32 do 32 anos JL Jornal de Letras, Artes e Ideias
Declarações de amor a Língua Portuguesa
Nikias Skapinakis A retrospetiva no Museu Berardo Pág. 24 e 25
J.J. gomes cannotilho Jõao lobo antunes escreve sobre jurgen escreve sobre o irmão antónio Habermas
Gonçalo Tocha Corvo, o filme da ilha Pág. 26 e 27
O percurso comum, o cancro A constituição Europeia lida pelo jurista político Português do escritor e como ele o transformou em Sôblos rios Pág. 30 à 33 que vão Pág. 12 à 15
2 - DESTAQUE
JL / 21 de março a 3 de abril de 2012 * jornaldeletras.pt
BREVE ENCONTRO João Rui de Sousa
Vida de poesia premiada
O
poeta, ensaísta e crítico literário João Rui de Sousa, 83 anos, foi distinguido com o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores/ Caixa Geral de Depósitos. O galardão, no valor de 25 mil euros, é atribuído de dois em dois anos, e já foi “É um incentivo, entregue a autores como José Sarauma palavra mago, Eugénio de de ânimo para Andrade, Mário alguém que não Cesariny ou Vítor tem por hábito Aguiar e Silva. Nascido em 1928, andar nas em Lisboa, João Rui parangonas” de Sousa formou-se em Agronomia e em Ciências Histórico Filosóficas. Estreou-se na escrita na revista Cassiopeia, da qual foi um dos fundadores. Circulação (1960), A Hipérbole da Cidade (1960), Corpo Terrestre (1972), O Fogo Repartido (1983), Enquanto a Noite, a folhagem (1991) são alguns dos seus livros de poemas. Mais recentemente, em 2008, editou Quarteto para as próximas chuvas. Fez crítica literária no JL, integrando o ‘quarteto’ composto por Fernando Guimarães, Manuel Frias Martins e Ernesto Mello e Castro. No ensaio publicou, entre outros, Fernando Pessoa empregado de escritório e António Ramos Rosa ou o Diálogo com o universo. Editou ainda Antologia e Poesias Completas, de Adolfo Casais Monteiro.
JL: O que significa este prémio? Como o sentiu? João Rui de Sousa: Fiquei muito surpreendido e ‘embatucado’, até por causa dos nomes dos meus antecessores. É um incentivo, uma palavra de ânimo para alguém que não tem por hábito andar nas parangonas. Julgo que é um reconhecimento de um trabalho de mais de meio século, tanto na poesia como na crítica literária e no ensaio. O prémio é também para aqueles que, sossegada e silenciosamente, me têm apoiado e incentivado ao longo dos anos. Partilho-o com eles.
É poeta, ensaísta, crítico e investigador. Para si, ao longo dos anos, qual destes papéis tem sido o principal? Sem desprimor para as outras artes, julgo que é o papel de poeta. A poesia é mais espontânea, a mais criativa das artes. Embora considere que há muita criatividade na crítica e no ensaio. O prof. Jacinto Prado Coelho dizia isto muitas vezes. Mas creio que a poesia, postas as coisas nos pratos da balança, é a que pesa mais no meu percurso. Mas pesa sem pesar... Sim. Dá-me liberdade. Num ensaio há um
condicionalismo. Fala-se sobre qualquer coisa, ao passo que na poesia fala-se sobre nós próprios, sobre o que vem à cabeça, à alma. Está a trabalhar num novo livro? Tenho um livro de poemas em preparação, mas não está fechado. Ainda estou hesitante quanto ao título. Será algo sobre Lisboa a que chamarei Um roteiro sentimental ou Uma cartografia sentimental. Trata-se da Lisboa que eu tenho vivido e que me tem tocado aqui ou ali. É Aquele que está mais próximo de ser editado. JL FRANCISCA CUNHA RÊGO
DGartes suspende apoios Em 2012, a Direção-Geral das Artes (DGArtes), não vai abrir os concursos para os apoios pontuais e anuais às artes, anunciou semana passada Samuel Rego, diretor do organismo. Noutra frente o mesmo responsável fez saber que, no próximo mês de abril, inaugura um novo concurso para a atribuição de apoios financeiros a projetos artísticos que se desenvolvam no estrangeiro, considerando que, “no atual contexto, a existência de dispositivos de
internacionalização dirigidos ás artes é crucial para o fomento do empreendedorismo e para o alargamento de mercados no setor artístico”. Com uma dotação financeira de 600 mil de euros, a linha de apoio destina-se a um máximo de 100 candidaturas de entre as áreas artísticas tuteladas pela DGArtes, entre as quais a arquitetura, artes visuais, dança, design, fotografia, musica e teatro.
VAI
ACON
TECER Atelier utopia, de Miguel Palma, no Porto
U
m conjunto de trabalhos preparatórios de diversas obras de Miguel Palma, numa exposição que é uma espécie de prolongamento do seu próprio atelier. Chama-se justamente Atelier Utopia, inaugura-se a 25 de Março, na Galeria da Fundação EDP, no Porto, e tem curadoria de Bruno Leitão. Permite desvendar, nas suas várias fases e em diferentes peças, o próprio processo criativo do artista, nascido em 1964 e que começou a expor nos anos 80. Tem realizado numerosas exposições no país e no estrangeiro, entre as quais a recente Linha de Montagem, no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian. Patente até 1 de Julho.
festa da francofonia Exposições, cinema, musica, conferencias e encontros gastronómicos são algumas das atividades que compõem a Festa da Francofonia que decorre em oito cidades portuguesasLisboa, Porto, Caldas da Rainha, Coimbra, Espinho, Guimarães, Setúbal e Vila Nova de Gaia- até 24 de março. Hoje, quarta-feira 21, pelas 18 horas, no auditório do Institut Français du Portugal, em Lisboa, François de Closets, escritor e jornalista, autor de mais uma
vintena de ensaios sobre a sociedade contemporânea francesa é o arador da conferência l´orthographe, une passion française. Lá force (in)tranquile dês annés 80: questions posées à lá culture fraçaise é outra das conferencias desta festa, a 22, a partir das 9 e 30, na Faculdade de Letras do Porto. Na música vai, então, o destaque para o concerto de 23, às 18, no Palácio da Foz, em Lisboa, do violinista Krasimir Dzhambazov.
DIA EDUARDO PRADO COELHO
Eduardo Prado Coelho será homenageado a 29 de Março - data do seu aniversário - na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. A partir das 14:30 (e até as 19horas) serão lidos textos da sua autoria. Haverá uma seleção disponível para os participantes - organizada por Maria Manuel Viana e Margarida Lages - mas cada um poderá ler qualquer texto que trouxer. Nascido em Lisboa, em 1944, filho do prof. catedrático Jacinto do Prado Coelho, Eduardo licenciou-se em Filologia Românica, na Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa. Deixou uma vasta bibliografia universitária e ensaística - também em inúmeros jornais destacando-se um longo estudo de teoria literária.
DESCONTOS PARA DESEMPREGADOS
Os desempregados vão entrar gratuitamente em museus e monumentos, e beneficiar de descontos nos teatros nacionais e na Cinemateca Portuguesa. É uma medida da Secretaria de Estado da Cultura que entra em vigor a partir de dia 27. Para beneficiar dos descontos basta a apresentação de um comprovativo de inscrição no Instituto de Emprego e Formação Profissional ou qualquer outro documento emitido pela Segurança Social. Na Cinemateca Portuguesa, o bilhete fica a 1,35euros, no Teatro D.Maria II, a 6 euros. No São João o desconto é de 50%, e nos espectáculos da Companhia Nacional de Bailado e do São Carlos é de 25%.
destaque -
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6º FESTLATINO
Linguas e culturas latinas: dos riscos da incompreensão ao desafio da intercompreensão é o tema do 6º Festlatino, Festival Internacional de Culturas, Línguas e Literaturas Neolatinas, que se realiza em Recife, no Brasil. A 29 de Março, a partir das 9, na Residência André de Gouveia da Cité Internacional Universitária de Paris, decorre um dos seus seminários preparatórios. Esta iniciativa conta com organização de Ana Paixão e José Manuel Esteves, da Universidade de Paris e Saulo Neiva, da Universidade de Clermont. O Festlatino tem como objectivo principal contribuir para o reforço das ligações entre culturas latinas.
PORTUGAL NO BRASIL
Portugal no Brasil: pontes para o presente é o título do 6º colóquio internacional que o Polo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras (PPRLB), vinculado ao Centro de Estudos do Real Gabinete Português de Leitura, promove de 9 a 13 de Abril, no Rio de Janeiro, para assinalar o Ano de Portugal no Brasil. No próximo JL daremos o devido destaque a esta iniciativa que conta com a participação de investigadores e professores universitários de ambos os países. A comissão organizadora é constituída pelos profs. doutores Gilda Santos, Luciana Salles, Mônica Genelhu Fagundes e Roberto Loureiro.
4 - Destaque
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Livraria Camões
no Rio, reabre com a Almedina
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Almedina vai reabrir, no Rio de Janeiro, a Livraria Camões, encerrada em janeiro pela imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM), adianta ao JL, em primeira mão, José Miguel Marques Mendes, CEO daquele grupo editorial. “Vamos fazer todos os esforços para não deixar morrer esse projeto histórico”, afirma o responsável. Durante os próximos cinco anos, mediante um contrato de arrendamento, a Almedina vai explorar a livraria, mantendo a aposta forte na literatura, o que fez de Camões nos últimos 40 anos, um dos pilares da promoção da literatura e da cultura portugueses no Brasil. É o final feliz de uma noticia que, em janeiro do ano passado, suscitou vários protestos, assim que a INCM anunciou o seu encerramento. “Esta livraria é ponto de referência fundamental, umbigo dos estudantes de Literatura Portuguesa no meu pais, desde um tempo em que nenhuma obra portuguesa era editada no Brasil e ela nos supria do que preciso fosse”, argumentava na altura, Maria Lúcia dal Ferra, profª titular da Un. Federal de Sergipe, num dos abaixo-assinados que então circularam, incluindo em Portugal, por iniciativa de Maria Teresa Horta, Manuel Alegre e Manuel Mendes. Foi ao ler estas noticias que os administradores da Almedina, um dos mais dinâ-
micos novbos grupos editoriais portugueses, o maior na área do Direito, mas também com forte ligações ao ensaio e as Ciências Sociais nomeadamente através da chancela edições 70, decidiram avançar. O próprio José Miguel Marques Mendes contactou a imprensa Nacional Casa da Moeda, chegando a um acordo nas últimas semanas. Agora, serão feitas obras de melhoria para uma abertura nos próximos meses. “Não estão previstas grandes intervenções mas queremos aproximar a livraria à imagem que temos em Portugal”, explica o administrador. Em Portugal, as Livrarias Almedina têm a marca dos arquitetos Francisco e Manuel Aires Mateus, cujos projetos para o grupo já foram premiados. No Rio de Janeiro, no entanto, o espaço, na Rua Bitencourt Silva, no centro do Rio, é menos versátil pois tem apenas 70 m2 e um mezanino logo à entrada. “Mas será sempre um espaço bonito”, grande José Miguel Marques Mendes. A reabertura da Livraria Camões surge na sequência de internacionalização do grupo Almedina e da inversão da sua estratégia fora do pais. Não é uma aposta nova. Não é uma aposta nova. No Rio de Janeiro, o grupo chegou a ter um showroom, entretanto encerrado, só com livros seus e mantem ainda um site dirigido aos leitores brasileiros (www.
almedina.com.br). Mas até agora, assegura o administrador, ainda não havia uma “estratégia arrojada e global”. “Até há bem pouco tempo a Almedina era apenas exportadora e distribuidora. Agora vamos apostar na edição e na venda de livros em todo o espaço da Lusofonia”. À semelhança do Rio de Janeiro será criada mais uma livraria no Brasil, em São Paulo – estão a ser estudadas três possibilidades – e até ao final de 2012, outras em angola e Moçambique. Neste três países vão avançar também equipas para a edição de livros na área do Direito, seguindo o modelo usado em Portugal: texto de lei, por um lado, e legislação comentada e anotada, por outro. “Sempre com a colaboração de autores locais” assegura José Miguel Marques Mendes. Entre os títulos já previstos destaca-se a Constituição Brasileira, comentada e anotada por especialistas, sob A direção do prof. José Joaquim Gomes Canotilho. Sem revelar os montantes envolvidos, o CEO da Almedina garante que se trata de um investimento significativo que requererá “muito músculo, suor e motivação”. É o que tem pedido aos seus colaboradores dizendo-lhe que se trata de “uma nova era dos Descobrimentos”. Sem megalomanias, apenas procurando criar, em parceria, “boas obras”.
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'Declarações de amor' à Língua Portuguesa
A Língua Portuguesa é e sempre foi fundamento e pelo menos uma das principais razões de ser do JL (ler comentário, na p.). Assim, quando chegamos aos 32 anos, assinalámo-los com outras tantas curtas “declarações de amor” ou “cartas de amor” à nossa Língua. Foi isso que pedimos a criadores de todo o vasto espaço do idioma comum, embora acentuando que poderiam escrever sobre ela de qualquer outro modo ou ângulo - como é o caso da crónica de José Luís Peixoto (p. ). E na próxima edição haverá mais.
Continuo apaixonado João Ubaldo Ribeiro
Querida Língua Portuguesa, Como se ainda não soubesses e precisasse dizer-te: continuo apaixonado por ti desde a primeira hora em que te ouvi. Cada dia mais apaixonado, na verdade. Penso em ti o tempo todo, agradeço aos céus tua convivência, que a cada dia me acrescenta. Não ignoro que tens muitos valorosos e melhores amantes, mas não me causam ciúme, porque sei que é da tua natureza provocar o amor de todos nós, todos nós te pertencemos e cada um tem contigo uma experiência única. E isso não impede que sempre queira de ti casamento indissolúvel, bem querer eterno,
enlevo sem fim. Prometo intransigente fidelidade, completa lealdade - e de ti não peço nada e peço tudo, peço que continues linda e face ira como sempre foste e que nunca deixes desvalidas as nossas almas amorosas, pois que, se não vivemos sem ti e sem ti não saberíamos nem quem somos, tu também não vives sem a nossa devoção e entrega. Do orgulhosamente teu, desde sempre, João Ubaldo Ribeiro, brasileiro, ficcionista e cronista, Prémio Camões
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A beleza do mundo, na forma das palavras
A cristalina música das esferas
Mário Cláudio
Esta língua faz-me. Está em meu corpo como o sangue. Sou o que ela quis que eu fosse, desde que, na primeira meninice, descobri que um gato é um gato, e não un chat, e um cão é um cão, e não a dog. Foi por meio dela que me abri para a beleza do mundo, pois o que via, ouvia e sentia tinha e tem a forma de palavras. Nunca sonhei em outro idioma e, se me comovo com Dante e Shakespeare, é diferente a emoção com que leio Camões. Neste escuto
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Alberto da Costa e Silva uma voz que, sendo dele, é minha. Sinto que lhe imito a alegria, a tristeza, a indignação e o espanto. É com a saudade de seus versos que nos entendemos todos os que falamos esta língua que guarda o sabor da aventura de camponeses que se tornaram marinheiros. JL Alberto da Costa e Silva, brasileiro, poeta, ensaísta e historiador. Foi presidente da Academia Brasileira de Letras
CARTA À LÍNGUA PORTUGUESA, PROFETIZANDO AMOR ETERNO, E EXPRIMINDO UM VOTO DE SILÊNCIO
Meu amor, Todos os dias te encontro, e todos os dias Acostumei - me ao calor da tua presença, e tão te perco. Já na luz da meninice, quando em inseparável de mim te tornaste que te confunminha inconsciência trocava as sílabas da tua dem comigo, e me tomam por aquilo que tu voz, me habituavas ao êxtase, afagando-me e mesma és, sibila deste cabo da Europa, a irratraindome, e propondo-me os mistérios que te diar oráculos pelas sete partidas do mundo. habitam. Como acontece com os que muito se Muitas vezes te calei no coração, receoso de amam, e que por causa disso sofrem a tirania que o ímpeto do desejo te erodisse sem remédos códigos, e a arbitrariedade das reformas, dio, e confesso que não raro abusei da tua a nossa história tem sido alegre e triste’, e ora entrega, arrastando-te por sonoros labirintos, arrebatada, ora paciente. Sobrevivemos entre- ou por perigosas acrobacias, e cobrindo-te de adereços que apetanto por estratégias nas me perdoavas pela dificílimas, e que nos “Tão inseparável de juventude do afeto que condenam à perpétua mim te tornaste que te me entontecia, Com inquietação. Se te perconfundem comigo, e me o tempo porém ensisigo em excesso, empetomam por aquilo que naste-me o segredo do nhando- me na prorespeito, e consenti em cura com demasiada tu mesma és, sibila deste tua discreta e solene energia, afastas-te de cabo da Europa” integridade. mim num elegante volteio, tocado pela sombra do desprezo. E logo Jamais me negaste o gosto de te poupar às me sobressalto na tua ausência, e me lanço na sevícias que por aí, e impunemente, te humibusca do que te conforma, a aragem ciciante, lham, colocando-te diante de espelhos que a agitar as silvas onde as amoras despontam, a te deformam, e magoando-te no que de mais áspera nasalação, gritada por Clitemnestra no íntimo possuis, a fim de que, muito para além da carne, o puro espírito se revele, Percebi ato de apunhalar o seu homem.
em suma por que motivo não existe em toda a Terra engenho bastante para te traduzir, harmónica como voas em tua funda essência, incompatível com truques e arranjinhos, e adversa aos circunlóquios com que te iludem a verdade, À medida que envelheço, e me sinto igual a ti, há paisagens do teu corpo de que me vou esquecendo, lembrando-me todavia, e como que por milagre, de muitas que supunha não guardar na memória. Todos os dias te encontro, e todos os dias te perco. Não será isto indício de que um no outro nos engastámos, e de que morreremos no abraço que ninguém ousará desmanchar? Quero dizer-te assim que, viajando ambos, tu e eu, pela cristalina música das esferas, ao silêncio da eternidade é que nos destinamos, e à glória efémera do tal verbo em que tudo principia. Beijo-te os pés, meu amor. Mário Cláudio JL Mário Cláudio, português, ficcionista e poeta
8 - tema
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Esta nossa Língua Geral
José Eduardo Agualusa Sou um angolano de origem portuguesa - o que faz de mim quase um brasileiro, e há longos anos que me acho no papel de passageiro em trânsito pelos diferentes territórios onde prospera a nossa língua. Esta deriva, quase sempre feliz, tem contribuído para aumentar o meu interesse pela vida das palavras. Venho descobrindo algo, que sendo óbvio, ainda tantos (sobretudo em Portugal) insistem em não ver: a força desta nossa língua, a sua vitalidade, resulta do facto de ter sido desde sempre uma construção conjunta, uma extraordinária aventura comum, unindo primeiro povos romanizados e populações árabes, provenientes da colonização africana da península ibérica, e depois, na sequência da expansão portuguesa, mais e mais africanos,
indígenas brasileiros, indianos e malaios. Com a passagem dos séculos uma vigorosa torrente de vocábulos africanos, brasileiros e orientais, foi-se somando ao património original. Palavras que se perderam em Portugal, enraizaram-se nos crioulos de Cabo Verde e da Guiné- Bissau, ou no português sertanejo do Brasil. Quanto mais me apaixono pela nossa língua, e mais me aproximo dela, melhor a vejo, inteira, na sua di versidade. A língua segue sendo uma só, embora rio de muitas águas, a cada dia mais largo e mais profundo. Nunca como hoje houve tanta circulação de pessoas, de ideias, de palavras, no espaço da nossa língua. Nunca estivemos tão próximos quanto agora. São portugueses que emigram
para Angola ou para o Brasil. Brasileiros que, tendo vivido longos anos em Portugal, regressam a casa. Brasileiros, por outro lado, a fixarem-se em Angola. Todo este trânsito vem democratizando ainda mais a língua comum. Não existe hoje um centro de poder. Portugal recebe tanto quanto dá. Jovens portugueses falam como angolanos. Angolanos apropriam-se de termos brasileiros. Muitas vezes não se trata sequer de importação’ mas de regressos. O que eu amo, pois, é este idioma democrático, plurinacíonal, que a todos pertence e a todos igualmente se entrega e enriquece. Esta nossa Língua Geral. JL José Eduardo Agualusa, angolano, ficcionista, cronista e editor
Língua e enigma
Eduardo Lourenço O coração do enigma para cada povo é o da Falamos para povoar o mundo. E ao mesmo língua em que a sua leitura do mundo se mani- tempo para regressar a essa linguagem antes festa como mistério ao mesmo tempo lumi- da línguagem, a essa língua divina, a do noso e obscuro. É na língua e na língua só que homem ainda não separado do universo e de si somos virtualmente imortais. Tudo se passa mesmo, sujeito de múltiplas línguas mas lemcomo se não pudéssemos bradas da única que dizia o Ser sem o mutilar, ser sujeitos dela. Somos falados antes de a falar aquela que fala no silêncio do mar e nos cala. e falamos para nos falar. Sem começo nem flm. Todas as línguas do mundo desenham nele o Só no séc. XVIII quando o Ocidente come- bem pouco mítico arquipélago de BabeI. O çou a esquecer a língua mistério de cada “Essa língua, hoje de como “dom de Deus” um uma participa dessa ato recapitulativo de um variados tons, é um dos aventura humana verbo criador do mundo, mais insólitos milagres” sob a forma de um o mistério dessa revelação rizoma. Só a Histócom o sujeito criadora, ao mesmo tempo da ria singular de cada uma delas desvela os seus voz, da consciência dela e do sentido da sua segredos. Não são os mesmos para o Japão, ou nomeação de toda a realidade, se converteu no Bornéos, isolados milénios dos seus vizinhos, enigma dos enigmas. Começou então a nossa que os do ramo indoeuropeu marcha do Deserto. onde a nossa mergulha as suas raízes. Essa
raiz sânscrita só para fllólogos terá algum sentido. Para nós, mortais comuns, bastanos misteriosamente, ou quase, a nativa herança lusitana. Foi aquela que se derramou no mundo juntamente com o castelhano como as primeiras línguas no mundo do Ocidente. Nem ela nem a dos nossos vizinhos têm os dias contados. Até onde podemos imaginar-lhe futuro, essa língua, hoje de variados tons, é um dos mais insólitos milagres linguísticos imagináveis, dada a sua origem tão modesta. Este simples estatuto devia poupar-nos todas as glosas apocalípticas acerca da sua perenidade. Como os amores miticos de Pedro e Inês, a língua em que eles couberam arderá até ao fim do mundo. Eduardo Lourenço, ensaista, escritor, Prémio Camões
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É a língua que me escreve Helder Macedo
Sempre senti que, em português, não sou eu que penso ou escrevo. É a língua que me pensa, é a língua que me escreve. Se isso é amor, não sei. Nas outras línguas que também uso, os pensamentos vêm antes das palavras. Na língua em que sou, as palavras levam-me para além do que poderia ter pensado. Sim, deve ser amor. Aprendi em África esta língua em que me tornei escritor, na mais remota Alta Zambézia, onde havia um velho muito velho que me contava histórias num português de vogais abertas por outra língua que teria sido a sua, repetindo cada frase sempre com as mesmas palavras, dizendo as vozes dos bichos, das plantas, do fogo, do vento, dos rios, conjurando os movimentos e as formas do universo com as suas grandes mãos da cor da terra, aco-
corados ambos no jeito africano de contar e de ouvir histórias. Sem que eu então o soubesse, estava a ensinar-me a língua da poesia. Como poderia depois haver qualquer outra? No entanto, depois, agora, vivo há mais anos em terras onde não falam a minha língua do que vivi naquelas onde aprendi a ser quem sou em várias partes de África, de Portugal, do Brasil. É bom? É mau? Não sei. Poderia talvez ter escolhido ser escritor nesta outra língua estranha que me rodeia como se eu fosse uma ilha num mar alheio. Mas sei que não tenho escolha. E não tenho escolha por também ter aprendido com o bardo africano da minha infância que a língua portuguesa é tão una e tão diversa como o universo que ele invocava. Helder Mecedo, português, ficcionista, ensaista e poeta, prof. no King’s College de Londres
A música secreta
Manuel Alegre
Não acredito em grande poesia ou literatura que não tenha o sentido, o dom da língua. Para mim o poema é algo que está dentro da língua. Há uma música secreta da língua. E é com essa música que posso cantar de amor como em nenhuma outra língua do mundo. Sou um homem do extremo Ocidental da Europa, cresci a ouvir o marulhar do Atlântico, onde nasceram os ritmos e os decassílabos de Camões. Creio que toda a nossa língua está marcada por esse ritmo. Nas suas harmonias e nas suas dissonâncias, nas suas vogais azuis e verdes e nas suas consoantes sibilantes. Tem a cor do mar e o assobio do vento Oeste. Amo essa cor, esse assobio, esse murmúrio. E o cheiro a alga e sal. E o sol e o sul que estão dentro das sílabas. Há na minha língua uma
aspiração universalista e, ao mesmo tempo, uma nostalgia da errância e um sentimento de exílio em relação à pátria física e à circunstância histórica concreta. Há na minha língua uma página chamada Atlântico, onde há sempre uma viagem que não acaba até outros mares e outros poemas. O meu amor começa na música secreta da da minha língua , porque a minha língua fez a minha pátria e porque pátria e língua portuguesa são sempre o outro lado da viagem, da errância e de outras pátrias. Oxalá o JL possa continuar esta viagem de amor e circum navegação. JL Manuel Alegre português, poeta e ficcionista
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O amor tenaz
Nélida Piñon Acaso lhe confessei meu amor pela lingua que me ungiu desde o berço? A lingua morena que é minha fortuna e me faz rainha? Com a qual escrevo livros, teço desatinos, enfrento enigmas, ganho pouso e graça, o modelo narrativo para a escriba que sou? E que transcreve os impropério humanos, os ais dos navegantes, a intensidade apaixonada dos amantes prestes a se perderem para sempre? Ela, contudo, é susceptível, ressente-se quando lhe sofreiam o uso desmedido dos vocábulos. Julga que seria como prendê-la com cordas às camas secas de um quarto de hotel com luz néon. Assim, sigo-lhe os ditames, deixo que ecoe em meu coração. Afinal, ela me estruturou o pensamento, cedeu-me o vizinho, os acordes de Mozart, facilitou que eu inquirisse sobre o significado de ser parte da poética da existência, da epopeia do cotidiano.
Esta lingua, que é prólogo e epílogo, faz meu corpo existir. Com ela viajo pelo mar do destino. Já pelas manhãs, ela em pessoa abre as cortinas da representação cênica do mundo e assopra-me a aragem do mistério. Como resposta, faço cintilar o seu timbre sensível, circunscrevo-me ao picadeiro humano. Sua sombra, porém, desapiedada, priva-me às vezes das cartas de amor resguardadas entre os lençóis que recendem a jasmim. Castiga-me com o fracasso. Mas consolo-me sabendo que enquanto o verbo projetar sua luz incisiva sobre o inventário da arte, eu não me exilarei do mundo. JL Nélida Pinon, brasileira, ficcionista, prémios Príncipe das Astúrias eluan Rulfo. Foi presidente da Academia Brasileira de Letras
Fazer parte do que sou Germano Almeida
Como prenda de aniversário pelos seus 32 anos, o JL quer apenas uma coisa: uma declaração de amor à lingua portuguesa! Ainda que insólita, seria uma prenda relativamente fácil de se dar se uma declaração de amor não implicasse o uso de “eu amo- te” , pedregulho entre todos o mais difícil de deixar o recôndito do coração e sair pelas ruas cantando, razão por que os cabo-verdianos sempre preferiram substitui -lo por expressões mais neutras, “Um creb tcheu!” , “Mi é dôd na bô” ... No entanto, esse presente é tanto menos custoso quanto é certo o JL sequer identifica a grafia em que gostaria de ver esse amor confessado, parece ser-lhe indiferente um antes ou um depois do último acordo ortográfico. A mim parece-me bem! Assim em pleno período festivo, não seria de bom tom terçar armas
sobre os méritos e deméritos de uma ou outra vimentos, desse modo comprazendo aos que forma de escrever a língua portuguesa, tanto virão a aprender a amá -la e a usá-Ia. Camões como António Vieira certamente Sou cabo-verdiano, também faço resistência se declarariam horrorizados se regressassem ao uso do verbo “amar”, e certamente que não agora e vissem no que tem vindo a ser trans- será ainda desta vez que a norma doméstica formada a língua que tanto será violada. Mas sequer “Sou cabo-verdiano, amaram e tão bem cultupreciso, o meu pais tem a aram. Ou não, bem podia também faço língua portuguesa como acontecer que qualquer resistência ao uso oficial e a cabo-verdíana deles aceitasse a evolução como materna, eu cresci do verbo “amar” que se tem verificado ao alimentado por ambas longo dos séculos com a sua língua, afinal das sem nunca diferenciar qual das duas era mais contas o próprio conceito de díalétíca ensina suculenta pois que as usava indiferentemente, que nada é perene, e ainda bem (leio hoje um e por isso ambas fazem partem do que sou, texto D. Dinis ou de Fernão Lopes e dou gra- razão por que não quero viver sem nenhuma ças por essa língua ter deixado - as formas delas, sei que perder urna me amputaria em arcaicas e crescido até onde se encontra hoje, metade. JL e donde terá de partir para novos desenvolGermano Almeida, cabo-verdiano, ficcionista
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‘Por ti eu troco a noite pelo dia’ Hélia Correia Por ti eu troco a noite pelo dia, Como é o natural de uma paixão. Do fado e dos poetas que seria, E dos amantes, sem a [escuridão? E salta-me no peito o coração Se certa voz murmura [e pronuncia Palavras já tão ditas mas que são Pedaços de um segredo que [arrepia. De Gregos descendente, de [Latinos Com pouca corrupção dileta [herdeira, ‘Menina e moça, ó flor de verdes [pinos Além da Taprobana [transportada E sempre renascida e sempre [inteira, Eis a dito a língua, minha [amada, JL Hélia Correia portuguesa, ficcionista e poeta
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António Lobo Antunes
Sôbolos Rios Que Vão
O irmão prof. de Medicina, neurologista, cientista e também ensaísta, Premio Pessoa, evoca o percurso comum com o irmão escritor, a grave doença deste e como ele transformou essa experiência “num admirável, e mal disfarçado relato autopatográfico” num dos seus livros mais famosos
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té terminarem o curso, os dois irmãos, separados por pouco menos de dois anos de idade, partilharam o mesmo quarto, acanhado e austero. Nas paredes apenas a fotografia a preto e branco de Charlie Parker, o saxofonista maldito. Em vértices que se opunham em diagonal, um divã estreito. Cada um tinha uma estante / secretária onde habitavam duas bibliotecas incipientes que eles quase não partilhavam. Havia mesmo uma certa rivalidade hostil. O conteúdo distinguiu-os desde muito cedo. Num lado, alinhava-se ciência nas fórmulas simples das narrativas de Rómulo de Carvalho e da colecção Que Sais Je um prenúncio da sua devoção a Montaigne? Além de romances, filosofia e alguma poesia. No outro, vivia sobretudo poesia que ia sendo arquivada numa memória prodigiosa. Aliás ambos a musculavam na procura da “vasta e infinita profundidade” de que falava Santo Agostinho. Quer o temperamento, quer a expressão de outras faculdades como a vontade ou a inteligência, por exemplo, os distinguiam. Um estava marcado pelo ferro imperioso de um certo sentido do dever e estudava muito; o outro estudava pouco, mas escrevia páginas e páginas que acabavam invariavelmente cesto dos papéis. Ambos frequentavam medicina. Um cresceu médico com o gosto pela escrita; o outro tornou-se escritor e aproveitou a medicina para alimentar a sua ficção. Tornou-se assim um “ladrão”, como dizia de si próprio o grande médico poeta William Carlos Williams, porque “ovia as palavras, frases conhecia pesas e lugares e usava tudo isto nos seus escritos”. O médico nunca se aventuro na ficção, embora guardasse um manancial infinito de histórias. Mas não era capaz de atravessar aquela fronteira sem guarda, para além da qual o mundo singular da clínica revela a sua intimidade mais secreta. Contentou-se assim toda a vida, a beber as emoções contidas nas narrativas que ia ouvindo, bem ciente do facto de que a doença nos conta muitas vezes os seus segredos “in a casual whisper”, na palavra de um sábio cirurgião inglês. Concluído o curso, partiram: o mais novo para Nova Iorque, o mais velho para Angola. Um, foi aprender um ofício; o outro, foi aprender a guerra. Ambas as experiências deixaram marca indelével e moldaram decisivamente os
sus destinos de cirurgião do cérebro e de caçador das vidas alheias. Este tornou-se famoso na selva da escrita, acumulando prémios e honras. o outro ganhou algum reconhecimento dos pares e um público modesto que apreciava aquilo que escrevia sob a forma de ensaio, o modelo de reflexão em que tentativamente, escoava a sua forma de pensar. É provável que cada um não lesse muito do que o outro escrevia, amador e profissional tão diversos no estilo e no conteúdo, mas havia entre eles um respeito quase solene pelo mister de cada um, pois reconheciam a seriedade do compromisso que tinham assumido. Formavam pois um binómio complexo, razoavelmente equilibrado, mas mantinham ao longo dos anos uma distância quase cerimoniosa, que parecia diluir um afecto cuja profundidade era difícil de medir. Até que um dia… Até que um dia foi diagnosticado ao irmão escritor um cancro no intestino, e um clarão súbito iluminou com esplendorosa nitidez a intimidade de uma relação que ambos, no fundo, talvez desconhecessem. O médico foi imediatamente chamado, porque naquela família de seis irmãos todos reconheciam a sua autoridade nestas matérias, sustentada talvez por uma sageza precoce, além do sangue-frio e racionalidade operativa com que olhava de frente o inimigo. A impassibilidade daquele cancro, naquele irmão, deixou-lhe, no entanto, o coração suspenso. A notícia soara-lhe como o repicar de um enorme sino na nave de uma catedral vazia. E logo sentiu aquele espasmo interior que ele tão bem conhecia e sempre lhe encolhia as vísceras nas ocasiões sérias. De imediato vestiu o seu trajo de “sobrehomem” que exsudava confiança na ciência, que enxotava as estatísticas fúnebres e que garantia que a eternidade estava, apesar de tudo garantida. *** Dois anos depois, António Lobo Antunes transformou a sua experiência num admirável, e mal disfarçado relato autopatográfico para usar a nomenclatura certa-, cujo título foi buscar a Camões, Sôbolos rios que vão. O livro chegou-me em 13 de Outubro de 2010, com uma dedicatória simples: “Para o meu João”. Logo ao fim das primeiras páginas me surgiu uma invencível vontade de sobre ele escrever, e o incluir, como (inesperada) preferência pessoal, neste cânone singular que concede aos seus autores uma absoluta liberdade
de escolha. Poderei explicar a minha por duas razões simples: em primeiro lugar, por considerar esta narrativa uma obra prima desta variação particular do género biográfico; em segundo lugar, porque há muito percebi que só devo escrever sobre o que me apetece, embora esta não seja condição e, muito menos, garantia, de qualidade intelectual ou estética. Será demasiado simplista classificar esta narrativa como uma história “médica”, como as que escreveu Chekhov, por exemplo, que, segundo dizia, ilustravam o “estofo vulgar da humanidade”. Ou, então, como as últimas novelas de Philip Roth, a mais recente das quais, Nemesis, fui lendo em paralelo com estes “Sôbolos rios”, e que combina uma fira descrição clínica e epidemiológica de uma doença terrível - a poliomielite -, com a desesperada tentativa dos sus heróis de encontrarem uma explicação para a incompreensível crueldade de um deus com uma alma sem ouvidos nem olhos. O livre de ALA está, no meu entender, talvez mais próximo de Ravelstein de Saul Bellow, aliás duplamente biográfico, porque é a história combinada das doenças de Allan Bloom e do autor, ou até do De Profundis de José Cardoso Pires, mas, em relação a este, o livro de ALA tem uma outra complexidade e opulência literárias. Devo dizer que a leitura inocente, a pura e dessinteressada imerão na escrita, não é possível quando está condicionada pelo propósito de escrever sobre o que se lê. Não é que o não faça sempre com um lápis na mão, timbre do “verdadeiro” intelectual, que segue há séculos o conselho de Erasmus no seu “De Copia” de 1512. Mas, nestas corcunstàncias, esta é uma leitura a dois tempos, pois, à primeira apreensão do sentido do discurso, segue-se um segundo movimento, uma nova leitura, da qual emerge um outro juício, mais analítico, a confirmação da impressão inicial de que o livro contém algo de precioso, como se na primeira se debatesse o brilho de um pequeno diamante, e na segunda se libertasse este da ganga que o prende. Muito se fala da dificuldade da leitura das obras de ALA. Percebese proquê. A sua escrita exige o foco de uma concentração absoluta pela complexidade da sua estrutura narrativa, que possui uma tal energia interna, que nos precipita numa leitura vertiginosa. Mas esta vertigem tem de ser controlada, sem o que o sentido do que se lê nos escapa irre-
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mediavelmente. Ou seja, esta leitura obriga ao recurso equilibrado às mais sofisticadas facultades dos espïrito, e admito que a corte eneorme de devotosd so livros de ALA tenha aprendido um modo próprio de o ler. No meu caso a leitura era interrompida ao fim de dois capítualos, pois deixava exausta as redes neuronais devotadas a tal função e exigia o repouso sinapses esgotadas. Para o leitor desprevenido, parte da dificultade deve-se ao facto de esta narrativa se aproximar do modelo que se tem chamado de “stream of consciousness”, que, neste caso, não se confina ao que sucede num dia, como no Ulysses ou em Mrs Dalloway, mas em dez, dez dias que se sucedem num fluxo tenebroso. A leitura é ainda exigente pelo menos por dois outros motivos. Em primeiro lugar, pela necessidade de não largas o fio do tempo narrativo, pois este obriga op olhos da inteligência a mirarem simultaneamente uma dízia de écrans que revelam cenas diferentes que ocorrem em tempos distintos em caótica diacronia. O que é evidente, mesmo para este não especialista, é o domínio assombroso da técnica, a caàcidade de mantener a coerência da narrativa sempre tão tensa quanto a corda de um violino. Uma analogia musical que me pareceu apropriada à medida Um cresceu que ia ava avançando seria talmédico com vez a “Sagração da Primavera”. o gosto pela Em segundo lugar pela abundância das personagens. Alguescrita; o mas surgem inesperadamente, outro tornoucom a impertinência de um se escritor e “Jack-in-the-box”; outras são aproveitou a figurantes ocasionais e silenciosos que vão aparecendo de medicina para alimentar a sua forma recorrente, outros ainda atores secundários numa coméficcção dia dramática se é permitido o oxímoro. Herói só narrador. Em contraste com a complexidade da estrutura da obra, a escrita é de uma extraordinária simplicidade. Ala tem em relação ao diálogo, o que Mozart tinha em relação à música - um ouvídio absoluto. O discurso é um “stacatto” de frases muito curtas: “Porque me atraiçoaram voçês?”; “Não foi por mal senhora”; “Tira os sapatos da poltrona”; “Há quatro anos não me visitas a campa”; “ Estás óptimo”; “Quando cresceres comrpeendes”, cada uma absolutamente certeira. Algumas têm o registro de uma metafísica ditraída: “Porque motivo não morres?”.
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Outras são desabafos impacientes-”Alcancei a veia e perdia-a”. E no meio desta prosa, vamos tropeçan-do em metaforas e imagens de uma luminosa veracidade:-”Minha mãe antes dos pulos algemados no terço”; “E ficaram ambos ciercunflezos de melancolia”; “O granito que segregava lagartitxas” essa lagartitxa a “aprender a ser pedra numa falha do muro”; “ninhos de cegonha pingavam chaminés abaixo”. O que é contado neste livro, tão contidamente biográfico - “Antoninho” e “Antunes” assim se chama o herói - é a história da estadia do autor no hospital onde foi operado a um cancro do intestino entre 21 de Março e 4 de Abril 2007. Cada dia é uma estação de uma via sacra cujo final o autor não revela. Para mim, reconheci nele muito que me era familiar, porque nele encontrei fragmentos de vida que eu já conhecia antres do livro ser escrito - personagens, cenários, situações retiradas do património familiar, da memória coletiva privada. Por isso, escrever sobre este livro é quase uma traição, a revelação do segredo de um truque de magia. E, no entanto, senti-me confortável com esta intimidade ficcional, que anulava, pelo argumento de uma cumplicidade de muitas décadas, a respeitável distância entre o autor e o leitor. Mas para vencer a curiosidade irresistível de conhecer como ALA vivera a experiência aterradora da doença, e para tnetender melhor, era preciso cristalizar em forma escrita muitas impressões desta viagem “sôbolos rios”. Por outro lado, o meu interesse derivava ainda do facto do escritor - que acontece ser meu irmão - estar a falar do meu ofício, cujas múltiplas faces são mais justamente apreciadas por quem olha para nós, porque não se inventou ainda o espelhjo que nos devolve tal imagem. Esta é a memória episódica de uma doença tal como esta se desenrolou no quotidiano de um internamento hospitalar. As referências explícitas à razão deste e à natureza da doença que o determinou encontram-se dispersas e quase submersas na narrativa, mas emergem, como golfinhos, com uma periocidade sem regra, como que para recordar o que constitui o cerne do sofrimento do autor, muitas vezes inscrito num mundo onírico ou mesmo alucinatório. O contraste entre a autoridade imperial do médico, sempre identificado como o “homem do pingo no sapato”, e a vulnerabilidade absoluta do doente marca toda a narra-
tiva. Ao herói resta o refúgio regressivo nas memórias de uma infância vivida no cenário que ALA constrói a partir de recordações das férias em Setembro numa vila de Beira Alta, nessa casa cujo castanheiro grande lhe dava o nome, e num tempo em que ainda ninguém morrera e éramos todos felizea, para recorrer ao verso pessoano. E é na árvore, naquele castanheiro tão fértil, que ele encontra uma metáfora adequada ao cancro que o aflige: o ouriço que vai “aumentando em silêncio”, porque como disse um outro escritor, Harold Pinter, as células cancerosas “have forgoten how to die I and so extend their killing life”,
renovando-se implacavelmente como os ouriços do castanheiro. Era nessa casa que conviviamos com um avô que morreu, mais novo do que nós somos agora de um mesmo cancro, que ele recorda a ler na varanda o “jornal com o seu apare- lho de surdo” e de quem herdámos, como nossa mãe, esse traço genético. O ritual da morte nessa terra da Beira Alta era bem diferente da liturgia urbana, a que as agências funerárias da Benfica da nossa infância garantiam uma lúgubre solenidade - Benfica é dona de um vasto cemitério, onde se encontra o jazigo familiar. A morte que o autor descreve era a dos anjinhos vestidos de branco levados à sepultura em caixão aberto forrado de setim, acompanhados de “outras crianças vestidas de serafun de guarda ao caixão”, com “asas mal coladas nas costas”. As personagens que habitam a narrativa são, naturalmente, os fantasmas dessa infância: Vírgílío, homem da lavoura de uma senhora dulcíssima que ele provavelmente amava em silêncio, e que conduzia uma carroça puxada por uma burra, a “Carriça”, que nos parecia enorme, o senhor Vigário, a Dona Irene que, dizia-se, tocava uma harpa que nunca ouvimos, o senhor Casirniro da loja que vendia tudo e,
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no alto da escada de uma casa quase senhorial, D. Lucrécía, , pergunta: “O que se passa com o miúdo?” E a resposta é de uma franqueza crua, de uma frígida neutralidade clínica: passa-se que há “células podres do intestino a invadirem - no destruindo os pulmões, os rins, o fígado”, uma traição monstruosa de uma parte do corpo, subitamente tornado inimigo: “ele a encher-se e esvaziar -se num ritmo penoso, cada célula uma boquinha aflita, cada nervo um arrepio brando”. E o “médico do pingo no sapato” mostrava ao dono do hotel onde, em miúdo, apanhava as bolas de ténis com que o pai jogava com uma enigmática inglesa loura”
A vulnerabilidade é absoluta, como se o eu autónomo, o eu social o tivessem abandonado, desistido dele próprio: “Puseram-lhe fraldas e não estranhava as fraldas, limpavam-no com um pano e as suas intimidadas a balouçarem inúteis”. E ainda: “Sentia a urina na algália não lhe pertencendo, atravessava-o apenas como as recordações e as ideias o atravessavam apenas, o passado remoto, o presente alheio, o futuro inexistente”. O esvaziamento de si era aterrador: “via caras e não conhecia ninguém, falava-Ihe e não escutava, ocupavam-se dele e não era dele que se ocupavam” . Deixara de ser “pessoa sem dar conta, era um peixe numa água mais espessa que a água, a que outros chamavam ar e ele chamava ar igualmente antes da dor que não chegava a dor”. Já antes notara que logo após o acordar “embora a incisão principiasse a maçá-lo”, aquilo não era dor ainda: era a “vizinhança da dor”. De olhos já abertos vai registando o que se passa: “Se uma campainha tocava traziam um biombo e atrás do biombo agitações, murmúrios, as lâmpadas pestanejavam sinais”. Uma “empregada de hotel corrigiu- lhe os pingos do soro e as narinas observadas do travesseiro gigantescas”. E ainda notando: “Morreu alguém no hospital, ele ou outro porque mais vozes no corredor, mais passos e a porta fechada num com licença apressado” .Ele era o destinatário de frases curtas, sem uma pitada de afeto (mesmo que simula- do]: “ Vamos meter um antibiótico no soro”, “Não se entende esta febre”, “Uma picadinha”, “Hoje em dia temos mais recursos”. O tempo vé agora sentido de outro modo: “Os relógios marcam as horas uma a uma mas os dias sucedem-se aos pulos, vão de sábado a quinta e de segunda a sexta, semeado de intervalos que a lembrança perdeu”. À medida que os dias correm parecia ganhar uma outra lucidez, mas o refúgio na infância é ainda o mais seguro. Os comboios que via passar da varanda da casa, recordam-lhe a carta que escrevera a Deus no Natal pedindo-lhe um comboio elétrico. Mas Deus delega na avó a resposta seca: “ - Ele acha muito caro”. Descobre então “como o mundo se modifica ao darmos-lhe atenção”, um mundo de flores, frutos, insetos, pássaros e gatos. Agora parece-lhe que tudo isto fora imaginado: “inventei esta doença que por seu turno se inventa conforme inventa o hospital, os médicos e a fantasia do morrer”. Já quase no final chega uma ex-mulher: “Ainda
João Lobo Antunes
o “ouriço da doença” . E dizia: “Não sei se consigo desprendê-lo do ramo”, salpicando o discurso de sentenças curtas, num presságio ominoso: - “Não gosto desta vértebra”. Afinal era necessário esperar” o resultado da peça/ e que curioso chamar peça à doença” . Mesmo assim, a esperança não ~e submete pois essa criança: “tinha a certeza de não morrer nem se tornar num retrato que um suspiro emoldura”. O nevoeiro do despertar da anestesia é magistralmente descrito: “Formas que iam, vinham e tornavam a ir, se sobrepunham e afastavam, rodavam lentamente ou elevavam -se e caiam depressa ( ... ) Tentava dar nome às formas e não achava os nomes ( ... ) Não tinha corpo, era uma forma entre os restantes formas”. E no acordar a voz da mãe:’ “Começa a dar por nós”. Ainda incapaz de falar, contudo, “o começo da língua e um tubo a atravessar os dentes”. ( ... ) Se apenas falando, embora não desse pelas frases, tinha a certeza de ser”. Só mais adiante, quando começa a erguer-se de uma amnésia movediça, ele recorda a anestesista, “invisível no excesso de brancura. / Feche o pulso com força / e fechou o pulso intimidado a pensar / Socorro”.
que não acredites, e é evidente que não acredites, não nos vemos há anos, sou o que deixava a toalha obliqua no toalheiro e tu endireitavas irritada comigo / - Nem isto sabes fazer?”. Ela senta-se na ponta do colchão esperando que ele não lhe tocasse; “e não toquei a fim de não ser expulso por um cotovelo maçado / - Não se pode dormir?” Está assim reduzido à condição de viúvo que antes descrevera assim: “o viúvo que se esquece das coisas, o tubo da graxa sem rolha ( ... ) só metade da cama desfeita e na outra metade um vazio a que se habituara como ao avental no gancho”. Deixei para o fim aquilo sobre o qual é mais difícil falar - a súplica insistente que a personagem dirige aos pais. A mãe é um ser discreto, mas é ela que surge no fim da história. Como eu sempre escrevi, a doença, quando vence a morte, é como um regresso após uma viagem, uma odisseia atribulada, a excursão de “uma vida cheia de passados e não sabia qual deles o verdadeiro”. Na sua viagem chega a um porto tranquilo, agora “sentado no chão à medida que a mãe enjeitava a máquina de costura e a enrolar-se nas penas para a ouvir cantar. O pano caíra: “A enfermeira já desligara o écran, tirara a agulha do soro, fechara o oxigénio” . Já o vestiram de outro modo e a avó comentara: ‘’Assim compostinho até pareces um homem”. A mãe fizera -lhe a risca no cabelo, mas era o mesmo menino que nascera com “três quilos e duzentas numa toalha de linho”, “três quilos e duzentas de secreções e pregas e um cordão roxo no umbigo”. Mas já nascido ainda desejava que a “mãe o lambesse como I fazem as ovelhas”. Mais enigmática é a personagem do pai, a quem o liga uma cumplicidade que nasce de uma história “louche” com uma empregada doméstica: “- Sabes o quê paizinho? / nunca o tratava por / - Paizinho / e todavia existiram ocasiões em que no interior de si / - Paizinho / e ele aborrecido com o / - Paizinho”. Esta é uma admirável, pungente e angustiante descrição da orfandade da doença, orfandade para a qual muitas curas têm sido propostas, mas todas com pouco préstimo, por- que esta é uma solidão que a voz ou a presença dos outros, mesmo quando desejadas, só fugazmente aliviam. O enigma do título só no final é decifráveis, e a sua escolha não poderia ser mais justa pois, como escreve Camões em certo passo, “Bem são rios estas águas, / Com que banho este papel; / Bem parece ser cruel! Variedade de mágoas/ e confusão de Babel”.
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OS DIAS DA PROSA Miguel Real
Tragédia Lírica O Teu Rosto Será o Último, Prémio Leya 2011, primeira obra de João Ricardo Pedro, um romance de aparente leitura simples, fluida, suave, é sustentado, no entanto, por uma estrutura de grande complexidade. Ainda que labiríntica, a estrutura estética que suporta a totalidade do romance emerge, primeiro, através de um estilo harmónico, cruzando e fundindo inúmeros espaços, tempos e personagens, umas permanentes, outras avulsas e, segundo, por via de uma rede solta de inúmeras e diversificadíssimas acções e situações. Seja pelo primeiro, seja pelo segundo elemento da composição, é um romance que exige uma atentíssima leitura que, porventura, só numa posterior releitura conquistará o leitor. Já munido de um certo grau de conhecimento das linhas estruturantes do romance, o leitor usufruirá, então, de um verdadeiro prazer estético. Os capítulos curtos e os parágrafos soltos parecem resultar de uma “Pede sua voluntária contenção narrativa, qualidade, que subtilmente deixa de suspeitar o sentido da mente honra o mais deste um rasto de significação avultado que, colado e cruzado aos galardão restantes, vai gradualmente literário compondo na consciência do português, e o leitor a estrutura e o sentido do romance. Intermedeia seu autor veio diálogo e narração em períodos para ficar” brevíssimos, compondo blocos de textos que, em jeito de puzzle, se vão organizando na mente do leitor, forçando-o a reconstruir a cronologia e a ordem estrutural. Estilisticamente, O Teu Rosto Será o Último balança entre a frase curta, condensada, de timbre, lírico, de evidente inspiração visual ou cinematográfica, exprimindo sinteticamente a preparação ou o resultado da acção, e uma detalhada descrição da
realidade exterior (ex.: pp. 132-33, processo estilístico repetido ai longo do romance), leitmotiv do nouveau romance francês da década de 60, reproduzida em Portugal por Artur Portela Filho e Alfredo Margarido. Neste sentido surgem, entre períodos narrativos, descrições pormenorizadas da ida ao supermercado, da entrada no prédio da habitação até à abertura da porta do apartamento de Queluz… Mais sugerindo que descrevendo, existe indubitavelmente uma mestria no exercício da ligação harmónica e umbilical entre o plano na história contemporânea portuguesa de Salazar a Cavaco Silva, e o plano da ficção. Neste sentido, não existe apenas o lançamento de pontes entre ambos os planos, como se a História se constituísse como horizonte de fundo da ficção, e esta se evidenciasse como destaque daquele, como aconteceu na maioria dos romances portugueses. Diferentemente, João Ricardo Pedro consegue de tal modo entrelaçar e fundir a História real com as personagens que ambas se tornam indistinguíveis no corpo do texto. Ao contrário da maioria dos romancistas portugueses vivos, incapazes de dominar narrativamente as diversas dimensões do tempo, o autor não começa nenhum capítulo nem nenhum parágrafo com o tão parasitário quanto esteticamente horrível “entretanto” (ou, nos clássicos como Pinheiro Chagas e Mendes Leal, “entrementes”). Abordando a história contemporânea portuguesa desde a década de 1950 até à actualidade, o narrador faz o leitor entrar nela pela mão da família Mendes: Augusto e Laura; pais, António e Paula; filho e neto, Duarte. São assim três gerações que, entre uma aldeia não nomeada (com nome de “mamífero”) na serra da Gardunha e Queluz, às portas de
Lisboa, reflectem, para além da idiossincrasia individual, banhada de lirismo, a tragédia existencial de terem vivido em Portugal. A tragédia é expressa no dramatismo consubstancial às constantes mortes escritas no romance: o avô materno morre torturado pela PIDE; o avô paterno morre entrevado, após um ataque de coração quando assistia, no Fundão, à passagem da Volta a Portugal em bicicleta; a mãe, Paula, morre com um cancro na mama, o pai, António, sofrendo de stress de guerra, suicida-se após a morte da mãe, com o conhecimento e consentimento do filho, Duarte; Celestino, o protegido do dr. Augusto Mendes, suicida-se ou é morto (não se sabe); a morte sinistra do Índio, menino pobre da aldeia; o próprio Duarte, em criança, motivado por uma pulsão biológica, mata um animal, que depões na cama dos pais, mutila formigas e despe-se à frente da menina Luísa, com quem, no final do romance, porventura casará (não se sabe); o dr. Augusto Mendes isola-se nos contrafortes da serra da Gardunha, abandonando definitivamente o Porto (não se sabe a causa). Ou seja, o elemento trágico dissemina-se pela totalidade da narrativa, sempre envolto numa escrita lírica, e Duarte, “o maior beethoviano do seu tempo” (p.76), abandona o piano após três desmaios quando tocava Bach, considerando que a música lhe amputava ou sugava a vida, como a mulher austríaca, falecida em Buenos Aires, no hotel Policarpo, amputara a perna direita para se identificar com a mulher amputada do quarto de Bruegel patente no museu de Viena. Tragédia expressa liricamente, O Teu Rosto Será o Último (que rosto?, o de Duarte?, o de Luísa?), pela sua qualidade, honra o mais avultado galardão literário português, e o seu autor veio para ficar, de certeza.
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Golgona Anghel
Poesia sem literatura? “Diabolica e requintada, a poesia de Golgona Anghel é uma maquina implacável de irrisao” (Antonio Guerreiro); “Especie de enciclopedismo para pós-apocalipticos, o saber disponibilizado nos poemas não é afronta, nem pompa – é vestígio.” (Hugo P. Santos); “[Este livro]é um dos mais interessantes de entre aqueles que foram publicados nos últimos tempos em Portugal e um dos melhores escritos por uma jovem poeta” (David Teles Pereira). A receção foi entusiasta, como se vê. Vim Porque me Pagavam, agora em reedição, confirma a voz de Golgona Anghel como uma das mais ambiciosas da novíssima vaga de poetas recentemente surgidos. Dir-se-ia que a profusão de livros de poesia publicados e de poetas revelados nos últimos três a cinco anos é sinal de uma nova agitação de águas, um pouco como o que há dez anos sucedeu, quando entre uma poesia “sem qualidades” e uma outra linguagem, de aposta mais imagética e, “Golgona por isso, menos descritiva e coloquial, se estabeleceu uma, consegue nem sempre foi a poesia, em comunicar si mesma, que ficou ganhando uma visão da com o debate. Golgona Anghel realidade que, assume, em todo o caso, não por alegoria, querer pertencer exatamente a filiação alguma, por muito que metaforiza o certos recursos não estejam que se observa” longe do que veio a ser mais comum: conceber o poema como narrativa de episódios banais e de circunstância. Não raro; encontraremos as mesmas imagens e atmosferas decadentes e uma anulação do trabalho retórico que à poesia exigia… Anghel, em todo o caso, podendo descrever esse mundo pós-apocalíptico de que fala Hugo P. Santos, nem por isso sacrifica à mera
descrição ou à enunciação autobiográfica aquilo que mais lhe importa, a saber: rir de tudo, como se, mesmo sem ser evidente, falasse com a tradição vinda de Cesariny ou de O’Neill, de Adília Lopes ou mesmo de Tiago Gomes. É, pois, uma poesia culta que se quer apresentar ao leitor como despretensiosa e sardónica para com a erudição literária. Sobra, pois, a visão de uma cultura de capitadas, entregue ao cepticismo que mina as relações, a vida e toldade uma negritude o riso e o sorriso do sujeito destes poemas. Detestar o Doutor Fausto é, tao-só, fazer de conta, teatralizar um “não quero saber” que vai bem com o “engraçadismo” vigente neste tempo alarve e de riso fácil. No limite, quer-se, aqui, ser contemporâneo do humor (ultima arma da indigência) à portuguesa, aquele que se vê nas inteligentes sessões de stand up comedy. O título, alias, é todo esse programa. De facto, falando-se de Trakl, de Cioran, do jovem Werther, e quando tudo poderia indiciar um discurso catastrofista e decetivo, artificialmente de adesão aos suicidados da história, eis que a voz da enunciação corta com essa ambiência culturalista no texto e declara: “ O mais difícil foi, no entanto,/ desaparecer para depois surgir/ com estas luvas anti-bacterianas/ e os comprimidos bacterianas/ e os comprimidos anti-stress.” (p.75). Nem o corvo, já emblema literário escapa à irrisão de Golgona. Esmagado contra a porta da casa, é a própria Literatura que se esmaga. E por isso, em Vim Porque me Pagavam - e para alguém que veio de fora esta titulo esclarece muito. O elenco da visão é, não raro, enumerativo, convidando a ler-se nesta poesia mais do que está escrito. Pode-se fazer a lista das figuras que aqui desfilam: das empregadas brasileiras aos
“sonhos transatlânticos” e ver-se-á, enfim, a preocupação maior desta poética – ser a voz deste “tempo detergente”. Literalmente Golgona consegue comunicar com o leitor uma visão da realidade que, por alegoria, metaforiza o que se observa: “ A depressão começa a andar na moda/ Fiz diabetes, cortei as veias duas vezes,/ fugi de casa, gastei uma mulher em cada livro,/ perdi a paciência, o rumo da historia,/[…]/(tinham entretanto inventado a televisão)/ no minúsculo/ buraco negro/ duma bala” (p68). O certo é que, vendo a realidade cinzenta dos dias, acaba-se por edificar uma mascara que está na posse de um saber (repete-se o verso “porque eu sei que”) o qual é, na verdade, conferido pela Literatura. Paradoxo: entre dizer-se que se faz poesia porque sim, e assumir, sem pejo, que ela é feita porque há vários modos de se pagar a quem a faz, Golgona acabo por deixar o leitor perante os estilhaços deste livro. Ultima questão, pois: Há criatividade nos textos de Golgona Anghel, é certo. Mas lembremos, para o futuro dos seus livros, o que um dia escreveu M.S. Lourenço, em Os Degraus do Parnaso: “[…] A situação que atualmente se vive é a da abolição da diferença entre o literato e o analfabeto secundário, negociando ambos um consenso de mediocridade, o qual produz uma legitimação reciproca e sem conflitos. […]. E, assim, o escritor legitima a plebe audiovisual, não fazendo exigências retoricas ou prosódicas ao seu público, enquanto este por sua vez legítima o escritor não fazendo exigências, nem de forma, nem de estilo.” (pp.68-69). Esperemos para ver.
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Carlos Nogueira
A sátira portuguesa Publicado na coleção Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas, este livro corresponde à tese de doutoramento que Carlos Nogueira apresentou em 2008 à Faculdade de Letras do Porto. Nasce pois no âmbito académico, sem contudo deixar de ser atrativo junto de um público mais alargado. Para isso, contribui largamente a clareza e fluidez discursiva do autor, mas também o facto de se ocupar da sátira; um género que se enraíza na mundividência portuguesa de todas as épocas, mas sobretudo em períodos de crise, quando o sentimento intimo de desordem dá lugar à catarse, pela denuncia dos vícios, defeitos e injustiças sociais. O livro, que ganha assim em atualidade, sobressai alia no nosso panorama editorial, pelo folego da síntese que empreende em torno do objeto de estudo: a tradução da “sátira na poesia portuguesa, mas também o pensamento, o sentimento e o discurso satíricos em geral” (p.19). Fundamentalmente, a estratégia adotada pelo autor assenta numa estrutura tripartida: o primeiro capitula onde procura combater alguns vazios e dogmatismos teóricos (p.2188), um estudo diacrónico da nossa poesia satírica (apreendida sincronicamente no quadro teórico que marcou os vários períodos ou movimentos literários – p.89-561) e por fim uma análise critica, “simultaneamente comparatista e disjuntiva”, de três autores representativos da maturidade satírica portuguesa: Nicolau Tolentino, Guerra Junqueiro e Alexandre O’Neill (p.563-736). Na primeira parte do estudo, o investigador começa por desfazer o equívoco (muitas vezes enraizado no senso-comum) que opõe lirismo a sátira, como se esta realização fosse de todo incompatível com a sublimidade do discurso lírico. O que o autor nos demostra é que a poesia satírica – contrariando qualquer hierarquia dos géneros ou preconceito de estilo – não
representa mais do que um modo derivativo, plenamente integrado no modo lírico (p.168), cuja visão complementa, partilhando alias muitas das formas, técnicas e mecanismos retóricos (p.56-87). Á semelhança do que outros estudiosos observaram para o quadro específico da lírica galego-portuguesa, Nogueira defende que os textos satíricos, na sua generalidade, tem de ser vistos como exercícios integrados no mesmo código formal e ideológico que, ao longo dos seculos, presidiu também ao registo amoroso ou elegíaco. Isto mesmo se encontra largamente examinado na segunda parte do trabalho, onde o autor acompanha a evolução da poesia satírica portuguesa, desde a época medieval ate á literatura contemporânea. Ao longo de 400 páginas, percorre a diacronia, focando sobretudo os poetas canónicos, mas também surgem outras vozes importantes para a compreensão desta mesma sátira, como os poetas populares, os célebres cantores de intervenção ou a mais genuína oralidade anonima do cancioneiro tradicional. Na impossibilidade de contemplar todos os nomes que fizeram a história da nossa sátira (ate pela inacessibilidade material de muitas obras, que nunca chegaram a vir a lume), a estratégia de Carlos Nogueira passa, antes de mais, por evitar a “mera inventariação e encadeamento de poetas” (p.739). Inversamente, procura articular visões de síntese com a individualidade das obras selecionada, confrontando, a cada momento, a prática poética dos autores com teorização que simultaneamente foram empreendendo, por vezes até de forma contraditória. O resultado é uma história crítica da nossa poesia satírica, centrada na “reflexão, teórica e prática” (p.739), que permite, desde logo, reconhecer duas grandes linhas estruturais: uma mais benévola e contida ao nível dos meios expressivos; a outra mais contundente,
pelo usa da imprecação e das obscenidade. Os três poetas exemplares, que aparecem destacados no último capitulo, ilustram justamente essas tendências. Nicolau Tolentino de Almeida, cuja teorização entronca no prodesse ac delectare horacianos, representa o olhar simultaneamente lúdico e morigerador de quem deambula pela cidade (p.740), atentando nos pormenores, para edificar a caricatura irónica que faz desta sátira uma autêntica representação visual da condição humana portuguesa em finais do séc. XVIII (p.614). Guerra Junqueiro, cujo conceito de sátira sugere a contundente execução corpórea sobre um objeto (p.621), representa a máxima seriedade de uma poesia agónica e panfletária (p.647), fundamente comprometida no jogo político-social da altura. A imprecação da poesia, apaziguada por instantes de recolhimento elegíaco, é um cruzamento de varias tonalidades irónicas e sarcásticas (p.685), cuidadosamente geridas ao nível retórico, para provocar os mais variados efeitos junto das massas. Finalmente, Alexandre O’Neill representa um conceito de sátira ambíguo, conjugando a indignação subversiva com o inevitável trago da decepção magoada (p.702). O ímpeto demolidor da sua sátira irrompe diabolicamente num calão sexualmente ofensivo (p. 700), que a todo o momento procura subverter os pretensiosismos da cultura totalitária (onde a linguagem poética se insere). Do geral ao particular, Carlos Nogueira disponibiliza assim, neste livro, uma leitura estruturada a vários níveis, que alia a seriedade dos trabalhos académicos ao incomparável gozo que só os textos satíricos proporcionam, na actual conjuntura de crise. Também por essa mesma razão, a sua leitura é, então, incontornável.
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Carlos Ademar
Um policial sociológico É um empolgante policial que as primeiras páginas prometem, mas como a vida, os romances também dão muitas voltas, e a narrativa acaba por deslindar não apenas o mistério de um crime, mas as razões e enquadramentos sociais e históricos, vivências e dinâmicas suburbanas de um bairro da periferia de Lisboa, daqueles chamados problemáticos, a Cova da Moura. E o bairro é mesmo o protagonista de O Bairro, o sexto livro de Carlos Ademar, 51 anos, que se estreou com A Casa da Rua Direita, em 2005, tendo antes publicado O Homem da Carbonária ou Memórias de um Assassino Romântico. Inspector da Polícia Judiciária, operacional da secção de homicídios, anos a fio - actualmente dá aulas na Escola de Polícia Judiciária - , o escritor nem precisou de fazer uma aturada investigação no local, porque conhece o terreno como as palmas das suas mãos. A partir da morte a tiro de um polícia na Cova da Moura, em 2005, um facto verídico, que fez primeiras páginas dos jornais da época, Ademar dá-nos a realidade “pura e dura” de um lugar que transcende a ficção. Porque no seu romance só a realidade é mesmo dura. Os seus polícias, o seu inspector Barata, são puramente humanos.
JL: Há no seu romance uma preocupação com o enquadramento social e histórico, a par da intriga policial. Porquê? Carlos Ademar: Está tudo ligado. Sirvo-me das histórias policiais para falar de outras coisas. E fazendo essa contextualização, enriquece-se a própria história que se conta, assim como quem lê o livro. É importante ir sempre à génese, neste caso, perceber porque aqueles acontecimentos ocorreram ali e não noutro sítio qualquer. E, naturalmente, que as personagens que se vão descobrindo no livro tem a ver com um passado, com as componentes culturais e familiares, com o grupo social em que se desenvolvem.
Partiu justamente de um desses factos, a morte de um polícia baleado na Cova da Moura, em 2005. Porquê? Pareceu-me que era uma história que merecia ser contada. Até porque, embora a nossa sociedade felizmente não seja particularmente violenta, os episódios que são contados ocorreram numa altura em que se atingiu um patamar de violência pouco comum. Claro que as coisas não se passaram rigorosamente assim. Acrescenta-se a ficção a todas aquelas histórias, muitas que eu próprio vivi no terreno. Procuro guiar-me por aquela velha máxima: nunca permitir que a verdade estrague uma boa história.
O bairro é o protagonista do livro? O desafio foi esse. Interessava-me falar das suas dinâmicas, da própria arquitectura, da forma como cresceu. As populações são migrantes, desenraizadas, naturalmente sem estabilidade, sem muito a perder. E por tudo isso, estão mais disponíveis para arriscar. Não têm lastro, nem âncoras. A ideia foi dar conta do quotidiano de um bairro com essas características, da forma como as pessoas nele interagem, da criação dos galgues, com os seus líderes, da rivalidade entre eles, dos guetos, dos medos e da forma como tudo isso interfere na vida dos residentes.
E não precisou de fazer uma pesquisa sobre o local… Não, não. Nem precisei de lá ir para saber exactamente o nome das ruas. Tenho todos os cruzamentos bem presentes. Foram muitos anos a trabalhar nos homicídios.
Criou algumas personagens femininas muito fortes como Ângela… Ou Alzira, uma mulher com 70 e tal anos, que se vê na contingência de tomar conta das crianças com 4, 5 anos, porque os filhos e netos foram presos por tráfico de droga. A pouca estabilidade que existe num bairro como aquele é sem dúvida criada pelas mulheres. Presto-lhes uma homenagem. O objectivo do livro é também fazer com que os leitores quando ouvirem falar de factos ocorridos nestes bairros, lhes entrarem pela casa dentro, possam perceber melhor o porquê das coisas.
Deixou por completo todo o seu trabalho operacional? Já não tenho físico… Estou a dar aulas há seis anos. Mas confesso que tenho algumas saudades, apesar de ser uma vida muito desgastaste, não só física, mas psicologicamente, para quem leva as coisas a sério, como é o meu caso. Porque não conseguimos passar ao lado das situações de miséria, com que nos deparamos. A frase de Jorge Reis, que uso na abertura do livro, reflecte bem essa circunstância. Isso reflecte-se também nos seus “polícias” no seu inspector Barata. Sim, são humanistas. Tento combater o estereotipo do polícia durão das séries televisivas e de algum cinema negro. O normal são os meus polícias, esses duros são demasiado ficcionais. JL MARIA LEONOR NUNES
om o seu último romance, A sul. O Sombreir, Pepetela convida os leitroes a (re)visitar os primeiros tempos da ocupação colonial portuguesa dos territórios de Angola, altura em que a coroa portuguesa pertencia ao rei Filipe de Espanha, Viviam-se momentos particularmente conturbados com o país subjugado por outro mas que mantinha o seu desejo de dominação de terras e povos de além-mar. É, pois, a história da conquista do território que se tornará a futura cidade de Benguela que o autor nos traz, abrindo-se de forma desconcertante e promissora de grandes aventuras contades em tom irónico e expedito: “Manuel Cerveira Pereira, o conquistador de Benguela, é um filho de puta”. Ao longo de perto de pquarto centenas de páginas, Pepetela constrói uma narrativa através de um jogo complexo e interessantíssimo de fragmentos de histórias individuais e da História oficial que se entrelaçam e se sobrepõem de forma surpreendente. O entrecho arquiteta-se segundo dois níveis temporais, aos quais correspondem narradores com poder e conhecimento diversos. A História surge como uma forma concreta, como o resultado de experiências vividas por personagens que, alternadamente, vão tomando a palavra para contarem a sua perpetiva dos acontecimentos e de quem neles participou.. Estes retratos de memórias individuais (de, entre outros, Manuel Cerveira Pereira, o padre
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De Luanda a Benguela, em buscar do Sombreiro
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Simão de Oliveira, a bela Margarida, Carlos Rocha) são balizados por comentários de um narrador que, por não pertencer ao tempo da história, tem um conhecimento total não só dos acontecimentos e dos seus intervenientes mas também do desfecho e consequências dos atos praticados nas primeiras décadas do séc.XVII. Vários indícios assim como comentários desta curiosa personagem, tais como “era realmente um grupo multicultural, como se diz hoje” ou “a sua morte anunciava o fim da colónia de Benguela independente de Luanda. Mas isso nem Mulende, nem Carlos, nem Kandalu, nem os mudombe oua as jagas podiam perceber”, ou ainda “tornou-se [a igreja de Jesus] na sé da cidade já depois de 2000”, permitem-nos situálo na contemporaneidade. Esta circunstância proporciona-lhe o distanciamento críticio e fundamentado que utiliza em abundância no realto da conquista de Benguela. Neste livro, o autor regressa a um diàlogo peculiar com a História que tinha encetado em 1997, com a publicação de A A obra de Pepetela Gloriosa Família - O tempo dos funda-se numa flamengos (GF). Como várias vezes se tem afirmado, a obra de Pepetela incessante (re) funda-se numa incessante (re) visitação da visitação da História de Angola: dos História de Angola seus mitos, das suas personagens, dos acontecimentos que marcaram o percurso da construção da nação. No entanto, nesse incontestável continuum temático existia, até à publicação deste novo romance, um exceção (utlizando este termo no sentido etimológico: de um fenómeno limitado e restrito) no tratamento diegético e construção efabulativa desse tem, que era de GF, cuja a singularidade resulta da intrincada e sábia mescla entre documentos historiográficos e a efabulação literária. Recorde-se que em GF se narram os sete anos ( de 1642 a 1648) de ocupação holandesa de Luanda. Abre-se a narrativa com a citação de um excerto de um texto fundamental da historiografia de Angola, da autoria de António Oliveira Cadornega: História Geral das Guerras Angolanas, que apresenta um cidadão de Luanda, Baltazar Van Dum, que se torna, pela mão de Pepetela, no protagonista do romance. Para além deste texto basilar da historiografia angolana, outras epígrafes de outros tantos documentos historiográficos (devidamente indentificados através de referências bibiliográficas completas) abrem os vários capítulos, reforçando e aprofundando o diálogo entre a literatura e a História. Essa singularidade de construção diegética na produção romanesca do escritor é agora contrariada com a publicação de A Sul. O Sombreiro (ASS), que se constitui como um feliz e admirável regresso à meteficção historiográfica (tal como a definiu a Linda Hutcheon), ao tempo que antecede aquele narrado em GF(Manuel Cerveira Pereira chega a Luanda com o cargo de capitão-mor nos primeiros anos do século XVII e morre em 1626, cerca de década e meia antes da dominação holandesa). Com efeito, a ameaça da ocupação holandesa de Luanda já pesponta na narração, havendo referências fugazes às intenções de conquista dos holandeses das terras ocupadas pelos portugueses. Em ASS, o questionamento da História fazse pelo viés de um aturado diálogo com os ducumentos historiográficos por detrás do qual se adivinha um intensa pesquisa documental, aliás confirmada explicitamente em nota autoral de posfácio e de modo mais subtil ao longo dos relatos. Num jogo, a que Pepetela já habituara os seus leitores, somos confrontados com referências a factos apresentados e comentados pelo narrador que subrepticiamente nos vai dizendo do seu trabalho de pesquisa. Por isso, referindo-se as fontes consultadas, adverte-nos que “os registos não mencionam” as informações necessárias para tornar o seu relato mais completo, ou ainda que não pôde encontrar “referências explícitas nas crónicas”. O diálogo com o leitor leva ainda o narrador a especular sobre as nossas atitudes perante a leitura, adivinhando as nossas expectáveis curiosidades ou desconfianças. Assim, de modo irónico e desconcertante previnenos, em texto diferenciado da mancha gráfica e destacado por parênteses retos, para salvaguardar qualquer distração nossa: “[Aviso desinteressado aos leitores: inútil procurar os nomes num mapa, pois nem eles estão bem escritos, vindos todos de tradição orla e corrompidos pela péssima
audição dos portugueses para as nossas línguas, nem fazem parte da paisagem há muito tempo.]”. O jogo com o leitor, na procura da sua cumplicidade, estende-se ainda à construção discursiva. Ao jeito da estrutura paralelística da lírica trovadoresca, os incipit dos capítulos retomam a expressão que encerra o capítulo imediatamente anterior, criando um efeito de prolongamento textual e de esbatimento da convencional interrupção do parágrafo , por via da repetição vocabular. surpreendendo o leitor com insólitasa reutilizações de palavras ou até mesmo de conceito. ASS constitui-se como um misto de epopeia, de relato de viagem e de romance de aventuras, que nos oferece uma imagem das lutas que marcaram aquele período da ocupação colonial de Angola, vista segundo várias perspectivas, tantas quanto os narradores que tomam a palavra. Desse alargado conjunto, destacam-se duas vozes que pertencem a duas personagens em torno das quais se constrói a intriga: Manuel Cerveira Pereira e Carlos Rocha, e que involuntariamente trlham percursos paralelos. Uma indesejável coincidência liga a indesejável coincidência liga a existência de Carlos Rocha, um alegado descendente de Diogo Cão, à do governador, que os leva a percorrerem os mesmo caminhos, a contatarem com os mesmos indivíduos, a buscarem igual destino. Os seus relatos constituem-se como testemunho de um fazer humano no tempo, intensificado pelo registo na primeira pessoa dos narradores, que assumem, desta forma, o papel de testemunhas presenciais daquilo que viram, ouviram ou construíram e que agora contam. A busca do passado é assim empreendida pelo viésda experiência individual complementada pela apropriação diegética do documento historográfico. A narrativa nasce de um jogo de espelhos, onde cada uma das perspetivas(a pessoal e a oficial) se reflete na outra que a deforma e enriquece, permitindo uma visão plural sobre os indivíduos e os acontencimentos que marcaram as primeiras décadas do colonialismo seiscentista em Angola. JL / 21 de março a 3 de abril de 2012 * jornaldeletras.pt
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A palavra e a imagem Luís Rainha Angiogénese, Derrelicção, Eletroplasma, Iatrofobia, Mnemosfera, Pirofania, Sizígia. São mesmo palabras difíceis as que dão título a estes contos. Mas é n asua decifração, através da história que se conta, que está a base deste jogo de letras. Nascido em 1962, Luís Rainha tem formação em engenharia e sociologia, sendo hoje diretor creativo da agência de publicidade Laranja Mecânica. Nestas três atividades talvez se encontre o segredo destes contos: histórias do cuotidiano envoltas em modos de contar muito diversos. De resto, a atenção à forma é um dos traços que mais se distingue neste livro, já que ao lado de histórias ‘normais’ outras assumen a forma de alíneas, de bibliografia comentada e de banda desenhada (com desenhos de João Fazenda). Distinguido com uma menção honrosa no VIII Prémio Nacional de Conto Manuel Fonseca, 18 de Palavras Difíceis é o quarto livro de Luís Rainha, depois de Noites de Lisboa, Últimas Palavras e O Último Segredo de Fátima. Luís Rainha 18 PALAVRAS DIFÍCEIS Tinta-da-China, 192 pp, 16,20 euros
Patrícia Melo ”Um ano antes, eu era gerente de telemarketing Numa central en São Paulo, responsable pela venda de aparelhos de ginástica, desses que você dobra, coloca em Baixo da cama e não usa nunca mais”. Assim era, de facto, a vida do narrador do novo livro de Patrícia Melo, que em Portugal passou a ser editada pela Quetzal. Agora, este homem de meia-idade encontra-se no meio do Pantanal, perto da fronteira com a Bolívia. Está em fuga, longe dos olhares, já que fora implicado, em São Paulo, no assassínio de uma mulher. E se a sua já estava condenada, pior ficou quando viu, Numa tarde de domingo, um avião cair. Uma nova fuga estava prestes a iniciar-se. Como em Matador, Mundo Perdido, Inferno ou Jonas, o Copromanta, o estilo de Patrícia Melo é reconhecível desde a primeira linha. Um narrador na primeira pessoa, uma ação contínua e um suspense em crescendo. Ingredientes explorados ao limite em Ladrão de Cadáveres, que não deixa de se referir à violência que assola os confins do território brasileiro. Patrícia Melo LADRÃO DE CADÁVERES Quetzal, 208 pp, 15,50 euros
Na mesma magnífica coleção (dos CTT) de livros / álbuns a que nos referimos na Estante (das Ideias) na nossa edição de 22 de fevereiro, descreyendo as suas características esenciáis – acaba de sair um novo volumen, A Palabra e a Imagem, de Paulo Mendes Pinto (PMP). Tema que tem a ver, como sempre, com o lançamento de novos selos, incluídos na parte inicial da obra, em que se estudam ou versam 50 sepisódios bíblicos através de outras tantas obras de arte portuguesas – desde, no Antigo Testamento, “A criação dos animais” (retábulo de Grão Vasco na Sé de Lamego) até, no Novo Testamento, a “Ascensão de Cristo” (óleo atribuído a frei Carlos, no Museu Nacional de Arte Antiga). O texto abrindo com citações bíblicas, diz ou explica o que significa cada um desses episódios. Num curto prefacio, o o teólogo padre Joaquim Carreira das Neves escreve: “O presente livro é um ato de coragem onde se conjuga a estética da pintura com a hermenêutica da palabra (…) É este telejornal da Palabra feita imagem que PMP nos entrega para passarmos da lectura significante à lectura significada. Esta lectura vem de longe, das catacumbas de Roma e de todas as catacumbas das nossas ‘cavernas’ platónicas cristos em demanda da luz da palabra feita mistério e feita imagem. O colorido poliédrico da imagem rompe com a teología apofática para regressar ao ‘não falar’ e ‘não dizer’ da imagem. O ícone é sempre um ‘mais’ colado à Palabra como a fotografia do amado ou amada na presenta da sua ausência.” Esta coleção dos CTT vai em 150 títulos editados e a uma das obras ‘recenseadas’ no penúltimo JL, A tradição do pão em Portugal, de Mouette Barboff, foi recentemente atribuído o prémio de melhor livro do mundo sobre pão, do Gourmand Worl Cookook. Paulo Mendes Pinto A PALABRA E A IMAGEM Ed. Clube do Colecionador dos Correios, 176pp
Eudora Welty ”Aquilo que faço quando escrevo sobre uma qualquer personagem é tentar entrar na mente, no coração e na pele de um ser humano que não sou eu. Quer se trate de um homem ou de uma mulher, velho ou novo, com pele negra ou branca, o principal desafio é o salto em si. O ato da imaginação de um escritor sobrepõese a tudo”. Eis a arte poética de Eudora Welty, que passou a vida inteira a captar a essência do sul dos Estados Unidos da América, os seus habitantes e ilusões. A par de uma variada obra como contista, a escritora, que nasceu em 1909 e morreu em 2001, é também autora de cinco romances, o último dos quais agora publicado pelo Relógio d`Água. Passados muitos anos desde o dia que abandonou da cidade onde cresceu, Laurel Mckelva regressa a casa devido à morte do seu pai. Será também um retorno ao passado, que recordará para chegar a novas conclusões. Eudora Welty A FILHA DO OPTIMISTA Tradução de Margarida Periquito, Relógio d`Água, 144 pp, 12,50
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Quatro thrillers Depois de Intervenção, a editora Europa – América prossegue a publicação das Obras de Robin Cook, o escritor e oftalmologista norte-americano reconhecido como o fundador do ‘thriller médico’. Cura (368 pp, 19,75 euros) é o 30.º livro do autor dos bestsellers Intenção Criminosa ou O Corpo Estranho, e conta a história de Laurie Montgomery, uma médica legista de Nova Iorque que, após um longo período de ausência, regressa ás suas funções para enfrentar um caso complexo, que envolve crime organizado e duas empresas recém-criadas de biotecnologia. Com o selo da Clube do Autor, sai tambén um novo título de outro dos escritores mais populares da actual literatura de suspense: O Jogo da Verdade (436 pp,18,95 euros), de David Baldacci. Um propietário de uma empresa de armamento (Nicholas creel) e um ‘gestor da perceção ‘ (Dick Pender) unem-se para encenar e facer circular o vídeo de um homem a ser torturado, com o objetivo de criar uma guerra à escala mundial. Mas o ‘jogo’encontra um adversário inesperado, Shaw, o herói sem Nome própio que também protagoniza o seu A Conspiração do Silêncio. “Serras de gesso zumbiam, água corrente tamborilava e o pó de osso pairada no ar como Farina. Três mesas ocupadas. Vinham mais corpos a caminho. Era terça-feira, 1 de Janeiro, dia de Ano Novo”. Assim começa o 16.º livro da saga policial de Patricia Cornwell protagonizada pela médica forense Kay Scarpetta. E poderia continuar: “Ano Novo, Vida Nova”. Pois neste tomo (Scarpetta, 404 pp, 19,90 euros) que acaba de ser lançado pela Presença, Scarpetta deixa o Estado de Carolina do Sul para aceitar um novo desafio em Nova Iorque: examinar um homen que se encontra ferido e detido na ala psiquiátrica do Hospital de Bellevue. Ainda dentro do thriller policial, chega à Dom Quixote Dias de Expiação (496 pp, 18,900 euros), o segundo romance de Michael Gregorio, pseudónimo da dupla Daniela De Gregorio e Michael G. Jacob, casados desde 1980. Mais um caso a cargo do intrigante magistrado prussiano Hanno Stiffeniis, Discípulo de Immanuel Kant, inventado no romance de estreia Crítica da Razão Criminosa.
João Eduardo Ferreira “Claro que todas as palabras são ocas. O que pode valer é o eco que dentro delas provocamos”. É o trabalho sobre a própia escrita, entre aforismos e poesia, o que mais cativa na mais recente obra de João Eduardo Ferreira, publicado na Apenas Livros. Azul 25 Linhas tem a forma de um diário, como é explicitado pelo autor no prólogo: um pequeño bloco azul oferecido por um amigo no Natal que que quis preencher. Mas não se encontra aquí uma escrita espontânea diarística, do género conta corrente. Há um trabalho sobre a forma, que aproxima o livro da poesia ou de algum outro género indefinido. João Eduardo Ferreira AZUL 25 LINHAS Apenas Livros, 76 pp, 4,90 euros
Stieg Larsson É daqueles que leu a trilogia Millenium e soube-lhe a pouco? Então este livro é para si. Não, não se trata de uma continuação, nem dos famosos inéditos que o escritor sueco terá deixado no seu computador. É antes um trabalho de investigação que cruza jornalismo e crítica literária, entrevistas e depoimentos, de forma a levantar um pouco o véu de um dos maiores fenómenos editorais da última década. Dividido em quatro partes, a primeira trata de um homem que conquistou o mundo, a biografia, os amigos, as influências, os temas. A segunda, centra-se na Suécia, pano de fundo dos seus policias e de tantos outros autores que aproveitavam a onde de Stieg Larsson. A terceira tenta dar um retrato íntimo do escritor. Por último, a quarta reúne um conjunto de textos sobre a trilogia Millenium. Dan Burstein, Arne de Keuzer e John-Henri Holmberg OS SEGREDOS DA RAPARIGA TATUADA Tradução de Maria Manuel Cardoso da Silva, ASA, 320 pp, 18,90 euros
De Bolso Em comum têm apenas o formato. Três novos livros de bolso, três escritas incrivelmente diferentes. Em O Bom Inverno, João Tordo apresenta-nos uma reflexão sobre os dias de um aspirante a escritor viciado em episódios (e nas maleitas) da serie Dr. House. Há uma viagem que o leva a um encontro de escritores que lhe vai mudar a vida. nem ele sabe muito bem porquê mas o inverno - muito para lá da estação do ano - vai chegar. Também é uma aspirante escritora, a personagem principal do romance de Murakami. Sumire escreve sem parar. Sobre tudo, sobre nada. Frases atrás de frases. Pensamentos, imagens, que se perdem sem um rumo definido. Permanentemente insatisfeita, à procura da sua voz literária, descura o seu único amigo, sobretudo a partir do momento em que se conhece Miu, uma mulher sofisticada (e casada) por quem se apaixona. Um triângulo invulgar onde se revela toda a mestria de um dos mais interessantes escritores japoneses da actualidade. Não chegou a ser reconhecido em vida pela sua magnífica trilogia Millenium. O escritor sueco Stieg Larson morreu antes de ver o sucesso alcançado pelo seu trabalho - previa escrever dez volumes. Nesta terceira parte, a protagonista Lisbeth Salander recupera nos hospital dos ferimentos de que foi vítima por parte do pai e do meio-irmão. Assassinos e violados sempre funcionaram à margem da lei com o apoio de alguns elementos da SAPO, a polícia de segurança sueca. Mas tudo isso vai mudar e Lisbeth - com ajuda de Mikael Blomkvist, Dragan Armanskij, Anita Gannini, entre muitos outros - vai finalmente alcançar a sua liberdade. João Tordo O BOM INVERNO BIS Leya, 302 pp, 7,50 euros Haruki Murakami SPUTNIK, MEU AMOR BIS Leya, 272 pp, 7,50 euros Stieg Larsson A RAINHA DO PALÁCIO DAS CORRENTES DE AR BIS Leya, 732 pp, 9,95 euros
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romete surpreender pela sua amplitude temporal, já que abarca seis décadas de percurso, e assinala os 80 anos de Nikias Skapinakis, nascido em 1931, que continua a pintar, com o rigor e método de sempre. Mas também pela intensa diversidade e coerência de uma obra única. É, de resto, em si mais um “trabalho plástico” do pintor, que gosta de refletir sobre a sua pintura, equacionando ciclios, séries temáticas, aproximações ou pausas, numa circum-navegação sistemática, mas não cronológica. E nessa medida, talvez se possa ver Nikias Skapinakis, presente e passado 2012-1950, que se inaugura a 28, no Museu Berardo, como uma ‘meta-criação’. De alguma maneira, como diz ao JL a comissária, Raquel Henriques da Silva, Nikias Skapinakis é o “principal historiador” do seu próprio trabalho. E a exposição reflete essa particularidade, sendo construida de acordo como seu entendimento. Assim, apesar das necessárias conversas preparatórias e dos ajustes, a curadora remete para o pintor a autoria da mostra, planeada por Jean François Chougnet e continuada por Pedro Lapa, atual diretor do museu. Seguramente, é a mais vasta mostra antológica que o artista já realizou. “Notável”, segundo a comissária: “Gosta de rever, com regularidade, aquilo que ele próprio fez”, explica. “Por isso, a exposição tem muito a ver com a lógica do seu trabalho. Mas foi a primeira vez que aceitou o repto de uma
Duas centenas e meia de obras em sete núcleos temáticos que percorrem 60 anos de pintura: Nikias Skapinakis, presente e passado de referência da arte portuguesa do século XX. Inaugura-se a 28, no Museu Coleção Berardo, no Centro Cultural de Belém. Antecipamos a introdução que Nikias Skapinakis escreveu para o catálogo e avançamos as linhas de força da mostra, comissariada por Raquel Henriques da Silva. antológica com esta dimensão”. São 260 pinturas e desenhos, de 84 colecionadores privados e 25 instituições, que permitem redescobrir o universo do pintor ao correr do tempo. As obras estão organizadas em sete nícleos, que de resto correspondem a séries ou fases, sempre em aberto: O Ponto Metafisico. 20121954; A Pintura Mirabolante. 2010-1994; Monocromatismo e Recuperação da cor. 2000-1989; Parafiguração e Paisagens do Vale dos Reis. 1987-1966; Pessoas, Ninfas, Bichos, Manequins e Frutos. 2002-1960; Expressionismo Presencista. 1965-1950; e um nucleo de desenho. 2009-1958, que abrange, ainda, a litografia e a ilustração. Raquel Henriques da Silva salienta a peculiaridade da “baralhação da cronologia”, que não é, de resto, alheia ao modo de trabalho de Skapinakis. “A ideia de não começar pelo inicio da carreira, nos anos 50, foi uma das suas primeiras intenções. E é, para mim, um dos aspectos mais importantes da exposição”. O discurso expositivo fez-se, desse modo, do presente para o passado, num flashback, com alguns “curto-circuitos pelo meio”. “Não é um percurso a andar para trás. É uma brincadeira com o tempo, que num homem de 80 anos não deixa de ser interessante. E mostra uma certa consciência de que algumas coisas sempre o preocuparam tanto no inicio, no meio, como na atual fase da sua carreira”, esclarece. Em seu entender, Presente e passado, é uma
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o presente passado
exposição que “prova o percurso de grande entrega” de Nikias Skapinakis: “Olhando esta mostra, é evidente sobretudo a coerência do seu percurso. Há uma concentração absoluta nas questões da pintura. E ele nunca quis ser outra coisa se não pintor». A «experimentação» é, por outro lado, um dos eixos do trabalho de Nikias, como faz notar ainda Raquel Henriques da Silva: «Nasce fundamentalmente dos temas. Embora as questóes técnicas sejam muito importantes na sua obra, julgo que o essencial é que ele encontra sempre as técnicas certas para os temas que quer tratar. Daí a importância dos ciclos e dos titulos, tal como O lirismo expressionista ou A pintura mirabolante». A poesia, a literatura, tal como a filosofia são, nessa medida fulcrais no desenvolvimento do trabalhode Nikias Skapinakis que, como recorda a comissária, quando começou a pintar, nos aos 50 toma desde logo partido pela arte figurativa, quando dominava o abstrato. »Esse entendimento de que a arte não deve pôr de parte as articulações com a realidade, com as coisas e as matérias é uma questão fundamental», sublinha ainda. Por isso, mesmo quando usa a abstração é de um ponto de vista de composição, sempre como uma discursividade anexa. Ele mantém-se fiel à ideia que a pintura não é autónoma do sistema cultural e que nele se articula com a filosofia ou a literura». Outro traço vincado do seu percurso, que agora é possivel seguir em Presente e
passado, cujo catálogo bilingue terá dois ensaios de Raquel Henriques da Silva e Bernardo Pinto de Almeida, além de textos de Fernado Azevedo ou Vasco Graça Moura, pretende-se com a fidelidade ao próprio país. A comissária lembra que o pintor, atitudes políticas, sem ser um ativista, que no tempo da ditadura o levaram mesmo à prisão. «É um homem de uma geração, em que as posições políticas eram muito marcantes e tinham consequências. Mas Nikias nunca quis emigrar, ao contrário de outros artistas da sua geração. È um homem muito culto e viajado, mas nunca sentiu necessidade de deixar este país, que de resto trata com uma ironia sarcástica no seu Portugal. Tendo essa distância e sendo um analista social extraordinário, mantém essa espécie de aliança, sem fatalismo ou dramatismo. »Aliás, ele é um apaixonado por Lisboa, pela sua luz». Isso é visìvel desde logo no seu atlier, há muito com morada no Pátio Mardel, como sublinha ainda a curadora, adiantando que nesse mesmo fidelíssimo atelier continua a pintar várias séries ao mesmo tempo, nomeadamente, «Os Quartos», numa «revisitação» da literatura, da pintura, das personalidades que o marcaram, tal como noutras telas, faz permanentemente «revisitações» das suas séries passadas. E é o passado e o presente do pintor que podemos revistar até Junho, no Museu Berardo.
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A dúvida metafísica “Todos os homens por natureza desejam saber. Sinal disso é o amor aos sentidos. Estes, com efeito, são amados por si mesmos, à margem da sua utilidade e mais que todos o da vista. Com efeito, não só para agir mas também quando não vamos actuar, preferimos a vista – digamo-lo – a todos os demais. A causa é que este é, dos sentidos, aquele que mais no faz conhecer e mostra múltiplas diferenças” Aristóteles, Metafísica, Livro I, Capitulo
A responsabilidade do plano desta exposição sabe-me inteiramente. Não pretendi, aliás, apresentar uma retrospetiva – já que entendo que é o tempo que se encarrega do historial dos acontecimentos. Pretendi, antes, delinear uma escolha de obras, em função de conjuntos que pudessem resumir e tornar compreensivel o meu trabalho de pintor. Pela primeira vez, uma exposiçao abrange a minha intervenção, que parte, propositadamente, do presente para o passado. Fui, de resto, objeto de outras antologias significativas: no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em 1985 (Pintura, 1950-1985), no Museu do Chiado em 1996 (Para o estudo da melancolia. Retrospetiva de retratos, 1955-1974), e no Museu de Arte Contemporânea de Serralves em 2000 (Prospectiva, 1966-2000). Os parâmetros museológicos e as minhas próprias intenções limitaram, porém, o âmbito temporal dessas apresentações. A exposição no Museu Coleção Berardo constitui, portanto, o mais vasto depoimento que realizei sobre o meu trabalho. Com o passar dos anos, foram-me atribuidas algumas classificações genéricas – expressionista, neorrealista, pop, pós-modernist, clássico, metafísico… Com exceção da asserção neorrealista, que era despropositada, todas as outras designações respeitam, efetivamente, a aspetos mais ou menos prolongados do meu trabalho.Todavis, e embora reconheça a sua eficácia didática, penso que nenhuma delas abarca, por si só, o sentido geral da minha pintura, na medida em que ficam de fora dessas classificações e aspetos que julgo significativos e que sobram do que é arrumado do ponto de vista crítico. Os meus começos não tiveram nada em comum com o movimento neorrealista; bem pelo contrário, como esta exposição demostra. Nos anos de 1950, a minha ligação foi essencialmente à primeira Escola de Paris, e nela avulta a figura tutelar de Chagall. Seguiram-se-lhe, naturalmente, muitas outras, contemporâneas e muitas vezes pertencentes ao
passado, como no caso da perene recordação do Greco de Toledo. Essas múltiplas influências educaram o meu olhar e guiaram a minha mão, permitindo-me a afirmação de uma expressão pictórica que entendo própria. A pintura italiana do Quatrocento teve muita importância para o meu trabalho, todavia os grandes pintores italianos do século XX, como De Chirico e Morandi, que sempre admirei, nunca constituiram uma fonte de inspiração (é para Zurbaran que olho e também para Chardin). O sentido metafísico, que, juntamente com o pendor expressionista e lírico, atravessa prolongadamente o meu trabalho, tem, do meu ponto de vista, uma tripla origem: - Os frescos “clássicos” e “modernos” da Vila dos Mistérios, em Pompeia, e Carpaccio, a quem dedico em 1961 uma homenagem, porque justamente, venho a encontrar nele o sentido de ausência das figuras que habitavam o meu paisagismo de então; - A poesia, designadamente de Cesário e dos “presencistas”; - A pressão claustrofóbica e entediante do ambiente português das décadas de 1950 e 60. O meu silêncio permaneceu sempre ligado ao real quotidiano. Mas, naturalmente, o tempo aperta e simplifica o entendimento das coisas. De qualquer modo acredito que a minha “linha metafisica” se liga essencialmente a uma conceção individualizada da pintura como um processo de conhecimento para além das aparências físicas, que os sentidos transmitem. Esse processo define a história da pintura desde o seu remoto passado até ao presente. Porque é especifico, não pode ser repartido por outros campos estéticos sem que essa qualidade essencial de indagação tenda a alterar-se ou a perder-se em favor de outras (embora igualmente válidas) expressões. Trata-se de procurar a essência das coisas; mas, talvez, as coisas não tenham realmente essência nenhuma e a sua busca seja inútil. É uma dúvida de natureza metafísica que procuro resolver continuando a pintar.
Marco É um dos raros nomes portugueses que figuram em livros de história de música publicados no estrangeiro. A sua estada em em Itália, onde compôs mais de 20 óperas, abriu-lhe as portas para a fama internacional. Marcos Portugal, o mais célebre compositor luso de sempre, nasceu há 250anos. A efeméride é evocada com um conjunto de iniciativas ao longo do ano em vários países e, no próprio dia do seu nascimento (24 de Março) e na véspera, com um colóquio internacional e a produção de uma das suas óperas, O Basculho de Chaminé, ambos no Teatro Nacional de São Carlos. Os muitos trabalhos que, nos últimos anos, investigadores e intérpretes têm realizado sobre a obra do compositor entroncam num programa desenvolvido no seio do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM) da Universidade Nova de Lisboa, o Projeto Mracos Portugal – um empreendimento hercúleo, coordenado com militante empenho pelo musicólogo inglês David Cranmer, há muito radicado entre nós.
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os Portugal, 250 anos Um compositor do mundo JL: Como definiria a obra de Marcos Portugal (MP), na generalidade? David Cranmer: A primeira coisa a dizer é que a obra de MP é mais diversificada do que geralmente de imagina. Se as suas óperas italianas são as que lhe granjearam fama internacinonal no seu tempo, em Portugal, onde nasceu, e no Brazil, onde veio a falecer, a sua música religiosa foi extremamente importante. Não nos devemos esquecer de que MP recebeu a sua formação no Real Seminário Patriarcal e que, exceto nos anos passados em Itália, compôs música religiosa ao longo da sua vida. Além disso, teve uma produção importante em mais duas áreas: a música ocasional profana – por exemplo, obras compostas sobretudo para celebrar aniversários reais e outros momentos de importância política – e a música pedagógica, composta no Brasil para as aulas de música das Suas Altezas Reais, filhos de D. João VI e D. Carlota Joaquina. Qual a sua importância no contexto da música portuguesa e europeia? Na minha opinião, a importância de qualquer compositor é absoluta e não relativa. Ou vale a pena ouvir a sua música ou náo vale. Não é porque é «melhor» ou «menos bom» do que outro compositor. MP é um entre vários compositores do seu tempo que compunham bem, foram valorizados enquanto vivos e depois esqu
“Marcos Portugal usava melodias atraentes, efeitos tímbricos apurados e um instinto dramático agudo” cidos, simplesmente porque era assim que as coisas funcionavam. Eles substituíram outros compsitores e por sua vez também foram substituídos. A importância da sua música agora baseiase exatamente no que levou o público do seu tempo a apreciá-la: melodias atraentes, efeitos tímbricos apurados (através de um
uso por vezes «diferente» dos recursos orquestrais), um instinto dramático agudo, evidente especialmente nos números concertados e finais das óperas, uma riqueza de som nos ensembles, quer na música dramática, quer nas obras religiosas. São estas caraterísticas que costumam ser louvadas pelos comentadores do seu tempo, em vários países europeus, e são características que mantêm a sua validade. Que acções o Projecto Marcos Portugal tem permitido desenvolver? Ele já passou por várias fases mas tem em comum três áreas de foco: 1ª, edições críticas de algumas das suas obras princupais, 2ª, a elaboração de um catálogo temático das suas obras, e 3ª, estudos sobre o compositor, a sua obra e a sua disseminação, Neste momento o projeto tem o nome precisamente «marcos Portugal: a obra e a sua disseminação». Entre as edições críticas realizadas até agora destacam-se 3 óperas: La Zaira, editada por Bárbara Villalobos e executada em versão de concerto pela Fundação Gulbenkian, La pazza giornata o sia il matrimonio di Figaro, editada por um conjunto de investigadores sob a minha orientação e encenada em Inglaterra pela Bampton Classical Opera em 2010, e O basculho de chaminé, editado por Gabriel Cipriano e Rui Magno Pinto, também sob a minha orientação, a apresentar este mês no Salão Nobre do São Carlos. Na música sacra, a edição da Missa Grande, realizada por António Jorge Marques, permitiu já várias execuções e a gravação em CD pelo Coro de Câmara de Lisboa. Este mês vai ser cantada independentemente nos países de Portugal, Espanha e Inglaterra. No que diz respeito ao catálogo temático, a parte da música religiosa já foi terminada, de forma excecional, na tese de doutoramento de António Jorge Marques. Sairá em livro ainda este mês, pela Biblioteca Nacional de Portugal (BPN), em colaboração com o CESEM pénis. Quanto ás investigações sobre a obra do com-
positor, saiu em 2010 o livro Mozart, Marcos Portugal e o seu tempo, textos surgidos do colóquio homónimo realizado em 2006. A 23 e 24 deste mês, em celebração dos 250 anos, vai decorrer um colóquio internacional no Foyer do São Carlos, com comunicações de 14 oradores dedicadas inteiramente à obra de MP. E que objetivos há por concretizar? Este ano ainda há alguns. Em primeiro lugar, uma maior divulgação da obra de MP. Várias edições importantes estão previstas, nomeadamente as 2 óperas L’oro non compra amore e La morte di Semiramide, pelo menos um volume extenso de música composta ou arranjada pelo compositor para as aulas de música de Suas Altezas Reais. Produções de 3 óperas estão confirmadas para mais tarde este ano: Figaro outra vez em Inglaterra (Buxton Opera Festival), O basculho de chaminé em Curitiba, Brasil, e L’oro non compra amore no Rio de Janeiro, em versão de concerto. Aguardamos ainda decisões relativas a outras propostas para o segundo semestre. Até ao final do ano sairá um livro, constítuido por uma biografia de cerca de 100 páginas e mais 20 ensaios sobre vários aspetos da sua obra. Estamos a colaborar com a BNP na montagem de uma exposição prevista para os últimos meses do ano. Já iniciámos trabalho no catálogo temático de música profana, que levará provavelmente ainda cerca de 4 ou 5 anos para terminar. O meu objetivo pessoal é que depois de 2012, a música de MP chega a encontrar um lugar mais permanente no reportório, graças à existência de boas edições modernas e o apoio científico dos catálogos temáticos e livros de estudos sobre o compositor e a sua produção. Acredito que vai acontecer porque já recebi contactos com vista a encenar óperas em 2013 e o grande esforço que o projeto está a fazer este ano terá, com certeze, um ímpacto positivo neste sentido.
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Gonçalo tocha
O Corvo somos nós
“ Sempre que saí do Corvo senti-me perdido, o mundo parecia-me demasiado grande” “Cada filme que faço é uma revoluçao na minha vida”, diz gonçalo tocha. A cada filme se entrega como a um projeto de vida, sempre num tom intimo e pessoal. A viagem é o viajante. Em Balou, obra de estreia que venceu o Indie Lisboa, partiu em busca dos Açores da sua mãe e deixou.se levar por um barco entre as ilhas. Em É na Terra, não é na Lua, vai ao último lugar no arquipelago que lhe corre no sangue. E deixou-se deslumbrar pela ilha e por aquela sociedade. São três horas de filme retiradas de quase 200 filmadas, que mostram de tudo um pouco, desde a vida noturna no barda da vila ao insólito periodo da campanha eleitoral. Gonçalo Tocha, 33 anos, com apenas dois filmes, tornou-se um dos documentaristas de maior relevo nacional. Divide a sua atividade artistica entre o cinema e a musica. Formou os Lupanar (a banda anterior de Ana Bacalhau agora pretencente aos Deolinda) e os projetos Tocha Pestana e Gonçalo Gonçalves, que brevemente conhecerão novas edições discográficas.” JL: No teu filme anterior, Balaou, passava-se em grande parte dentro de um barco ao largo dos Açores. O que achaste mais isolado, o barco ou a Ilha do Corvo? Gonçalo Tocha: Obviamente o barco é muito mais isolado. Mas fiquei com a ideia, até pela sua forma redonda, de que o Corvo é um barco parado no mar. As pessoas é que se mexem, a ilha fica sempre parada. Logo no inicio do filme propões-te a um
exercicio exaustivo, a filmar cada rosto, a captar a totalidade do Corvo sem que nada te escape. Mas, obviamente, há coisas que não estão no filme... Ou estarão lá todos os rostos? Acho que nós fizemos mesmo tudo o que queriámos. A exaustão está lá, não podia era entrar tudo no filme, porque só tem três horas. Mas existe o arquivo, que foi quase de 200 horas. O único pressuposto que eu tinha era aquela oportunidade de fazer um filme sobre tudo. Só ali podiamos ter essa pretensão. Há uma única vila, não há terras vizinhas, o mundo em síntese. Aliás, não era um eremita que seja a viver fora da Vila do Corvo. Houve um austriaco que o conseguiu durante alguns anos e depois foi-se embora. Teoricamente, nem sequer é permitido, porque é obrigado a viver sem saneamento basico, sem água nem luz, uma experiência radical. O Corvo é um caso exemplar para um estudo sociológico, um meio pequeno, mas não comparavel com uma aldeia isolada em Trás-os-Montes. Nos anos 60 e 70 escreveram-se alguns livros sobre isso, mas versavam essencialmente sobre o antigo comunitarismo do Corvo, sem que fosse feita uma análise exaustiva aos modos de vida. As múltiplas visões do que acontece lá dentro é que nunca se esgotaram no filme. Há sempre mais. É uma ilha em completa mutação.. Está tudo a acontecer. À
partida imaginamos que nada se passa lá, mas é precisamente o contrário: tudo se passa, mas a uma escala pequena. Um pequeno nada é um grande acontecimento. E o Corvo sempre esteve aberto a muitas rotas. Antes do barco a motor todas as rotas passavam por lá. Por isso foi constante o aparecimento de navegadores, piratas, de outras culturas. Os corvinos estavam de olhos virados para a América. Não era de todo uma sociedade fechada. Era fechada na sobrevivência, na autossuficiência, mas não no acontecimento do que se passava á volta. Notaste isso hoje em dia? Hoje é uma sociedade diferente, que está a sofrer uma mudança radical. Podemos imaginar que toda a evolução que Portugal sofreu em 80 anos, o Corvo está a sofrer em 20. Tudo ao mesmo tempo. Isso vai criar roturas e contrastes, que o filme também tem. Joga com esses contrastes entre o moderno e o antigo, o rural e o urbano, o modo de vida das avós e avôs e das futuras e novas gerações. Está ali em choque: tudo ao molhe e fé em Deus. Sentiste dificuldade em entrar naquela sociedade? São muito desconfiados? É uma sociedade que se autoprotege. Eu sabia, à partida, que essa desconfiança iria existir. Então decidi assumir tudo claramente desde início. E é por isso que chego ao Corvo logo com a câmara de filmar. Tinha de assumir, “eu sou o gajo da câmara”. E isso permitiu-me estar sempre a filmar.
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Gonçalo tocha viajou ate à ultima ponta da europa no oceano atlantico, até á ilha mais remota do nosso mundo, até aos 400 portugueses mais distantes deste portugal e descobriu-nos a todos nós. É a terra, não é a lua, documentario sobre a ilha no corvo, recebeu uma mensao honrosa em locarno e o premio internacional do DocLisboa. Estreia-se na sala, no proximo dia 29.
Avisei logo: “Isto está sempre ligado.” A população é muito envelhecida? Nem or isso, foram criados empregos na área dos serviçoes e população mais nova ficou... Deu-te uma sensação de claustrófobia? Não, porque esta tudo a acontecer, uma surpresa atrás de outra, tudo era novidade, um deslumbramento. Nunca senti que não havia mais nada para fazer. E os corvinos sentem a ânsia de sair dali? É caso a caso. Quando fiz o filme procurei o contrário. A minha pergunta era: por que é que esta ilha pode ser o centro do mundo? Porque para quem é dali o Corvo é sempre a sua terra, por mais longe que esteja. O que queria saber é o que faz disto o umbigo. Eu fui adotado pela população e sempre que saí do Corvo senti-me perdido, o mundo parecia-me demasiado grande. E isso é qualquer coisa que os corvinos têm de especial: o seu mundo é demasiado pequeno e abstrato. Um centro do mundo que também está fora do mundo. É quase a lua? As condiçoes geográficas são inacreditaveis. É um grande mergulho, um pedaço de terra no meio do oceano, exposto a todos os ventos e correntes. Esse impacto é inesquecivel no proprio corpo, ouve-se sempre o mar brutalmente, numa paisagem a pique, toda a ilha é vertical. Mas em termos de sociedade a vida humana repete-se. Os hábitos repetem-se.
Apesar da distância, aquilo é o Corvo, Açores, Portugal, Europa. Está ali marcado, e é uma sociedade ocidental e europeia. Há partes especialmente caricatas, como o período da campanha eleitoral, em que a ilha para. Filmei as eleiçoes todas e o ato eleitoral propriamente dito, os vencedores... mas não tinha tempo para mostrar, seria outro filme. Aquilo mexe com toda a gente. É uma das coisas do Corvo que é unica, em mais nenhum lado há uma campanha daquele tipo, porque muitos poucos votos dão muito poder. Os corvinos são os açorianos mais esquecidos ou, pelo contrário, dado o seu afastamento, acabam por ser protegidos? Já não são assim tão esquecidos. Antes sim. Por issos é que era uma sociedade muito digna e valente. Não podiam contar com ninguem. E os barcos apareciam só de seis em seis meses. Nem sequer havia dinheiro. A única coisa que vinha de fora era o açucar. Isso cria uma sociedade muito brava. Portugal é a periferia da Europa, os Açores são a periferia de Portugal, e todas as ilhas têm a sua periferia. Todas menos o Corvo. O Corvo é a periferia das Flores. E foi esse “fim do mundo” que te atraiu? Quis fazer o filme no limite. Em que não soubesse quando acabava, fosse uma aventura na rodagem, autónoma e solitária. Eu fui para o Corvo em 2007, depois de mostrar o Balou em
São Miguel. Fui à boleia de barcos à vela e passei pelas ilhas todas até lá chegar. Ninguém me conhecia quando cheguei ao Corvo. E fiz tudo a partir do nada, não quis fazer repérage. A ideia era recriar a energia dos exploradores que vão a um sítio que não conhecem e deixam-se embranhar e maravilhar por tudo o que acontece. Se o filme tem alguma virtuda é mostrar a energia da rodagem, abrir o livro de bordo. Tal como tinhas feito com Balau... Sim, há recorrências na maneira de contar. Quando comecei a montar o filme, experimentei fazer de outra forma, mas para o filme ser honesto com ele próprio teve de sequir este roteiro. Mas é como nos livros de viagem: são maravilhosos porque acompanhamos o processo todo da viagem do narrador e não só as consequências. E agora? Já estas a preparar outra coisa? Ainda não, estou dedicado à distribuição e queria intercalar com os meus projectos musicais. Este filme acompanha quatro anos da minha vida. Joguei tudo quanto tinha. Pensei: “Isto ou me mata ou me dá uma segunda vida”. Acabei por tê-la, mas estive prestes a queimar tudo. Fazer o filme foi uma revolução na minha vida. Agora não sei o que se segue, mas sei que vai ser nos Açores. Mas onde se poderá ir alén da Ilha do Corvo? Não sei, talvez ao fundo do mar.
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Dia Mundial do Teatro
O palco é quem mais ordena
Pôr “em cena” o debate sobre o papel da cultura, do património e da criação artística enquanto bens públicos. Eis o programa de festas de cinco companhias do Porto – Visões Úteis, Teatro do Bolhão, Boas Raparigas, teatro do Ferro e FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) – para assinalar o Dia Mundial do Teatro, que se comemora na próxima terça-feira, 27 de março. Assim, na véspera, a 26, cada estrtura irá reunir-se com círculo do Porto a fim de manifestar as suas preocupações no que toca ao teatro. “O objectivo é que no Dia Mundial do Teatro os deputados à Assembleia da República iniciem a sessão legislativa conhecendo a realidade do setor”, explica ao JL, Carlos Costa, diretor da Visões Úteis. “Não se pode fazer discursos sobre a importância da cultura e, sistematicamente, no momento de decidir, não afetar recursos. Se é considerada um bem público, tem não só no contexto nacional, mas também na relação com a União Europeia. Este ano, mais do que iniciativas, é importante conversar seriamente sobre tudo isto.” E, um pouco por todos o país, não faltarão oportunidades para refletir sobre o estado da arte e procurar novos caminhos. Também na cidade, Invicta, o Teatro Nacio“ Não faltarão nal São João (TNSJ) promove o oportunidades fórum de discussão “Os Teatros para refletir do Porto em 2012” (a 27, às 16, no sobre o estado da Teatro Carlos Alberto), dirigido a toda a comunidade teatral do arte e procurar distrito. “Deparamo-nos, essennovos caminhos” cialmente, com dois grandea problemas. Por um lado, os cortes orçamentais, e, por outro, a ausência de uma consciencia real dos meios logísticos, humanos e téc-
nicos de que o cidadão dispõe”, revela, ao JL, o ator e encenador Nuno M. Cardoso, que participará da mesa-redonda. Daí que o intuito da iniciativa seja criar uma forma de entendimento e cooperção entre vários agentes locais, de modo a “potenciar” os recursos existentes. Destas e de outras questões se fala, ainda, no Teatro de Portalegre (à 27, às 18, na Igreja do Convento de Santa Clara) ou na sede do grupo teatral Lendias d´Encantar, em Beja (a 25, às 14 e 30, no eespaço Os Infantes) Mas também haverá, de norte a sul do país, espetaculos de entrada livre, ensaios abertos ao público, estreias, leituras e visitas guiadas. Em Lisboa, a Cornucópia convida o público a assistir, no Dia Mundial do Teatro, ao ensaio da peça Fingido e Verdadeiro ou o martírio de S. Gens, ator, que se estreia a 29 (ver caixa). Com entrada gratuita, podem ver-se ainda em Lisboa, A Morte de Danton e João Torto, no Nacional D Maria II, O Rapaz da Última Fila, no Teatro Politécnica, O Fantasma de Chico Morto, n´A Barraca: Dança de Roda, no Teatro Municipal de Almada; em Coimbra, Shakespeare pela Barbas, n´O Teatrão; em Évora, Falar Verdade a Mentir; no Cendrev – teatro Garcia de Resende; ou no Porto, Alma, no TNSJ, e Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela, no Mosteiro São Bento da Vitória. Já no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, a festa no teatro estende-se por quatro dias. A 26, os atores Matim Pedroso, Flávia Gusmão e Nelson Guerreiro organizam uma maratona de leitura de Os Pilares da Sociedade, de Henrik Ibsen (das 21h à meia-noie). A 27, a enfeméride é celebrada com a pela infantil Jôjô, O Reincidente, de Joseph Danan, uma produção do teatro rainha com encenação de Fernanda
Mora Ramos e Paulo Calatré (às 10 e 30 e a 28, e às 15 e 30) seguindo-se mais tarde uma sessão de leitura da obra prima de Cervantes, Dom Quixote (das 21 à meia-note). A terminar à 29, o livro Criatividade e Instituições: novos desafios às vidas dos artistas e profissionais da cultura, de Borges e Pedro Costa, da mote ao debate que renirá, entre outros, Cláudia Galhós, Pedro Penim (às 18 e 30). Também na baixa lisboeta, o Teatro Maizum trás o Teatro-Estúdio Mário Viegas numa leitura dramatizada de Histórias Mínimas, de Javier Tomeo, dirigida por Silvina Pereira e com interpretaçôes desta última. Júlio Mratín Isabel Ferreira e Augusto Portela (às 18 e 30). E, noutro canto da capital, junto ao castelo São Jorge, o Teatro junta-se ao Circo no Chapitó, com performances e um espetáculo protagonizado pelos alunos de Interpretação e Animação Circenses, Figurinos e Adereços, sob a coordenação da atriz Rita Ribeiro (a partir das 19 horas). E como sendo hábito, no Dia Mundial da art do palco o Teatro da garagem viaja até Bragança, desta vez para a iniciativa “O Teatro antes do Teatro”, uma visita guiada pelo Teatro Municipal através de jogos e improvisações dirigidas por Maria João Vicente (às 20 e 30), e para estrear O Mundo em que Vivemos, de Carlos J. Pessoa (a 30 e 31, às 21 e 30). A Sul sobe também pela primeira vez ao palco Paris, Praia do Hawai (a 24 e 25, às 21 e 30, no teatro Municipal de Faro), um esetáculo de Teatro das Figuras que perscurta um Algarve desconhecido, “que se esconde atrás dos turistas, dos estrangeiros, dos sonhos escaldantes, das noites longas, da cultura do corpo e do sol assassino”. JL
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Luís Miguel Cintra
Ator, profissão de fé Não é por sugestão da enferméride que a Cornucópia estreia na semana do Dia Mundial do Teatro, a 29, uma peça sobre o próprio teatro. Quem tem acompanhado da Companhia drigida por Luís Miguel Cintra e Cristina Reis que este é tema recorrente: “Mais que de teatro falamos da arte da vida, da coisa e da imagem, do pintor e seu modelo”, escreveu o ator e encenador a proprósito do espetáculo Fim de Citação. Agora, sobe ao palco do teatro do Bairro Alto, em Lisboa, até 29 de abril, Fingido e Verdadeiro ou martírio de S. Gens, ator, a partir de El Fingido Verdadeiro (, de Lope de Vega, com encenação de Luís Miguel Cintra, tradução de Luís Lima Barreto e interpretações destes últimos, Cleia Almeida, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Sofia Marques, entre outros. Jornal de Letras: Percebemos, logo pelo título, que esta peça levanta a questão da verdade ou mentira do Teatro. Foi isso que o interessou? Luís Miguel Cintra: Também. Este texto recorre àquele sistema sempre muito divertido do teatro dentro do teatro, problematizando a questão da verdade do ator. A ação passa-se no século III e conta a história do mártir S.Gens, um ator que ao representar a pedido do imperador Diocle“É interessante a ciano, a figura de um cristão, se converte, e semelhança entre o em consequencia disso é condenado à morte. ator e o crente: um Esta semelhança entre o ator e o crente é ator tem que crer, muito interessante, porque um ator tem que realmente naquilo crer, realmente, naquilo que está a fazer. Mas não se trata de fazer filosofia. Esta peça, que que está a fazer” assenta numa esconstrução do texto de Lope de Vega, é sobretudo uma “brincadeira”, um jogo irónico sobre a verdade e mentira, a vida e a ficção, sobre o trabalho do ator.
Como se processa essa desconstrução? Colámos trechos de fontes literáreas a que o autor recorreu, com o anuário da vida dos santos, Flos Sanctorum, e a História Imperial e Cesárea do escritor renascentista Pedro Mexia e também citações de Santo Agostinho, Tertuliano, Louis Jouvet e Jean Genet. Além disso, expomos a situação que a Cornucópia esta a viver – o dinheiro do Estado só chega mesmo para manter a companhia, não dá para cenografia, guarda-roupa, mais atores, etc. Por isso, os espectadores que têm acompanhado o nosso trabalho vão reconhecer os adereços e vão sentir que estão na sala de espetáculos anteriores. Aliás, a peça começa com uma conferência dirigida o público e eu gostava que acabasse sendo um elogio ao próprio ator. Esta peça de Lopes de Vega é uma espécie de demostração prática do seu texto teórico Arte Nova de Fazer Comédias. Quais eram as suas ideias-chave? Perante as críticas da Academia, que o acusava de desrespeitar os “clássicos”, Lope de Vega escreve esse texto, onde recapitula as características dos modelos antigos para dizer que os quer seguir. Reclama a liberdade da métrica, a inclusão de personagens de várias naturezas, etc. E apesar de Lo Fingido Verdadero ser uma peça tipicamente barroca e construida em verso, não é rígida em termos formais e cria personagens que parecem arrancadas da vida. No fundo,é isso que está em causa no seu texto teorico: uma comédia mais próxima da vida. JL
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Jürgen Habermas
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A Constituição da Europa
Ensaio sobre a Constituição da Europa é a última obra de Jürgen Habermas, 82 anos, um dos mais importantes pensadores contemporâneos, com uma vasta e fundamental obra sobre vários temas, incluindo a teoria política, a sociologia, a ética do discurso e a crítica da razão. Mas talvez nuca como neste novo e muito recente Ensaio, que vai agora sair em Portugal com a chancela das Edições 70 (grupo Almedina), o filósofo alemão tratou questões tão na ordem do dia mesmo no imediato decisivas, no “seu longo e brechtiano impulso de melhorar a Europa e o mundo” - como escreve num excelente prefácio o que é, por sua vez, não só um eminente constituicionalista com dos expoentes da ciência política e do pensamento em Portugal. E é esse prefácio que aqui antecipamos.
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Um ano depois de os médicos o terem proibido de ler e de escrever, Jürgen Habermas retoma o caminho do desassossego. Como efeito, foi a doença que o impediu de vir a Portugal para participar no Centenário da Implantação da República. Mas a inquietação pela Europa - «Europa, Europa», «Ai, Europa» - obriga-o sempre a estar presente arranjando forças por continuar o seu longo e brechtiano impulso de melhorara a Europa e o mundo. Olha para os fragmentos e as transições que vão enchendo o «vale da morte» da política, sem que seja descortináveis a «espada mágica» ou o «contra-feitiço» indispensáveis à magia da razão. A imagem de uma «Europa sem Europa» espicaça as sua inquietações. outro remédio não tem senão o de utilizar os seu «meios para tentar eliminar os bloqueios conceptuais que continuam a existir em relação a uma transnacionalização da democracia, colocando a unificação europeia no contexto de longo prazo de uma jurisdição democrática e de uma civilização de poder estatal»
O que fazer neste quadro de «melancolia hopperiana» das longas filas de casas abandonadas? Como ultrapassar a política da «normalidade social», tornada «ridícula» pela sua hipocrisia moralista? Como levar a sério a «possibilidade real de um fracasso europeu»? Jürgen Habermas sugere o caminho: pensar a pessoa, pensar a sua dignidade, pensar a dignidade destes, pensara dignidade da pessoa humana, pensar na dignidade dos povos. No estudo inicial - «O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos» - coloca-nos perante esta intriga: «Porque razão é a referência aos ‘direitos humanos’ no direito muito anterior à referência à ‘dignidade humana’»? A carreira tardia no conceito de dignidade humana no âmbito do direito constitucional e do direito internacional parece sugerir a ideia que de direitos humanos só surge pesadamente carregada de dignidade humana no contexto histórico do Holocausto. O «fardo moral do conceito de dignidade», obrigatoriamente presente em qualquer exercício da «razão anamnéstica» leva o autor a tentar compreender a assimetria temporal entre «história dos direitos humanos» e o aparecimento do «conceito de dignidade humana» e a defender uma tese que era particularmente sugestiva. Consiste esta tese na «defesa da existência, desde o início, de um estreito nexo conceptual» entre os dois conceitos, embora inicialmente apenas implícito. Se os dois conceitos andaram
O desassossego é próprio de um «utópico» de longo curso. na entrevista que concedeu a Thomas Assheuer revela a sua «maior inquietação» o desassossego a cavar fundo na sua implantação cidadã traduz-se neste grito de alma: «A minha maior preocupação é a injustiça social, que brada aos céus, e que consiste no facto de os custos socializados do falhanço do sistema atingirem com maior dureza os grupos sociais mais vulneráveis». A injustiça social, paga-se, não com dólares, libras, ou euros, mas com a «moeda forte da existência quotidiana». Longe de ser uma precipitação transitória de sistema, a injustiça ameaça resvalar para um «destino punitivo» global. Toda esta tragédia humana - este «escândalo político», este «darwinismo social», este «programa de submissão desenfreada do mundo da vida aos imperativos do mercado» - é acompanho de um «enfado com a política» ao qual não é alheia a ascensão ao poder de uma «geração desarmada em termos normativos», incapaz de assumir objectivos, causas e esperanças.
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desligados durante muito tempo, isso não significa a inexistência de uma ligação profunda entre direitos humanos e dignidade humana. É esta dignidade «fonte moral» da qual se alimentavam os conteúdos de todos os direitos fundamentais e é radicação dos direitos nesta ponte moral que «explica a força explosiva do ponto de vista político de uma utopia concreta». A «substância normativa» radicada na «igual dignidade humana de cada um» revela toda a potencialidade praxeológica quer quando os tribunais têm que decidir sobre o «cálculo do direito a prestações sociais», como o subsídio de desemprego ou subsídio de reintegração social, quer quando se descobre, em sede de legislação democrática ou de tratados internacionais, o «nexo lógico» entre várias categorias de direitos. Em termos mais pregnantes: a dignidade humana é a mesma «em todos o lado e para todos», justificando a indivisibilidade dos direitos fundamentais. A «força utópica», a «utopia concreta» surge ligada à mensagem éticomoral da dignidade: «os direitos fundamentais só podem cumprir politicamente a promessa moral de respeitar a dignidade humana de todas as pessoas se agirem em articulação uns com os os outros de forma igual, em todas as categorias». mas não se trata apenas de uma «promessa moral». Como «Janus», os direitos têm duas faces - uma moral e outra jurídica -, carecendo de institucionalização e de positivação sob forma de direitos subjectivos.
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O Ensaio sobre a Constituição da Europa que forneceu a inspiração do título do livro como sub-epígrafe do trabalho «A crise da União Europeia à luz de uma constituição do direito internacional» permitem a Jürgen Habermas tentar «uma narrativa nova e conveniente», a partir da perspectiva de um constitucionalização do direito internacional, que, associando-se a Kant, aponta para uma futura situação jurídica cosmopolita, muito para além do status quo. «Não é a primeira vez que o Autor aborda a perspectiva kantiana de um direito civil mundial e a constitucionalização do direito internacional. Com efeito, em trabalhos anteriores, as problemáticas da «paz perpétua», a «chance» da constitucionalização do direito internacional e a viabilidade política num sociedade mundial pluralista haviam merecido importantes abordagens reflexivas. Porquê esta fome «sem entretém» pela Europa e o seu destino? A resposta clara e incisiva é esta: (1) porque o debate actual sobre a Europa se restringiu e continua a restringir «às saída imediatas para a crise bancária, monetária e da dívida, perdendo de vista a dimensão política»; (2) os conceitos políticos incorrectos ocultam a força civilizadora da juridicização democrática – e, portanto, também o compromisso associado desde o início ao projecto constitucional europeu. Políticos e economistas colocados perante a única saída possível – «mais Europa» –, insistem nos conhecidos erros da construção da União europeia. «Mais Europa» implica um aprofundamento das competências e não o caminho saturado de um existencialismo político errante que vai desde os compromissos assumidos em cimeiras, ineficazes e não democráticas, até à aceleração da «perda de solidariedade a nível europeu». Mais do que isso: olham para os ditames dos «grandes bancos e agências de notação» e não para o desfalque legitimatório perante as suas próprias populações. E, em vez de se levar a sério um projecto europeu, opta-se por caminhos ínvios. Ensaia-se, sem o dizer, um esquema de
A tarefa de estabilização democrática, indispensável a «mais Europa», exige também um esforço de concetualização do processo de juridicização democrática do poder político na União europeia. Não é este o lugar para acompanharmos as complexas questões - de direito constitucional, de direito internacional e de direito europeu - quanto a este processo de juridicização. Vê-se que Jürgen Habermas não deixou de convocar a literatura mais representativa sobre o tema. O fio discursivo capta reflexivamente as invocações do processo de legitimação europeu: a prioridade do direito supranacional dos detentores do monopólio da coação física, a divisão do poder constituinte entre cidadãos da União e povos europeus, a soberania partilhada como critério para os requisitos de legitimação das cenas, Interessa, porém, reter a cuidadosa análise do papel dos alunos, dos povos e dos Estados quanto ao «processo de passar textos da governação para além do Estado nacional. O Estado - essa tecnologia razoável que uns teimam em ontologizar e outros tentam colocar nas mercadorias próprias da concorrência global - é recuperado por Habermas em termos delicademente parolos. É sabido que três instâncias «actantes» e acionalistas - cidadãos, povo, Estado - são convocadas de forma muito diversa para explicar concetualmente a esstru-
«federalismo executivo». Oculta-se a «importância história do projecto europeu» por se impopular e complexo, navegando-se aos sabores dos populismos internos. Como sintetiza Habermas, instalou-se um estranho fenómeno de acatalepsia onde se mistura cepticismo, dúvidas não metódicas, incapacidade de compreender. As elites político-económicas sentem-se confortáveis com «incrementalismos», mas teimam em não assumir a força civilizadora do direito democrático. Tão-pouco parecem compreender o «regresso da questão democrática», sendo óbvio que os Estados pagam a governação baseada na intergovernabilidade com o decréscimo dos níveis de legitimação democrática. Por isso - e admitindo a inevitabilidade de transferência de direitos de soberania do estado para outras instâncias de soberania - torna-se indispensável um «requisito forte» para a justificação da incontornável transnacionalização da soberania do povo. Jürgen Habermas desenveolve com mestria argumentativa este «requisito forte» - «o espaço de manobra da autonomia cívica só não fica reduzido se os cidadãos em causa participarem na legislação supranacional, em coo-questões de direito constitucional, de direito internacional e de direito europeu - quanto a este processo de juridicização. Vê-se que Jürgen Habermas desenvovle com mestria argumentativa este «requisito foret» - «o espaço de manobra da autonomia cívica só não fica reduzido se os cidadãos em causa participarem na legislação supranacional, em cooperação com os cidadãos dos outros Estados envolvidos, e isto de acordo com um procedimento democrático. Na argumentação habermasiana não dá lugar para esquemas sucedâneos (esquema de Ersatz) da legitimazação democrática. Trata-se de uma justificação deliberativa de reforço da responsabilidade decisória, da imposição de transparência ou de publicidade crítica, da garantia dos princípios do Estado de direito. Nada substitui a participação democrática e o procedimento democrático.
turação constituinte da União Europeia. Por amor ao Estado, alguns enfatizam o patriotismo nacional e identificam constituição com estado. Outros, navegando no cosmopolitismo sem fronteiras, preferem esquemas de regulação global para além do estado-nacional. A linha argumentativa habermasiana sugere um outro modo de articulação dos sujeitos constituintes - os cidadãos da União e os povos europeus - com os Estados - Membros da União. « Os Estados nacionais - escreve o autor - enquanto Estados de direito, não são apenas atores no longo caminho histórico para a civilização do núcleo de poder do domínio político. Eles também são conquistas permanentes e formas vivas de uma «jsutiça que existe» (Hegel). «Por isso, os cidadãos da União podem ter um interesse legítimo em que o seu Estado nacional continue a desempenhar o papel comprovado de garante do direito e da liberdade, mesmo quando assume o papel de Estado-Membro». E não deixa de ser importante o papel atribuído aos Estados como neutralizadores de «evoluções reacionárias» pi de «retrocesso social». « Os Estados nacionais são mais do que a mera passagem de textos dignos de preservação, eles garantem um nível de jornalismo e liberdade que os alunos desejam, com toda a razão, ver preservado».
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Na última parte do Ensaio sobre a Constituição da Europa, Jürgen Habermas regressa ao tema da constitucionalização do direito internacional e aos problemas de legitimação de uma sociedade mundial devidamente conformada. No fundo, tratar-se-ia da continuação da «juridicização democrática», agora no plano global, ou, por outras palavras, que são as do Autor, da «constituição de uma comunidade de cidadãos do mundo». A nível concetual e construtivista, procura-se dar operacionalidade à democracia cosmopolita. Como é sabido, a consrução habermasiana é criticada por muitos e acusada de ser uma «fantasmagoria» normativa própria de um espírito utópico. Em rigor, a narrativa habermasiana não parte do nada nem inventa lugares povoados com fantasmas. Desde a Carta das Nações Unidas e do seu núcleo orgazacionali até às decisões do Conselho de Segurança seria (será) possível prosseguir com a civilização do exercício do poder político. Mas, como o próprio Autor reconhece, a «ligação dos cidadãos do mundo» e a partilha de «cultura política» implicaria a eleição para um Parlamento mundial autoconformado como locus da inclusividade mas desprovido de mecanismos de imputação de responsabilidade parlamentar na cadeia de juridicização democrática da política mundial.
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O livro termina com um Anexo, onde se inclui uma entrevista cedida ao jornal Die Zei («Depois da Bancarrota»), com artigo publicado neste mesmo jornal («No euro decide-se o destino da União Europeia») e um terceiro trabalho publicado no jornal Suddeustsche Zeitung («Um pacto para ou contra a Europa»). Qualquer tentativa de sintetizar estes trabalhos correria o risco de tornar escuro aquilo que é claro. Leia-se a voz do profeta «contra o tédio face a uma exigência política insuficiente».
Uma democracia transnacional não assenta apenas em esquemas de legitimação democrática. Quaisquer acordos institucionais degradar-se-ão em cascas vazias da política se não se acentuarem as dimensões profundas democrático-igualitárias veiculadoras de solidariedade entre «cidadãos dispostos a responsabilizar-se uns por outros» e a assumir a «disponibilidade para também fazer sacrifícios, com base numa reciprocidade de longo prazo». As «elites políticas hesitantes» - eis outro dos tópicos assinalados por Habermas~- além de nem sempre pouparem sarcasmos típicos de inferioridades cívico-culturais («os Gregos que vendam as ilhas», «os Portugueses que se juntem ao Brasil»), parecem ficar enredadas nos segredos das várias comitologias europeias. «O fato de a União Eruopeia ter sido, até agora, essecnialmente sustentada e monopolizada por elites políticas, gerou uma assimetria perigosa entre a participação democr tica dos povos naquilo que os seus governos «conquistam» para eles no palo de Bruxelas - que consideram muito longínquo - a indiferença, se não mesmo desinteress, dos cidadãos da União no que diz respeito às decisões do seu Parlamento, em Estrasburgo. Todos sabemos: com «indiferença», «desin-
teresse» e «distância» não se constroem democracias - muito menos transnacionais. O resultado é, sim, um buraco negro, vulgarmente e usualmente designado por «déficite démocrático» da União Europeia. Este «déficite democrático» corre o risco de se converter «num arranjo para o exercício de um domínio pós-democrático e burocrático». A crise do euro pôs a claro o «clube dos ilusionistas» e revelou os pontos fracos do Tratado de Lisboa. Este Tratado não dota a UE de meioas para enfrentar os desafios que se lhe colocam enquanto União Económica e Monetária. O que é preciso não é ultrapassar as barreiras institucionais, mas exigir «uma alteração dradical no comprtamento das elites políticas. Devem estar menos voltadas para «relações públicas» e «incrementalismo dirigido por peritos» e mais preocupadas com a coesão económica e social da Europa. Não há como não acompanhar J. Habermas no seu credo europeu: «é necessária uma coesão política reforçada pela coesão social, para que a diversidade nacional e a riqueza cultural incomparavel do biótopo - velha Europa - possam ser protegidas no seio de uma globalização que avança rapidamente».
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A PAIXÃO DAS IDEIAS Guilherme D’Oliveira Martins
A força da Língua O génio da língua é a essência espiritual emanada dos seus vocábulos intraduzíveis que se pode sintetizar numa expressão mais ou menos definida >> - Teixeira de Pascoaes disse-o, pensando na saudade, por certo, no desejo sensual e alegre e na lembrança espiritual e dolorida, mas ao lermo-lo, temos de ir mais além. Quando refere o que faz parte do que é próprio, da maior importância, no património imaterial da cultura. Ao depararmos com a magia das palavras na obra de um grande poeta, verificamos que os sentimentos, sendo intraduzíveis, vão ao encontro de palavras únicas para se “A coesão essencial exprimirem e se fazerem da língua entender. Por isso Sophia portuguesa dizia: << Gosto de ouvir o português do Brasil / Onde não pode, pois, as palavras recuperam suas fazer esquecer a substância total / Concrediversidade tas como frutos nítidas interna e externa” como pássaros / Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas / Sem perder um quinto de vogal / Quando Helena Lanari dizia “ Coqueiro” / O coqueiro ficava muito mais vegetal>>. Aqui está a magia do que se não traduz, mas sente-se. O português é a terceira língua europeia mais falada no mundo graças a difusão operada pelos portugueses das caravelas à unidade linguística do Brasil. É uma língua de várias culturas, que, como língua viva, comporta muitas diferenças, mundo afora, na pronúncia, na sintaxe e no vocabulário. Apesar da dispersão significativa, tem conseguido manter uma coesão apreciável, que permite a ligação de um identidade complexa, baseada no diálogo e compreensão. E saliente-se que o fenómeno dos crioulos não constitui uma excepção, mas um modo de enriquecimento, uma vez que
prolongam as línguas nacionais dos países de língua oficial portuguesa. Quando se fala de lusofonia, importa, antes de mais, referir que, se a língua portuguesa é de origem europeia, a verdade é que ganhou uma riqueza universal. A lusofonia há muito que deixou de ser eurocêntrica, para se tornar multipolar, enquanto partilha a fecunda de várias culturas e de diversas influências. A língua portuguesa é, assim partilhada por diferentes culturas, que se encontram e se completam na sua profunda diversidade. Leia-se, por exemplo, Mia Couto e o seu << queixa-andar>> e veja-se como, apesar das muitas diferenças, há pontos forte de união. Encontre-se Pepetela, Germano de Almeida, Craveirinha, José Eduardo Agualusa, António Candido ou Rubem Fonseca. Aí está tudo! A coesão essencial da língua portuguesa não pode, pois, fazer esquecer a diversidade interna e externa. Olhando a faixa oeste da Península Ibérica, onde nasceu o galaico-português, encontramos três grupos de dialetos ou falares diferenciados, mas muito próximos - galego, português setentrional e português centro-meridional, segundo a formulação de Lindley Cintra. Estamos a falar da distinção entre o falar das classes cultas do eixo Coimbra-Lisboa, que defme a norma dominante da língua. E aqui importa referir que a Universidade (desde o século XIII) marcou decisivamente essa norma. Afinal, D. Dinis, ao criar o Reino, ligou as decisões da língua, do Estudo Geral e da fronteira. A diferenciação dos três grupos referidos faz-se pelo sistema das sibilantes. Nos dialetos galegos não há sibilantes sonoras (z) e não há a fricativa palatal sonora (o nosso j), mas a surda (x). Nos dialetos portugueses setentrionais há as sibilantes ápíco-alveolares idênticas às do castelhano e ao
padrão (surdas - em seis; sonoras - em rosa). Nos falares meridionais apenas aparecem as sibilantes predorso-dentaís, que caracterizam a língua padrão - surdas (como em cinco ou caça) e sonoras (como em rosa e fazer). Além das características técnicas, há as especificidades regionais: os bês e os vês - Garrett dizia «nós os do Porto podemos trocar os bês pelos vês, mas nunca a liberdade pela tirania». Galegos e setentrionais usam dizer binho e abó, enquanto os meridionais pronunciam a consoante vê como lábio-dental. Já o ch é dito no padrão como fricativa (chave) e como africada palatal nos dialetos galegos e nortenhos (tchave). Quanto aos ditongos, à pronúncia meridional (ôro, ferrêro) contrapõe-se a diferenciação galega e setentrional (ouro, ferreiro), com uma particularidade no falar de Lisboa (que diz ferreiro]. Lembrem-se os ditongos reforçados na região do Porto e Entre-Douro-e-Mínho (pworto): a alteração dos timbres das vogais na Beira Baixa, Alto Alentejo e Barlavento algarvio (müla, põca) e a queda da última vogal átona (tüd, por tudo). Por outro lado, há diferenças vocabulares assinaláveis: ervilhas no norte e centro, griséus no Algarve; aloquete, a norte de Coimbra, cadeado, a sul; mais palavras de origem árabe a sul; palavras arcaicas a norte - como mugir em vez de ordenhar, espiga por maçaroca, anho por cordeiro. São fatores históricos que pesam, mas do que razões linguísticas. Nas ilhas atlânticas, há um prolongamento dos dialetos centro-meridionais. A colonização do século XV partiu dessas regiões, Há exceções em S. Miguel e na Madeira. No primeiro caso acentuam-se as tendências na alteração dos timbres das vogais e na queda da última vogal átona, e ao contrário da língua padrão o ditongo ej torna-se e. Na Madeira, o u e o i
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Ecologia Viriato Soromenho Marques
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Ciência, trabalho e crise do ambiente A ciência moderna e contemporânea aparece depois de uma declaração aberta de renúncia: ter desistido, no seu mainstream, do ideal teorético, isto é de um inquérito dos objetos mundanos que se satisfizesse na contemplação cognitiva, desprovida de uma utilidade prática. Na verdade, a reabilitação do trabalho, que se encontra já presente, como contraste, no neoplatonismo de Thomas More ( veja-se a sua Utopia de 1516, onde se apresenta a ideia católica e, mais tarde, comunista da reabilitação pelo trabalho manual ), é um profundo indicador da mudança de atitude, entretanto ocorrida. Se o trabalho é moralmente válido, e não moralmente indigno, ao contrário do que ocorria nas sociedades esclavagistas da Grécia Antiga, então há uma dimen- são redentora naquilo que se poderá realizar pelo trabalho, compreendendo nele, também, a novidade aportada por um trabalho enriquecido e transmutado pelas inovações tecnológicas. O Cristian- ismo, nas suas diferentes correntes, faz o pleno na exaltação do valor formativo e huma-
tónicos tornam-se ditongados, e a consoante 1 precedida de um i palataliza-se (:veyla, por vila). E se nos atemos apenas ao continente europeu, poderíamos distinguir no Brasil duas zonas linguísticas, a Norte e a Sul, separadas por uma fronteira que se estende da foz do rio Mucuri entre os Estados do Espírito Santo e da Bahia até à cidade de Mato Grosso. Em África, na Ásia e na Oceânia, além do português como língua oficial (com muitas específlcidades vocabulares), as variedades crioulas resultam do contacto do sistema da língua portuguesa com os sistemas indígenas. Porventura, podem derivar todos os crioulos dos papiares, as línguas francas do português do século XVI, que serviram de modo de comunicação entre as populações locais e os navegadores, mercadores e missionários, nas costas de África, Arábia, Pérsia, Índia, Malásia, Indonésia, China e Japão. Os crioulos são línguas derivadas do português. Baltazar Lopes da Silva, para o crioulo de Cabo Verde, foi por certo o mais fecundo escritor e estudioso do tema. E a diversidade é fantástica, os crioulos: de Cabo Verde: de Barlavento (Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Sal e Boavista), de Sotavento (Santiago, Maio, Fogo e Brava); do Golfo da Guiné (S. Tomé, Príncipe e Ano Bom, na Guiné Equatorial); os continentais (Guiné-Bissau e Casamansa); da Ásia (papiar cristan de Malaca, patuá di Macau, Sri - Lanka, Chaul, Korlai, Tellicherry, Cananor e Cochím}; de Java (Tugu). Perante esta panóplia de extraordinária riqueza, a que temos de somar os vocábulos portugueses incorporados em diversas línguas nacionais (desde o bahasa indonésio ao japonês), percebemos que há potencialidades por aproveitar, numa economia para as pessoas.
nizante do trabalho manual ( não foi só o protestantismo como rezam algu- mas lendas, aceites mesmo no universo católico, e a maior prova disso reside no facto de Thomas More ter sido canonizado...). O trabalho já não é a degradação que o ateniense livre nele descobria, ou o anátema lançado por Deus contra a ambição humana, de acordo com livro do Génesis da tradição judaica, que depois foi apropriada pelas grandes tradições monoteístas. Esta tendência normaliza-se e generaliza- se com a Revolução Industrial. O melhor exemplo disso é a compulsão ao trabalho técnico, patente nas reflexões de Benja- min Constant, em 1819. Fazer ciência torna-se, assim, não tanto na atividade que conhece os objetos, mas na atividade que os visa produzir. Viragem da Gno- siologia para a Neo-Ontologia. A essa luz, a crise global do ambiente, se a ela sucumbirmos, será acima de tudo e antes de mais, um sintoma de fracasso radical desse projeto de recriação do mundo pelo trabalho, aliado à força transformadora da tecnociência.
O testemunho do “grupo de genebra” Pátria Utópica é um muito interessante livro memorialístico e testemunhal, sobre o ante e o post 25 de Abril, sobre cinco expriências de exílio politico e o que a ele obrigou, como foi a vida durante esse exilio, o retorno ao país e ( nele ) os primeiros tempos tempos da vida em democracia. Por isso o livro se divide em quatro partes, correspondentes, grosso modo, a es- sas quatro fases ou tempos de experiência : Em Portugal, abafava-se; À beira do lago Léman; Regressos; Portugal reencontrado. Quando aos cinco testemunhantes, são: António Barreto, Ana Benavente, Eurico Figueiredo, José Medeiros Ferreira e Valentim Alexandre. Os quatro primeiros bem conhecidos, com larga atividade politica, durante muitos anos, sobretudo na área do PS, todos tendo passado pelo Parlamento como deputados, Medeiros e Barreto ( que já não é do partido e preside a uma fundação) também ministros, Ana Benavente secretária de Estado, e todos, incluindo Valentim Alexandre, docentes e/ ou investigadores univer- sitários e autores de várias obras no seu ramo de especialidade, e não só. E o que há, além disto, de comum entre eles? O facto de terem estado ligados às lutas associati- vas, de que agora se assinala o cinquentenário, alguns ( Eurico e Medeiros )
com intervenção destacada, terem-se exilado por razões semel- hantes ( em particular para não serem presos, e/ ou para não ir para guerra colonial; ou, no caso de Ana Benavente, aos 18 anos já casada, porque esse era o caso do marido ), haverem pertencido ( ou quase pertencido ...) ao Partido Comunista. E, sobretudo, para efeito deste livro, o seu exilio ter sido na mesma cidade suiça, serem amigos e haverem partilhado muita coisa em comum - e por isso o livro tem como subtitulo O Grupo de Genebra revisitado. Mas, para lá dessa partilha, as experiências são diversificadas e os ângulos de abordagem e as escritas também, pelo que o volume resulta de leitura atrativa - além de, e isso é o fundamental, constituir, repete-se, um apreciável testemu- nho sobre o Portugal de antes de depois de 25 de Abril, a vida no exilio eo percurso politico, profissional e em alguns casos pessoal dos cinco autores. Seria curioso e porventura revelador, aliás, avaliar alguns dos seus aspectos - o que, porém, aqui nao cabe. Vários PÁTRIA UTÓPICA Bizâncio, 320pp, 13,50 euros
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A próxima década Tentar prever o futuro, mesmo que seja um futuro não distante, ou seja : A próxima década, não é pequena ousadia. Mas é isso, num livro com tal título - a que se acrescenta: Onde temos estado ... e para onde nos dirigimos - que intenta ou ensaia George Friedman, o norte- americano fundador e líder da Stratfor, uma empresa considerada a nº1 em informação geopolitica global. E é este o dominio fun- damental das suas previsões, que vão de futuras guerras, de vários géneros, ao destino da Europa e da zona euro, da China, das relações internacionais, em particular no Médio Oriente e dos EUA com Israel e o Irão. O livro “ fala da relação entre império ( leia-se : os EUA ), républica e o exercicio do poder nos próximos dez anos “, e do modo como “ os EUA se devem comportar no mundo para exer- cerem o seu poder e preservarem a república ao mesmo tempo “, assume o autor George Friedman A PRÓXIMA DÉCADA D.Quixote, 300pp, 15,90 euros
Sobre o tédio O tédio enquanto configuração ontemporânea é um ensaio que resulta da tese de mestrado do autor, José Baptista, em Ciências da Comunicação da Universidade Nova Lisboa. São 17 capítulos em que analisa a “atualidade do tédio enquanto fenómeno cultural e forma determinante de se estar no mundo procurando, por um lado, delinear de que forma e através de que mediações surge a possibilidade da sua precipitação no âmago do sentir e da expriência do sujeito e, por outro, demonstrar o papel contral que ocupa na compreensão da expriência contemporânea”. José Baptista O TÉDIO ENQUANTO CONFIGURAÇÃO CONTEMPORÂNEA Chiado Editora, 150 pp, 12 euros
Portugalidade Ainda bem que se reúnem em vol- ume as intervenções no colóquio “ Representações da Portugalidade “, organizado pela Universidade da Beira Interior, para assinalar o centenário da Républica. O livro tem o titulo do colóquio e saõ seus organizadores André Barata, António Santos Pereira e José Ricardo Carvalheiro. A sinopse de apresentação resume bem do que se trata : “ Dos muitos modos de ver as várias facetas da Portugali- dade, é possível gerar um encontro entre distintas linguagens, objectos e perspectivas sobre a identidade portuguesa. Para lá de uma pretensa ou pre- sumível essência, que não tem de resumir o essencial da Portu- galidade, muito menos dispor de contornos precisos, é ambição deste livro apreciar a pluralidade e eventual singularidade dos elementos de Portugalidade, num diálogo multidisciplinar, cultural e aberto, entre o material e o simbólico, a representação e a produção, o passado e o futuro. Porque a identidade não tem a ver apenas com o que somos e de onde vimos, mas também com o que queremos fazer com aquilo de que dispomos.” Além dos três organizadores os textos são de Silvina Rodrigues Lopes, Carla Sofia Gomes Xavier, Daniel Ribas, Luís Cunha, José Neves, José Manuel Sobral, Daniel Melo, Luís Henriques, Mariana Pinto dos Santos, Alecandre António da Costa Luís, João de Melo e Mário de Carvalho. Os dois últimos conhecidos escritores, sendo o do autor de A Sala Magenta o mais literário de todos volume. André Barata, António Santos Pereira e José Ricardo Carvalheiro (org.) PORTUGALIDADE Caminho, 280 pp, 15.90 euros