo, obteve uma prática de electricista que lhe seria muito útil para a sua vida civil. O seu tempo na tropa terminou sem louvores, mas felizmente sem qualquer castigo. Não é que não os merecesse, mas safou-se sempre, deUma semana depois de deixar a tropa nasce a sua filha Élia.

senrascando-se, crescendo profissionalmente como fotógrafo e tendo um fim vitorioso. Com muita sorte, chegou a um bom fim no dia 30 de Setembro de 1968, dizendo adeus aos colegas que ficavam no interior do quartel, sorrindo feliz. Consciente das suas arriscadas aventuras durante este período, António não quis partir sem deixar um recado aos militares para serem obedientes, humildes, cumpridores dos seus deveres e prontos para qualquer eventualidade a bem da nação. Com a tropa para trás das costas, António regressa a casa, cheio de saudades da família e recomeça, de forma mais dedicada, a sua vida profissional de fotógrafo e operador de cinema. Decidido a enveredar em exclusivo por esta via, António não esqueceu contudo os bons princípios. Assim que regressou, e uma vez que não ia continuar a ser empregado fabril, deslocou-se à última fábrica onde trabalhou, a Upla. Aí se dirigiu ao encarregado geral, Virgílio Botas, e aos seus patrões para lhes prestar os seus agradecimentos e informá-los que não iria continuar a trabalhar para eles, mas que também não o iria fazer para outros, estabelecendo-se agora por conta própria. Dos patrões ouviu a expressão do seu agrado: afirmaram-lhe que, em caso de qualquer necessidade, teria ali uma porta sempre aberta. Este comportamento, de garantir o abandono de um emprego em amizade com os patrões, era a seu ver muito importante para a sua vida e um exemplo a seguir por todos. Oito dias após o seu retorno, nasce a sua filha Élia, o que vem aumentar a sua responsabilidade de chefe de família nesta sua nova vida.

Operador de máquina de plásticos na Upla, antes de ir para a tropa. Com possibilidade de voltar Na hora da despedida do serviço militar, no quartel da Amadora, já trajado à civil. 52

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após a mesma, agradece a amabilidade, mas segue o seu caminho para a fotografia profissional. UMA LIÇÃO DE VIDA

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António precisa de um transporte para o seu trabalho fotográfico Era domingo, gastava os seus últimos 10 tostões e em casa não havia nem mais um tostão. Apesar disso, pensou nessa mesma altura em comprar o seu primeiro transporte motorizado, o que lhe garantiria capacidade de resposta para trabalhos mais distantes. Dirigiu-se aos irmãos Rosas, dizendo-lhes o que pretendia, mas acusando-se que não tinha qualquer tostão para tal compra e se ainda assim podia ambicionar a tal. Os irmãos Rosas não puseram qualquer objecção. Deram-lhe à escolha entre várias motorizadas, colocando-o à vontade em questões de pagamento. Assinaram-lhe algumas letras para efectivar a compra e assim vai o António “a cavalo” no seu primeiro transporte motorizado de 4 velocidades.

O seu 1º veículo motorizado, numa visita a Porto de Mós e Serra dos Candeeiros, terra de gentes encantandoras e que tanto lhe deu, feita de paisagens grandiosas e grutas maravihosas. Vale a pena a visita!

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Claro que um transporte desta categoria equivale a umas quantas aventuras e não tardou muito para que tivesse a primeira. Eis pois que, um belo dia, a motorizada não quis pegar. Para a fazer andar e conseguir o arranque, o António não vai de modas: corre ao seu lado, segurando no volante e no acelerador e a moto lá pegou. Mas claro que arrancou à desfilada e o António ficou para trás, caindo e partindo a cabeça! Apesar disso, e porque se encontrava numa reportagem de casamento, primeiro foi fotografar e só depois, no intervalo do almoço, se apresentou na unidade hospitalar para lhe fazerem o curativo à cabeça. Em Lisboa, durante a tropa, aprendera novas técnicas e a lidar delicadamente com pessoas de todos os estratos sociais e maneiras de estar, principalmente nas cerimónias religiosas e outras circunstâncias especiais. Isto foi da maior valia para a sua vida actual e, por isso, não descansava na procura de futuros noivos para fotografar e na divulgação do seu trabalho, percorrendo caminhos e lugares e dedicando-se inteiramente à sua profissão. O novo transporte era, assim, um importante auxiliar no aumento dos serviços que fazia, mas nem por isso era uma solução perfeita para as suas necessidades e muito sofreu em cima dele. O seu primeiro Inverno com a motorizada foi penoso, rasgando o vento e o frio insuportável, muitas vezes com chuva à mistura. Vezes houve, em que teve que parar e se abrigar, por ter as mãos geladas a ponto de não poder conduzir o veículo. Um dia, ao deslocar-se para uma nova reportagem fotográfica, chovia que Deus a dava e o seu frio era já insuportável. Finalmente, não aguentou e teve que parar junto a um sobreiro, perto da Corredoura de Porto de Mós. O tempo amainou e lá prosseguiu o seu caminho ao encontro dos noivos, em Serro Ventoso. Contudo, ao chegar junto da casa da noiva, não teve outro remédio senão pedir algo que lhe aquecesse as mãos, porque nem a máquina fotográfica conseguia segurar de tanto frio. Lá se recompôs e começou o seu trabalho. No fim da reportagem, regressou a casa às tantas da noite, voltando a passar imenso para lá chegar. Transido ainda de frio, conta o sucedido à mulher e referiu que não poderia continuar a sofrer tanto, para executar os seus trabalhos. Nessa altura, já tinham algum dinheiro de parte, que tinham começado a juntar para comprar uma pequena casa. Convencendo a mulher do seu sofrimento, nessa mesma conversa decidiram que já não comprariam a casa, canalizando o dinheiro para um outro investimento: “Vou comprar um carro novo para deixar de sofrer e poder fazer mais reportagens.” Por esta época, António andava a tirar a carta e ainda só tinha feito o exame de código, mas logo nessa segunda-feira foi a correr comprar um carro, um Fiat 128, que custou na altura 145 contos (cerca de 724,00 euros). Ainda sem exame de condução, adquiria assim o seu primeiro carro. Claro que, poucos dias depois, completava os exames para obter a carta, o que foi de facto um grande feito. Com este novo meio de transporte, muito mais confortável, começou a aceitar e fazer mais trabalhos com uma UMA LIÇÃO DE VIDA

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O seu 1º automóvel, veículo que o veio livrar do desconforto e frio no trabalho, mas que lhe custou o dinheiro que guardava para comprar casa. Numa reportagem em Porto de Mós.

outra facilidade, passando mesmo a fazer dois casamentos por fim-de-semana, e muito mais longe, de outros concelhos que não o da Marinha Grande, em Leiria, Alcobaça, Porto de Mós, Nazaré, Batalha e mesmo além fronteiras. Em 1970, António abre o seu primeiro estabelecimento ao público no lugar da Ordem, Marinha Grande. Foi um sucesso, na medida em que os jovens de todas as camadas sociais o contactavam mais facilmente e apresentando desta forma outras garantias do seu trabalho fotográfico. António fotografava tudo o que lhe despertava a atenção: crianças andrajosas, velhinhos à porta de suas casas, bailes, festas, aniversários, rallies, futebol, segundas núpcias, casas mais antigas, etc. António afirma hoje que há males que vêm por bem e na sua vida houve uma série de circunstâncias em que assim foi. Foi o caso da sua mudança de casa pessoal e de casa comercial. Andava já há um tempo um bocado chateado com o seu senhorio, devido a problemas com a canalização dos esgotos dos seus arrendamentos, um da casa de habitação e outro da fotografia. Note-se que o contrato do espaço da fotografia, não era para o fim comercial com que o ocupava o que o deixava numa posição algo frágil. Os outros rendeiros, contudo, também se queixavam do mesmo, muito insatisfeitos, pelo que o António decidiu, apesar da sua posição menos confortável, transmitir ao senhorio o desagrado, seu e geral, sobre o mau funcionamento dos esgotos, que chegava ao cúmulo de deixar as imundícies subir às banheiras. O senhorio respondeu ao António: “Estás mal, muda-te!” António não gostou mesmo nada desta resposta, pelo que no dia seguinte recolheu as assinaturas de todos os rendeiros insatisfeitos, num abaixo-assinado que iria entregar no dia seguinte à delegação de saúde. O resultado foi que, pouco tempo depois, o senhorio foi intimado pela mesma delegação para fazer obras e ligar a rede de esgotos do seu bairro inteiro à 56

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rede pública. Todas essas obras lhe saíram muito caras e, por isso, pouco tempo depois tudo funcionava bem. O senhorio, contrariado pela atitude do António, resolveu vingar-se. Lembrando-se de que uma das casas alugadas pelo António não tinha contrato de arrendamento específico para casa fotográfica, move-lhe uma acção de despejo. Claro que o António contestou e, ao fazê-lo, ganhou alguns meses para poder encontrar uma outra solução. Prevenindo-se para qualquer desfecho, e eventualizando que não ganharia a acção sobre a casa fotográfica, arrenda entretanto um outro espaço comercial, equipando-a com o mais luxuoso pavimento, móveis e máquinas. Era o melhor estúdio da altura, afirmado por vários viajantes do artigo fotográfico. Com isto, chegou a ter três casas ao mesmo tempo, mas eis que alguns meses depois lhe surge a hipótese de arrendar um 1º andar mesmo em frente à igreja matriz da Marinha Grande. Com esta oportunidade, nem olhou para trás. Decidido, deixou as duas casas do dito senhorio, mais a linda casa fotográfica que posteriormente tinha montado na Guarda Nova e concentrou, fotografia e habitação, nesse primeiro andar. Metade desse 1ª andar estava à disposição dos seus clientes, entrada, estúdio e sala de espera, a restante metade era ocupada com as zonas privadas da família, quartos e cozinha com sala. Não muito tempo depois, surge-lhe a hipótese de tomar por trespasse, e por um valor simpático, a papelaria Lux, situada mesmo por baixo da sua residência. A partir desse momento, casa de família e de fotografia separam-se. Assim, António e Rosa conquistam um espaço mais adequado para apresentar aos seus clientes, à face da rua, com montra para exposição de fotos. Isto era mais uma ajuda ao sucesso do negócio já que servia de convite à entrada de potenciais clientes e admiradores do trabalho que, com orgulho, exibia. Já instalado, António foi a pouco e pouco evoluindo com o seu negócio. Primeiro adquiriu um parque de máquinas a cores semi-automáticas, as mais evoluídas da época, para produzir fotografias que mais ninguém produzia. As máquinas iriam custar 3.500 contos, 17.500,00 Euros na moeda de hoje, o que na altura era muito dinheiro. A Rosa Maria aprendeu como poucos a controlar esta produção acabando mesmo, por vezes, a ensinar os próprios técnicos e desta forma rentabilizar o investimento. Para fazer toda esta instalação, o António tinha que fazer algumas obras o que ainda era mais dinheiro, mas para isso era preciso ter autorização do senhorio. Para o efeito, o António resolve ir a Lisboa mas aí tratou de tudo, menos de falar com o senhorio. E não é que, na segunda-feira seguinte, se dá a incrível coincidência de o senhorio, sem nada saber de obras nem das intenções de António, lhe vem oferecer o prédio de “mão-beijada”? O prédio todo era constituído por dois apartamentos e três lojas e a oferta foi feita pelo valor de 1.250 contos, cerca de 5.125,00 Euros. Ao ouvir o valor solicitado, pensou para consigo mesmo que era uma grande pechincha. O senhorio disse-lhe que ele era o único renUMA LIÇÃO DE VIDA

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deiro com capacidade de fazer tal compra, mas o facto era que, com o investimento feito nas máquinas de impressão a cores, o António pouco dinheiro tinha. No dia seguinte, perante o negócio vantajoso, não hesita e dirige-se ao, na altura, Banco Português do Atlântico, hoje MillenniumBCP. O sub-gerente, o Sr. Manuel dos Santos, deu-lhe o crédito necessário e luz verde para a aquisição. Passado uns dias faz-se a escritura e António passa a ser o proprietário, fazendo mesmo jus ao ditado “há males que vêm por bem”. Eis António num bom nível de sucesso finalmente: era um pequeno industrial de fotografia, independente dos grandes laboratórios fotográficos, na altura os únicos que laboravam. António, além da compra das máquinas, da compra do prédio e das obras que lhe fez, ambiciona ainda mais: consegue comprar um segundo carro, um Ford Cortina a gasóleo que vem reformar o velho Fiat. Com este automóvel de boa memória, muitas são as aventuras e uma delas é, inclusive, dar uma volta à Península Ibérica, gozando as suas primeiras férias com a família, sem preocupações de maior. Pareciam uns verdadeiros turistas!

Sem perder de vista as origens Ao longo da sua vida, o António nunca esqueceu o seu percurso e, com regular frequência, se foi mantendo em contacto com os locais que o viram crescer e com as pessoas que o viram desenvolver. Desde o tempo em que se casara, mesmo ainda sem carro que, amiúde, voltava a visitar a sua família da Bezerra. A sua filha mais velha, a Paula, tivera, desde pequenina, ela própria, oportunidade de passar tempos inesquecíveis com as filhas mais novas do Ti’ Joaquim Deolindo, guardando por brincadeira as suas cabrinhas, fazendo piqueniques em casa da avó do António, passeando pelos serros, ficando até em casa do seu amigo Francisco.

António e Rosa Maria, numa visita a pé, aos seus padrinhos, no lugar da Bezerra, Serro Ventoso, Porto de Mós.

Em serviço

A pé, de Serro Ven-

fotográfico, já

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com o Ford, em

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Porto de Mós,

à família que o

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reportagem de

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casamento.

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A família chegou a visitar, algumas vezes, um eucaliptal que ele tinha plantado em criança lá para os cabeços mais altos, de onde se avistava todo o vale até à Maceira e às vezes mesmo até o mar. E sempre foram inesquecíveis esses momentos de retorno e que ainda hoje se mantém.

A cerca de pedra, que fez à volta do seu eucaliptal, nos tempos de pastoreio, num planalto da Serra dos Candeeiros, na época em que aprendeu a ler, com12,5 anos, em casa dos seus 3ºs patrões, Joaquim Deolindo e Albertina.

“Oh pá! Eu quase te ia matando! Tu desculpa lá. Aquilo, deixei-me levar pela reacção à tua enxada! Foi indesculpável. Não se faz o que eu te fiz e ainda para mais por uma coisa sem jeito nenhum. Venha de lá esse abraço de perdão, que aquilo foram criancices de miúdo!” Veio de lá o abraço e o caso foi pelo menos sanado. Mas a sensação de perda do António e provavelmente algum ressentimento do Néo poderão nunca ser apagados. O abraço ficou, mas a amizade, essa, não chegou a florescer na altura do confronto, depois do malfadado incidente. Com grande pena do António. O tempo nunca deixa de passar. Entre estas visitas aos locais do seu passado, continuou desenvolvendo toda a sua vida. A sua organização profissional conseguiu levá-lo a níveis elevados e liquidou durante o percurso todos os seus empréstimos feitos com a aquisição de máquinas, casa, bancos e fornecedores, encargos com Finanças e Segurança Social. António glorioso da conquista e posição social alcançada reúne todos os seus colaboradores, fazendo assim um grande jantar, numa festa realizada na Regional Minhota, na Marinha Grande. Os seus convidados de honra foram o seu escriturário Guilhermino Marques Júnior, o seu padrinho Manuel Rosa, fornecedor do seu primeiro veículo motorizado e o Sr. Manuel dos Santos, do Banco que tinha apostado no António Cruz. A comemoração foi um sucesso. O sr. Guilhermino e esposa, escriturário da Foto

O Planalto da serra dos

Europa durante largos anos e amigo da casa.

Candeeiros, onde plantou o seu eucaliptal, ainda hoje avistado a partir da antiga estrada Nacional nº 1, perto de Aljubarrota.

Jantar de comemoração, aquando do momento da conclusão de pagamento dos seus encargos com a Foto Europa.

Foi num desses retornos, que voltou a encontrar algumas pessoas que o passado tinha feito deixar pelo caminho em situação menos simpática. Recuperou o contacto com o Ti’ José Adelaide, a quem visitou algumas vezes. Numa dessas frequentes visitas aos Casais Sta. Teresa, já bem recentemente e mais de 50 anos depois, acabou por dar de caras com pessoas a quem já não reconhecia. Um houve, que, ao invés de lhe responder ao pedido de lhe recordarem o nome lhe disse: “Tu, a mim, conheces-me bem!” O António referiu não estar a ligar a cara com ninguém desses outros tempos de pastoreio ao que o outro esclareceu, dizendo que era o Néo. Foi nessa altura o seu acto de arrependimento: 60

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No decorrer do tempo, a sua filha Paula entra na universidade seguindo a via de Marketing e Relações Públicas e, alguns anos depois, a sua filha Élia no curso de Arquitectura. Ao entrar na universidade, esta deixa para trás o ballet, que praticou e ensinou durante vários anos.

A família, com as filhas já crescidas

O António, durante todo esse percurso foi crescendo e chegou a ter as máquinas mais evoluídas e a ser a mais importante casa de fotografia do distrito. Abriu várias lojas, uma em Monte Redondo e mais do que uma em Leiria onde permaneceu de casa aberta até há pouco tempo. O sucesso é um caminho duro, contudo, e mais recentemente deixou

Inauguração de uma das três ou quatro sucursais que chegou a ter, esta no Bingo de Leiria, com colaboradores e amigos. 62

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O fotógrafo no séc. XXI, já a passar os 60 anos. UMA LIÇÃO DE VIDA

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a corrida de ser sempre o primeiro. O panorama da fotografia, com a entrada do digital, que fez passar a produção para a mão dos clientes, levou a más situações muitos fotógrafos. Não é o caso do António que, sempre previdente, orienta os seus negócios para ir a pouco e pouco saindo da rude competição. Actualmente, António continua a fotografar, mas mais calmamente. Mantém apenas as reportagens, a pedido de muitos que ainda o conhecem, e o trabalho nas escolas, executando reportagens de recordação escolar. A sua experiência no trato das crianças garante-lhe que chegue hoje à 3ª geração, por vezes nas mesmas escolas. Este é um trabalho que lhe dá ainda muito prazer em continuar a fazer. Mantém-se assim ao serviço fotográfico de milhares de crianças dos concelhos de Marinha Grande, Leiria, Alcobaça, Porto de Mós, Pombal, Nazaré, Figueira da Foz, Santarém, Rio Maior, Caldas da Rainha, Peniche, Ourém e Alcanena. Perpetua-se na vida delas, com as suas fotos, graças à receptividade de centenas de professores que, ao longo dos anos, têm apostado na sua qualidade, seriedade e no seu preço competitivo face à concorrência. Sem esta aceitação,

não teria sido possível chegar onde chegou, o nosso amigo António, e nem, ainda hoje, continuar por esta senda.

A religião na vida do António Apesar de ter sido criado no meio de uma elevada convicção religiosa, já que a sua mãe sempre tinha sido praticante, a relação do António com a igreja só muito tarde estabilizou. Depois de ter tido o seu verdadeiro primeiro contacto nos tempos dos Casais Sta. Teresa, a relação com a igreja voltou apenas a ser regular com as reportagens de casamentos. Estes foram, durante muito tempo, a forma de manter a proximidade com Deus e causa da sua ida frequente ao culto religioso. Fotografou muitos casamentos pelo civil e por outras convicções religiosas que não a católica, mas era nesta que residia a sua fé. Com padres e outros clérigos, desta e de outras religiões, manteve sempre relações de respeito e proximidade que o ajudaram muito no seu percurso profissional. Isso garantiu-lhe muitas vezes ser chamado para fotografar festas religiosas de todas as ordens e o apreço pela sua capacidade de estar numa igreja em serviço fotográfico sem incomodar com desnecessários espalhafatos. Todos os fotógrafos que com ele aprenderam e para ele fotografaram – e ainda foram muitos – aprenderam esta forma de estar que muitos louvores lhe mereceram.

O Dia da Crisma, tarde na vida, mas com toda a convicção. O momento em que confirma a Numa das suas centenas de reportagens fotográficas. 64

UMA LIÇÃO DE VIDA

sua fé em Deus, Jesus Cristo e na Santa Madre Igreja. UMA LIÇÃO DE VIDA

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Ao abandonar a pouco e pouco esta área de negócio dos casamentos, hoje menos fértil em trabalho, a sua ligação à igreja teve que ser redefinida, agora por um novo ângulo, feito de intenções e objectivos: quis aumentar a sua educação religiosa na fé católica apostólica romana e, por isso, apostou-se em fazer o crisma, o que concretizou com muito orgulho em 2010. A sua presença nos ofícios religiosos de forma espontânea é, agora, uma constante, não como consequência de uma obrigação profissional, mas como um acto de vontade e fé. Apesar de agora estar mais distante da reportagem de casamentos e de outro tipo de fotografia, publicitária e de reportagem, mantém uma da áreas que sempre o apaixonou, a reportagem às escolas, área a que se dedicou durante mais de 40 anos. António está agora feliz e calmo, num bom patamar da vida profissional, continuando a obter imagens inesquecíveis e fixando na imagem o melhor tempo da vida de uma criança no espaço mais interessante das suas vidas. Imagens que irão recordar futuramente, provocando-lhes muitos sorrisos hoje e para sempre. Com os sorrisos de cada um, sorri António para sempre.

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