Graffiti é pra geral (2021)

Page 1

Organização Fredone Fone


Ficha Técnica Organização e Capa ∙ Fredone Fone Artistas ∙ Basi, Fredone Fone, Iran, Kika Carvalho, Moska, Renato Ren, Ronaldo Gentil, Sagaz Arte Educação ∙ Tatiana Rosa Projeto gráfico e diagramação ∙ Paulo Prot Revisão ∙ Thiara Cruz

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Graffiti é pra geral / organização Fredone Fone. -- Vitória, ES : FF Intervenções Urbanas, 2021. Vários autores. Vários colaboradores. ISBN 978-65-995024-1-5 1. Artes 2. Caligrafia 3. Desenhos 4. Grafites Arte 5. Pinturas I. Fone, Fredone. 21-85087

CDD-751.73 Índices para catálogo sistemático: 1. Grafite : Pinturas : Artes 751.73 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129


Organização Fredone Fone Vitória, 2021


Graffiti é pra geral me faz lembrar do valor da coletividade, algo que aprendi por meio do skate, da pixação, do graffiti, do Hip-Hop. Coletividade também era quando lá no bairro pessoas se juntavam pra carregar lajota, areia ou bater a laje de algum vizinho. Tudo isso é sobre passar conhecimento, passar a visão. Descer do ônibus no meio do percurso e ficar viajando num novo graffiti era como eu costumava visitar exposições. Eu parava e ficava tentando decifrar aquela maravilha. Depois pegava o busão e continuava a viagem. Antes disso, já aprendia muito com amigos que pixavam em Serra Dourada enquanto a gente andava de skate. O mesmo skate levou a gente a tantos outros lugares. E me trouxe até aqui. Foi assim que algumas folhinhas com abecedários de pixação chegaram até minhas mãos, nos anos 1990. Até hoje umas das assinaturas do Tanaka e do Varas, que faziam parte da SBL (SkateBoarders Largados ou Skate Board Livre), marcaram território em minha memória, mesmo muito depois de terem sido apagadas. Elas estavam numa parede em Vitória, na Praça dos Desejos, ali perto do half. Eu pensava: eles assinaram ali, naquele bairro de rico, perto de onde a gente vai andar de skate. Quero assinar lá também! Pouco antes disso, eu tinha estudado com o Cabeça, na sétima série. Ele e o Celo curtiam sur-

far, pixar e faziam parte da Geração Surf (GS). Outro mano que pixava e andava de skate, o Cecão (SBL), também estudou comigo um ano depois em outra escola. Eles tinham acesso a umas folhinhas com abecedários. Algumas foram levadas para a sala de aula, e eu ficava copiando aquelas letras. Na época eu escrevia Dézão, que vinha do meu apelido de infância, Dé. Dentre os estilos de escrita, tinha a “paulista”, a “carioca”, a “mineira”... Era assim que a gente chamava aqueles abecedários, tipo de outro planeta, vários universos, provavelmente riscados por outras pessoas com quem a gente se conectava sem nunca ter conhecido. Eles serviram de base para muitos moleques como eu. A gente copiava, mostrava pros outros, passava pra frente. Era nossa escola de arte, na rua, na sala de aula, dentro de casa. E encontramos coragem para criar nossas próprias letras, nosso próprio abecedário. Aprendemos e ensinamos muito, riscando muito! Dali surgiu a “elétrica”, uma criação do Narina, com participação do Dinho. Eles, que também faziam parte da SBL, se basearam nos abecedários que chegaram até a gente. Geral passava o dia inteiro riscando folhas e mais folhas. Minha mãe fazia salgadinhos, bolos, tortas, para vender. Lembro de ter riscado muitas das folhas do caderno de receitas dela. Guardo algumas comigo, amareladas, 26 anos depois.


Pensa num vício! Pois é... Treinando nossa assinatura num papel, inúmeras vezes, criando nossa identidade, tipo quando a gente vai tirar nosso RG. Minha caminhada na rua começou quando Cabeça me chamou para pixar pela primeira vez. Eu já tinha riscado no papel com uma lata de spray, mas nunca numa parede. Foi meu batismo. Depois dali eu sabia o que eu queria fazer para o resto da vida: graffiti. Pintar parede. Em seguida, conheci o Hip-Hop mais de perto. Minha visão sobre escrever nos muros se expandiu, chegaram mais cores, traços, formas, mais gente, mais ideias. Aprendi muito vendo a União dos Grafiteiros Independentes (UGI) pintando pela cidade nos anos 1990. Cyborg e Chicão eram muito estratégicos. Alecs também. Todos trabalhavam como pintores de letreiros e já dominavam a técnica da pintura. Lembro que fizeram um graffiti no muro do Terminal de Laranjeiras e num outro muro ao lado do Terminal de Carapina. Era impossível não ver! Mesmo assim, fui lá conferir de perto. Algumas letras que pintamos foram publicadas na Revista Graffiti, de São Paulo, que rodava em todo Brasil. Imagina a felicidade daquele moleque crescido! Foram chegando mais pessoas e mais grupos na cena, e não posso deixar de citar que Lyli foi a primeira mulher a se destacar pintando letras.

Continuamos deixando nossas marcas na cidade, construímos nosso nome nas ruas. De lá pra cá, com exceção do Sagaz, que começou antes de mim, venho acompanhando muitas pessoas que escrevem nas ruas. Convidei algumas delas para somarem nesta coleção de abecedários que acaba de chegar até você. Procure por estes nomes: Basi, Gentil, Ren, Sagaz, Iran, Kika, Moska. Um salve. Só fortalece! Valeu também, Tati e Prot, por somarem neste projeto! Mas e a pergunta que não se cala? Eu respondo: Sim, pixação é uma forma de graffiti! Segundo a lei, não é autorizado, é crime. E isso gera muitos conflitos. Em Vitória, caso te peguem fazendo isso sem autorização, pode gerar multa de até dez mil reais. Isso em 2021. Em outras cidades brasileiras, além de pagar multa, pessoas foram presas e enquadradas no crime de formação de quadrilha. Algumas reportagens e matérias de jornais também complicam a situação, muitas vezes incitando ódio contra essas pessoas. Em algumas ocasiões, os conflitos acabaram em violência, ou mesmo custaram vidas. Já parou pra pensar? Não seriam penas duras demais para quem escreve na parede usando apenas tinta? Experimente escrever seu nome ou apelido, nome das amizades, nome de geral, usando este abecedário. E crie o seu também!


KIKA @kikacarvalhokika



Representatividade


Me chamo Kika Carvalho, nasci em _ (ES), no ano de 1992. Me graduei em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo, atuo como artista visual e educadora social. Utilizo diferentes técnicas para explorar minha constante busca por memórias individuais e coletivas, com o objetivo de ressignificar (modos de ver e pensar o mundo). Em 2009, quando iniciei no graffiti, não

havia mulheres com produção ativa nas ruas; então, quando ingressei nesse movimento, me tornei a primeira mulher de destaque a pintar os muros de Vitória e uma das responsáveis pela construção dessa cena com trabalhos que podem ser encontrados em diferentes cidades do país! Minhas pesquisas são motivadas por inquietações que passam pelo lugar social que ocupo enquanto mulher negra.


GENTIL @ronaldogentill



Contracultura


Eu me chamo Ronaldo Gentil, nasci em 28 de setembro de 1983, em (?) (ES). Cresci em Laranjeiras e, como morador de subúrbio, me identifiquei com o punk aos 14 anos; daí iniciei a minha relação com a contracultura. Na adolescência, andava pelo bairro "escrevendo"... Continuei tentando compreender os pixos riscados nas paredes...

E, com essa busca, permaneci fazendo essas pinturas pela cidade. Hoje atuo como pixador e artista plástico. O que me move é a democratização da arte e as práticas populares sem vínculo ou controle institucional. Valorizo a liberdade e a força coletiva por meio das pinturas; e o meu processo de criação é movido por emoções, em que quase sempre ajo por impulso.


FREDONE @fredonefone



Construir


Salve salve! Sou Fredone Fone, ou Fone. Nasci em Bom Jesus do Itabapoana (RJ). Com um ano de idade me mudei com minha família para o bairro Serra Dourada, na periferia de Serra (ES), onde cresci. Comecei a pintar paredes quando ainda era criança, ajudando meu pai no trampo de pedreiro. Em 1995 assinei a obra-cidade com uma lata de spray, pela primeira vez. Ao longo

desses anos, viajei por vários lugares, pintando em mais 13 países. Influenciado pelo skate e pelo Hip-Hop, uso geometrias, ferramentas, técnicas e cores (preto, branco, cinza) que usava para construir e reformar casas. Uso também o vermelho, que representa a luta para construir e realizar o sonho da casa própria.


REN @renato_ren



Pense


Sou o Renato Ren, paulistano, nascido em 1984. Em 1997 comecei a praticar skate na COHAB I Itaquera, periferia de São Paulo. Nessa época, como era comum entre os skatistas, fiz meus primeiros pixos com marcadores. Sem conhecimento acerca dessa prática, fazia por lazer. No ano 2000, me mudei para Viana (ES). Aqui conheci o Malcom e o Japão, moradores do bairro atuantes

no Hip-Hop. Nos reunimos e pesquisamos mais sobre o movimento; então, decidimos começar seriamente a fazer graffiti e interferir na paisagem urbana. Fiz por muitos anos o graffiti tradicional: throw-up, peace e wild-style. Em 2008 expandi minha prática e explorei a criação de outras imagens, desprendidas da tradição. Em 2018 me formei em Artes Plásticas pela UFES.


IRAN @irantattoo



Cores


Iran de Oliveira Soares, mais conhecido como Iran. Sou nascido em Vitória (ES), no dia 7 de agosto de 1987. Criado em Jardim da Penha, tenho a arte como expressão desde muito cedo, comecei a pintar em 2001. Meu processo de cria-

ção acontece por meio da observação de tudo e de todos que estão à minha volta. É iniciado com a música, depois com a escrita e, por fim, o desenho. Tenho tudo isso como referência para ser, pensar e criar algo distinto.


BASI @ basi_c301



LGBTQIA+


Sou Daniel “Basi”, natural de Aracruz (ES), atualmente em Vila Velha (ES), chegando a grande Vitória conheci a cena Hip-Hop e, com isso, o graffiti. Utilizo de técnicas de stickers, pinturas com spray, colagens, serigrafia. Meu estilo se caracteriza por ser fluido; nas minhas pinturas consigo mesclar traços retos com outros mais disformes, variando entre estilos, bomb, piece e wild style. Minhas referências vêm de amigos da minha crew

(c301) e de outras tantas crews no ES, acredito que até mesmo em conduta. O que me motiva pintar é a liberdade de poder pintar aquilo que me dá vontade, impactar o dia a dia de pessoas é algo inspirador. Meu processo criativo basicamente se dá com um caderninho na bolsa, mesa de bar, no busão de cada dia, mas também gosto de deixar fluir na hora que for pintar, depende muito das circunstâncias.


SAGAZ @edsonsagaz



Manifeste


Eu sou Sagaz, nasci em Cristalina (GO), porém fui registrado em Pedro Canário (ES), no dia 5 de agosto de 1973, hoje morador do Centro de Vitória. Venho das quebradas periféricas, dos movimentos sociais, dos direitos humanos, do Movimento Negro... Pinto desde os meus 11 anos de idade. Em 1984 fiz meu primeiro mural na minha caxanga (casa)... Depois nos muros do bairro

onde eu vivia, em Vale Encantado, Vila Velha (ES), por meio do estilo old school com referências ao "estilo livre". Me sinto provocado por uma cultura sem fronteiras e sem valores comerciais... A minha arte é influenciada pelos que estão à minha volta! Respeito a nova escola mesmo, muitas vezes, discordando.


MOSKA @moska_c301



Criar


Sou Anderson, ou Moska – como assino nas ruas. Desenhista desde criança, conheci a cultura urbana e o Hip-Hop aos 12 anos de idade por meio do skate e aos 15 me interessei pelos graffitis que via em vídeos e revistas de skate e rap. Comecei pixando e estudando letras, com o tempo aprimorei técnicas e passei a fazer personagens, porém o que mais me motiva e fascina no graffiti

é a escrita e seus variados estilos e possibilidades de aplicações, é ao que eu mais me dedico. Busco minhas inspirações em tudo que vejo no meu cotidiano, na cultura que vivo e as novas que conheço. Transito por diferentes estilos de letras em minhas peças, os quais variam de acordo com o momento que vivo e meu estado emocional.


SOBRE A IMPORTÂNCIA DA ESCUTA Por Tatiana Rosa Em 1998, Lauryn Hill lançou o premiado The Miseducation, obra de grande importância para a comunidade negra estadunidense (afro-diaspórica) por tamanha reflexão que suscita. Esse álbum foi inspirado no livro The Mis-Education of the Negro (A des-educação do negro), de 1933, de Carter Godwin Woodson, o qual, segundo a pesquisadora Ana Lucia Silva Souza, foi “um dos primeiros pensadores a batalhar por um ensino que não oprimisse a população negra”. Sem dúvida, uma grande referência para se pensar uma prática de educação para a equidade. Para Woodson (2021, p. 51), “a verdadeira educação significa inspirar pessoas a viverem com mais satisfação, a aprenderem com a vida tal como ela se apresenta e a torná-la melhor”. Ou seja, uma reflexão necessária para se propor um pensamento e subsidiar estratégias para mediações que se proponham a transformar a escola em um espaço de encontro mais representativo e a contribuir para a constituição de cidadãs e cidadãos conscientes de sua história e cultura a partir de seu território. Buscar democratizar o diálogo nos espaços de ensino escolar recai sobre a necessidade da revisão das práticas perpetuadas de modo hierárquico, descontextualizado de seu território, sem o fundamental diálogo. Para se caminhar na perspectiva da igualdade de direitos e fazer repercutir outros modos de ver, estar e pensar as nossas realidades, é fundamental que seja questionado o “para quem?”, “para quê?” se media e o seu propósito. Tive acesso à versão brasileira desse livro, A

des-educação do negro, publicada em 2021, pelo selo Penguim, da Companhia das Letras, que foi prefaciada por Ana Lucia Silva Souza, autora de Letramentos de Reexistência: Poesia, Grafite, Música, Dança: Hip-hop, estudo que “descobre e retrata, fora da escola, muitos sujeitos históricos plenos, densos, aguardando um modo de articulação com o letramento que se tenta fazer de dentro dela” (2011, p.17). Por sua relevância para a educação, pesquisa e análise de mediação “escolar” a partir dos ensinamentos do movimento Hip-Hop, essa obra foi distribuída pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola, o PNBE Temático, e disponibilizada nas instituições de ensino fundamental e médio do país. O Movimento Hip-Hop é uma articulação dinâmica de práticas artísticas, culturais alicerçadas na e para a coletividade. O interdisciplinar (multiartista) Fredone Fone, mentor e idealizador desta publicação, cita no prefácio de RAP: A força da fala (2018), livro de sua organização, o entendimento do Movimento Hip-Hop como exercício da coletividade, premissa fundamental para se refletir a mediação nas instituições de ensino. Fone referenda a figura do Griot (em francês) ou Griô, como inserimos na nossa língua, o qual condiz com o sábio que consegue acessar a todes com suas histórias e experiências de vida, partilha seus saberes aos que se predispõem à escuta. A importância desse movimento para a transformação e reinserção social da juventude, sobretudo periférica, é sem tamanho. Em cada alfabeto, uma identidade, uma defesa de ideia, um recorte da nossa sociedade. Sagaz Bicho Solto, uma das maiores referências do movimento Hip-Hop no Espírito Santo, inspira muitos artistas da música para o graffiti. Fredone


Fone elabora suas pesquisas e criações a partir da prática do skate, da música (Conteúdo Paralelo), das diferentes referências e suportes das artes visuais – em especial o graffiti. Idealizador deste projeto, faz repercutir a importância do movimento Hip-Hop local. Renato Ren explora da música às instalações artísticas também de modo interdependente e compõe o grupo de RAP Conteúdo Paralelo, junto ao Fredone Fone e L. Brau. Kika Carvalho, mulher, negra e uma das poucas que se projetam no/do graffiti na Grande Vitória (ES). É das artes visuais, em especial, da pintura. Seja nos paredões ou nas telas, explora diferentes linguagens visuais como caminho de criação. Basi, de Coqueiral de Aracruz (ES), se faz marcante pelo diálogo de cores fortes e das muitas inquietações que inspiram e impõem em seu processo e exposição. Já o Gentil repercute suas ideias do punk ao pixo. Iran tem o seu processo de criação encadeado a partir da música, da escrita para o desenho e pintura e, por fim, o Moska que, do skate para o RAP, viu nos estudos das “letras” o aprimoramento das técnicas para a criação de personagens. A escrita como desenho de modo literal! Artistas dinâmicos que pautam demandas urgentes, subjetivas, de modo dialógico... Consciente que a territorialidade organiza as relações artístico-culturais de um lugar, assenta a identidade social do grupo. Praticou-se aqui dessa perspectiva de pensamento. O que você já escutou sobre os (as) artistas de seu bairro? Quantos já foram “conversados” na escola? Quantos já foram tratados como conteúdo? Precisamos nos des-educar, rever, revisar as nossas práticas de educação para transformar. O graffiti é uma linguagem que exige o diálogo. Está na rua e se faz democrático! Como educado-

ra do ensino básico público (re)vejo aqui a possibilidade de fazer repercutir a representatividade a partir da reunião de grandes referências dessa arte no território capixaba, a partir dessas referências artísticas capixabas. “Nada sem os (as) protagonistas!” Que abram caminho para o diálogo e o devido respeito para o movimento. Que o graffiti praticado no Espírito Santo tenha o seu devido lugar e que este seja galgado a partir dos espaços de educação.

Referências FONE, Fredone. Rap: a força da fala. Serra: Brio, 2018. SOUZA, Ana Lucia Silva. Letramentos de reexistência: poesia, grafite, música, dança: Hip-hop. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. WOODSON, Carter Godwin. A des-educação do negro. São Paulo: Peguim – Companhia das Letras, 2021.



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.