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Apresentação
Ao colocar a público o terceiro número dos Cadernos de Ciências Sociais, queremos manifestar nossa satisfação em oferecer aos leitores parte significativa da reflexão teórica gestada durante as Semanas de Ciências Sociais 2011 e 2012, reelaborada para publicação neste caderno. Satisfação que se alicerça, também, no fato de que estamos consolidando um projeto que permanece com a mesma autonomia que inspirou sua criação, autonomia esta que favorece a busca constante de elevação de padrão intelectual, tão necessário à vivência social. Seu terceiro número é lançado num momento em que a realidade social brasileira se apresenta envolta num novo quadro fenomênico, qual seja: a eclosão de movimentos populares que alçaram centenas de milhares de pessoas por todo o país, na luta contra o aumento das passagens do transporte público, item de suma importância no quadro das condições sociais e do custo de vida dos indivíduos. A gratuidade do transporte público garantiria o direito de ir e vir e, portanto, o uso dos equipamentos públicos, como hospitais, escolas, parques, e outros legítimos espaços que o preço proibitivo da locomoção pública torna inacessíveis. As manifestações apontam também, para a ruptura com a supremacia do transporte individual em detrimento do coletivo, isto é, o subsídio às montadoras de automóvel, a manutenção do elevado lucro dos empresários que exploram o transporte público, etc., indicando também a segregação cultural e espacial a que ficam submetidas as massas populares. As manifestações ganharam corpo em junho de 2013, principalmente porque se afirmou um objetivo concreto para as mobilizações, que atingiu a maioria da população. Com a participação e apoio geral conquistado, foi dado um importante passo: resistir nas ruas até a derrubada das tarifas (objetivo concreto), bem como incluir na pauta outras reivindicações igualmente centrais, relativas às áreas da educação, saúde, etc.. Tornou-se patente a insatisfação generalizada contra a opressão que o capital exerce nas várias esferas da vida contra os indivíduos, e, tão logo a população tomou as ruas e questionou as condições político-econômicas atuais, o poder, tomado de surpresa, lançou mão de violenta repressão, puxada pela racionalidade preventiva cujo aparato repressor não foi desmantelado na transição da ditadura militar, em 1984. Embora
não
faltassem
motivos
para
manifestações
contestatórias
e
reivindicativas, a presença humana no porte em que ocorreu era imprevisível, e todos os 2
dirigentes políticos foram pegos de surpresa. Mas, observava José Chasin quando os operários iniciam as greves do ABC em 1978/1979, “a história só surpreende aos que de história nada entendem”, e, mesmo estando muito distante, em termos de conteúdo histórico, daquelas manifestações, não é absolutamente nova a opressão a que se encontram submetidos os setores populares e do trabalho, no que toca diretamente às condições sociais e materiais de vida. Convive-se, cotidianamente, com a manutenção de um evidente desemprego, com as chacinas nas periferias, com o elevado custo de vida, com o péssimo nível educacional, público e privado, com a lastimável condição da saúde pública e privada, e com a desfaçatez dos gestores do capital
afirmando que estamos num oasis de
tranquilidade, condição central para a realização do capital atrófico brasileiro. Tudo isso, é posto em evidência pelos movimentos sociais, remetendo-nos a um remoto passado que, dado o caráter ardiloso de nossa história econômica, contraditoriamente não passou: essa “película cinematográfica” não é original. Recordemos o “milagre brasileiro” de 1968/1973, apoiado no achatamento salarial efetivado pelo capital e suportado pela classe trabalhadora, num padrão de desumanização, desconhecido a implantação da indústria. Tal achatamento tem nome próprio: é superexploração da força de trabalho. Naquele momento a ditadura bonapartista projetava e efetivava sua obra política central, qual seja, a de expurgar dos salários parte substancial das necessidades dos trabalhadores, garantindo pela violência e repressão um baixo índice de movimentações, convertendo os trabalhadores em favelados, com famílias subnutridas, alto índice de mortalidade infantil, ao mesmo tempo em que subsidiava as empresas monopolistas, construía um oligopólio estatal com base no que foi tratado pela ditadura militar por capacidade de endividamento nacional, que, obviamente, recairia, como recaiu, sobre os ombros dos trabalhadores. Quando, a partir de finais de 1970, os trabalhadores ganharam novamente as ruas contra o arrocho salarial, desvelou-se o segredo da violência e da repressão de que se valeu a ditadura militar desde 1964: a construção de um modelo econômico que excluía as massas populares de qualquer benefício, pois organizou-se em torno de uma produção e circulação de bens não destinados ao seu consumo, portanto, um modelo econômico suportado pela superexploração da força de trabalho e pela exclusão socioeconômica radical dos trabalhadores. De maneira que não tivemos um modelo 3
econômico à altura de sua população como um todo, e, particularmente aquela destinada ao trabalho. Um modelo estruturado dessa maneira (dependente da superexploração dos trabalhadores) sofre grave abalo quando reivindicações salariais ou melhoria das condições de sua vida são postas na ordem do dia, surpreendendo aos que jamais poderiam contar com isso. Vale lembrar, também, que a transição, iniciada com a crise do “milagre” e operada pelas próprias forças militares ditatoriais, sem que qualquer das oposições conseguisse romper esse trajeto, não resultou na democracia, mas na institucionalização de uma histórica autocracia, que não permitiu retoques naquele modelo econômico e não desmantelou o aparato repressivo. Não custa recordar que desde sua instalação e consolidação esse modelo econômico não foi alterado: produção de altíssimo padrão tecnológico e sofisticação de estilo que atende parcela da população de alta e altíssima renda, ao lado da manutenção da produção agrária e mineral (commodities) voltada para o exterior, para cobrir os custos das importações tecnológicas necessárias às empresas monopolistas que centralizam e modelam o mercado nacional, além de outros compromissos como remessa de valor aos monopólios multinacionais, dos quais nunca nos livramos, e que a mundialização do capital intensificou. Por outro lado, menos de trinta anos após a queda da ditadura militar a novidade social que se vislumbra é a emersão de um novo segmento social tratado, seja por engano ou crueldade, de nova classe média. Analisando mais de perto, vemos que a existência dessa suposta nova classe média aparece nas estatísticas como um setor que se insere no mercado de alguns produtos que não faziam parte de seu consumo. Mas se é assim, temos que destacar que outras estatísticas mostram que o alardeado consumo dessa nova classe média é controlado por linhas de crédito, pelas quais tem pago altíssimos juros, além das exclusões de parte dos novos participantes dado a altíssima inadimplência; e isto nos leva a questionar, quais foram, então, as alterações promovidas pelas socialdemocracias (neoliberais) que estiveram e estão na gestão política há vinte anos. É possível dizer, sem receio de cometer grave erro, que a estrutura socioeconômica brasileira não sofreu modificação significativa desde o fim da ditadura, senão formalmente, a ponto de uma redução no custo das passagens do transporte coletivo em favor das massas colocar, para os gestores do capital, a tarefa de reprimir,
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espancar e
buscar formas de diluição dos movimentos sociais, para evitar que
conquistem algo para além dos míseros centavos. A continuidade das manifestações deixa patente a insatisfação generalizada, cujo centro é a economia, e, muito embora isso não esteja claramente estampado, as integrações dos pontos isolados revelam o núcleo da questão. Além disso, ficou claro o repúdio à violência policial herdada da ditadura. Contudo, importa ressaltar que a reivindicação central dos movimentos foi vitoriosa nas maiores cidades do Brasil, e a redução das tarifas foi anunciada. Cabe observar aqui que ao objetivarem-se através de sua obstinada resistência e convicção,subordinaram as múltiplas exaltações e respostas políticas ao domínio de seu interesse imediato, redução do preço do transporte, ao mesmo tempo em que sua resistência impediu que os efeitos da violência policial os retirassem das ruas. Esse posicionamento certeiro permitiu que se vislumbrasse por um momento a recusa do politicismo, posicionamento que tem estado presente na maioria dos movimentos sociais. Assim, a consistência, importância e precisão, das mobilizações que vieram ocupando parte significativa das ruas das capitais brasileiras em junho de 2013, residem em expor a velha contradição, mantida com a revogação da ditadura e mesmo após a inserção do Brasil na globalização: trata-se da continuidade da autocracia que mantém a cumplicidade entre estado e setor privado, em função da velha forma industrial associada e subordinada ao capital externo, resultando sempre no elevadíssimo custo de vida e achatamento salarial, e na diluição dos movimentos sociais, via politicismo ou via repressão policial, ambas formas de violação e afastamento dos interesses e necessidades populares. Certamente os herdeiros da autocracia institucionalizada, agora como antes, recorrerão ao instrumento ideológico dominante do politicismo, tentando canalizar as insatisfações para uma reforma política, visando reduzir o ângulo fundamental do movimento que se centrara num componente do custo de vida, o preço do transporte. O cabo de guerra foi mantido: de um lado o poder constituído força a barra para abafar os movimentos e dissimular os problemas econômicos subjacentes a eles, enquanto de outro, os movimentos tentam manter as reivindicações que os moveram, embora recebam contra si as manifestas truculências de direita, travestidas de patriotismo,
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dificultando visualizar o fundamento econômico das manifestações, bem como aprofundá-lo e transformá-lo no conteúdo de um efetivo enfrentamento político. De qualquer maneira consideramos relevante registrar os eventos atuais, tanto por sua extensão e porte quanto pela teleologia que os orientou desde sua saída, permitindo tangenciar questões econômicas de fundo. Resta aguardar seus desdobramentos na expectativa de que as manifestações evidenciem adequadamente seus objetivos permitindo a conscientização popular contra os engodos da política pela política.
Este novo número dos Cadernos de Ciências Sociais reúne um conjunto de artigos que abordam a realidade política latino-americana e suas relações externas, pelos pesquisadores Vania Noeli, Vitor Schincariol, Everaldo de O. Andrade, Silvia Alegre e Letícia Brandão. O ativista e intelectual João Pedro Stedile analisa a crescente presença do capital, sob forma tecnológica, na agricultura brasileira, mostrando o aprofundamento da dependência nacional do mercado externo. Este volume inclui também uma reflexão de Bruno Monteforte sobre as contradições e crises da educação; busca identificar, os limites e possibilidades reais de contraposição a lógica do capital, fundado numa perspectiva crítica e humanista. Claudinei Cássio Rezende apresenta uma introdução sobre a obra de Gramsci destacando a formação do Partido Comunista, a decadência ideológica da burguesia e a crise orgânica, apresentadas nos Cadernos do Cárcere 13 e 18. Por fim, a arte é tematizada por Leandro Cândido em artigo que contextualiza a concepção de vanguarda na obra de György Lukács, bem como alguns dos pontos centrais do que viria a constituir sua ontologia do ser social. Tal como nos números anteriores, os Cadernos publicam em sua segunda parte os resumos das comunicações de pesquisas apresentadas nas Semanas de Ciências Sociais de 2011 e 2012, por alunos de graduação e pós-graduação do CUFSA e de outras instituições. Boa leitura!
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