12 MESES NO FUNCHAL
12 MESES NO FUNCHAL António Fournier [Organização] Colecção “Funchal 500 Anos” [n.o 16] COORDENAÇÃO GERAL
Francisco Faria Paulino COORDENAÇÃO EDITORIAL
Susana Sousa e Silva CAPA
Le Départ, Martha Telles, óleo s/ tela, 1983 Museu de Arte Contemporânea do Funchal DESIGN GRÁFICO
José Brandão | Susana Brito | Elisabete Rolo [B2 Design] IMPRESSÃO
Rainho & Neves, Lda. ISBN
978 - 989 - 8182 - 01 - 2 DEPÓSITO LEGAL
276 179 / 08 TIRAGEM
1000 exemplares EDIÇÃO
Empresa Municipal “Funchal 500 Anos” Rua de Santa Maria, 170 9060-291 Funchal www.funchal500anos.com
12 MESES NO FUNCHAL
António Fournier ORGANIZAÇÃO E PREFÁCIO
Índice
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PREFÁCIO Um Funchal eterno António Fournier
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JANEIRO No Tempo de Janeiro Ana Margarida Falcão
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FEVEREIRO Fevereiro, 1938 Irene Lucília Andrade
029
MARÇO Funchal, em Março Francisco Fernandes
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ABRIL Parábola Margarida Gonçalves Marques
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MAIO Maio Laura Moniz
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JUNHO June Maria Rosa Basílio
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JULHO Ruas de Julho Vítor Sousa
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AGOSTO Agosto Nelson Veríssimo
054
SETEMBRO Violante, olhos de mar Helena Marques
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OUTUBRO Aguarela de um outubro melancólico Maria Aurora Homem
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NOVEMBRO No Funchal, o maquinista António Fournier
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DEZEMBRO Em Dezembro quando as gaivotas enlouquecem João Carlos Abreu
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Sobre os Autores
Prefácio
Um Funchal eterno
Uma ilha à distância é como um cirro de cinza ou um veleiro, uma vaga sombra no horizonte. Vista de dentro é do tamanho do mundo. Sant’Ana Dionísio, Atlânticas
Leva sempre Ítaca no teu coração, mas não apresses o regresso, encontrei uma vez esta máxima num livro de Claudio Magris. E há também uma anedota de Umberto Eco que li em tempos, em que às vezes penso: um emigrante, depois de longos anos de ausência, um dia decide regressar à sua cidade natal. No comboio, já perto da estação de onde outrora partira, põe-se a imaginar quanta gente estará à sua espera. À chegada, verifica para sua decepção que não há nenhum comité de boas-vindas: a estação está vazia! Desiludido, porque queria abraçar um amigo, transmitir toda a alegria de voltar a casa, sentir o calor dos irmãos que acolhem o filho pródigo, pousa as malas no chão e olha à volta, desesperadamente, à procura de algo ou alguém que o faça sentir em casa. Ao fundo vê um homenzinho a varrer a estação. Aproxima-se e reconhece um antigo colega de escola. Corre para ele e abraça-o efusivamente. O outro, surpreendido, exclama: “Olá Giovanni, há quanto tempo! Estás de partida?” Quantas vezes partindo, permanecemos na ilha, e quantas vezes ficando, nos ausentamos? Quantas vezes vivendo quotidianamente a cidade, abandonamos os minutos, deixamos para trás os dias, e só nos lembramos daqueles que fazem parte da nossa paisagem sentimental, quando damos de repente com eles nas páginas terminais de um jornal? Quantas vezes partimos ou fazemos de conta que partimos daquele castelo onde fomos e de onde nunca regressaremos? A memória desliza sub-repticiamente para trás, à procura de um tempo feliz que
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Prefácio
só existe na cabeça do habitante mental dos lugares, aquele que vive, como nenhum outro, um presente eterno numa primavera perene. Mas isso tem os seus custos, e ele sabe-o, torna-o numa espécie de guardião de um segredo, de uma dor antiga que o corrói por dentro, que o faz temer o regresso e ansiar por ele todos os dias. O tempo, esse, faz a todos nós – os que ficam e os que partem – o que se espera que ele faça: avança, levando consigo aquilo que amamos. O mundo entretanto passa por debaixo dos pés vorazes, mentais. Todos os dias o habitante mental das ilhas se fixa num instante longínquo cristalizado na espessura do tempo. Como no quadro de Martha Telles. A cor, como se sabe, é uma paisagem moral. O automóvel aguarda a partida na sua indiferença metálica e descapotável, e os pais, já fantasmas, preparam-se para accionar esse mecanismo assassino. As árvores negras e ancestrais como a figura longilínea do avô, observam a cena que se desenrola à luz de outro sol. As sombras sábias cavam sulcos profundos num território solar. O silêncio, que se mede na distância entre os pais e as crianças, torna a cena ainda mais pungente. A terra vermelha e fofa, boa de comer como diria Ernesto Leal, assiste a tudo, nutrindo o lugar, unindo um arquipélago humano já fracturado à partida. Na casa feita da mesma matéria quente e sentimental, a avó fica só. A menina, vestida do mesmo branco imaculado das irmãs, assiste de longe àquela parte dela própria que lhe é assepticamente cortada. À direita, o labirinto de círculos vegetais prepara-se para acolhê-la, na sua tentativa de reelaborar o luto, breve ou definitivo. A partida é uma das formas de sofrimento humano. Por isso o regresso é também, inevitavelmente, um doce veneno, um cálice amargo. Regressar a uma ilha é atravessar o vazio, o frio, o medo, a voragem dos dias, a perda de referências. A ilha estará lá ainda, ainda existe para lá das nuvens? Há dez anos que parto e regresso ao Funchal, e se vivi mal durante muito tempo esta espécie de esquizofrenia de imaginar a minha cidade natal a crescer longe da minha vista, e este sentimento de culpa de crescer longe dela, hoje já me habituei à situação de exílio perene e de insularidade portátil que me permite partir com nostalgia e regressar com saudade. Regressar com frequência para que não aconteça o mesmo que àquele emigrante. Estar no Funchal como se nunca tivesse partido, não deixar que o regresso seja tão atroz. Mas a qual Funchal regressar? Um ano, trezentos e sessenta e seis dias, não há um único dia igual ao outro. Oito mil setecentos e oitenta e quatro horas. Todas irrepetíveis. Quinhentos e vinte e sete mil e quarenta minutos. Todos inexoravelmente perdidos. Mais de trinta e um milhões e meio de segundos, cada um pautado por 150 mil corações que batem em uníssono. Um lugar que é como quem diz o Funchal, uma cidade em festa.
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12 Meses no Funchal
Um ano que é como quem diz 2008, um ano de fogo. Era preciso eternizar literariamente este tempo, deixar uma radiografia onírica desta cidade de orquídeas assassinas, poetas malditos e comboios fantasmas. É difícil dizer exactamente como e quando o Funchal mudou. Pequeno porto de mar de repente transformado em florescente capital do açúcar por onde andaram Zarco e Colombo e tantos outros famosos e anónimos pioneiros da aventura marítima europeia que ali deu com eles os primeiros passos, ponto de passagem de todas as rotas que demandaram o grande oceano em direcção às suas duas portas austrais ou mais plausivelmente em direcção ao Nada, o Funchal disfruta hoje da qualidade do seu tempo suspenso, celebrando a sua fama internacional de bonsai atlântico e o seu eterno destino de periferia primaveril da Europa, prolegómeno e epitáfio de todos os impérios inconsúteis. Na atmosfera exuberante dos seus jardins tropicais conversa-se sobre os pequenas nadas, nas suas ruas calcetadas cultiva-se as regras da convivência samaritana e a moral da aparência burguesa, nas suas casas de prazeres e angústias ritualiza-se a ocasião social do chá implantada pelas velhas famílias inglesas, ao sabor de recordações gulosas dos tempos da cidade doce. O comportamento british está tão interiorizado que se o renega e imita todos os dias, separando-nos altivamente uns dos outros, unindo-nos a todos no nosso cosmopolitismo contaminado de invejazinhas de província, na nossa forma aprimorada e ressentida de ser português, na nossa resistência irónica e inócua a todos os destinos coloniais. Dentro cresce uma espécie de narcisismo cósmico. Surdo e visceral, o cordão enrola-se ainda mais à volta da ilha. A serpente morde a cauda. Nos quintais as crianças sonham. A matéria-prima do lugar torna-se subitamente onírica. Uma memória cristaliza-se. Onde estão as canas de açúcar que se roubava dos camiões a caminho do engenho, combustível doce para as rodas dentadas do nosso desejo? Para onde voaram as joeiras de cana, papel-manteiga e barbante, estrelas coloridas nas tardes de vento, umbilicalmente ligadas ao coração do sonho? Que destino tiveram os carrinhos de verga e cana com que se procurava desvendar sozinhos o melhor caminho para os nossos labirintos futuros? Sobreviverão ainda as lagartixas cuja posse mortal e infantil se disputava com os francelhos medievais que pairavam sobre os maracujás, pitangas e araçás da nossa paixão? Um véu de ilusão avançará ainda do mar, território do infinito de onde provinham as projecções oníricas que contaminavam estas paragens? Em que dura realidade encalhou o Elsinor, o veleiro-fantasma em que nos anos trinta do século XX se rodava um filme baseado num conto de Jack London, cujas luzes durante a noite causavam o pânico na cidade sensível?
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Prefácio
Para que nova guerra cósmica fugiu o submarino alemão que em 1916 a despertou do seu longo sonho de séculos? Que destino cruel levou o comboiozinho com asas que transportava todos os dias, rigorosamente a horas, os seus passageiros para lugar nenhum? O Funchal mudou realmente neste dealbar de um novo milénio? Uma melodia cega e triste continua a ecoar pelas suas ruas populares, dando um toque cesário àquela parte da cidade; o último vagabundo novecentista continua a percorrer a pé, perdido no seu autismo, a estrada até Papagaio Verde, passando completamente à margem da velha Europa que continua a estanciar ociosamente a oeste da cidade; os velhotes no Lazareto, no outro extremo, continuam a jogar às cartas debaixo do carvalho, indiferentes ao que resta do último navio abalroado pela ilha na sua longa deambulação pelo tempo, cobrindo-se como eles de ferrugem; nos becos mesmo no coração da cidade, os territórios sentimentais continuam a ser guardados por cães que acendem olhares furtivos por detrás de persianas, mal se dobra a esquina. O vilão continua a apoiar à parede a sua indolência, numa verticalidade inclinada e observadora, mãos cruzadas, olhando de lado as coisas, comentando a vida da periferia do tempo. O funchalense continua a passar apressado pelas esplanadas burguesas temendo mais do que o olhar inocente do estrangeiro, o olhar do seu inimigo íntimo, aquele que conhece tão bem quanto ele os segredos da nossa alma amorável e cínica, seu irmão, eterno rival, eterno Caim. E quando o encontra, se os olhos não o puderem evitar, é uma falsa efusão, como se o não visse há séculos, como se tivesse de facto partido. De resto, o Funchal continua a ser separado pelas suas três eternas ribeiras, à volta das quais se concentram três formas diferentes de viver a cidade: a parte popular a nascente, onde desagua todos os dias a enchente de vida laboriosa oriunda do hinterland madeirense, que percorre as ruas num misto de espanto e vergonha perante as novas catedrais brancas do comércio em que futuriza o seu desejo; o Funchal burguês que vive a cidade no presente absoluto, nos seus gestos simbólicos, pausados e patriarcais de velhos comerciantes, donos ilusórios do lugar; o Funchal turístico a poente, onde invernam as cabeleiras louras vindas do frio, em busca dos sinais do lugar onde outrora vivia o tio abastado de Jane Eyre, e os turistas provenientes da parte mais ocidental da Europa (tão próxima e tão distante) talvez ainda a tentarem sintonizar a cidade real com o imaginário que traziam de “uma ilha quentinha, cheia de ananases, com muitos casinos e um yes a cada esquina” como disse Sant’Ana Dionísio. Depois, esta multidão colorida, contrastante, diferentemente vestida, os de fora na sua primavera fora de estação, os da ilha no seu inverno perenemente
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12 Meses no Funchal
ameno, uns ao ritmo de quem flana, outros ao ritmo de quem corre para lado nenhum, cruza-se, acotovela-se nas esquinas, encontra-se e desencontra-se nas mesmas pontes migratórias por onde passou ao longo de séculos, um tout le monde composto de aventureiros do velho e novo mundo, mercadores italianos e corsários magrebinos, piratas franceses e oficiais britânicos, jesuítas espanhóis e sultões persas, pintores flamengos e pregadores escoceses, preceptoras berlinenses e gibraltinas ociosas, aristocratas russos e princesas austríacas, comerciantes sírios e odaliscas turcas, infantas tísicas e poetas sonhadores, monarcas exilados do seu sonho witteleuropeu e ditadores latino-americanos órfãos da sua tirania, mas também toda uma turba indistinta, anónima e apátrida, de escravos, vagabundos, vadios, mendigos, emigrantes e emigrados, visionários, pedintes, degradados, utópicos, condenados, famintos, proscritos e exilados que desapareceu nas mesmas veias azuis e impuras dos funchalenses. Por isso, as árvores, as flores, as pedras, os homens da cidade profunda são sábios e inocentes. O céu de estrelas dançantes sobre o Funchal assistiu a tudo. Pelas mãos terrenas dos seus habitantes, sobreviventes de séculos, passaram todos os tráficos, consumaram-se todos os crimes: sangue de dragão e mãos de sangue, presépios de Nápoles, retábulos da Flandres, cristais de Veneza, nácares do Mar das Pérolas, pipas de Madeira para Napoleão e exércitos de alfinim para o Papa, peles de Mobydick, telegramas e cabos submarinos, postais do Cabo e selos do Panamá, correio aéreo de zeppelins e estilhaços de bombas de Uboats, lembranças de Dover, despojos de Varna, aguarelas de Römer, porcelanas das Índias, missangas africanas, calhas enferrujadas, âncoras órfãs e corpos carbonizados, hidroaviões de folha e aviões de papel, esquadras transatlânticas e barcos de cabotagem, flores de fogo, magnólias e gatos angorás, berlindes e carrinhos de linha, agulhas e dedais, dragonas para esquadras de fantasia e pistolas para duelos passionais, beijos em cartas manchadas, recados com travo a dor, ódio e fome, rebuçados de funcho, carne azeda e pão duro, moedas de mergulhança, lenços sujos ou filigranados, seda e organdins, cruzes e ex-votos, forcas e amarras, pelourinhos e carros de cesto, foices e baionetas, bostas de boi e seringas de drogados. No Funchal todas as paixões são botanicamente moduladas pela cor dos cheiros e pelo cheiro das cores, num fulgor policromático que mais do que um seu topos literário, é um lugar comum tão incontornável quanto o cerco do oceano; no Funchal todos os vícios são alimentados pela pressão onírica do mar de onde chegam os grandes cisnes do mundo, e pela pressão melancólica do campo que se esbate contra as pequenas quintas que o absorvem e dignificam, e os quintais,
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Prefácio
mais modestos, onde ele cresce selvaticamente junto com as galinhas e os instintos. Por cima, o céu ilumina-se de uma limpidez conivente com a alegria botânica, e a colmeia inclinada e solarenga que é o Funchal sorri, acesa por um inesperado caleidoscópio de cores; ou então, pelo contrário, as nuvens adensam-se em nembos pensativos que descem inclementemente sobre a cidade, exercitando uma terceira forma de pressão solidária nas guelras dos seus habitantes, metabolizando-se no sangue, tornando-os esquivos e sorumbáticos. Nos cafés literários, todos diferentes, na sua atmosfera cosmopolita e alma provinciana – o Golden, o Pátio, o Teatro – os visionários sonham, os intelectuais conspiram, os poetas extinguem-se, por entre uma fauna ridente e ociosa que está para o Funchal como quem está para uma fotografia dos Vicentes. Por detrás das fachadas principais, enquanto as televisões e os ecrãs sintonizados mais que nunca com o mundo, policromatizam a velha e a nova penúria, uma população inteira de abelhas operosas pulula e lateja, esventrando as casas e as lojas, entrando e saindo, subindo e descendo, insuflando linfa espiritual na velha capital europeia do açúcar, cobrindo tudo com algum daquele pó doirado que teima em reluzir até ao fim da vida, de que fala Raul Brandão. Repetem desde tempos imemoriais os mesmos gestos, os mesmos passos. Os nossos misteriosos passos quotidianos. Os nossos gloriosos gestos anónimos. O pensamento precisa do afecto. Não se pensa literariamente uma cidade sem afecto. A beleza dos lugares está no seu implícito que ninguém pode narrar, no imortal que ninguém pode contar, no que foge ao contingente, no que subjaz para sempre ao literário. Mas é desse poço obscuro e profundo, desse reino sonâmbulo e flutuante onde pulsa intensamente a alma nobre e plebeia de uma cidade quinhentista, que é preciso beber continuamente. Todos os anos, em finais de Maio, o tapete amarelo de tipuanas na Pena volta a resvalar para o fundo da memória, quando se cruza momentaneamente com a floração dos jacarandás nas ruas centrais do Funchal e a cidade parece flutuar numa nuvem de cor. De cada vez que atravesso esse corredor, ao voltar à ilha, entro num outro Funchal, vejo-o já do outro lado dessa clepsidra de pétalas amarelas que voltei a inverter ou que o tempo voltou a inverter por mim. E talvez porque o faça assim tão sazonalmente, me apercebo melhor da lenta e inexorável oscilação da cidade. Parar e olhar o mar a partir da janela de tipuanas que se abre na Avenida Arriaga, entre o Golden e a praça da Restauração, sem ser ameaçado por aquele mecanismo metálico e assassino do quadro de Martha Telles é já um regresso a um tempo anterior ao meu, uma pequena jóia íntima: parar pela primeira vez no meio de um Funchal devolvido a sua dimensão humana, sintonizar-me com a minha cidade, reapropriar-me do sentido da pertença, repetir um gesto imortal.
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De Folgore da San Gimignano são recordados os Sonetti dei Mesi dedicados a cada um dos meses do ano, e mais recentemente Mário Cláudio estruturou da mesma maneira o seu contuário As Máscaras de Sábado. Desde sempre a escrita literária joga com o alfabeto do tempo, porque ambas, vida e literatura, utilizam os mesmos dados da experiência. Neste calendário lúcido e evocativo, onze escritores contam o Funchal na fugacidade de uma permanência. Pertencem a diferentes gerações, compreendidas entre os 20 e os 70 anos, aquelas que se cruzam no arco plausível de uma existência humana, testemunhas literárias de um lugar e de um século que já abandonámos, que já nos abandonou definitivamente. Há oito anos que somos órfãos de uma parte de nós e essa fractura simbólica persiste neste livro: se exceptuarmos os meses de julho e setembro que reescrevem o mito fundador a partir do ponto de vista dos eternos proscritos da História, o feminino e o plebeu, quase todos os outros regressam a esse tempo afectivo. E quando o tempo de janeiro abre o ano com o Funchal dos anos oitenta, embora seja também o meu, de repente apercebo-me de que é já tão distante, irremediavelmente distante, pertença de uma substância cardíaca que já nenhum de nós possui, mas de que somos simultaneamente guardiões e prisioneiros. Em sua homenagem, em homenagem ao que de Funchal vive em nós, construiu-se imaginariamente esta cidade, sempre igual e sempre diferente como as buganvílias sobre as nossas ribeiras sentimentais de modulação e caudal variáveis, que renascem todos os anos dando aquela impressão de eternidade que Ferreira de Castro aqui e só aqui intuiu. Esta é uma cidade literária entre tantas outras possíveis. Porque há também uma outra cidade íntima, aquela que os olhos eternizam na penumbra e nenhuma escrita pode registar, porque os seus habitantes, melhor que ninguém, a reescrevem, vivendo-a na primeira pessoa todos os dias. Aquilo que se ama verdadeiramente permanece, nunca nos poderá ser arrancado, escreveu uma vez Blaise Cendrars. E com Rilke aprendemos que são os lugares a reconhecerem-nos, são eles a trazerem até nós a memória dos passos que já foram nossos e as pegadas dos outros que repercorremos e repetimos. São eles a trazerem água límpida à consciência. Água daquele poço profundo e insondável que é a cidade mental pertença exclusiva de cada um de nós. Onze escritores beberam dessa fonte da eterna juventude e viverão literariamente para sempre. Depois da città dolente e melancólica dos escritores oitocentistas que a demandavam à procura de um ideal que se chamava saúde (Júlio Dinis, António Nobre), depois do Funchal ridente e pitoresco de jornalistas cosmopolitas
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Prefácio
sintonizados com uma época de explosão do turismo (Hugo Rocha, Luís Teixeira, Norberto de Araújo) depois do Funchal integrado em périplos de reconhecimento por um Portugal continental, insular ou colonial (Brito Camacho, Henrique Galvão, Raul Brandão) ou como ponto de passagem nas rotas de cabotagem sentimental das ilhas (Vitorino Nemésio), depois do Funchal romanescamente recriado por Teixeira Gomes, Jaime Cortesão, Ferreira de Castro, Assis Esperança, Marmelo e Silva, Natália Correia e Agustina Bessa-Luís, faltava uma visão de conjunto, a partir de dentro, do Funchal. Todavia, repito, este Funchal de invenção, esta cidade de fantasia é consciente de que a cidade real continuará a viver para além de todas as visões literárias, alimentando-se de todas mas resistindo a reconhecer-se em qualquer uma delas, englobando-as no seu património simbólico, para as desmentir logo de seguida, porque o Funchal é não só uma cidade no meio do Oceano, é também uma cidade no meio do Tempo. Estes doze contos peregrinos no tempo contam pois a sua acção sobre a memória literária do Lugar. Um ano passado no Funchal é simultaneamente muito e pouco tempo, mas um sonho é por natureza itemporal, porque se espraia pelos confins de um território imaginário tão vasto como o universo ou tão pequeno como a gota de água em que ele por inteiro se reflecte. Agradeço a todos os onze escritores terem sonhado comigo este Funchal eterno, e habitado durante um ano a cidade literária que eles próprios inventaram. António Fournier
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12 Meses no Funchal
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Janeiro
No Tempo de Janeiro Ana Margarida Falcão Contava-se em casa de Ana Lima que o seu antepassado Augusto Teodoro fora o responsável pelo enriquecimento e ascensão social da família. Vivendo no Norte da Ilha, o próprio desconheceria as suas origens mais remotas, pois raras eram as notícias sobre o povoamento do Arquipélago da Madeira, mesmo para quem as pesquisasse nas antigas crónicas. Ignorava, pois, se descenderia de ambiciosos nobres em busca de ascensão ou de criminosos que cumpriam as suas penas mas, no seu íntimo, sempre ouvira a voz de uma crença secreta e inconfessável que lhe repetia ser ele descendente dos últimos e não dos primeiros. Em finais do séc. XVIII dedicara-se Augusto Teodoro ao cultivo da vinha e das cerejeiras pretas, cultivos estes interactivos e pouco ortodoxos pois o suco quase negro das cerejas dava mais cor ao vinho do Norte, tornando-o equiparável ao do Sul da Ilha, de modo a poder ser exportado para Tenerife e, depois, para a Ásia. Contra esta fraude nortenha se uniram, em Janeiro de 1788, dezanove negociantes de vinho da Madeira, na maioria ingleses, o que originou, a 27 de Fevereiro seguinte, um edital do Governador da Ilha com medidas rigorosas no sentido de extinguir as cerejeiras pretas e acabar de vez com a falsificação. Perante tais factos, fizera Augusto Teodoro contas e mais contas, balanços e mais balanços, até que a indecisão se transformara em clara e inabalável vontade: venderia as propriedades do Norte e mudar-se-ia com a família para o Funchal, onde compraria a nobre casa desde sempre sonhada, na qual viveria em paz o descanso que lhe restava de vida, tendo como única actividade, como sempre ambicionara, fazer os possíveis e os inpossíveis por frequentar uma sociedade que ele sabia sempre ter aberto as portas ao dinheiro. Assim fora comprado por Augusto Teodoro, no mês de Abril de 1788, o Solar dos Espinheiros, na Rua da Carreira, no Funchal, e de imediato se procedera a obras que, apesar de orquestradas pela sua mão pesada e rude, mantiveram a
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traça e os pormenores originais por graça da sua divina falta de imaginação e de saber. Apenas no jardim mandara arrancar o matagal de arbustos e as árvores que podiam viver quinhentos anos, cheios de flores delicadas, frágeis e brancas, ou de bagas vermelhas e medicinais, talvez porque ignorasse a sua íntima ligação com o nome do Solar. Segundo os cálculos de Augusto Teodoro os arranjos deveriam estar prontos em Setembro, pois planeara já passar o Natal bem instalado na cidade, mas acabaram por sofrer algum atraso devido a sucessivos contratempos que haviam surgido na adega. Uma das duas entradas para o Solar, a de serviço, porta mais simples, sem escadaria nem vitrais como a principal, dava directamente para a adega, e vários foram os acidentes ali ocorridos, contabilizáveis em frequentes ataques convulsivos e maléficos de dois mestres até aí saudáveis, ferimentos graves e quase inexplicáveis de cinco operários e, ainda, a morte súbita e misteriosa do capataz que controlava os trabalhadores. Além de tudo isto, acontecera, vezes sem conta, os operários depararem com arranjos que tinham sido dados na véspera como prontos e que surgiam desfeitos na manhã seguinte, a tal ponto que vários trabalhadores tinham recusado trabalhar na adega, dizendo-a amaldiçoada ou embruxada. Assim, só no dia 31 de Dezembro de 1788 acabara Augusto Teodoro a mudança definitiva e pudera ver entrar a esperança de liberdade do ano de 1789 festejando em família, no imenso salão de baile, nesse dia ainda sem outros frequentadores. A 26 de Agosto de 1815, quando Augusto Teodoro sentira aproximar-se o fim do seu tempo e passara já o governo dos rendimentos a seu filho primogénito, João Teodoro, assolara a Ilha, de clima habitualmente sempre ameno, um grande e quase nunca visto aluvião. As margens das ribeiras não estavam preparadas para tal portento de força da natureza e as águas, pejadas de terra, pedras, lodo e os mais diversos materiais, haviam galgado as margens e aberto caminho através de campos e cidade, invadindo ruas e casas, semeando o pânico à sua passagem. Assim acontecera na Ribeira de São João, onde a enchurrada arrastara cerca de vinte casas, desde a ponte de São Paulo, no extremo oeste da Rua da Carreira, a meia centena de metros do Solar, no qual as águas loucas ainda haviam galgado o baixo muro que sustentava o gradeamento do jardim e, mais abaixo, invadido a adega e as cozinhas, situadas ao nível da rua. Contava-se na família de Ana Lima que fora já João Teodoro quem mandara altear o muro do jardim e presidira ao reparo dos restantes estragos do aluvião, concluídos precisamente a 31 de Dezembro desse ano, e dizia-se ainda que, depois desse Janeiro, ele nunca mais voltara a ser o mesmo filho
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cumpridor e sereno. Após a morte de Augusto Teodoro, que ocorrera justamente na passagem de ano, às primeiras horas de 1816, João Teodoro deambulara demasiados dias pela casa em obstinado e ziguezagueado silêncio. Estas primeiras manifestações de desequilíbrio mental, atribuíveis ao desgosto e ao luto, ultrapassariam, lá por finais do mês de Janeiro, as raias da normalidade, e quem primeiro se deu conta disso foi a criadagem, pois João Teodoro transferira as suas deambulações silenciosas para a Rua da Carreira, a qual percorria manhã, tarde e, por vezes, mesmo noite, em passo lento, compassado e milimetricamente igual, para diante e para trás, para trás e para diante. Contra seu hábito desde que vivia no Solar, agora passara a sair e a entrar atravessando sempre a adega e as cozinhas, utilizando invariavelmente a porta de serviço e, na soleira desta, quer saísse quer entrasse, parava, perfilava-se, tirava o chapéu negro, protegia com ele o coração e fazia uma profunda vénia dirigida à segunda coluna da esquerda, a que suportava o arco central da adega. E assim continuaria, dia após dia, persistente e inofensivamente, até à sua morte, com a qual João Teodoro só se encontraria ao atingir a considerável idade de 101 anos. Apesar desta longevidade, Maria Augusta Teodoro Lima, mãe de Ana Lima, não assistira aos bizarros rituais deste estranho avô pois grande parte da família se radicara já, por casamento ou profissão, em Lisboa, e apenas em criança ela viera algumas vezes passar férias ao solar. Mas ouvira contar que, na noite da passagem de ano de 1881, vinha a família de regresso dos festejos, às primeiras horas de Janeiro de 1882, quando, depois de procurar em vão João Teodoro por todos os quartos do Solar, dera com ele em camisa de noite, morto e desfraldado, como um fantasma, abraçado ou colado – como se de uma tardia e despropositada amante se despedisse com fervor – à segunda coluna da esquerda da adega, aquela que sustentava o arco do meio, o mesmo junto ao qual fora encontrado, em 1788, o capataz que aparecera misteriosamente morto. Em Julho de 1987 Ana Augusto Lima terminou o seu curso de arquitectura em Roma. Regressada a Lisboa, entre várias hipóteses de estágio e colocação surgira-lhe uma na Ilha da Madeira. Apesar de a família se ter radicado há muito em Lisboa, Ana Lima sentiu uma atracção muito forte por aquela ilha que abrigara gerações e gerações dos seus antepassados. Tinha conhecimento de que sua mãe, Maria Augusta Lima, herdara um velho solar, o Solar dos Espinheiros, abandonado no Funchal, na Rua da Carreira, e começou a desenvolver
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dentro de si a vontade de, simultaneamente, fazer estágio e recuperar o solar, entusiasmada pelos pais, com quem debatera o assunto. Um estúpido acidente de carro deixou-a lesionada por dois meses e impediu-a de concretizar a viagem em Outubro, como planeara, mas, apesar de o estágio ter sido adiado para Janeiro, não quis deixar de passar o famoso fim de ano na cidade do Funchal. A 30 de Dezembro de 1987 encontrava-se, pois, instalada num hotel da Baixa funchalense, situado entre o Jardim Municipal e a Rua da Carreira. A 31, desceu algumas ruas até ao Cais da Cidade para se surpreender com o espectáculo de fogo de artifício, impossível de ser fixado em película fotográfica ou fílmica que seja, tal a essencialidade, para o disfrutar, de uma osmose directa entre o olhar e o cenário vivo. Ainda emocionada, Ana Lima deixou-se depois arrastar pelo movimento dos transeuntes e deambulou pelas ruas cheias de vozes, música, luz e cor. A intensidade das iluminações e o calor das gentes era tal que lhe transmitia, apesar de se encontrar sozinha, a segurança acompanhada de um passeio diurno. Às primeiras horas de Janeiro de 1988, já cansada, deu por si a completar o percurso circular da baixa, encontrando-se à entrada de uma estreita e longa rua. Na parede do prédio de esquina podia ler-se, sobre rectângulo negro, e escrito a branco, como gordas letras desenhadas a giz em quadro de aula, a designação «Rua da Carreira». Não pôde deixar de rir baixinho e, vinte minutos depois, deu consigo junto ao seu Solar dos Espinheiros, recuando para melhor contemplar a fachada de cal enegrecida pontuada por desbotados varandins trabalhados em ferro outrora verde escuro. Observou depois os dois grandes portões de madeira: um, mais simples e tosco, ao rés da rua, e outro, mais trabalhado, encimado por um vitral e situado no topo de uma escadaria de pedra. Ana Lima rodou então o olhar um pouco para a esquerda e focou-o num muro decrépito acima do qual se vislumbravam árvores enriçadas e vegetação desordenada. Sentiu uma necessidade súbita e imperiosa de lá entrar e ainda pensou voltar ao hotel, onde deixara documentação e chaves da herança de Maria Augusta Lima mas, ao desviar-se de um grupo de bem animados transeuntes, apoiou-se sem querer contra o portão secundário do solar, sentindo, ao mesmo tempo, que perdia o equilíbrio pois a velha porta cedeu como se lhe acompanhasse o corpo, num convite estranhamente silencioso, imperioso e rápido. A luz viva das iluminações de Natal da rua penetrava com moderação no espaço rectangular, muito longo, que se estendia à sua frente, apenas cortado por três arcos suportados por colunas. Devia ter sido a antiga adega e, na suave
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penumbra, adivinhavam-se-lhe os vestígios de um uso antigo, tamisados por um suave arco-íris, como se uma síntese das luzes coloridas do exterior teimasse em entrar. Ainda parada na soleira de pedra da larga porta, a vontade do corpo sem pender nem para fora nem para dentro, Ana Lima reparou com espanto que um foco avermelhado de luz se desprendia do arco-íris e iluminava a coluna esquerda que sustentava o arco do meio dos três arcos da adega. Nesse preciso momento, a imaginação fez-lhe ver, por uns segundos, a vivificação hipotética da narrativa ouvida à mãe e que descrevia o vulto de seu bisavô João Teodoro, desfraldado em camisa de noite antiga, como lençol de fantasma, já morto e ainda abraçado à coluna. Um arrepio gélido percorreu-lhe o corpo e a alma e fê-la recuar para a rua, que sabia cálida de temperatura e de gente, e dar meia volta, apressando-se em direcção ao hotel, sem se preocupar sequer em fechar a pesada e danificada porta que deveria ter sido a da serventia da adega e das cozinhas do Solar. Nas ilhas o ritmo da terra e do ar é mais lento e o saborear dos dias, gostosos ou amargos que sejam, acalma com maresia a pressa do mundo. Passara-se quase um ano sem que Ana Lima quase desse conta disso e, perto do Natal de 1988, deu por terminadas as obras de restauração imprescindíveis para que se pudesse instalar no Solar dos Espinheiros, à Rua da Carreira. Transformara em atelier a imensa adega e parte das cozinhas adjacentes, aproveitando o mais que pudera traves, vigas, madeiras, recantos, nichos, prateleiras, pipas e armários, mantendo a grande porta que outrora fora entrada de serviço como acesso destinado apenas ao atelier; reconstruíra, ao fundo, os desaparecidos e breves lances de escada, mantendo a ligação interior que conduzia a um pátio que, por sua vez, dava acesso às traseiras da casa principal e ao jardim, este ainda bastante próximo do matagal que encontrara, apesar de algumas operações de limpeza. Mas Ana gostava dele assim e mandara apenas plantar alguns espinheiros que esperava florissem de branco e dessem bagas cor de sangue, a fazer jus ao nome do Solar. Da parte principal do imóvel, com acesso pelo alto e largo portão encimado por vitral, ao cimo da escadaria exterior de pedra, Ana Lima fizera recuperar apenas o essencial à sobrevivência da casa: estuques, soalhos, rodapés, florões e frisos de gesso nas paredes, tectos e lambris, deixando, com prazer, que o sentimento de velho solar abandonado continuasse a fazer-se respirar e sentir. Decidira manter quase todos os quartos vazios, povoados apenas pelas folhas secas que, do jardim, levadas por um vento leve que ali parecia
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também viver, penetravam na casa pelas janelas agora quase sempre abertas. Praticamente só mobilara, e muito parcialmente, o imenso salão que devia ter sido destinado a festas ou bailes, desdobrando-o em quartos imaginários: no recanto mais afastado da entrada, ao fundo, dispusera um antigo roupeiro de porta com espelho, uma velha camilha madeirense com baldaquim e uma caixa de açúcar vinda da área das cozinhas; noutro recanto, mais ao centro esquerdo, um sofá de três lugares e as suas duas cadeiras de braços, forrados a meio ponto com cenas campestres em medalhões; no centro direito, uma mesa de abas encostada à parede, ladeada por duas cadeiras de assento de palhinha. Espalhara, por entre estes móveis, alguns almofadões das cores dos vitrais das bandeiras de porta da casa e comprazia-se com os grandes espaços que mediavam os núcleos de móveis e que separavam estes do hall de entrada, deixado vazio na pura exibição dos seus belíssimos materiais naturais. Coincidência ou não, Ana Lima planeara abandonar o hotel e mudar-se para o Solar no princípio de Dezembro desse ano de 1988 mas, nos últimos dias de Novembro, súbita doença de Maria Augusta Lima, que levou a intervenção cirúrgica, mesmo que não grave, fê-la deixar a Ilha e ficar depois em Lisboa a passar o Natal. Recuperada a mãe, passados os dias natalícios, Ana Lima, num súbito impulso, decidiu repetir a data e hora da sua primeira viagem, chegando pela segunda vez ao Funchal, desta vez directamente para o Solar dos Espinheiros da Rua da Carreira, no dia 30 de Dezembro. Mas a 31, apesar de já ter feito amizades na cidade, um forte impulso impeliu-a a tomar a decisão de repetir a ida solitária ao Cais da Cidade e o passeio lento pela Baixa. No regresso, percorrida quase toda a Rua da Carreira, ao passar pelo portão de serviço do Solar, Ana Lima não conseguiu evitar a paragem que um ano antes fizera e, ao transpor a entrada, quase não se surpreendeu ao ver um foco avermelhado de luz, vindo do exterior, a iluminar a coluna esquerda que sustentava o arco do meio dos três arcos da adega, fazendo-a rever, por uns largos segundos, a visão do vulto lendário de seu bisavô João Teodoro, em camisa de noite antiga, branca e desfraldada como lençol de fantasma, ainda abraçado à coluna. Um renovado e gélido arrepio voltou a percorrer-lhe o corpo e a alma, fazendo-a recuar para a rua e dar meia volta, subindo em correria a escadaria de pedra para entrar, contra seu costume, pelo portão principal. Nessa noite, às primeiras horas da madrugada de Janeiro de 1989, Ana Lima teve o primeiro de três sonhos que haviam de mudar por completo a sua visão do mundo, o seu destino na terra e a sua missão na vida.
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No primeiro sonho, ocorrido a essas primeiras horas do ano de 1989, era noite e Ana deu por si a dançar no centro de uma clareira no meio de um denso bosque; em seu redor ardia um círculo de fogueiras que deixavam entrever, parcialmente ocultos pela chama, vultos que agitavam bem alto ramos da mágica e poderosa sorveira-brava que, com as suas bagas cor de sangue, lhe faziam lembrar os espinheiros do Solar. Ana sentiu, mais do que soube, que estava algures num tempo da Irlanda, quando o seu nome significava fertilidade e abundância mas também temor. Sem que o comandasse, o seu corpo, quando rodava, ora oferecia reflexos luminosos de amor e afecto, ora projectava sombras terríveis e devoradoras. As vozes vindas do outro lado do círculo de fogueiras ressoavam no seu cérebro, repetindo vezes sem conta, até ao estonteamento e à vertigem, e sem que ela discernisse o seu significado imediato, a frase. «a vida está latente na morte que se oculta». Ana Lima acordou deitada no chão gelado do lajedo da adega, sentindo-se transformada em deusa telúrica, e logo que conseguiu erguer-se nos antebraços rastejou até o que sentia serem os seus domínios, no jardim, e deixou-se cair, imóvel, junto a um buxo de ramos de espinheiro, onde permaneceu em delírio até ao alvorecer. Três dias depois, já recuperada, racionalizou o incidente e o seu próprio comportamento, explicando-o pela forte gripe que se lhe seguira, e não pensou mais no acontecimento. Já mesmo quase esquecera o estranho caso quando, exactamente um ano depois, - e após o agora já inevitável percurso pela baixa funchalende e subsequente encontro com o antepassado na adega -, às primeiras horas de Janeiro de 1990, pouco depois de adormecer, se manifestou o segundo dos misteriosos sonhos. Ana sabia que estava de novo numa ilha, possivelmente de novo na Irlanda ou então num país nórdico, entre o dia e a noite, pois à sua volta celebravam-se as festas do Solstício de Verão, início da vitória das trevas sobre a luz, quando as árvores sagradas são guardadas por fadas. Mas em seu redor, e cada vez mais próximos, podia reconhecer variados seres mitológicos do Bem e do Mal: druidas, gigantes, profetisas, elfos e faunos, ogres e fadas aproximavam-se dela cada vez mais e uma formosa feiticeira, que parecia guiá-los e a quem chamavam Sidi, trazia pela arreata um bela égua vermelha cujas rédeas entregou a Ana, dizendo-lhe que era Lai, a égua de fogo, e que a conduziria à pedra mágica da poesia que une a vida à morte e o efémero à eternidade. Mas, pelo caminho, Ana tinha que afrouxar continuamente a cavalgada para que Lai se detivesse junto de certos arbustos que logo se cobriam de flores brancas em tudo idênticas às dos espinheiros do jardim do Solar. Quando chegaram perto de um
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imenso lago, a égua de fogo transformou-se num belo cisne branco de tamanho desmesurado que, depois de atravessar parte do lago, se elevou nos ares e conduziu Ana numa viagem vertiginosa por sobre terra e mar, durante a qual o vento lhe sussurrava sem descanso, mas desta vez docemente, a frase: «a vida está latente na morte que se oculta». Quando Ana Lima acordou tinha a certeza de que ela e a bela égua vermelha Lai, depois transformada em imenso cisne branco, se dirigiam para a redescoberta de uma ilha perdida no tempo, onde ela encontraria a pedra mágica da poesia que une a vida à morte e o efémero à eternidade. Tornou a fechar os olhos, procurando continuar o sonho, e chegou mesmo a descer até á adega e a abraçar-se à segunda coluna, onde horas antes tornara a ver o vulto do bisavô João Teodoro. Deixou depois escorregar o corpo até ao chão mas mantendo a cabeça apoiada à pedra, como se numa possível osmose com o seu antepassado residisse o desvendamento de um segredo ou a resposta à continuação do seu sonho. Mas este não havia de voltar antes da passagem do ano de 1990 para o ano de 1991. A 31 de Dezembro de 1990, Ana Lima repetiu o ritual dos anos anteriores mas quase com pressa, na ânsia de regressar ao Solar pela porta da adega. Desta vez havia de aproximar-se do vulto, em camisa de noite antiga e branca, de João Teodoro. Mas quando, às primeiras horas de Janeiro de 1991, entrou pela porta da adega não viu o vulto esperado e, em vez disso, sentiu que uma força poderosa a guiava e a fazia abraçar-se à coluna da adega. Assim ficou até deixar-se cair sobre o lajedo, vencida pelo cansaço e pela espectativa. Então adormeceu e sonhou. No seu terceiro sonho era de novo noite e Ana montava ainda o magnífico cisne branco que anteriormente fora Lai, a égua de fogo, e sobrevoava o mar em direcção a uma ilha deserta que ela logo imaginou ser o abrigo da pedra mágica da poesia que une a vida à morte e o efémero à eternidade. Mas, ao aproximar-se, viu que a ilha não era deserta e que o cisne a fazia sobrevoar uma bonita cidade encravada no mar, rodeada por um anfiteatro de montanhas pontuado de pequenas luzes de casario disperso. Ana não conseguiu deixar de se sentir decepcionada, pois sabia que numa ilha povoada não iria encontrar a sonhada pedra mágica da poesia, mas à desilusão seguiu-se a surpresa, ao verificar que o cisne pairava e descia, aproximando-se cada vez mais das ruas da cidade que, de perto, estavam cheias de luz, música, vozes e côr, até a deixar pousada frente a um muro quase em ruínas e desaparecer no ar com a rapidez de um relâmpago. Abandonada, Ana constatou, por si mesma, estar frente ao Solar dos
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Espinheiros num tempo em que Augusto Teodoro, e depois dele João Teodoro, e depois deste ela própria, Ana Teodoro Lima, o haviam por três vezes recuperado. Ana sentiu que devia entrar pela porta principal, entreaberta já num convite, e dirigir-se a um dos altos espelhos paralelos que ladeavam a entrada. Ao olhar-se na superfície espelhada, manchada pelo tempo, viu apenas reflectida a imagem de um estranho torso com cabeça de dupla face que, de perfil, lhe falava, alternadamente e com timbres de voz diversos, ora na direcção do seu ombro direito, ora na direcção do esquerdo: «Sou Janus, o deus romano dos portões e das portas, das entradas e das saídas, do pôr-do-sol e da alvorada, dos começos e dos términus, do amor e do ódio, da guerra e da paz, do passado e do futuro, da plenitude e da miséria. Sou aquele que erradamente deu nome ao mês de Janeiro. E tu és um dos meus reflexos, Ana, mulher gémea de Ani, meu irmão e deus etrusco dos céus mais altos e insondáveis. Tal como o teu antepassado descobriu, neste solar os habitantes devem assumir o poder de Ana, Ani ou ainda Aine, meu lado feminino e ambíguo que oferece a sua fertilidade e afecto mas também a sua dimensão sombria e devoradora. Todos comandamos as portas do bem e do mal, da luz e das trevas, da justiça e da injustiça; todos somos entidades simultaneamente diversas e unas e através de todos nós se manifesta a instabilidade única do momento em que a vida está latente na morte que se oculta. Representamos o mais que efémero instante, o limite entre fim e início, o encontro entre duas instâncias que se tocam num instante sem dimensão, a porta entre Dezembros e Janeiros, entre mortes e vidas. Sempre que quiseres sentir-me, desce à adega deste Solar, coloca-te na soleira da porta e vira-te de frente para a coluna esquerda que sustentava o arco do meio. Podes saudar-me e ver em mim o teu reflexo de prémio ou de castigo, mas nunca me dirijas a palavra antes do final de um tempo e o início de outro.» Ao acordar, Ana Teodoro Lima sabia o significado da frase: «a vida está latente na morte que se oculta»; sabia agora que o seu percurso de vida seria o símbolo do encontro de duas instâncias que se tocam num instante sem dimensão, num instante que representa, para além dos paradoxos da vida e do tempo, a incerteza do ser ou a incerteza que, afinal, guia, à sombra da morte, o percurso de toda e cada vida humana. Sabia que iria passar a cumprimentar o tempo, do limiar ambíguo da porta, em direcção à coluna esquerda do segundo arco da velha adega na Rua da Carreira, no Funchal, acenando com mão leve e alegre, cada vez que entrasse ou saísse do Solar dos Espinheiros, pois agora sabia qual a sua missão. A mão esquerda de Ana Lima estava pousada nas pági-
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nas de um livro aberto sobre o lençol branco, um livro que ela juraria ter deixado caído no chão, abandonado há já vários dias. Era, de um conjunto de ensaios de Borges, um texto intitulado «O Tempo» e um fio muito brilhante de luz, vindo de nenhures, sublinhava uma frase: Não poderíamos imaginar presente puro: seria nulo. O presente contém sempre uma partícula do passado e uma partícula de futuro, e parece que isso é necessário ao tempo. E Ana Teodoro Lima repetiu baixinho e acrescentou, muito lentamente, num murmúrio: «necessário ao tempo... e necessário à vida». Funchal, Janeiro de 2008
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Fevereiro
Fevereiro, 1938 Irene Lucília Andrade Tudo haveria de decidir-se em Fevereiro e Fevereiro era ela nesse mês das suas vésperas mais felizes. Ainda que houvesse um mundo enorme, cidades, montanhas e mares, águas de todas as formas, luzes de todos os brilhos, que lhe dissessem vulgaridades sobre felicidade e outras inflexões, ela, só ela, sabia que Fevereiro ia dentro de si como se o mundo se resumisse ao potencial do seu ventre. Fevereiro movia-se, circulava pela sua cabeça, envolvia-lhe o corpo, descia-lhe até aos pés e voltava a subir. Era suave e fresco sob a chuva com um sol mortiço coroando os beirais no Largo do Chafariz e as carantonhas da fonte tinham naquele dia o riso protector dos anjos como se tudo à volta declinasse alegria por vê-la passar. Entre a Catedral e os jacarandás media-se a maior avenida que alguma vez houvera, sem que fosse preciso mais espaço, nem definições para a vida, nem invenções de coisas por descobrir. A alegria ia assim dentro dela e mais nada. Ali ficava o Convento do Carmo e em frente A Benamor e a loja do João onde iria comprar um lenço. Um lenço lindo... se vissem! Para pagar mais tarde, que o comércio facilitava o crédito aos de poucos haveres, quanto mais aos parentes. Eram indescritíveis as cores e o padrão do lenço. Nunca vira um pano assim. Imaginem o íris da seda com a supremacia do amarelo canário, um turquesa claro raiado de branco como uma espuma assomando a praias jamais conhecidas, que as daqui puxam para o cinza, basalto rolado, as únicas que lhe era dado conhecer. Era um lenço de beira-mar com viagens em fundo, uma ideia que a ninguém contou e fazia parte dum futuro que ia docemente embalando no ventre. Os canários haveriam de entoar um coro frenético, empolgante e assombrosamente belo no viveiro do quintal, quando ela por ali andasse com o lenço nos ombros. Amarelo atrai amarelo e por isso os canários haveriam de cantar a beleza
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que exibia a sua cor. E Fevereiro continuava nos passos dela determinado e promissor. Era um mês de algumas chuvas acautelando reservas em Aquário, o signo do seu desejo, a arca da sua aliança, ia o Inverno no pino da metade final, que os dias cresciam e traziam às vezes uma brisa menos fria no princípio da tarde, um fiozinho subtil de Primavera e a cidade parecia-lhe o lugar mais confortável do mundo. Ainda raros automóveis circulavam, havia pouco tempo tinha sido retirado o rastro do carro americano por onde uma carruagem puxada por cavalos funcionava em trilho de calhas entre a Sé e a estação do Pombal. A cidade modernizava-se, as lojas proliferavam, a Rua do Carmo abrira ao comércio um complexo familiar que constava de chapelaria, loja de tecidos, perfumaria com barbearia anexa. A Benamor publicitava a marca de perfumes da época, a gama completa, essências, sabonetes, pó de arroz. A loja do João era a dos tecidos e acessórios de vestuário em cuja montra o lenço pontificava um toque de irresistível atracção. Esse fora um momento de supremo prazer, a hora em que decidira cobrir os ombros dessa cor de sol que resplendia, amarelo canário engastado numa orla de espuma e o mar anunciado em pequenas ondas de cor turquesa. No seu ventre a vida continuava a saltar, Fevereiro crescia dia a dia e as pequenas gotas dos beirais enfeitavam um orgulho de rainha a que só bastava o domínio natural das paisagens oferecidas aos olhos, rainha seria, não por ser herdeira de valores dinásticos, mas apenas senhora dum reinado de emoções e enleios superior a todas as riquezas. Era magnífico o efeito dos pingos de chuva nos beirais, teara de brilhantes que lhe ornamentava a fantasia e agitava dentro dela um poema de sangue e amor. As manhãs descreviam aquele mês como se não houvesse noites, que os luares eram claros, luminosos, e tudo, como disse, porque Fevereiro era ela e a sua grandiosa gravidez. Brevemente saberia que uma filha haveria de ser a permanente luz dos seus dias, a quem chamaria adorada. Uma filha a quem ofereceria a beleza do lenço posto nos ombros na hora da maior festa da sua vida. A expectativa definia-lhe essa hora como o aconchegante umbral do futuro. Depois, ao longo do tempo, era só deixar que, de Fevereiro em Fevereiro, até muito tarde, a lucidez lhe permitisse evocar sempre o mês mais feliz de todos os seus amores.
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Março
Funchal, em Março Francisco Fernandes Esta posição é confortável... Estou de cabeça para baixo, os braços cruzados, as mãos fechadas, fortemente cerradas, mesmo junto à cara. As pernas estão dobradas de tal forma que os pés se juntam às mãos. O dorso está arqueado para que esta posição seja possível. Acreditem, é mesmo confortável, embora possa não parecer. Não consigo fazer muitos movimentos com a cabeça, mas isso não me faz falta. Na verdade, o espaço por aqui já foi mais generoso. Altura houve em que até podia nadar cá dentro, neste quentinho. Agora não, fico só no aconchego, ouvindo uma batida compassada que me adormece. Não preciso fazer nada. Alguém faz tudo por mim, e fá-lo tão bem feito que nada me falta. Lá fora ouço vozes que falam entre si de coisas que não entendo, umas vezes baixinho, outras mais alto. Ainda há pouco falavam da casa, do quarto para mim, de uma pintura na parede, de datas,... Bem, não percebo nada, mas parecem preocupados com algo que deve estar quase a acontecer. Não sei porquê, mas acho que está relacionado comigo... Outras vezes acho que falam para mim, as vozes ficam doces, sinto que me tocam levemente. Cantam para mim. Ouço música. Essas vozes têm nome: mãe e pai. Ela fica horas falando comigo. Ele, menos tempo, e quando me toca é desajeitado: toca-me nas costas ou acaricia-me um pé. Ela parece saber sempre onde me encontro, adivinha sempre as minhas voltas. Tenho um pressentimento que o tal acontecimento deve estar muito perto de ocorrer. Há uma agitação diferente lá fora. Por outro lado, a comidinha aqui vai rareando, por enquanto estou bem, mas nunca se sabe... Falam de mim e falam Março.
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O espaço que me entala a cabeça, está ficando mais largo. Sinto que algo me empurra para baixo, de tempos a tempos, e com intervalos cada vez mais curtos. A batida do meu coração acelerou. Tenho fome! Não tenho espaço para me mexer. Apetece-me espreguiçar, mas não sei como. Há vozes estranhas lá fora. Outra vez aquele empurrão, como se me quisessem expulsar deste quentinho. E outro! E mais outro! Ouço a mãe. Ouço o pai. Há muito movimento lá fora, a posição da mãe mudou. Isto está ficando incómodo cá dentro, a sério! Quero sair daquiiii!!
Faço força com a cabeça, mas isto não abre. Sinto que me puxam para fora. O espaço é apertado, não consigo sair. Esforço-me. Ouço várias vozes desconhecidas. Parece que me querem ajudar a sair daqui. Já não era sem tempo! Acho que são muitos a ajudar, mas não há maneira de sair. Ouço gritar. Sinto que me puxam pela cabeça. Sem cerimónias! Calma aí que isto é frágil, ainda fico com a cabeça deformada, pá! E eles a puxar Valeu a pena mais um esforço. A cabeça já está lá fora. Agora estou preso pelos ombros. Continuam a puxarrrrr...E já está! Ui, esta luz... não consigo abrir os olhos. Tantas vozes. Estão a festejar. Metem-me um tubo na boca. Ar! Ar! Quero ar! Ouço-me gritar, berrar. Sou eu que grito assim! Estou novamente de cabeça para baixo. Atiram-me para cima da mãe. Um rapaz????, pergunta a mãe. Um rapaz!, dizem todos. Sou eu!
Estou numa casa pequena, na Rua das Árvores, tem um outro nome, eu sei, é uma data, mas prefiro “das Árvores”, são plátanos, estão lá debruçados sobre a ribeira, que ainda escorre água de uma invernia que recusa o tempo à primavera que vem aí.
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Por vezes passa um carro, massacrando o empedrado e expelindo fumos para as janelas térreas da casa, que estremece. A rua acaba um pouco mais acima, na Ponte de Pau, e depois diverge para o Caminho de D. João e o Caminho dos Saltos, que nascem em forquilha, com um fontanário no vértice da ladeira que se divide. Da casa do lado chega o odor de pão fresco, ainda antes do sol se mostrar, temperado pelas vozes dos que caminham para o mercado, para as casas de bordados, para o porto, para o comércio. De permeio, há conversas acaloradas, com restos de noite bebida. Logo pela manhã ouço o ronco do vapor do Cabo, que chega inchado de gente que vem da estranja e fica umas horas no Funchal, primeiro debruçados nas amuradas enquanto decorre a manobra de fundear, deliciando-se com a perícia dos bomboteiros que agitam toalhas bordadas, e da miudagem que mergulha pelas moedas, que vai armazenando na boca. Depois desembarcam em lanchas ronceiras e sobem a medo a escada lodosa do cais, onde são novamente assediados pelo labor artesão em forma de “bordado Madeira” e cestos de vimes. À beira do cais os carros de bois aguardam para ganhar frete em concorrência com os táxis descapotáveis, ansiando por uma volta à ilha que safe a jornada, em dia de vapor. Uns ficam logo ali, outros encaixam-se na esplanada do Sunny Bar ou na esquina do mundo para um café, antes de percorrerem a rua principal, olhos na Sé e fitos no mercado. E o frio de Março só me deixa uma breve espreitada na janela, no colo da mãe que perscruta as horas no relógio do Hinton, perpendicular à parede da fábrica, adornado de rendas de ferro verde. São seis da tarde. O pai deve estar a aparecer. Em breve chegarão à beira da fábrica os carros carregados de canas, prontos para serem engolidos pela usina que, pontualmente, às oito da manhã, quatro da tarde e meia-noite, apitará o silvo que avisa a mudança dos turnos operários. Entrarão carros cheios, sairão vazios para novas cargas e longas esperas, noite adentro, no espaço das árvores e na fronteira da ribeira. O fumo traz o cheiro dos melaços que se cozem entre o ranger das máquinas, que espremem sumo e rejeitam o bagaço seco que voltará à terra, agora como adubo de outros cultivos. Mais tarde sairão sacas de açúcar de tons pardos e ali permanecerão, mais tempo, as enormes cubas de álcool à espera de outros fins. No frio de Março, fui recebido no Funchal de 1952.
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Parábola Margarida Gonçalves Marques Poucas coisas abalavam a pequena urbe que era o Funchal de 1920. Por isso ninguém se admiraria que o anúncio de um casamento tivesse alvoroçado a cidade e acordado os populares naquela manhã de Verão pleno. Raramente alguém casava ao meio-dia na Catedral e nem sempre acontecia que a noiva fosse a filha de um Senador da República. Daí o empenho dos curiosos de marcar lugar, bem cedo, no adro e arredores para não perder pitada dos mais ínfimos pormenores que, mais tarde, dariam assunto para longas e apetitosas conversas de soalheiro. O cortejo de carros de bois, que trazia os noivos, os familiares e os convidados entre os quais, diziam os mais informados, se contavam vários ministros vindos expressamente da metrópole, hipnotizou a multidão que se apinhava nas imediações da Sé. Os boieiros apresentavam-se vestidos de lavado, com os seus fatos brancos e chapéus de palhinha, e as cortinas dos carros-trenó, apanhadas aos lados sob o toldo de oleado preto, resplandeciam de alvura anilada e permitiam entrever a elegância dos trajes femininos. Tudo se conjugava para compensar a ansiosa espera e deslumbrar a imaginação dos desocupados. A pouco e pouco, ordenadamente e sem delongas de maior, os convidados iam saindo dos carros e formavam pares, que se antecipavam no interior do templo manuelino, à chegada da noiva. E, pelo braço do pai, Beatriz apeou-se, linda como a multidão esperava, o véu de renda descido sobre o rosto em modesto recato. Descrever a beleza da noiva parece-me escusado. Beatriz era bela como o são quase sempre as raparigas de dezoito anos. Tinha vivos olhos castanhos da cor dos cabelos cacheados, que emolduravam uma face de porcelana. Mas, na opinião do velho tio Januário, os seus pés eram motivo de especial enlevo: tão pequeninos e brancos que, no seu estilo gongórico, ele os descrevia como «um susto de neve».
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Quando já casados, José Maria e Beatriz saíram da Catedral, o povo não lhes regateou as palmas, o arroz e as pétalas de rosa, gratificado por não terem sido defraudadas as suas esperanças e sinceramente desejando-lhes os melhores augúrios. Depois da cerimónia , um almoço de requintada ementa na Quinta Pavão reuniu os cerca de trezentos convidados. Ao fim da tarde, os noivos seguiram em lua-de-mel para Lisboa com ternas despedidas no cais da cidade. A viagem prolongar-se-ia por dois meses até Itália, com regresso ao Funchal directamente do porto de Génova. Estavam já instalados na ampla casa do Ribeiro Seco, que José Maria herdara de uma madrinha, quando o jovem casal teve a confirmação de que o seu primeiro filho vinha a caminho. Beatriz, no meio de inegável felicidade, apenas lamentava a distância que a separava da moradia dos pais na Rua das Mercês. Agora grávida, mais frágil na sua sensibilidade, medindo as horas que o marido passava no engenho de açúcar, apetecia-lhe estar todos os dias com a família, para seguir de perto o enxoval que a mãe preparava para a criança, com rendas e bordadinhos, cosido à mão, como era da praxe. E isto sem falar das peças tricotadas, especialidade da velha avó. Outra coisa preocupava Beatriz: precisava resolver as dúvidas que sempre a assaltavam, na sua estreia de maternidade, temente de qualquer gesto desastrado que fizesse perigar a integridade do seu menino. E um dia, já o marido saíra cedo para acudir ao desgoverno numa das máquinas do engenho, Beatriz, sentindo mais vivas as saudades dos pais e sem dar conhecimento à velha ama que a criara e fizera questão de acompanhá-la depois de casada, tomou sozinha o primeiro carro de bois que passava naquele fim de mundo e ordenou ao boieiro que rumasse à rua das Mercês. Os dois bois pequenos e mansos, de pelagem castanho-dourada, como eram os seus semelhantes ilhéus, puseram-se em marcha, fazendo tilintar os chocalhos do pescoço. O boieiro, de vez em quando, dizia: — Vem cá pr´a mim, boizinho. Vem cá. Abril esbanjava cores, aromas e trinados e, no silêncio apenas interrompido pelo ruído deslizante do carro, Beatriz inebriava-se com a generosidade da mãe Natureza. As quintas iam desfilando com seus festões de gaitinhas amarelas e com as nuances do roxo e do vermelho intenso das buganvílias que se desdobravam como colchas exóticas no cinzento dos muros. Para completar a sua euforia, ela pôde admirar, através de um portão entreaberto,
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o leque rendilhado e majestoso da cauda de um pavão branco, passeando lentamente pelas áleas de uma vivenda cor de rosa. Teria gozado plenamente aquele dia usurpado à sua forçada clausura, não fora uma pontinha de remorso a toldar-lhe a alegria da liberdade. — Precisa de muito repouso- dissera o médico da família. Só se deu conta de que algo corria mal no itinerário, quando percebeu que o boieiro seguia por ruas e travessas desconhecidas, distanciando-se a seu ver e cada vez mais do destino pretendido. O carro começou a deslizar de canto a canto, em tremendos solavancos que lhe provocavam incómodos terríveis. A certa altura, numa decisão arbitrária, o boieiro, completamente embriagado, via-o agora, parou o carro no primeiro desvão da estreita rua e, sem mais aquelas, estendeu-se na berma do empedrado e adormeceu, roncando em haustos profundos e regalados. Beatriz depressa se arrependeu da ousadia daquele passeio. Dores estranhas atormentavam-lhe os rins e a sua agonia, por se ver só e longe de qualquer alma conhecida, aumentava a cada instante. Quando, passada mais de uma hora, viu sair da porta verde de uma casa uma mulher já não muito nova mas ainda bonita, agarrou-se à ideia de pedir-lhe socorro. — Ajude-me, por favor. A outra, num breve olhar, avaliou a jovem burguesa nitidamente grávida. Tornou atrás nos mesmos passos, abriu a porta que acabara de fechar e, amparando Beatriz, levou-a para o interior. Foram dar a uma sala de equilibradas proporções, com janelas vestidas de damasco vermelho, inúmeras almofadas dispersas por tudo quanto eram cadeiras, poltronas e sofás e até sobre os tapetes que amorteciam os passos num conforto asiático. Meia dúzia de raparigas rodearam Beatriz e fizeram-na recostar-se numa «chaise-longue» de veludo acolchoado. Olharam-na com curiosidade e simpatia. Algumas eram da mesma idade que ela, bonitas como ela. Beatriz tomou o chá de tília que lhe ofereceram e, quando a viu mais calma, a sua anfitriã sugeriu-lhe que contasse o que acabava de acontecer para que pudesse ser mais eficaz o auxílio a prestar. Inteirada, a mulher temeu que a criança pudesse nascer ali, o que não conviria a ninguém, muito menos ao seu próspero negócio. Chamou então uma velha, aposentada com certeza do seu ofício, e ordenou-lhe que fosse depressa ao engenho de açúcar e trouxesse quanto antes o marido da senhora.
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José Maria não queria acreditar no que os seus ouvidos escutavam. E não sabia nem da missa a metade. A única coisa que percebeu era que Beatriz desobedecera ao médico, saíra de casa sem o prevenir e fora recolhida por desconhecidos depois da aventura do boieiro bêbado. Ao chegar à morada indicada pela velha, José Maria apeou-se do trem e não teve dificuldade em classificar a casa que dera abrigo à sua mulher. Viu Beatriz serena, rodeada de atenções, pequena rainha no meio das suas damas de honor. E mau grado o ambiente duvidoso, acalmou a sua ira e engoliu a série de admoestações que trazia engatilhadas. Fez cálculos rápidos. Eram sete da tarde. Em breve anoiteceria e os clientes começariam a chegar. Tornava-se urgente tirá-la daí. Discretamente, agradeceu o bem-fazer daquela incrível samaritana e retomou com Beatriz o trem de aluguer parado à porta. Nessa mesma noite, pôs o médico a par do acontecido. Ele examinou Beatriz e declarou não haver motivo para preocupação. Deviam ambos ficar gratos à desconhecida que proporcionara à futura mãe umas horas de relaxe físico e mental, abalada como ficara com o inusitado passeio. Dois dias depois nascia- lhes o primeiro filho. A criança viera perfeita. A mãe estava bem. As «Notas Mundanas» do Diário de Notícias local deram relevo ao bom sucesso de Beatriz. Quando a família começou a pensar no baptizado , seguido de uma festa linda como impunha a entrada de um novo cristão no seio da Igreja, o nome já tinha sido escolhido. — Victor. — Victor?- estranhou o avô. Não há entre nós, nem de um lado nem de outro ninguém com esse nome. Sabe bem, Beatriz, que é tradição na nossa família usar Alexandre, Vasco, José, Pedro ... — Mas o nosso filho será Victor, pai – reafirmou José Maria. Estivemos a consultar um livro sobre o significado dos nomes e vimos que Victor quer dizer vencedor. Será Victor. - Concorda, Beatriz? - Plenamente, pai. Ela trocou um olhar cúmplice com o marido. Os avós não poderiam saber nunca que o seu neto primeiro quase viera ao mundo num bordel e que fora graças à bondade e discernimento de uma tolerada que a criança nascera saudável e a mãe resplandecia como uma rosa de Abril. Eles também não poderiam saber jamais que a dona do bordel se chamava Victorine.
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Maio
Maio Laura Moniz Do jardim jorrava uma cascata de flores amarelinhas que Dona Maria Engrácia Nunes dos Santos gostava de olhar através da janela do seu quarto. Uma nesga de Funchal surgia-lhe assim, emoldurada às vezes por buganvílias, outras por jacarandás fecundos. Era um Maio suculento, o deste ano, e mãos cheias de miosótis prometiam-se para mais tarde, dentro da forma de coração desenhada em redor dos pés de cada uma das árvores, obedientes sentinelas daquela casa. Dona Maria Engrácia Nunes dos Santos fechou os olhos para apreciar aquele lado da existência que mais a dominava – saborear as cores e os sabores que estas sugeriam e o sorriso que estes lhe desenhavam sobre os lábios antes que se tivessem de repente endurecido num rito social. Dona Maria Engrácia Nunes dos Santos inclinou-se e estendeu a mão para a pequena sineta que tinha a seu lado. Era altura de chamar a nova empregada e saber o andamento das ordens que lhe dera. Não que esperasse duma servente algo mais do que dizer se acabara ou não as várias voltas que lhe atribuíra. Gostava de ver nos olhos das criadas de campo o tom de subserviência, o sorriso de plástico de ocasião que punham para as patroas e para os patrões, o revirar de insolente humildade das suas mãos por detrás das costas, ou, nas mais jovenzitas, o agarrar desesperado das saias rodadas e dos aventais, para não caírem de vergonha e medo. Dona Maria Engrácia tocou a sineta e esperou. Veva apareceu percorrendo a alcatifa sem rumor. Era um dia solarengo e a sua figura alta não deixava sombra sobre as estantes, nem sobre o desbotado papel de parede, nem sobre o piano velho, nem sobre o tom mais claro das jarras e jarrinhas e bibelots de porcelana que Dona Maria Engrácia coleccionara durante toda a vida. Dona Maria Engrácia antegozava já a sua primeira reprimenda à recém chegada. Um só deslize, um só esquecimento, uma só nervura encarquilhada do
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tempo que lhe destinara enchê-la-ia de prazer. Mas Veva respondera com precisão e desenvoltura e Dona Maria Engrácia perdera, pela primeira vez na vida, uma batalha contra uma serviçal. Eram três da tarde. Dona Maria Engrácia tinha descido ao Funchal. Chamara o taxista que a deixara ao pé do Golden Gate. Calcorreara a Avenida Arriaga, debruçara o olhar para o topo dos edifícios citadinos, como se visitasse a cidade pela primeira vez, enveredara a seguir, sem pensar, pelos habituais trilhos de memória e chegara à igreja de São Pedro onde fizera as suas habituais orações. À saída tivera os habituais dedos de conversa com as senhoras suas amigas. Tecera os habituais elogios ao esplêndido mês de Maria de sua veneração e enviara as suas costumeiras invectivas à juventude cansada que nada devia ao tempo que ela vivera. Era conhecida pela sua devoção e obras de caridade e participação no círculo de beneficência da cidade. Dona Maria Engrácia fora a esposa modelo, a jovem perfeita, a irmã adorada, a viúva infeliz e fiel, a mãe de honestos filhos e era agora a senhora elegante e fina, de entre as senhoras finas e elegantes do Funchal. Dona Maria Engrácia, com pele rosada, lábios delgados, cabelo branco, olhos azuis de anjo, só lhe faltavam as asas para chegar ao céu. E todos achavam que no céu havia já um lugar reservado, tão incorruptível e inquebrável parecia cada fibra do seu carácter e da sua paciente e nobre vida de funchalense. Dona Maria Engrácia dirigia-se para casa agora e o sol de Maio brilhara durante todo dia. Apetecia-lhe descansar sob os ramos das árvores de casa bebendo um sumo de maracujá, sonhando com um verão de praia no Porto Santo. Beberia sumos e comeria saladas e contaria velhas histórias aos netos e seria o paraíso – falar-lhes-ia da sua juventude transcorrida impecavelmente, do seu casamento com o falecido marido, desfiaria o seu infindável leque de memórias perfeitas e felizes onde não havia lugar para fome, nem miséria, nem guerras esquecidas, nem labutas incómodas, nem sufocos inúteis e vãos de plebe. Era Maio e num dia assim Deus pavoneava-se despudoradamente pela ilha. Dona Maria Engrácia, sentada no táxi, agradecia à única divindade que conhecia a vida admirável que tivera. Agora chegaria a casa, entraria, depositaria a mala sobre o divã, retiraria o lenço do pescoço, calçaria as sandálias amarelas, envergaria o seu vestido mais leve, pois era Verão, um verão prematuro, diria à criada que lhe preparasse o lanche, transportaria o seu corpo de 79 anos para o jardim, estender-se-ia sobre o cadeirão, abriria um dos seus livros preferidos, respiraria o ar da tarde profunda e sacramente, e diria sou feliz. Sou perfeita.
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Tenho uma vida imaculada e santa. A mim ninguém nunca apontará com o dedo. E iria sentir a sua pele de pêssego acariciada pelo ar quente da tarde, as suas faces encherem-se de suor delicado, o perfume channel entrar-lhe pelas narinas lembrando-lhe a sua ociosa e próspera realidade de todos os anos. Dona Maria Engrácia abriu o portão de ferro da sua casa na parte alta da Rochinha. Através deste o jardim bombardeava os visitantes de perfumes floridos e irisados. Dona Maria Engrácia atravessou o seu Éden escondido, acariciada por verdes tons e garridas cores inesperadas. A entrada principal da sua casa era talvez uma das mais bonitas do Funchal, uma espécie de jardim secreto e fantástico que poucos conheciam. Nada ao acaso. Nem os ramos que se agitavam contrariavam o calendário quotidiano da sua existência. Nem as pedrinhas do jardim tinham sido dispostas de forma a irritá-la ou contrariá-la. Havia um coração para cada árvore desenhado no chão, havia uma mão cheia de flores para cada estação, para que nada ali faltasse. A parte mais importante da casa, dizia ela, era ou o jardim ou então a cozinha. O coração de toda a existência estava subordinado à decoração desses espaços, os momentos de lassidão e desespero curavam-se no sono, o despertar e a acção deviam-se unicamente ao que os olhos viam e a boca saboreava. Como uma religião. Como a construção de uma catedral. A catedral da sua vida assentava sobre esses eternos pilares de energia. Cor e sabor. Olhar e boca. Jardim e cozinha. Dona Maria Engrácia abriu a porta que dividia a sua sombra entre a cozinha e o jardim. Qual não foi pois o seu espanto quando, chegando à sala e olhando através da janela, viu Veva atarefada sobre o jardim, banhando-o com a sua sombra, invadindo-o com a sua existência. Dona Maria Engrácia nesse momento sentiu um baque feroz no coração, uma vertigem que a dividiu em duas. Uma delas não recordou. O que esquecera, esquecido estava e ela não recordou. Sentiu apenas um calafrio inusitado e regressou ao quarto. Eram cinco da tarde quando ouviu uma sirene e nesse momento a outra parte de si achou que estava a acordar. Ainda não pusera o casaco de lã que retirara do roupeiro. Tivera um grande esquecimento. Vestiu o casaco lentamente. Os seus braços começavam a cansar-se de repente. Deviam ser cinco da tarde quando ouviu a sirene. Depois ficou à espera. A campainha do portão tardava em tocar. A sirene devia ser para ela. Dona Maria Engrácia intuíra que a campainha e a sirene, não de ambulância, deviam ser para ela. Como se tivesse estado à espera ao longo desses anos, uma longa viagem de comboio perante paisagens deslumbrantes, e só o bater ligeiro das asas da viagem sobre a sua cabeça. E durante a longa viagem ela ainda não recordara nada. A recordação era importante mas ela não se lem-
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brara. Ainda. E o sol continuava a brilhar por cima da sua cabeça e a sua vida por mais umas horas continuaria a fazer sentido e o bater do seu coração continuaria em lenta cadência a acompanhar o dlinguedlongue do relógio de parede, imperturbável perante as formas desregradas da existência, regular como o voltejar de borboleta da Lua em volta da Terra. Dona Maria Engrácia continuaria à espera dentro de casa, olhando os movimentos no jardim, a calamidade do fim do dia abatendo-se com o sol dourado, depois vermelho, que se esvaía no horizonte. Veva tinha uma única fotografia do tio mais novo. Veva era pequenina quando o tio a levantara no ar com os seus braços fortes e lhe tentara dizer – isto era o que lhe contava a sua mãe – que tinha trazido do Funchal uma botas azuis, novinhas, de verniz, para ela. Veva era pequenina mas, de cada vez que o tio aparecia lá em casa, deixava-se encantar com o som da voz do tio Carlos que trabalhava no Funchal e por isso raramente conseguia ir a Machico. Veva era pequenina e eram demasiado pobres para procurarem o tio Carlos quando este tardou meses em aparecer, e depois anos. Veva cresceu a pensar nas botas azuis que o tio lhe trouxera e na única fotografia que este deixara de si, pegando nela ao colo, com aquele ar pasmado que ele tinha. O tio Carlos era um gigante peludo que pouco falava e que, quando ela chorava, a levava ao colo e lhe cantava cantigas de embalar que mais ninguém em Machico conhecia. O tio Carlos cheirava à erva dos jardins do Funchal e tinha mãos calejadas, rosto escuro, tostado, o mais humilde do mundo. Tinha um colar, um fio de prata com um pendente em marfim, o seu único tesouro. Veva lembrava-se da máscara esculpida, um dos olhos perfurados no qual ela enfiava raminhos de erva enquanto o tio cantava e ela deixava de chorar. A mãe de Veva dissera-lhe que o tio um dia voltaria, fora ao Funchal comprar mais umas botas e andava muito ocupado. Veva sentava-se muitas vezes na beira da estrada, com pés descalços, esperando o tio com as botas novas vindas do Funchal e só chegando à adolescência é que percebera que às vezes há viagens sem regresso e talvez a viagem do tio tivesse sido uma dessas. Em Abril de 2007, com a mãe adoentada que já não conseguia bordar à noite, Veva decidira procurar um trabalho para ajudar a pagar as contas. Vira um anúncio no Diário de Notícias do Funchal. Procuravam uma empregada para uma casa particular, ofereciam cama e comida. E Veva lá fora para uma entrevista e tinha sido aceite. Começara a trabalhar no dia 9 de Maio. Conhecera o filho da Senhora Dona Maria Engrácia e habituada que estava a tarefas domésticas e
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todo o tipo de lida caseira não lhe parecera nada de impraticável. Tinham combinado que começava na segunda semana de Maio, que se apresentaria à nova patroa pela manhã. Veva contara à mãe que iria servir numa nova casa, na Rochinha, e a mãe dissera-lhe sem fazer muito caso ah sim pequena... teu tio trabalhava na Rochinha antes de mudar de trabalho. Veva não pensava no tio Carlos quando começou a limpar o jardim. Aquela zona parecera-lhe descurada, pouco limpa, algumas folhas caídas, um pedaço de gesso que despontava no meio da erva, talvez a falta de jardineiro permanente e a insistência da senhora em tratar sozinha das plantas e do jardim. Veva achou que podia ajudar, afinal tinha acabado todas as voltas que tinha para fazer e ainda lhe sobrava espaço nesse dia, dois dias de trabalho não lhe tinham parecido nada extenuantes e pela tardinha do dia seguinte tinha telefonado à vizinha para poder falar com a mãe e contar como era a nova patroa e o novo trabalho e que até tinha tempo para limpar o jardim. A mãe dissera-lhe que em Machico o tempo não estava mau mas que uma espécie de nevoeiro estava a entrar pelo mar adentro. Não se lembrava de outro dia assim na sua vida. Falaram de muitas coisas, de galinhas, de bordados, da telenovela preferida, e depois Veva voltou para casa. A senhora Dona Engrácia esperava o jantar e que lhe preparasse o banho e não a iria deixar sair mais tarde para telefonar. Veva retirara as folhas soltas de todo o jardim, mondara o terreiro, varrera, podara, limpara aqui e ali, por puro prazer. Sentia a brisa fresca que vinha do mar, o cheiro húmido de Maio. Olhando a linha do horizonte vira as nuvens baixas que iam cobrindo a cidade, o sol que brilhava por cima encontrava um cobertor espesso de vapor. Quando puxou o pedaço de gesso que despontava no meio das flores fê-lo sem pensar. Puxou, num gesto normal e distraído, até encontrar inesperada resistência. A conclusão fugaz do momento foi: um ramo, afinal não é gesso. E foi puxando até sentir nos dedos uma forma perceptível, sólida. Só então olhou. Só então viu o colar. Ficou-se a olhar esse momento mudo. Revirou o marfim nas mãos sujas, tentou enfiar um dedo na agora mínima entrada da máscara. Começou a vir-lhe de longe a verdade. O tio chegando a casa com as botas novas na cidade. Nesse instante Dona Maria Engrácia chegava transportando o ilusório sol do seu último dia de amnésia. Depois chegara-se à janela. Dona Maria Engrácia viu. Viu tudo. Veva com mãos nervosas que afastava a terra e as plantas
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daquele pedaço de jardim e que descobria, escavando a terra húmida, o que um dia fora um pescoço, um crânio, um tórax. Veva que enfiada no tórax encontrava aquela faca que há anos desaparecera do faqueiro preferido de Dona Engrácia. Veva que, em câmara lenta, se levantava e afastava para olhar melhor, para perceber melhor, com a mão direita fechando o pedaço de marfim, e depois olhava na sua direcção. Dona Engrácia cujo olhar se fixara sobre a faca vira Veva, a única batalha que não ganhara, caminhar lentamente para o portão. Veva que saía. Dona Engrácia que dizia está despedida e que, duas agora, uma delas esquecida, voltara ao quarto para ir buscar um casaco. Para onde iria certamente faria frio.
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June Maria Rosa Basílio gosto de ir a casa da avó a minha mãe deixa-me ir sozinha é perto desço a minha rua passo no largo entro no beco que cheira a enxofre e saio no torreão junto aos dois plátanos enormes há uma fonte pública com duas bicas atravesso para o outro lado desço as escadas são quinze degraus subo uma pequena rampa e chego ao alpendre cheio de vasos de fetos e avencas e sansevérias e jarros no meio está uma mesa com uma toalha posta em losango com um vaso de avencas à volta cadeiras de ripas a porta está sempre encostada a minha avó é surda pode não ouvir bater subo ao primeiro andar no cimo da escada há um relógio de pé alto que dá as horas vou ao quarto de jantar e ponho-me à janela a ver correr a ribeira que ali defronte soa melhor porque bate e faz remoinho numas pedras um pouco mais abaixo as buganvílias estendem-se de um ao outro lado da ribeira gosto dos móveis de carvalho claro estilo inglês e da cómoda miniatura que é da prima irene que vive nos açores e a deixou ali quando vinha do brasil cobiço-a mas a avó ignora o meu desejo a irene tornou a passar para o brasil mas não levou a cómoda que não sei que fim levou gosto de estar à janela da minha casa estamos no são joão a bandeira passou à nossa porta seguram-na uns miúdos atrás estão os mordomos e mais atrás ainda os músicos a bandeira é linda no fundo está desenhada a figura do santo de túnica curta e sandálias e com o cordeiro às costas a minha mãe deu-me uma moeda preta que joguei na ban-
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deira quando passava o meu avô às vezes é mordomo porque tem uma loja na rua da carreira que pertence à freguesia do santo a minha mãe gosta de ir ao arraial de são joão eu também gosto vamos a pé porque é perto da nossa casa a minha mãe gosta de chegar antes das dez da noite porque depois aparecem muitos romeiros e não conseguimos entrar na capela que é pequena e fica logo a tope a capela está cheia de cravos brancos e vermelhos e a rua da ribeira está enfeitada com ramos de murta gosto dos seus pequenos frutos que me lembram tabaibos estrancinho-os com os dedos para sentir-lhes o cheiro o ar rescende a carne de vinhadalhos e o meu pai escolhe a tasca onde vamos cear quase sempre a minha mãe discorda esperamos que haja uma mesa livre e sentamo-nos eu tomo sempre uma laranjada os meus pais bebem sangria de vinho doce e comem iscas de carne de porco a minha mãe diz que em casa a carne nunca sabe assim tão bem eu como uma isca de bife de atum com molho depois de comer ficamos um pouco a escutar a música a banda de que mais gostamos é a dos artistas outras vezes vamos cear a casa da avó atum salprezado e batatas cozidas com a pele pimpinelas e feijão cozidos com a casca gosto quando ficam com sal a mais às vezes a avó traz para a mesa algumas cebolas de escabeche que sobraram do natal eu e os meus primos comemos na cozinha na mesa comprida onde há sempre café na cafeteira coberta com um tapa bule e pão grande no cesto de verga a noite de são joão é sempre mágica ouvimos contar histórias de encantos e feiticeiras o fernão aproveita para nos meter medo quando estamos sentadas no banco de correr da cozinha num dos pés ele põe uma corda fininha que puxa e o banco começa a andar no centro da mesa está um candeeiro de petróleo que projecta sombras disformes são feiticeiras diz o fernão e a rita e a teresa dão gritinhos de medo e a tia filó vem à cozinha ver que gritos são aqueles a tia filó namora há muitos anos com o vieira na noite de são joão ela quer sempre saber se vai casar com ele ou não deita azeite num copo com água e
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procura adivinhar o significado da figura que se forma outras vezes faz a sorte com um ovo acabou solteira e com a mania de ir ver casamentos em são pedro e na sé as primas e eu prendemos uma chave num fio de cabelo que suspendemos sobre um copo a chave oscila bate no rebordo as vezes que bater dão a letra do nome do homem com quem casaremos mas o encanto maior é ir ver a sombra no mar vamos até à parte redonda do fim do cais ali estou eu projectada com os meus pais sou tão pequena estou de mão dada com a minha mãe que bom para o ano estaremos todos vivos são só um quarto de quilo mas são tão bonitos e cheiram tão bem a minha mãe encarregou-me de partir a fruta para a salada é quinta feira de corpo de deus a família virá para ver passar a procissão a minha mãe fez bolo de nata tirada do leite durante duas semanas há canja e sandes de galinha e de carne assada a salada de fruta não pode faltar há anos em que o ananás vem dos açores mandado pelo tio jorge gosto do cheiro que o ananás deixa nas mãos corto a laranja de umbigo que também veio dos açores já deitei a papaia tem uma polpa macia é a vez de cortar os morangos gosto de ver-lhes o coração é um fruto lindo os que parto cheiram bem pena serem só um quarto de quilo neste ano saio na procissão levo a farda branca do colégio quando passei à minha porta estavam todos à janela a ana sentada em cima de uma almofada parecia uma boneca a minha avó está contente porque a neta saiu na procissão as ruas por onde passámos também se enfeitavam com murta levei um raminho para casa cheguei já era alpardinho estavam a beber os licores feitos pelo meu pai e a minha mãe falava na verbena de são pedro que é o seu santo predilecto diz sempre com orgulho que nasceu na freguesia de são pedro que é onde moramos agora
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o colégio fica ali ao lado este é o mês do sagrado coração de jesus interrompemos as aulas ao meio dia quando toca a sineta vamos para a capela rezar a ladainha estamos na aula de inglês a dona gabriela a nossa elegante professora pergunta-nos qual o mês do ano em que os dias são maiores entreolhamo-nos não sabemos ela junta os lábios grossos e pintados de vermelho une-os em forma de beijo e diz “june” 15 de Novembro de 2007
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Julho
Ruas de Julho Vítor Sousa Já muito tempo se passou desde que me semearam nos tempos desta cidade. Séculos. Nasci e penei longe, na Mouraria. Pelo bulício daquelas ruas, rumorejavam apelos de novos Mundos, e era de Belém, diziam, que partiam naus e caravelas para os lugares impossíveis da quimera. Não compreendia a ânsia daqueles que queriam dilatar o Mundo, quando a pequenez do meu já era de uma infinda dor. Um dia, bêbado, arrastei os pés descalços pelos solos torcionários, mas apagou-se-me a consciência durante a viagem. Não me lembro de chegar a Belém, mas lembro-me de que nunca mais regressei ao bairro onde gostava de agonizar, para viver a morte onde nasci. Muitos anos depois, quando o sonho de morrer na Mouraria se desfazia no degredo da segunda descoberta, descobri-me, quase anónimo, nas letras de um poeta. Nem velho era, mas converteram-me no “velho do Restelo”. Até compreendo que, com o bafo do vinho rasca que deveria inquinar o ar quando vomitava agoiros, aquele poeta semi-cego me visse velho. Perdoo-o. Mas nunca lhe perdoei ter sido, por ele, roubado ao berço, impondo-me o Restelo. Redimiu-se, porém, com uma nova mentira, atribuindo-me um “aspecto venerando” que o fingimento poético exigia. Eu detestava o Restelo, porque de lá via as águas, e aquela opressora linha do horizonte. Na minha alienação de bêbado, o sufoco aumentava perto das águas, porque sentia o fio do horizonte aferroar-se à garganta, esmagando a imensidão do meu nada. Nunca tinha confessado o medo que o mar e o rio me infundiam. Não podia fazê-lo, aliás, porque não tinha amigos. O meu verbo era mudo lá fora. Só tinha voz dentro de mim. Mas, naquela manhã de Julho que se eclipsou nas brumas da memória, eternizando-se em letras de um fulgor alheio, o meu medo infiltrou-se, clandestino, na armada que zarpava, antecipando monstros nebulosos nas águas plácidas do Tejo. Deverão ter tentado
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calar-me, não sei. Mas sei que me puniram, detendo-me num calabouço. Depois, lançaram-me na turbulência dos meus temores, e exilaram-me num local de onde não podia fugir deles. Era uma ilha. Ilha da Madeira, como a baptizaram. Cheguei à ilha numa tarde fúlgida de Verão. Se certas estavam as contas do meu desespero, corria o mês de Julho. Depois de tanto tempo, sei que, naquela tarde, nasceu o triste fado da minha eternidade, noutros. Quando lá cheguei, desembarquei sem mais nada para além do ferrete do ostracismo. Ao meu lado, muitos abandonavam a caravela curvados pelo peso do estigma, mas só eu sangrei a virgindade daquela terra. Caí e amparei a minha implosão com as mãos. Fitei-as, e no caudal de sangue desfilavam as almas feridas das esquinas. Comecei, desde logo, a trabalhar a terra virgem, desflorando-a com as minhas mãos de tantos chãos. Os homens trabalhavam sem tréguas, porque se avolumava a crença na elevação daquela vila a cidade, por graça régia. Roubávamos à terra o ar selvagem e puro, vestindo-a com as cores da civilização. E a civilização não se fazia sem a cruz inquisidora. Por ordem do Rei, grande parte dos recursos foi canalizada para a construção de uma Sé opulenta, perto do mar. O Rei, de filiação divina, queria que a Sua omnipresença fosse perceptível logo à chegada, e por isso os homens aproximaram a Cruz de Cristo dos céus. Por insistência minha, trabalhei nos pormenores finais da Cruz. Queria, lá em cima, sentir-me mais perto de um céu em que não acreditava, e de uma divindade que me abandonara. Nos escassos minutos de descanso, enquanto os companheiros de degredo regressavam ao solo, eu levitava sobre aquele mar de funcho, e sussurrava ânsias e segredos à liberdade que voava. Ainda hoje, séculos depois, as minhas ânsias de liberdade elevam-se quando uma gaivota pousa no cimo de uma cruz, e os meus segredos viajam nos trinados crípticos que ela oferece ao vento. Desde a minha chegada à ilha, percebi que, para me cumprir como implosão, não podia coabitar, sempre, com o chão. Só cai quem se eleva, e eu, naquela condição rastejante, nem queda conseguia ser. Quis ser, então, a altura, pelo que solicitei a minha inclusão nos trabalhos da torre sineira. De manhã, escalava os andaimes, já com o escasso farnel que me garantia o dia. Trabalhava, comia e repousava lá em cima, na minha miséria alta. Por essas alturas, a solidão era descontínua, já que mantinha algum contacto com um navegador proscrito, acusado de incitar uma rebelião de escravos, durante a viagem para a ilha. Não o abordei, porque nunca abordava ninguém. Mas ele reconheceu-me. Disse-me que integrava a armada que partiu de Belém, na manhã esque-
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cida da minha eternidade. O seu discurso jorrava, candente, mas mutilei-o porque só uma curiosidade me satisfazia, e nenhum mundo novo me interessava. Então, soube que o fio do horizonte era ilusório, como um adiamento constante. Recebi a novidade com um suspiro indefinido, abafado por um escarcéu festeiro. A graça régia havia chegado, finalmente. Eu não sabia viver sem os meus medos. A comemoração da elevação a cidade foi longa e ruidosa, como só as festas religiosas conseguem ser. No templo, um aglomerado indefinido agradecia a Deus e ao Rei o Reinício. Nesse dia, um novo pedido fez-me sineiro. Vi e ouvi tudo, através de uma frincha no telhado. Depois de o Corpo de Cristo ser acolhido por saciados e famintos, era a hora de ressoarem os sinos. Irromperam badaladas estranhas, guturais, num som em gradual definhamento. Nas faces, os trejeitos dubitativos duraram pouco. Todos sabiam por quem dobravam os sinos, mas ninguém soube quem com eles se dobrava. Com a corda apertada ao pescoço, desfiz-me naquelas badaladas secas, e vivi a minha morte numa dor sem horizonte. Nem o meu adeus pude escolher. Se fosse poeta, reinventava-me só para poder morrer num alívio. Mas todas as cidades precisam de uma alma escura, pelo que a Cidade do Funchal não podia nascer amputada. Votaram-me a um novo degredo, desta vez fragmentado pelas esquinas promíscuas. Ao longo dos séculos, quase tudo mudou nesta cidade que vi nascer, e não me deixa morrer. Os tempos deram novos matizes ao sangue e sabores renovados à dor antiga. Angústias sem rosto petrificaram-se em calçadas museológicas, e anciãos falam de ruelas onde já não podem morrer. Ruelas onde já ninguém pode morrer, menos os loucos, que também me herdaram. Todos os anos, eles descem até ao centro da cidade, num ritual apócrifo de consagração aos guardiães ocultos da cidade. Julho. “Julho é o mês do nosso orgulho”, vociferam. Quando alguém os aborda, alegando que “Ninguém vos percebe”, riem-se com o despudor de sãos bêbados, e respondem que “Ninguém não existe”. Em Julho, principalmente em Julho, a alma velada do Funchal exibe-se, com todo o mórbido esplendor da fidelidade à dor. Desde os adros das igrejas, os homens das esquinas, em silêncio, assistem ao tropel de destinos cruzados. Asseguram a identidade da cidade quando os nativos tiram férias dela, e estrangeiros as invadem. Alguns erram pela cidade, num silêncio soturno e curvado. Por vezes, quando vêem um louco a gritar o absurdo calado, desviam-se ou escondem-se, porque sabem que a cidade só lhes reserva as esqui-
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nas se respeitarem o pacto do silêncio. De outro modo, desfazer-se-iam na cal asséptica que consome a loucura. Muitos loucos, quando compreendem, finalmente, o apelo de silêncio da cidade, calam-se e abrigam-se em esquinas renovadas. Mudos, vivem durante todo o ano a lealdade desprezada, mas não lamentam a sua sorte. Assumem o legado da alma obscura, e convertem-se em escudeiros lúcidos de uma cidade em trânsito imóvel. Uma cidade de Ninguém. A cidade deles. Quando os homens abandonam as esquinas, andam com a palma das mãos viradas para o alto, e fitam-nas com uma intensidade hipnótica. Têm nas mãos todas as ruas do Funchal, em plantas sobrepostas desenhadas a sangue por gerações de quedas. Os mais velhos, que herdaram linhas traçadas por poeira e pedras, ainda hoje, cansados, procuram novas ruas para cair e dormir. Durante o dia, todos jazem nos adros das igrejas, ou nas escadas de uma capela, movidos por impulsos que não controlam, nem compreendem. Quase sempre, no alto, uma gaivota sobranceira acompanha-os no silêncio, perscrutando a cidade. Ambos partem quando repicam os sinos tumulares de mais um dia. Nessas badaladas, eu canto os lamentos seculares daquelas almas que a cidade ignora. Alguns homens não regressam às esquinas, no crepúsculo, e caminham por camadas extintas da cidade, perdidos num tempo paralelo. Quando desaparecem, diz-se que foram morrer em ruas que já não existem. Nas ruas de Julho, que só nós recordamos, memórias de uma cidade de Ninguém.
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Agosto
Agosto Nelson Veríssimo Agosto só motiva quem muda de terra. Voltar à ilha, ficar pelo Funchal com um trabalho da Faculdade para fazer, destinado a uma cadeira irremediavelmente remetida para a segunda época de exames, arrasava o mês de supostas férias, ora soalheiro ora sombrio. Os meus amigos estavam no Porto Santo ou nas Canárias. O bar do Teatro, para mim, estava mesmo vazio. Andava com aquele caderno de notas, aconselhado no curso, à procura da história que não aparecia. Se a história recomendada fosse de livre escolha, estaria safo. Havia mulheres despertas para amores secretos que nem a pura ficção suplantaria. Mas o tema proposto não se compadecia com encontros estivais. O professor solicitara episódio insólito da emigração madeirense. Faltava-me paciência para procurar velhos emigrantes e descobrir aventuras singulares em arraiais de Verão, por essa ilha de festas em continuados fins-de-semana. Havia uma jovem de cabelos negros que falava entusiasticamente das festas em São Vicente, numa dessas tardes de café. Não conseguia entender aquele seu arrebatamento, e ela desafiava-me a lá ir. Talvez por ser mais velho e estar pouco habituado a essas festas que agora atraíam a juventude para os velhos arraiais. Pormenorizadamente, ela descrevia-me, com particular afecto, a discoteca ao ar livre e as muitas barraquinhas. Vinha-me, porém, à memória imagem diversa. Era a banda de música no coreto, brincos e despiques esganiçados, a procissão, a espetada nos braseiros e muitas pessoas que, apinhadas, subiam e desciam ruas estreitas, umas alegres, outras a cumprir o ritual. A moça de cabelos de azeviche não parava de falar da festa dos Lameiros e da animação que por lá costumava existir. Eu necessitava de uma história, uma boa história, relacionada com a emigração madeirense, e que me poderia render uma nota elevada na disciplina final da licenciatura em Jornalismo. O Funchal parecia esgotado. Pelo dia, contava o bronzear. As noites tinham pouco
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interesse. Uma monotonia. Nem a música conseguia arrancar das cadeiras imperturbáveis bebedores. Havia casais de turistas mais folgazões, umas moças estrangeiras interessantes e as habituais da terra nas esplanadas e bares. São Vicente pareceu-me hipótese interessante. Pelo menos, ficaria a saber o que tanto entusiasmava aquelas meninas, com casa arrendada para o fim-de-semana glorioso nos Lameiros. Com automóvel emprestado, lá me decidi a conhecer o arraial predilecto da juventude. Nada de especial, em princípio, pude constatar. Boa música. Muita cerveja. Grande movimento. Diversão com muitos copos, e pouco mais. De modo que decidi espreitar as mercearias e bares das redondezas. Gente mais velha. Aqui poderia estar a chave. O segredo era ouvir. Descobrir os embarcados, acercar-me deles e desencantar a cobiçada história. Havia conversas exaltadas sobre a Venezuela, sem qualquer proveito. Assaltos a supermercados e fazendas, sequestros e pouco mais. Sem pronúncia castelhana, um homem já idoso, de vez em quando, lembrava que, na África do Sul, tudo era diferente. E nada mais adiantava. Fixei-me nos seus gestos e palavras. Parecia esconder qualquer coisa. O chapéu de palhinha não lhe cobria só a cabeça. Por muito que lhe perguntassem as razões da diferença, ele agarrava-se ao copo e sorvia largo gole de cerveja, sem deixar escapar qualquer explicação. Eu também bebia cerveja no canto do balcão, indiferente às conversas do grupo que me rodeava. A jovem de cabelos negros bem se esforçava por me desviar daquele posto de observação, mas, dizia-lhe baixinho, que me parecia divisar ali a ponta de uma boa história, o que ainda mais a aborrecia. Fora para Jornalismo por gosto, apesar de não receber apoio consensual de familiares e amigos mais próximos. A média do 12.º ano permitia-me escolher outro curso. Prevaleceu, todavia, a primeira opção e, já quase no final da licenciatura, podia afirmar que fora correcta. Não estava, porém, habituado a trabalhar em Agosto. Aquela malfadada disciplina a isso obrigava. Julgo que o objectivo era incutir nos futuros jornalistas a ideia de que em qualquer mês se poderia fazer uma reportagem, ou, melhor, de que haveria que inventar notícias para um mês de agenda política menor. O homem, que sempre lembrava as diferenças da África do Sul, apercebeu-se da minha insistente atenção às suas enigmáticas frases soltas. De repente, deixou o grupo e dirigiu-se para o larguinho em frente da mercearia. Aproveitei o momento e acerquei-me. Desconfiado, perguntou-me se era da polícia. Expliquei-lhe que estava ali por causa das amigas que me acompanhavam. Elas tinham-me convencido a conhecer a festa dos Lameiros. Verdadeiramente,
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o que pretendia era uma boa história sobre emigrantes, por causa do curso que frequentava, e aproveitava o tempo para ver se conseguia ouvir alguma coisa interessante. Apesar destas explicações, o homem não parava de me fazer perguntas, sendo a última sobre a minha intenção ou não de publicar essa história em algum jornal. “Não. Ainda não sou jornalista. É só um trabalho para o curso e com nomes fictícios.” Voltou a entrar na mercearia e pediu mais uma cerveja, colocando-se no mesmo lugar. Defronte, imitei-o na bebida. Passado algum tempo, saí convencido de que ali nada conseguiria obter. E deambulei pelo espaço da festa até às sete, hora em que habitualmente terminava. Numa das minhas fugas ao grupo, cansado com a estridência da música, encontrei o homem das diferenças, e perguntei-lhe se ia ou não explicar-me as suas razões. Confessou, então, que não era dali. Nascera e vivia também no Funchal. Só estava nos Lameiros pelos amigos e por uma mulher, já bem velha, que nos últimos anos habitava naquele sítio, na companhia de uma filha viúva. Naquela maior aproximação, convidei-o para um encontro tranquilo no Funchal. Ele concordou: na terça-feira seguinte no bar junto à porta principal do mercado, por volta das 10 h. Esperei-o pontualmente no dia aprazado. Quando chegou, já eu tomava um café na esplanada. Sentou-se e pediu também um café com leite. Foi difícil o retomar da conversa. O ambiente também não ajudava. Pessoas que entravam e saíam do mercado. O trânsito nas ruas circundantes. Turistas que fotografavam a fachada. Depois de muitos rodeios, haveria de brotar a história que me fez passar na famosa disciplina e deixou-me o resto de Agosto livre para outros devaneios: “Eu fui para o Cabo ainda nem tinha 15 anos, com uns primos meus mais velhos. A gente arranjou trabalho na pesca num navio duns rapazes duma freguesia da costa de baixo. Eu não sabia pescar, nem nadar. Mas tudo se aprende. O pior é que um dos pescadores da embarcação resolveu tomar conta de mim, sem eu pedir. De tudo o que eu ganhava tinha que lhe dar metade. Às vezes, escondia o que recebia a mais, mas ele ameaçava-me e batia-me. Cada um deles tomava conta de um novato, dizia-se, e a todos iam exigindo metade dos salários. Assim, eu não conseguia amealhar nem mandar nada para a Madeira, para a minha mãe se sustentar e depositar no banco. Falavam que noutros barcos também era igual. Passaram-se cinco anos e não conseguia levantar cabeça. Ele dizia que se eu não entregasse o dinheiro ia ser perseguido, e até podiam matar-me. Um meu primo, mais chegado, tinha
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vivido o mesmo, mas conseguiu livrar-se do seu protector depois de uma violenta rixa. Então, enchi-me de coragem e, quando a gente estava a pescar em mar alto, dei-lhe um empurrão, abiquei-o, e até hoje ninguém mais soube dele. Foi dado por desaparecido, em acidente de trabalho. Depois mudei de embarcação, e nunca mais me fizeram uma daquelas. Carrego com isto para a cova, mas olhe que só assim consegui fazer a minha vida. E à mãe desse malvado, nos últimos anos, mando sempre entregar algum dinheiro, quando vou à festa dos Lameiros, só porque sei que ela precisa.”
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Setembro
Violante, olhos de mar Helena Marques Subo à torre da Casa Grande para olhar o mar. Venho todas as tardes, mesmo quando uma bruma espessa e leitosa desce das montanhas e cobre campos, ruas e casas com um véu de mistérios. O mar é como o tempo: indecifrável e inquietante na sua infinita capacidade de surpreender. E embora o mar continue a não trazer notícias de Estêvão e o tempo persista em não anunciar a minha iminente entrada no mosteiro, este espaço de solidão e de silêncio que todos entendem e respeitam nesta casa, contribui para reconciliar-me com as incertezas da minha vida. Os avós, minha única família, envelhecem visivelmente, de mês para mês, procurando manter a mesma confiança no regresso de Estêvão. Mas porque eu própria já não consigo afastar premonições e temores de solidão, decidi assegurar-lhes com tranquila e inabalável convicção que, se Deus entender chamá-los à Sua presença antes de Estêvão vir reclamar a sua prometida, poderão partir em paz, porque saberei honrar o pacto estabelecido com eles e assumirei, de alma serena, os votos monásticos. Venho todos os dias à Casa Grande, porque D. Maria de Noronha, minha madrinha, que foi amiga dilecta de minha mãe e mantém por minha avó profunda estima, sempre me franqueia as portas e o coração e me acolhe como se sua filha fosse. Para aqui chegar, tenho apenas de atravessar o jardim, pois foi nas suas vastas orlas exteriores que fizeram casa as famílias mais próximas do capitão-donatário. É um prazer quotidiano percorrer este enorme espaço, rico em flores de múltiplas espécies e cores, que crescem em exuberância sob as frondosas copas de árvores robustas e nobres, árvores nativas, desconhecidas no Reino, sobreviventes do grande incêndio que, há muitas décadas, abriu espaço, lá em baixo, para a construção da cidade. Foi assim que aprendi pela voz de meu avô, Afonso Peres, escrivão que foi, na juventude, de João Gonçalves Zarco, o primeiro capitão-donatário do Funchal, e cumpre as
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mesmas funções, mau grado os anos, junto de seu filho e sucessor João Gonçalves da Câmara, o senhor desta cidade, desta gente e desta casa, em nome de El-Rei Dom Manuel. A Casa Grande, que toda a cidade conhece por Casa das Cruzes, foi construída num lugar alto, sobranceiro à baía, bem perto da Igreja da Conceição de Cima, a que o novíssimo Mosteiro de Santa Clara se apoiou para crescer. Quando D. Isabel de Noronha, freira clarissa em Beja, regressou ao Funchal para assumir o alto cargo de primeira abadessa do mosteiro de Santa Clara, os meus avós levaram-me à praia para assistir ao desembarque da filha mais velha de João Gonçalves da Câmara e D. Maria de Noronha, aos quais uma bula papal havia recentemente concedido o padroado do mosteiro. Porque minha avó tinha ensinado D. Isabel e todos os seus irmãos a ler, escrever e contar, tivemos fácil e rápido acesso à nova abadessa. Apesar de eu ter apenas sete anos nesse Inverno de 1497, recordo claramente o carinho com que D. Isabel abraçou minha avó, e a minha própria emoção ao fazer-lhe a vénia e beijar-lhe a mão. E recordo, também, a curiosa excitação de me encontrar tão perto da nau que trouxera as monjas de Lisboa e que me pareceu maior do que olhada de longe, da torre da Casa Grande, mais volumosa e mais sólida para enfrentar com segurança a vastidão, o poder e os perigos do oceano, de que sempre ouvira falar. Acompanhei, depois, os meus avós às cerimónias religiosas que assinalaram, festiva e solenemente, a inauguração do convento há tanto tempo esperado pelas gentes da Madeira, que sempre e muito tinham sofrido ao ver partir para o Reino as jovens que respondiam ao apelo da vocação monástica. Apesar da clausura imposta às clarissas, D. Maria de Noronha tinha recebido do Papa permissão para visitar suas filhas (D. Joana também tomara véu em Beja e regressara à Ilha com sua irmã), podendo fazer-se acompanhar de algumas familiares e amigas. E foi assim que me tornei frequentadora assídua do convento, atenta às histórias que ouvia contar às monjas, e logo fervorosa admiradora de Clara e Francisco de Assis, esses eleitos de Deus que encontravam, no serviço e no bem dos outros, paz e alegria para cantar as maravilhas da Criação. Ao longo dos meses e anos seguintes, acompanhei minha madrinha, inúmeras vezes, nas suas frequentes visitas a Santa Clara. Enquanto mãe e filhas conversavam em terna alegria, compensando as saudades do prolongado afastamento, passeava eu pelos jardins e pelos claustros, na companhia de jovens freiras ou noviças, quase todas amigas e companheiras de D. Isabel e D. Joana, com elas vindas do convento de Beja ou a elas reuni-
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das, em comunhão de fé, na hora jubilosa da chegada. Sempre gostei, particularmente, do claustro gótico, com as suas austeras arcadas de pedra e o seu jardim central, zelosamente tratado. E também me agradava muito o jardim dos cheiros, essa pequena horta, junto das cozinhas, onde cresciam dois esguios funchos e um loureiro e eram cultivadas plantas igualmente odoríferas, como a hortelã, os orégãos, a segurelha, a salsa, a erva cidreira, a erva doce e tantas outras, destinadas a ser utilizadas, com sabedoria e subtileza, na confecção das refeições e da delicada doçaria que se tornou famosa em toda a Ilha. Não tenho a menor dúvida de que serei, no mosteiro, tranquilamente feliz. Sofrerei, por certo, a ausência definitiva de Estêvão – mas também a sofreria, e talvez mais dolorosamente ainda, se permanecesse no mundo. Agrada-me o silêncio da clausura, apenas cortado pela voz dos sinos. Aceitarei sem reserva as regras e a disciplina. Gosto das orações e dos cânticos, da paz e da solidão pessoal - e espero que D. Isabel, na sua indulgência, me permita subir à torre da Igreja e olhar o mar, como faço aqui, na Casa Grande. Se tiver de entrar no convento, a única dor que levarei é a de ter perdido Estêvão, é de Lisboa o ter levado de mim. Perguntei, uma vez, ao meu avô, como era a vida na Corte. E ele, naquele seu modo lento de quem pesa pensamentos e palavras, respondeu-me que na Corte tudo se passa como aqui na Ilha, só que numa escala muito mais vasta e numa medida muito mais sumptuosa, mais complexa também, em que os ricos são incomparavelmente mais ricos, os pobres tão pobres como os nossos mas em muito maior número, e as intrigas mais vis, ínvias e traiçoeiras – enfim, demasiada gente, demasiados enredos, tramas e tumultos para um soberano gerir e superar, a par dos pesados negócios do Reino com o resto da Europa e do crescente avanço dos Portugueses pelos mares desconhecidos. Não sei se partirei, algum dia, numa nau, rumo à Corte. Não sei. Mas gostaria tanto… E fico-me a imaginar como será uma viagem pelo mar e pelo tempo, que sentiria eu se percorresse os caminhos das ondas, se perdesse a terra de vista e ficasse apenas, dias e dias e dias, entre céu e água, entre nada e nada. Será belo ou assustador? Ou belo e assustador ao mesmo tempo? Imagino que será muito belo e um pouco assustador. O avô diz e repete que só os insensatos não respeitam o mar. Eu respeito o mar, sem dúvida que respeito, e sei que teria medo de uma tempestade, teria pavor das vagas altíssimas e dos ventos indomáveis, como meu pai terá sentido por certo. Mas se me fosse dado viajar até ao Reino, como viajou Estêvão, correria o risco sem hesitar. Entraria na nau
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sem temores e ficaria na amurada a ver as gaivotas regressarem à praia e a terra desaparecer na distância. E permaneceria apoiada à amurada a olhar o mar, incansavelmente a olhar o mar, à espera do porto desconhecido. Quando quer arreliar-me, o avô chama-me Violante-olhos-de-mar. E explica que não é apenas porque a cor dos meus olhos passa do azul ao verde, percorrendo todas as tonalidades intermédias, mas também (continua ele, troçando de mim) porque é da contemplação do mar, das tempestades que o escurecem até ficar azul escuro, da concentração de algas que o torna verde ou das calmarias que lhe devoram toda a cor, que esses cambiantes se alimentam. O avô ri do meu embaraço, mas eu não levo a mal os comentários porque sei quanto me quer bem e apenas pretende distrair-me da saudade dolorosa e permanente dos pais que quase não tive. E essa saudade perene, essa profunda mágoa, essa imensa nostalgia de um amor que não me foi dado receber, explicarão por certo, e melhor do que qualquer outra coisa, as sombras que por vezes me obscurecem os olhos e lhes retiram a luz e o brilho. Penso, até, que essa orfandade de alma nunca irá desaparecer dentro de mim – ou então desaparecerá somente, e por graça especial de Cristo Nosso Senhor, no dia em que eu própria gerar uma criança, um filho de Estêvão, e puder dar-lhe todo o amor que não tive tempo de receber de meus pais e que, repetidamente o pressinto, me será então devolvido com abundante generosidade. Minha mãe morreu quando eu nasci, minutos depois de eu ter brotado dela num último espasmo de dor. Colocaram-me nos seus braços que se estendiam para mim. O seu rosto exausto e exangue iluminou-se ao aconchegar-me ao peito e um sorriso de bem-aventurança entreabriu-lhe os lábios para logo se apagar. Meu pai fechou-lhe os olhos, olhos de mar, olhos de morte, ajoelhou no chão, junto da cama, e deitou a cabeça encostada à dela. Dois anos depois, meu pai desapareceu num naufrágio, quando a caravela em que seguia para Porto Santo, em missão do capitão-donatário, foi apanhada por uma tempestade de ventos cruzados e se desfez contra os rochedos da Ponta de S. Lourenço. As únicas memórias que guardo de meus pais, inestimáveis memórias, são os retratos de ambos, muito jovens, pintados por um mestre flamengo, um desses homens sempre curiosos e ávidos de viagens que, na época áurea do açúcar, vinham de Antuérpia à Madeira fazer a entrega pessoal de pintura sacra, encomendada pelos ricos comerciantes locais para suas residências e capelas. Alguns desses mestres pintores aceitavam pequenos trabalhos, enquanto aguardavam a partida de uma das naus que rumava aos Países Baixos, carregada de
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açúcar. Os retratos de Simão e Leonor, meus pais, fixados na incomparável perfeição da juventude, comovem-me até às lágrimas: encontro em minha mãe estes meus olhos de mar de que fala o avô; e no meu pai, as mesmas sobrancelhas alongadas para as têmporas sob a testa alta e o mesmo cabelo castanho claro, cor de favo de mel, igual ao meu, segundo diz a avó. Uma das razões por que subo, todas as tardes, à torre da Casa Grande é ver as naus e as caravelas acabadas de chegar, como se me fosse possível adivinhar a presença, em alguma delas, de uma carta de Estêvão – ou do próprio Estêvão. Já lá vão três anos, tinha eu quinze, quando mestre Filipe Anes, seu pai, regressou ao Reino, respondendo à chamada irrecusável de Francisco Arruda, mestre de obras reais, então a trabalhar na construção do Mosteiro dos Jerónimos. A mulher e os filhos partiram com ele, naturalmente, mas ficou firmado, entre as duas famílias, o compromisso de Estêvão regressar logo que estivesse iniciado na arte de trabalhar as cantarias, segundo os novos padrões alusivos aos descobrimentos. Em três anos, recebi apenas quatro cartas de Estêvão, cartas de muito bem-querer e confirmação de todos os nossos projectos, é certo, mas tão poucas, tão espaçadas no tempo, que me deixaram marcas de insatisfação e amargura. Procuro vencer a tristeza chamando-me à razão, obrigando-me a raciocinar com lucidez e bom senso, repetindo, uma e outra vez, para mim mesma, que são longas e acidentadas as viagens, sempre incerto o seu destino final, impõe-se manter a fé e a confiança. Procuro distrair-me olhando a cidade que não cessa de crescer a Oriente, em torno da igreja de Santa Maria do Calhau, onde vivem os artesãos e suas famílias. As ribeiras, que ficarão caudalosas e turbulentas com as chuvas de Inverno, traçam riscos sinuosos de Norte para Sul, das montanhas até ao mar, e as pontes de madeira que ligam as margens, começaram a ser substituídas por pontes de pedra. Esta Casa das Cruzes onde me encontro é, sem dúvida, a mais nobre e imponente da cidade, embora a nova classe abastada dos comerciantes de açúcar comece a afirmar sua ascensão e importância com casas sobradadas, assentes no antigo Campo do Duque, cerca da Sé, da Alfândega Nova, da Casa do Concelho e do Paço dos Tabeliães, uma urbe nova e nobre que, segundo diz meu avô, será em breve o verdadeiro centro do Funchal. Algumas dessas casas sobradadas, com cobertura de telhas, ostentam pequenas torres, corpos centrais elevados acima do telhado, com janelas nas quatro faces, que permitem uma excelente visão do mar e da sempre esperada chegada das naus e caravelas. Também os moinhos de açúcar cresceram por todo o lado e multiplica-se o seu nome na toponímia da cidade: Largo dos Moinhos, Travessa dos Moinhos,
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Beco dos Moinhos, Rua dos Moinhos. Até ao próprio mar se estendeu já a influência do açúcar produzido nos engenhos locais, tornando-se comum, Europa fora, falar da rota do açúcar como se todos os caminhos conduzissem à Madeira, trazendo prosperidade para uns, é certo, mas deixando os que mais trabalham na mesma vil e apagada miséria. Passos leves estão a subir a escada, mas nem olho. Será, por certo, uma das crianças em busca de companhia e de uma história, ou trazendo-me qualquer recado. Mas nem olho. Continuo virada para poente, os olhos vagueando pelo mar, acompanhando a eclosão do crepúsculo que, neste findar de Setembro, já se reveste da majestade e do fulgor que atingirá o apogeu com o avançar do Outono. O sol está tão baixo que incendeia o mar e a terra, acende brilhos e reflexos, ouros velhos, vermelhos densos, laivos roxos, que cintilam e se multiplicam na ondulação das águas. Estêvão esteve aqui, comigo, em inúmeras, inesquecíveis vezes, em crepúsculos como este. Partilhámos tantos momentos semelhantes, unidos na quieta contemplação da beleza perdulária do poente, dominados pela majestosa, gloriosa despedida do sol, que é como se sentisse de novo o seu corpo a colar-se suavemente às minhas costas, numa viva e quente evocação, numa dádiva mágica da memória. Mas logo uns braços familiares envolvem os meus e uma boca inesquecível percorre-me a nuca e os ombros. Percebo então que não se trata de um fantasma provindo da minha saudade desesperada. E volto-me dentro do seu abraço e sorrio como sei nunca ter sorrido na vida, e olho-o com toda a paixão, com toda a luz da minha imensa alegria. No andar de baixo, soam risos e palmas. Estêvão e eu descemos a escada ao seu encontro. #
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Outubro
Aguarela de um outubro melancólico Maria Aurora Homem É outono. Sinto-o nos pingos de água que como uma cortina, fecham o meu olhar estendido pela praça. Aconchego-me num malvasia perfumado no canto da esplanada e releio um poema de Baptista. Quando levanto os olhos já o sol, fulgurante, se instala sobre o repuxo prateado, a centrar a ampla praça. Gosto destes pequenos momentos que recorto na convulsão dos dias. Revoadas de pombas baixam da grande árvore de fogo, rompem da torre e despenham-se dos beirais à mão do milho que ondula no ar. É outono e chuvisca a espaços. Estou só e adoro esta solidão propositada. A fachada da Igreja do Colégio no seu maneirismo e aparente rigidez jesuítica enquadra um canto da praça e convida à meditação. Em frente o município, palácio oitocentista de equilibrada elegância limita-a a norte e alinha-se em múltiplas varandas e janelas a vasculhar o que lhe passa à porta. Leda e o Cisne pousam no jardim interior. Dois ciprestes rematam a frente, em arcos, do Palácio Episcopal e a escadaria é um convite assinado a açúcares e a sonhar a Flandres em roteiros de arte. É outono, o sol foi-se, caem sombras sobre a paisagem, sombras leves, rasgadas a tempos por résteas de luz. Não sei se te amei no comboio do Vouga a resfolegar pelas serras beirãs. Ou se te inventei nas margens do Sena, na descida dos Champs Elysées ou nas areias do Chambre d’Amour em Biarritz, talvez na mansarda de Rue Royale de Sainte Marie em Bruxelas, ou no Blue Hoot em Düsseldorf. Possivelmente quando te aconcheguei ao peito na Casa das laranjas ao rés duma levada em Câmara de Lobos. É outono, penso em ti, deixou de chover, sinto-me menos só. Pela praça um grupo de políticos polemiza apressado com ar de quem manda. Uma sobranceria típica de pequenos ditadores espartilhados em fatos
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escuros e gravatas exuberantes. Um padre de sotaina apertada minuciosamente desce as escadas do Colégio. Atravessa em passo miúdo a malha preta e branca que atapeta o chão. Quatro crianças de bata azul debruçam-se no fontenário onde agora se pendura um arco-íris. E de novo uma chuva muito fina empurra os passeantes para a protecção das portas. É outono. E estou à tua espera numa tarde incaracterística, cheira a malvasia e a terra molhada. O meu olhar vai trazer-te de longe, acima de quem passa, o corpo recortado na moldura da praça, o passo elástico, os ombros levantados, cabelo aloirado a descair na testa. Pareces-me neste momento, a esbanjar juventude, um atleta na maratona da vida. Mesmo de muito longe sei que és tu. E que chegarás pontualmente como nas outras tardes (eu adianto-me sempre, sobressaltada). Estás mais perto: a mão a afastar o cabelo da testa, a alisar a face, a descair no bolso direito. A cara a abrir-se num sorriso jovem. A tua boca aflora o meu rosto. Acredito que saibas do meu coração alvoroçado, da intensidade da minha ternura, deste amor tenro que se encostou a estes dias outonais em que tudo parece esmaecer à nossa volta. Não sei quantas vezes te amei desde que te instalaste nos meus olhos talvez nos campos de Tours, nas noites de serenata na Sé Velha, nas corridas de toiros de Pamplona, no Trastevere num setembro aloirado, em Sintra, na Estalagem da Raposa ou sentados no Louvre enfeitiçados ao olhar de Gioconda ou no Prado extasiados com as meninas de Velásquez. Talvez num bar de hotel ao sabor dum gin tónico ouvindo o João Luís a tocar Gershwin. Certamente num terraço sob o Cabo Girão a ouvir Albinoni de madrugada. É outono. Estás comigo. E chove. E saboreio um malvasia e estendo o olhar sobre esta praça e esbarro com o obelisco nacionalista que Raul Lino aqui deixou rematado com as armas da cidade. Ficarás o tempo exacto de tomar uma bica. Tens o mundo todo à tua espera. A chuva sossegou. Apressadas, as pessoas cruzam-se na praça. Parece-me que o sol se pôs no teu olhar. Aceno-te uma despedida. É tarde na tarde deste outono sereno. É outono. Também em mim. Tenho 70 anos. E preciso destes momentos para segurar a vida.
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Novembro
No Funchal, o maquinista António Fournier o coração abandona o corpo para apanhar o último comboio Yao Jingming
Em memória de Ernesto Leal Não sei se sabe, meu jovem amigo, no fundo as melhores respostas são aquelas que se dão a perguntas inexistentes. Mas está bem, aprecio a sua curiosidade. São as iniciais do meu nome: Ez Loomis. Mas isto não é um livro, é só um pequeno caderno onde vou anotando as minhas impressões. Sabe, é preciso paciência para traduzir a memória em imagens. Paciência e algum sentido de humor. Viajar é uma guerrilha constante contra o esquecimento. Quando se começa a viagem depois é sempre difícil parar. E quando isso acontece, há a tendência a cair na melancolia. Por isso evitamos estar parados muito tempo no mesmo lugar. Somos como árvores sem raízes. É como se com o tempo as nossas raízes no mundo se tornassem fluidas, aquáticas, olhe, um pouco como esta cidade. Sim, sempre fui um viajante. Está-me no sangue. Quando era criança tinha um caderninho como este e passava horas a desenhar os enormes navios transatlânticos que fundeavam diante da minha cidade. Li recentemente que o Neftalí Reyes tem uma locomotiva em sua casa em Isla Negra. E não era o Stelio Éffrena que tinha um navio de guerra verdadeiro entre as árvores da sua propriedade num lago não longe daqui? Percebo-os. Abandonaram a vida de nómadas, mas é como se continuassem a viajar numa dimensão paralela. Pessoas como eles têm muita dificuldade em resistir ao apelo da viagem. Nas
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noites de luar, sentem como que uma agitação no sangue, aquele arrepio que percorre o corpo todo antes da partida. Então, levantam-se e entram nas locomotivas ou nas canhoneiras dos seus sonhos. São como sonâmbulos. Sonham a vida que tiveram. Creia-me, são poucos os que têm essa sorte. Tem razão, já explico: imagine ontem quando cheguei, uma criança em terra firme, entretida a desenhar barcos da janela do seu quarto. Diga-me: não lhe parece que para aquela criança que vê ao longe o comboio em que eu viajo, a atravessar a laguna rente ao espelho de água, é como se visse um navio a atravessar a linha do horizonte? Agora imagine, quando ainda havia comboios e barcos a vapor como no meu tempo. Então era a mesma coisa: uma chaminé a deitar fumo ao longe. É natural que aquela criança se ponha a imaginar para onde irá aquele navio, que paragens desconhecidas visitará. Invejará a sorte dos passageiros, imaginá-los-á aventureiros, românticos, destemidos. Sonha que está dentro daquele navio que vê ao longe. Agora veja a ironia: eu que estou naquele comboio, que não conheço aquela criança, nem ela me conhece a mim, de repente passo a estar dentro do seu sonho. Eu que passei a vida a viajar, estou na sua linha de horizonte. Mas já não na minha. É esse o meu dilema. Aquela criança preferia estar no meu lugar, e eu, se calhar, hoje, preferia estar no lugar dela. A certa altura, percebi que o que procurava, tinha deixado para trás. Quando pensamos ter finalmente encontrado o que procurámos a vida inteira, somos já diferentes, irreconhecíveis a nós mesmos. Quer simplesmente dizer que crescemos. Como o gato, que tem sete vidas, e precisa de morrer seis vezes para conhecer a última. Olhe, é como se começasse aqui hoje, terça-feira, um de Novembro de 1966, uma nova vida para mim. Sabe, na minha terra havia um homem, a quem chamavam wizard of the north, que um dia saiu de casa decidido a conhecer o mundo, e se pôs a caminhar, sempre ao longo da costa, com a linha do horizonte ao fundo. Viajou durante semanas. Viu os barcos a passar ao longe, assistiu ao nascer do sol, atravessou os campos, encharcou a roupa à chuva e caminhou ao sol, cantou nas feiras, venerou os mortos e adormeceu a olhar as estrelas. Depois de ter caminhado muito, um dia reconheceu à sua frente a porta de casa: tinha voltado ao ponto de partida! O feiticeiro descobriu que afinal vivia numa ilha. Foi preciso ele fazer essa caminhada para perceber realmente o que isso significava. Pois bem, também eu sou uma espécie de aprendiz de feiticeiro, ando a fazer o meu percurso circular, só que a uma ilha muito maior. Sim, lembro-me muito bem da minha infância. Passava as noites a observar o Atlântico. Às vezes, a lua surgia inteira e ficava a cintilar sobre as águas.
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Era uma lua de coral, um enorme olho frio e inquietante parado no céu. O seu reflexo escorria até às ruas da minha cidade que se abriam para o mar, e a noite entrava assim lentamente nela. Era como se um rio de esquecimento a submergisse. Ficava tudo hipnotizado, imerso naquela luz pálida. Outras vezes não havia lua e o céu não se distinguia do oceano. As estrelas confundiam-se com as luzinhas dos barcos que passavam ao longe. Punha-me a observar todo aquele tráfego nocturno, aqueles pequenos periscópios de luz. Era estranho. Para onde iam, porque é que não tocavam a ilha? Ficava triste. De vez em quando chegava um navio vindo do horizonte. Era uma estrela cadente, e eu fazia um pedido. Quando chegavam vários ao mesmo tempo, o coração estremecia de felicidade e eu adormecia sonhando que viajava naqueles cascos vagabundos. Sabe, quando penso na minha infância, é como se fosse um sonâmbulo. Tenho sempre o mesmo sonho, quer que lhe conte? A primeira coisa que sinto é uma aragem fria debaixo dos pés. De repente abro os olhos. Olho à volta, um pouco assustado, e vejo que o meu quarto não tem tecto nem paredes, é noite, o céu está cheio de estrelas. Tento levantar-me, olho para baixo e então apanho um susto. Nada, não há nada debaixo dos meus pés. Estou suspenso no vazio! Oiço o vento na folhagem, olho de novo para cima e apercebo-me que estou pendurado a uma árvore, mesmo à beira do abismo. Sou um enorme coração verde que palpita, uma anona presa a um ramo frágil. Pouco a pouco vou-me habituando à situação, é uma sensação agradável, é como se eu fosse uma substância pura, sublimada. A certa altura vejo um enorme veleiro a aproximar-se suspenso e silencioso, as velas enfunadas, a âncora pendurada no vazio. Por detrás, uma lua enorme paira no céu. O veleiro passa mesmo por cima de mim, vejo-lhe as luzes acesas, o casco escuro, luzidio. A âncora roça na copa da árvore e eu vou agarrado a ela. Sabe, tenho pensado que andar de barco é um pouco como voar. Se pensar bem, estar num barco no meio do oceano é como estar suspenso sobre um abismo. Se calhar é por isso que na minha ilha damos aos barcos nomes de aves: Bútio, Falcão, Gavião. Como vivemos cercados pelo mar, é como se estivéssemos condenados a viver nas montanhas, como se sentíssemos uma espécie de nostalgia da planície. O vale está escondido nas profundezas do oceano. Observando-o do alto, o mar parece mesmo uma muralha azul que esconde da vista o que está do outro lado. Não é difícil para uma criança pôr-se a imaginar o que haverá por detrás dele. É difícil explicar esta sensação. Numa cidade plana como esta, vendo um navio, não tenho a percepção do seu ponto de partida nem de chegada, é um único plano em movimento. Mas quando o mar é visto
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de cima, um barco que parte parece um caracol que vai subindo a parede deixando atrás de si um rasto branco, e depois a certa altura desaparece. Fica uma nuvem ao longe, um indício de mistério. Você também vive numa ilha, não? Gostei muito da primeira impressão que tive deste lugar. Ontem havia uma greve e os comboios estavam todos atrasados. Estava muito cansado, tinha dormido pouco e a viagem parecia interminável. Chovia e o nevoeiro cobria tudo. Percebi a certa altura que estava a atravessar o mar. Estava sozinho na carruagem, e ouvia o barulho cadenciado do comboio a deslizar nos carris e no entanto estava a andar sobre o mar! Não havia dúvida, via a água ali mesmo, a brilhar. Às tantas, ouvi o chiar característico de um comboio quando trava. Compreendi que tinha chegado. Apeei-me, havia vapor por todo o lado, estava frio, era como a toca de uma moreia gigantesca. E foi ao sair dela, aos primeiros raios do sol, que me deparei com este cenário inesperado, o aspecto etéreo dos palácios como nuvens pairando sobre as águas, os reflexos dourados das abóbodas, o verde-garrafa da água como um veludo macio. Apanhei um choque, vi uma cidade que parecia nascer das águas. Bem vê, para mim uma estação ferroviária é como uma câmara escura, conserva a memória de todas as partidas e de todas as chegadas. É como atravessar uma passagem secreta entre o estado sólido e o gasoso, que é a matéria dos sonhos. Entrar nesta cidade assim é como se me tivesse sublimado numa outra dimensão. Foi como se tivesse chegado às portas de Atlântida, percebe. Na minha ilha, conta-se que quando o nevoeiro vem do mar e cobre tudo, ouvem-se vozes numa língua estranha, sons de baleias, há quem diga que em certas circunstâncias, se chega a divisar palácios fabulosos quase ao alcance da mão. A avó Vicência contava que uma vez estava a pôr a roupa a enxugar. O sol via-se mal, coado pelo lençol. De repente viu sombras humanas. Afastou o lençol e... nada. A planície oceânica estava calma como azeite. Está a ver, é como se eu tivesse afastado o lençol e esta cidade tivesse surgido aos meus olhos ainda a escorrer água, novinha em folha. Estou hospedado aqui perto, nas Zattere, o meu hotel fica mesmo junto ao canal. Não podia ter escolhido melhor lugar! Estive entretido até há pouco a ver os barcos a passar. Cheguei a uma conclusão: aqui de manhã, os grandes navios passam todos na mesma direcção, saem para o alto mar, imagino. Esta manhã passou um grande transatlântico branco com a chaminé amarela e um enorme C pintado. Pus-me a imaginar: quem sabe se aquele navio não irá aportar justamente à minha ilha? Está a ver o paradoxo de que lhe falava? Pensar que aquelas pessoas poderão estar daqui a uns dias num lugar onde já
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não ponho os pés há quase cinquenta anos! É por isso que lhe dizia que habitamos sempre o sonho de alguém. Lembro-me que quis ser um viajante no dia em que conheci o capitão Marks. Na minha ilha, havia um serviço fluvial de steamboats. Transportava forasteiros até à nascente do rio que era um famoso local de vilegiatura, onde havia vários hotéis de luxo e jardins frescos e misteriosos. Era um lugar onde o tempo parecia ter parado, envolto numa atmosfera féerica e cosmopolita. Ali, no meio do oceano, longe de tudo, veraneavam reis, príncipes e nobres vindos de toda a Europa. Vinham para se curarem das doenças do frio e da alma naquela cidade amena, cheia de bananas e papaias, sob a qual pairava uma nuvem de spleen. Era uma cidade povoada de anjos louros e diáfanos, só que feridos de morte. Tossiam e um besouro vermelho aflorava aos lábios. Eu e os meus amigos costumávamos ver todos aqueles viajantes passar, todas aquelas fardas e vestidos elegantes, todas aquelas línguas estranhas, parecia um circo exótico que desfilava diante dos nossos olhos. O nosso maior sonho era ser tripulantes daquele steamboat, como Mark Twain. Você viu Mary Poppins? O capitão Marks era como o almirante Boom. Lembra-se do almirante Boom? Aquele oficial da marinha reformado, que tinha apetrechado o sótão da sua casa como a proa de um barco, e todos os dias, a uma determinada hora, ordenava uma salva de canhão, que obrigava a vizinhança a proteger as porcelanas de casa. Na minha cidade todas as casas que davam para a baía tinham uma torre, que sobressaía do telhado. Quando um navio aparecia no horizonte era ver todos os capitães Boom da ilha de monóculo, a perscrutar a distância. O capitão Marks pertencia à Esquadra Submarina de Navegação. O steamboat era a menina dos seus olhos. Aos domingos engalanava-o e descia o rio, recolhendo a bordo os elementos da esquadra, vestidos a rigor, com a farda de cerimónia. Depois, parava num determinado ponto e a parada continuava então a pé por entre canas de açúcar, bananais e plantações de tabaco. Contruíam pontes de fragatas, corvetas, canhoneiras em cima das árvores, adaptavam os terraços e a torres das suas casas com altos mastaréus, com gáveas e traquetes, sobre os quais drapejavam ao vento os galhardetes e as flâmulas de sinalização. Faziam sinais de bandeiras entre as casas, havia senhas que eram passadas na cidade durante a semana, para combinar o próximo objectivo estratégico. Homens feitos brincavam aos marinheiros. Uma vez até, o nosso rei visitou a ilha e ficou admirado com aquela companhia luzente e aprumada que lhe fazia a continência com ar tão marcial. O rei apreciou e retribuiu a saudação. E quis saber a que arma pertenciam. Quando
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soube, conta-se que não gostou nada da brincadeira. Mas há uma coisa que ninguém sabe, contou-me o capitão Marks em pessoa: na madrugada seguinte, fugindo ao protocolo, o rei subiu o rio sozinho com ele, no steamboat. O rei com os seus bigodes louros e aristocráticos, conduzia o steamboat e fazia soar o apito, ao passo que o capitão Marks metia lenha na caldeira. Onde é que já se viu um maquinista monárquico e um rei proletário!? Imagine, um barco fantasma a subir o rio àquela hora, o que nunca acontecia. As pessoas que moravam ao longo das margens e que costumavam despertar com o primeiro apito do steamboat acordaram muito mais cedo nesse dia. E eles os dois ficaram ali a conversar e a beber Madeira até ao amanhecer. O velho capitão Marks falava-nos sempre com orgulho daquela noite memorável em que o rei, que era um grande oceanógrafo, lhe contara as suas viagens. Mas havia também uma esquadra rival, a Esquadra Torpedeira de Navegação a que pertencia o outro steamboat comandado pelo capitão Rose. Os dois eram velhos lobos do mar, e apesar de pertencerem a esquadras rivais, eram grandes amigos. O rio tinha-os aproximado, o rio e a paixão comum pelos barcos a vapor. Referiam-se sempre àquela vez em que a Esquadra Torpedeira resolvera apropriar-se do steamboat do capitão Marks. O capitão Marks costumava fazer uma breve paragem a meio do percurso, ao fim do dia. Quando nos aproximávamos, sentia-se o cheiro a pão fresco e ele incumbia sempre um de nós, o que era motivo de orgulho, a “assaltar” a mercearia, sem que ele parasse o steamboat, apenas abrandando a marcha. Içávamos o Jolly Roger, saltávamos para terra, íamos buscar o pão e depois voltávamos a saltar para bordo. Ora, foi ali que a esquadra rival resolveu preparar o assalto. A inteira companhia estava escondida entre as bananeiras, armada e em pé de guerra. De um momento para outro, ouviu-se o toque de combate e viu-se todos aqueles vultos a saírem do crepúsculo, como uma brigada de piratas. Intimaram o capitão Marks a render-se e a entregar-lhes o steamboat. Mas ele, que amava aquele barco acima de qualquer outra coisa, manteve o sangue-frio, e disse com a maior das calmas que se quisessem, viessem buscá-lo. Pegou na pá do carvão e mal tentaram a abordagem, foi correndo com todos eles à pazada. Era vê-los a saltarem, surpresos com tão acérrima defesa. Eles com espadas em punho e o capitão, franzino mas resoluto, a empurrá-los para fora, entre as gargalhadas dos que assistiram àquela memorável cena. Depois, acabaram todos ali na tasca a beber um copo. Eram crianças que tinham acabado de brincar à batalha naval. Só que uma vez foi mesmo a sério. Era uma manhã de inverno, era final de novembro, início de dezembro, já não me lembro bem. De repente a cidade
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acordou com uma explosão. Estava-se numa guerra muito grande, a n° 1, mas ali a guerra parecia estar muito longe. Naquele dia, porém, a guerra bateu mesmo à nossa porta. Nunca me esquecerei do barulho das explosões e dos gritos que ecoaram por toda a cidade. Um submarino alemão estava a atacar o porto. Na baía estavam fundeados três navios. Em pouco tempo, o submarino meteu a pique um a um, começando pelo navio de guerra francês, aquele que podia oferecer maior resistência. Foi um pandemónio. A princípio ninguém percebia o que se estava a passar. Depois, viu-se aqueles corpos todos a boiar na água... Mal refeita da surpresa, a guarnição de terra pôs-se a disparar com canhões do tempo de Napoleão, e o submarino, a coberto de um veleiro fundeado na baía, começou a bombardear a cidade. Na estação fluvial, quando ouviram as bombas a cair na cidade, meteram-se todos no outro steamboat que começou a subir o canal o mais depressa que podia, procurando refúgio no interior da ilha. O capitão Marks preparava-se para a primeira viagem do dia. Estava a fazer a barba e observou tudo da torre de sua casa. Com o seu monóculo, via nitidamente aquele caixão flutuante soltando esguichos de fogo, o silvo, o silêncio, e depois o estrondo e os gritos de pânico. Era uma afronta, dizia ele, os combates marítimos são no mar, não se ataca uma cidade indefesa. Ele tinha orgulho em pertencer à Esquadra Submarina de Navegação, era uma questão de honra. Acabou de fazer a barba. Vestiu com calma a farda de combate, o boné, os galões dourados e a espada, trouxe a bandeira monárquica que o rei em pessoa lhe tinha oferecido, e ordenou que deitássemos carvão na caldeira e atestássemos o depósito de água. Depois, deu ordem de combate. Estou ainda a vê-lo. Montou a pequena columbrina que tinha preparado desde o dia do incidente com a esquadra rival, tomou posição à proa e com numa mão a espada desembainhada e na outra a bandeira, ordenou então que avançássemos a toda a brida, descendo o canal, para defrontar o submarino. Seria um combate desigual, entre David e Golias: o nosso pequeno CFM n° 3 contra o imponente U-47, da imperial marinha de guerra prussiana. A certa altura, cruzou-se com o outro steamboat que vinha da cidade, apinhado de gente. Passando por eles a toda a velocidade, fez a continência e gritou “Preparar-se para a abordagem, tigres de Mompracem”, perante o olhar estupefacto de todos. Parece que o estou a ver, como num velho filme mudo, a sépia, fumando cachimbo e vociferando ao mesmo tempo. Soube-se depois que já na noite do dia anterior, tinha acontecido uma coisa incrível. Um barco de pesca estava na faina, os pescadores apontavam as lanter-
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nas para a água, tinham lançado as redes e agora estavam a recolhê-las. Via-se ao longe as luzes familiares da costa, estava uma noite calma. Ouvia-se a água a bater no barco, tchap, tchap, tchap, e o farol iluminava compassadamente o mar, incidindo sobre todo aquele alegre fervilhar prateado. A pesca ia ser boa. Estavam todos alegres. De repente, um deles pareceu ouvir um barulho estranho, os risos foram abrandando, até que se silenciaram de todo. Puseram-se à escuta: dir-se-ia que qualquer coisa se aproximava, vinda do fundo. Então, no momento exacto que a luz do farol iluminou o mar, viram despontar das profundidades um monstro escuro e assustador. Imagine o susto que foi. Alguns desmaiaram, outros ficaram paralisados de medo. Nunca tinham visto nada assim. Sabe o que pensaram? Mobydick? O Nautilus? Não, não, nada disso! Oiça só. Pensaram que eram os atlantes que se vinham vingar por eles estarem ali a roubar, com as suas redes, os pássaros e as borboletas dos jardins submersos da Atlântida! Ah sim, o capitão Marks… Bem, a verdade é que ele nunca chegou ao mar. Não, meu bom amigo, o capitão Marks não chegou a defrontar o submarino inimigo. Não podia. É que o seu barco, aquele fabuloso steamboat no qual subi e desci todos os dias o rio da minha infância, não era um barco mas um comboio, uma pequena locomotiva a vapor. Aquele rio era uma linha de caminho-de-ferro a cremalheira, e o steamboat do capitão Marks, um comboiozinho que subia lentamente até ao cimo do monte por entre muros cobertos de musgo, bananeiras e canas de açúcar. E subia tão lentamente que parecia que estávamos parados e que era a ilha que ia descendo, engolida pelo mar. Agora que penso nisso, subir naquele comboio era como se escapássemos ao oceano. Não sabe o que é uma cremalheira? Tem razão, percebo a sua perplexidade. Conhece esses fechos-éclair que agora se usam? O que é que evita que o fecho se abra? Aquele pequeno pinhãozinho que se prende ao fecho. A única maneira de o comboio não escorregar pela encosta abaixo, era esse pinhão que ia encravando na cremalheira. A locomotiva, ao subir, fechava uma enorme cicatriz aberta na terra, e ao fazê-lo, soltava vapor que parecia provir directamente das vísceras vulcânicas da ilha. E toda a ilha ficava coberta por uma única nuvem libertada por aquele pequeno vulcão ambulante. Esta é última imagem que conservo da ilha. No barco que me levava para longe dela, vi aquele comboiozinho que subia em direcção ao tecto de nuvens baixas, fumegando como se as aspirasse, como se elas fossem o seu combustível, antes de desaparecer envolto nelas. Esse rio é desde então o meu fio do horizonte. Nunca mais o vi desde os meus onze anos.
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E já agora, lamento muito decepcioná-lo, você já deve ter percebido. Eu não sou a pessoa que você está a pensar. Sei que mora algures nesta cidade. Ontem julguei até ter-me cruzado com ele, ali na Ponte delle Maravegie. Quando você me propôs esta entrevista, tive a certeza que era ele. Achei que não me levaria a mal se eu tomasse o seu lugar por uma hora. No fundo, as conversas mais importantes fazem-se sempre com os grandes ausentes. Sabe, quando viajamos, vivemos com várias cidades na cabeça, mas só temos uma única cidade mental. Um dia descobrimos que a cidade que procurámos a vida inteira, a nossa Samarcanda, é a cidade da nossa infância de onde partimos para nunca mais voltar. Imagino muitas vezes que regressarei ao entardecer. Então aquele comboiozinho descerá das nuvens, para me vir buscar. Nele subirei ao Monte como se fosse a primeira vez, sem olhar para trás. Só então me virarei para contemplar de novo a linha do horizonte. Então poderei finalmente adormecer. Voltarei a ser sonâmbulo. Voltarei a chamar-me Ernesto. Ernesto Leal, do Funchal.
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Em Dezembro quando as gaivotas enlouquecem João Carlos Abreu Dezembro nasceu nos olhos brilhantes da criança que tão impacientemente começara já em Junho a sonhar com o Natal. Repetidas vezes perguntava à mãe porque não era ainda Dezembro. Ele queria que fosse Natal não pelos brinquedos mas sim pela lapinha gigante que a mãe lhe oferecia todos os anos. Naquela manhã a mãe disse-lhe que já tinha tirado os pastores das caixas em que ficavam guardados, em armários, de um ano para outro, cobertos com areia do Porto Santo para que não se partissem. Pastores comprados no Talassa e feitos à mão pelo mestre Eduardo, especializado nesta arte. Só o menino Jesus, S. José, Maria e os Reis Magos tinham direito a uma gaveta almofadada. Todos os cuidados eram poucos para conservar estas verdadeiras peças de arte que herdara dos avós. Aliás o avô João e a avó Joana eram amantes de viagens aos mais recônditos recantos da terra. Falavam correctamente três idiomas, francês, inglês e espanhol. Passaram uma grande temporada em Demerara onde fizeram uma pequena fortuna. O presépio compraram-no em Nápoles, na casa de um velho artesão, Giovanni Battista. Habitualmente as searas de trigo e de milho em grão deitavam-nas no dia de Nossa Senhora da Conceição. O Manuel João, irmão mais velho do pequeno Fernando, descobriu que usando a tesoura de costura da mãe podia por as searas todas da mesma altura. Cortava-lhe as pontas e à medida que cresciam aparava-as. Assim elas permaneciam sempre frescas. Chegou ao tão desejado dia: a mãe, Mariana Rodrigues de Sá, montou a base da lapinha com cadeiras, bancos velhos e caixotes de frutas às ripas. Colocando aqui e ali umas tábuas de madeira de pinho tosco, ia dando forma à sua imaginação. A lapinha ocupava mais de metade do espaço do escritório do pai. Os dois filhos do casal esfregaram as mãos de contentes, quando viram o António, empregado da casa, chegar com um carregamento de socas de cana
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vieira arrancados do Toco. Espalhou-as pelo chão. A mãe com a sua imensa fantasia foi colocando um a um aqueles tocos enrugados criando os espaços adequados à lapinha. Seguiu-se uma segunda fase: enquanto o Manuel João ponha ao lume a panela com farinha e água para fazer as papas que iam servir de cola para ensopar os jornais, o Fernando, sob a orientação da mãe colocava-os cuidadosamente sobre as socas: nasciam os caminhos, as veredas os riachos e os lagos. Depois o pai, que desfizera o vioxéne em água quente, iniciava a pintura do papel. Fazia-o com muita atenção para que não se rompessem os jornais. Aos miúdos estava ainda reservada a missão de soprarem os pós dourados, prateados, vermelho e verde metálicos. Os pós eram postos sobre um pedaço de papel. Eles sopravam-nos dando ao castanho do papel tonalidades diferentes e atraentes. Divertiam-se muito porque quando acabavam de espalhar os pós estavam com os narizes e as faces prateadas e douradas, ficavam irreconhecíveis. Na distribuição dos pastores todos tinham uma palavra a dizer: havia o guardador de rebanhos com mais de vinte ovelhas. As casas de cartolina cobertas de palha de milho tinham o seu lugar próprio. Outro sim a procissão, a banda de música e o casamento. No fundo dos lagos eram postos espelhos para reflectirem a sombra dos cisnes de barro. Naquela manhã corria uma aragem muito fresca. Era a brisa do mar que invadia as ruas mais próximas e as flores que se fecharam com a noite abriam-se com claridade da manhã que nascia. A mãe vestiu apressadamente o casaco de abafo, em lã aos quadrados, pretos e brancos, enfiou nas cabeças das crianças os barretes escoceses e meteram-se rua abaixo. De mãos dadas chegaram à igreja, já ali havia começado a missa do parto. O celebrante era o padre Manuel, conhecido pela sua pontualidade e pelo copinho de aguardente que logo pela manhã bebia – é para aquecer, costumava dizer. Encontraram na igreja um casal de ingleses, os Smith, que festejavam a sua quinta visita à Madeira, mas curiosamente era a primeira vez que participavam numa “missa do parto”. Estavam muito intrigados com a cerimónia, pois nunca ouviram referências a estas missas. D. Mariana, no seu inglês do Colégio Alexandre Herculano, onde estudara, tentou explicar-lhe que as missas tinham início no dia 16 de Dezembro. Eram nove novenas em honra a Nossa Senhora do Parto, antes do dia da consoada, com cânticos especiais. Terminadas as missas o povo vinha para a rua cantar, bailar e comer. Os Smiths estavam maravilhados e já na rua entraram na roda com uma alegria esfusiante. Aliás, eles não tinham muito a ver
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com a forma de ser dos ingleses. Eram de religião anglicana, divertidos e sobretudo muito comunicativos. Por isso decidiram sair de Chichester onde viviam para passarem todo o mês de Dezembro na Madeira. D. Mariana explicou-lhes que as missas do parto só aconteciam na ilha, eram uma velha tradição que se arrastara através dos tempos. D. Raquel, amiga da família Rodrigues de Sá, interveio para dizer que lera muito recentemente que para além da Madeira as mesmas missas se celebravam nas Filipinas, país muito católico, de arreigadas tradições religiosas. D. Raquel acrescentou que não se admiraria nada que fossem levadas para ali por algum madeirense. Aliás – exemplos não faltavam de tradições introduzidas por emigrantes madeirenses: o caso do jogo do bicho que da Madeira passou ao Brasil e ainda a braguinha madeirense hoje um famoso instrumento do Hawai, o ukulele. Mais espantoso: os portugueses inventaram o famoso five o’clock tea na Inglaterra. As noites da Madeira são fascinantes, mas em Dezembro com o céu límpido e estrelado é convidativo a passeios nocturnos, às vezes sob uma aragem ligeiramente fresca, mas agradável. Dezembro é conhecido pelo mês da família e da amizade. A ilha reflecte-se no mar. Dizem os antigos que os madeirenses se debruçam nos varandins do cais – como se estes fossem amuradas de navios fundeados na baía, e deitam no Oceano Atlântico os seus segredos mais íntimos. Formulam votos de desejos frutos de sonhos sonhados. Os Smith são convidados dos Rodrigues de Sá para assistirem ao grande espectáculo de fogo de artifício na noite de 31 de Dezembro – um espectáculo único, jamais igualado no mundo. A Sra. Smith fez questão de dizer que escolheram também o mês de Dezembro para poderem assistir ao famoso fim do ano na ilha, tão exaltado por milhares de visitantes. Cerca das 22 horas as duas famílias foram para bordo do paquete Santa Maria, onde os festejos de fim do ano eram rijos e conhecidos pela sua extraordinária gastronomia. Três orquestras abrilhantavam a noite que desceu de mansinho sobre a baía resplandecente de luz. Quando os Smith se aproximaram das varandas do navio não esconderam a sua comoção perante a grandiosidade do espectáculo. A Sra. Smith escondeu com as suas mãos longas os olhos e deixou que as lágrimas corressem livremente pela face – foi apenas um retroceder no tempo para recordar alguns amigos desaparecidos – disse. Ernesto João Rodrigues de Sá apressou-se a infor-
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mar que entre as quatro baías mais bonitas do mundo estava o Funchal. As outras eram: Sidney, Hong - Kong e Rio de Janeiro. Wonderful! Wonderful! exclamavam sem parar os Smith, deixando derramar o champanhe sobre as mãos. Entraram no salão de festas sob uma chuva de serpentinas e dançaram loucamente até a noite morrer nas ondas ligeiras do atlântico, onde o Santa Maria estava reflectido esplendorosamente na sua iluminação. Para mim o mês de Dezembro constitui sempre uma viagem na memória onde estão arquivados todos os natais da minha existência. Vem de pequeno este meu desejo de segredar a palavra amor que em Dezembro ganha mais força, porque em Dezembro todas as coisas acontecem numa perspectiva diferente. Têm razão os meus compatriotas, é a festa da família, a festa da amizade. Pelo menos para mim assim é. Na minha casa, como na maioria das casas madeirenses, faziam-se os pickles com mostarda e caril e os licores de tangerina, de cacau, de ovos, de anis e o mais delicioso de todos o Tin-tan-tum. Nunca ninguém me explicou até hoje porque se chama Tin-tan-tum. Aos 72 anos de idade procuro ainda uma explicação para tal nome. Um meu amigo costumava dizer: embebeda-te com Tin-tan-tum e saberás a razão do nome. Um dia alguém me insinuou que o nome do mais delicioso de todos os licores caseiros foi inventado por uma mulher muito bonita, pele de chocolate, alta, cabelos negros, olhos verdes, que completamente bêbeda numa noite misturou vinho Madeira, passas canela e tantos outros ingredientes numa garrafa de álcool que tinha à mão. Quando refeita da bebedeira no dia seguinte lhe perguntaram que licor era aquele, respondeu com o seu sorriso branco e charmoso: Tin-tan-tum e logo acrescentou: um licor tão delicioso e misterioso como misteriosas são as noites madeirenses que se prolongam nos nossos corpos nus cobertos de orquídeas. Justamente em Dezembro, onde todas as coisas acontecem na ilha e onde pela manhã bem cedo as gaivotas enlouquecem na sedução dos percursos que as conduzem do céu ao mar.
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Sobre os Autores
Ana Margarida Falcão Nasceu no Funchal. É Professora na Universidade da Madeira, onde se doutorou na especialidade de Teoria da Literatura/Literatura Portuguesa, com defesa da dissertação intitulada Os Novos Shâmanes – um Contributo para o Estudo da Narratividade na Poesia Portuguesa mais Recente. Tem participado e/ ou co-organizado anualmente Colóquios e Seminários e publicado textos críticos e textos literários. Colaboradora regular de programas da RTP-M, RTP-I e RDP-M, bem como de revistas da especialidade, entre as quais «O escritor», «Dédalus» e «Islenha», da qual é directora da secção literária. A sua escrita está ainda presente em diversas antologias de narrativa e de poesia, algumas das quais traduzidas para francês, italiano e húngaro, tendo co-organizado Literatura de Viagem – Narrativa, História, Mito, (ensaios) e publicado Um Arquipélago de Escritores-Viajantes, (monografia), Olargo ou o percurso de um habitante (conto/s) e Z de Zacarias (romance).
Irene Lucília Andrade Nasceu no Funchal. Frequentou a extinta Academia de Música e Belas Artes da Madeira e, em 1968, licenciou-se em Pintura pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Entre 1962 e 1975 colaborou com o Posto Emissor do Funchal, onde foi realizadora e fez teatro radiofónico. Tem colaborado em encontros de poesia e em iniciativas culturais de vária índole, sendo também autora de textos e canções de carácter juvenil, alguns editados em disco e em obras de carácter pedagógico. Integrou diversas colectivas de Pintura na Madeira e nos Açores e tem publicado textos em jornais e revistas nacionais. É autora de livros de poesia, entre os quais, Hora Imóvel (1968); O Pé Dentro d Água (1980); A Mão que Amansa os Frutos (1991); Estrada de um dia Só (1995); Protesto e Canto de Atena (2002); Água de Mel e Manacá (2002). De ficção: Angélica e a sua Espécie (1993); Porque me Lembrei dos Cisnes (2000); A Penteada Ou o Fim do Caminho (2004); Crónica Breve da Cidade Anónima, À Hora do Tordo (2008). Está representada nas antologias Ilha 2, Ilha 3 e Ilha 4 (1979, 1991 e 1994); Narrativa Literária de Autores da Madeira. Século XX (1990); Duplo Olhar (1997); Récits Contemporains de Madère (1997); Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (2001); Saudades da Ilha (2003); Nostalgia dei Giorni Atlantici (2005); Pontos Luminosos – Açores e Madeira (2006); Contos Madeirenses (2006); Os Sons Atrás do Mar (2007); Crónica Madeirense, 1900-2006 (2007).
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Sobre os Autores
Francisco Fernandes Nasceu no Funchal em 1952. É economista, mestre em Gestão do Desporto e doutorando em Motricidade Humana, ramo de Ciências do Desporto. É actualmente responsável pelos pelouros de Educação, Desporto e Cultura do Governo Regional da Madeira. Publicou obras nas áreas da investigação, narrativa, literatura infantil e romance. As suas peças de teatro – Andaime (2002) e O Natal de Joana (2004), foram adaptadas para telefilme, pela RTP-M. Dois dos seus contos infantis, O Diogo quer ser Futebolista (Porto, 2005) e A Estrela Perdida (Porto, 2006) estão incluídos no Plano Nacional de Leitura. O seu romance A Casa do Penedo da Gaivota (Porto, 2004) foi distinguido com Menção Honrosa pelo Prémio Edmundo Bettencourt e o seu conto A Esquina do 95 (2005), recebeu o prémio António Feliciano Rodrigues (Castilho). Está representado na antologia Crónica Madeirense, 1900-2006 (Porto, 2007).
Margarida Gonçalves Marques Nasceu no Funchal em 1929. Desenvolveu a sua vida profissional na docência até 1979, ano em que ingressou na carreira técnica superior, sempre no sector da Educação, até à sua aposentação em 1993. Colaborou, nos anos cinquenta e sessenta do século XX, no Diário de Notícias do Funchal, assinando crónicas e contos com o pseudónimo de Teresa Passos Vela. Presentemente, dedica-se à família, ao voluntariado e à escrita. Um dia depois do outro, o seu primeiro romance, obteve o Prémio Vergílio Ferreira, instituído pela Câmara Municipal de Gouveia, em 1999. O seu segundo romance Noventa e Nove Justos, aparece em 2003. Ambos foram editados pelas Publicações Dom Quixote, Lisboa. Está representada nas antologias: Contos Madeirenses (Porto, 2005); Quarenta (Lisboa, 2005), Nostalgia dei giorni atlantici (Asti, 2005), e Crónica Madeirense, 1900-2006 (Porto, 2007).
Laura Moniz Nasceu em Santo António da Serra em 1967. É Leitora de Língua Portuguesa na Universidade de Trieste, cidade em que reside actualmente. Revelou-se com o conjunto “Nuvens e lugares”, na revista Atlântico (1988) tendo ainda participado nas obras colectivas Poet’Arte 90, Vers’Arte 91 e Ilha 4 (Funchal, 1994).
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Integra as colectâneas Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (2001), 10+1 Poetas para Estar (2004), Poesia no Porto Santo, organização PEN Club (2004), Nostalgia dei giorni atlantici (2005), Contos Madeirenses (2005), Pontos Luminosos (2006), Sapori incontri fragranze (2006). É autora de Cartas para um Tenente (poesia, Funchal, 1996); O Templo Móvel, (poesia, Porto, 2002); Lupus in Fabula (poesia, Funchal, 2002); A Musa das Coisas Pequenas (poesia, Funchal, 2002) e Cerejas (contos, Vila Nova de Gaia, 2007).
Maria Rosa Basílio Nascida no Funchal, viveu até à adolescência na Madeira, tendo-se transferido para Lisboa onde concluiu a licenciatura em Direito na Universidade Clássica de Lisboa, aí se estabelecendo como advogada. Actualmente dedica-se à escrita das suas memórias familiares. Publicou o conto “Tra due maree” na antologia Nostalgia dei Giorni Atlantici (Asti, 2005).
Vítor Sousa Nasceu no Funchal em 1984. Depois de ter cursado Psicologia na Universidade do Algarve, regressou à Madeira, onde é finalista em Comunicação, Cultura e Organizações, na Universidade da Madeira. Durante o ano lectivo 2005/2006 estudou em Pisa, no âmbito do programa europeu Erasmus. Dessa estadia na Toscana nasceu o seu primeiro livro O Tricot do Tempo (Lisboa, 2007). Ainda em 2005, tornou-se impulsionador involuntário da campanha presidencial de Manuel Alegre, depois de ter lançado uma petição “online” que exortava à candidatura do poeta. Como consequência, foi convidado para a Comissão de Honra do candidato. É autor do blog Estranho Estrangeiro (http://estrangeiros.blogspot.com).
Nelson Veríssimo Nasceu no Funchal em 1955. Licenciado e doutorado em História, é professor da Universidade da Madeira, desde 2002. De 1987 a 2002, dirigiu a revista Islenha: temas culturais das sociedades atlânticas, editada no Funchal.
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Sobre os Autores
É autor de mais de oitenta artigos e comunicações sobre História do Atlântico, Património Cultural e História da Educação, publicados em revistas, portuguesas e estrangeiras, e em actas de Congressos Nacionais e Internacionais. Colabora regularmente no Diário de Notícias do Funchal, desde 1984. Publicou diversos livros de História, organizou três antologias literárias e editou um livro de crónicas da sua autoria. Está representado nas antologias Nostalgia dei Giorni Atlantici (Asti, 2005) e em Crónica Madeirense, 1900-2006 (Porto, 2007).
Helena Marques De famílias madeirenses, nasceu em Carcavelos em 1935. É autora dos romances O Último Cais (1992), A Deusa Sentada (1994), Terceiras Pessoas (1998) e Os Íbis Vermelhos da Guiana (2002) e do livro de contos Ilhas Contadas (2007), todos editados por Publicações Dom Quixote. Recebeu o Prémio Revista Ler / Círculo de Leitores, o Grande Prémio de Romance e Novela da Sociedade Portuguesa de Escritores, o Prémio Máxima de Revelação e o Prémio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa. Está traduzida em alemão, espanhol, italiano, grego, búlgaro e romeno. É casada com o jornalista Rui Camacho e tem quatro filhos – uma tradutora e três jornalistas.
Maria Aurora Homem Natural do Sátão – Viseu onde nasceu em 1937, vive no Funchal desde 1974. Antiga jornalista de órgãos de comunicação escrita e audiovisual de Lisboa, na Madeira tem exercido os mais activos papéis de agente e dinamizadora cultural, organizando e participando activamente em debates, colóquios e feiras do livro, programas de rádio e de televisão. É assessora cultural na Câmara Municipal do Funchal e editora da revista Margem. Autora de livros infantis e de um livro de crónicas, publicou os seguintes livros de poesia: Raízes do Silêncio (Funchal, 1982); Ilha a Duas Vozes (em co-autoria com João Carlos Abreu, Funchal, 1988); Cintilações (Funchal, 1994); Uma Voz de Muda Espera: Monografia Sentimental (S. Pedro do Sul, 1995); 12 Textos de Desejo (Funchal, 2003); Antes que a Noite Caia (Vila Nova de Gaia, 2005); Discurso Amoroso (Porto, 2006). De ficção: A Santa do Calhau (Lisboa, 1992);
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12 Meses no Funchal
Para Ouvir Albinoni (Ponta Delgada, 1995); Leila (Vila Nova de Gaia, 2005). Integra as antologias Narrativa Literária de Autores da Madeira, Século XX (Funchal, 1990); Récits Contemporains de Madère (Funchal, 1997); Nostalgia dei Giorni Atlantici (Asti, 2005); Contos Madeirenses (Porto, 2005).
António Fournier Nasceu no Funchal em 1966. Antigo assistente na Universidade da Madeira, vive actualmente em Itália onde é docente de Língua e Tradução portuguesa e brasileira na Universidade de Turim, tendo sido anteriormente Leitor de Língua e Cultura Portuguesa pelo Instituto Camões na Universidade de Pisa. Organizou as seguintes antologias: Nostalgia dei Giorni Atlantici (Asti, 2005); Arte do Voo de José António Gonçalves (Vila Nova de Gaia, 2005), Lusitania Express: 20 Storie per un Film Portoghese (Asti, 2006). Coordenou ainda os números monográficos da revista literária Margem dedicados, respectivamente, aos escritores Ernesto Leal (Outubro 2007) e José António Gonçalves (Maio 2008).
João Carlos Abreu Nasceu no Funchal em 1935. Antigo jornalista, estudou em Roma e participou nos trabalhos de imprensa do Concílio Ecuménico do Vaticano II. Viveu em Bolzano – Itália e na Inglaterra. Preside actualmente à Associação “CRIAMAR”. Foi durante 24 anos Secretário Regional de Turismo e Cultura. Tem organizado e participado em Congressos, Colóquios e Seminários sobre literatura, ambiente e turismo. É membro do PEN CLUB. Colaborou em jornais e revistas portuguesas e estrangeiras. Publicou as seguintes obras em prosa: Dona Joana Rabo de Peixe; Mete-me no Teu Coração; Dos Deuses ao Turismo dos nossos Dias; Viagem ao Coração; O Turismo das Culturas; Carta aos Autarcas da Minha Terra. Os seus poemas estão traduzidos e publicados em revistas da especialidade em França, Itália e Espanha. Publicou os livros (poesia): Porta Aberta; Água no Mar; Da Ilha e de Mim; Poemas do Silêncio; Vozes que Navegam Dentro de Mim; A ilha a Duas Vozes; Sobre o Voo da Gaivota. Está ligado à Cidade Antiga do Funchal pela sua recuperação. Recuperou ainda o centro da Vila de São Vicente e o Bairro dos Pescadores de Madalena do Mar. É detentor de vários prémios literários e de turismo.