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Álvaro Alves de Faria

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Xavier

Xavier

ÁLVARO ALVES DE FARIA escrita

Álvaro Alves de Faria, ou o seu álter ego feminino, diz “A poesia é mulher” e eu acrescento, como também o é a lua, aquela luz silenciosa que nos observa todas as noites e é o começo de tantas histórias mágicas que fazem parte da nossa cultura e sonhos. Mas diante desses dois elementos podemos colocar o poema e o sol, ambos masculinos, como o é o homem que descobriu sua alma feminina nesses 47 poemas que agora tenho em minhas mãos.

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Selecção de poemas ditos na inauguração da exposição a 7 de Março de 2020, às 17:23, pelo Actor David Morais Cardoso Álvaro Alves de Faria nasceu na cidade de São Paulo em 9 de fevereiro de 1942. É jornalista, poeta e escritor. Tem formação em Sociologia e Política. Mestrado em Comunicação Social. Recebeu os mais importantes prêmios literários do país. Destaque-se o Prêmio Governador do Estado de São Paulo, Prefeitura Municipal de São Paulo para Poesia e o Pen Clube Internacional de São Paulo, em 1973, para o livro “4 Cantos de Pavor e alguns Poemas desesperados”. Por duas vezes recebeu o Prêmio Jabuti de Imprensa, da Câmara Brasileira do Livro, em 1976 e 1983, por sua atuação em favor do Livro no jornalismo cultural. Por esse mesmo motivo, também foi distinguido por duas vezes com o Prêmio Especial da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1988 e 1989. Esse trabalho em favor do livro vem sendo desenvolvido desde que começou no jornalismo, com menos de 20 anos. Escreve para jornais e revistas, além de comentar livros na Rede Jovem Pan-SAT, da rádio Jovem Pan de São Paulo, trabalho que também realizou, por vários anos, na TV Cultura de São Paulo. Outro prêmio importante na vida do poeta foi o Anchieta para Teatro, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, um dos mais importantes nos anos 70, com a peça “Salve-se quem puder que o jardim está pegando fogo”. Seu livro “Trajetória poética – Poesia Reunida” recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 2003, como o melhor livro de poesia do ano e foi, também, finalista do Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Seu primeiro poema foi escrito aos 11 anos de idade e o primeiro livro, “Noturno maior”, aos 16. Nos últimos anos tem publicado livros especialmente em Portugal. Tem poemas traduzidos para o inglês, francês, italiano, espanhol, alemão, servo-croata e japonês. Seu livro “O sermão do Viaduto” iniciou o movimento de recitais públicos de poesia na cidade de São Paulo, quando foi lançado em pleno Viaduto do Chá, em abril 1965. Nesse local, fez nove recitais de poesia, com microfone e quatro alto-falantes, lendo os poemas desse livro. Por esse motivo foi preso cinco vezes pelo Dops, acusado de subversivo. Os recitais de O Sermão do Viaduto foram proibidos em agosto de 1966. Da Geração 60 de poetas de São Paulo, é talvez o único que partiu para outros gêneros literários, tendo publicado ao longo dos anos livros de poemas, crônicas, contos, novelas, romances, ensaios literários, livros de entrevistas e também escrito peças de teatro.

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Lavo minhas mãos no rio como ma ave que não pode mais voar, dessas que se perdem entre as folhas e bicam outonos no chão, dessas perdidas que esperam a hora dos relógios sem saber que o tempo não existe mais.

Lavo minhas mãos no rio minhas unhas de esmalte vermelho, meus pés que brilham caminhos, estrelas e luas minguantes que escurecem o céu nas noites quietas que escorrem pelas paredes do medo, o medo o medo que atravessa janelas e os chapéus dos homens de 1923, esses homens que evitei por estar cansada de mim.

Sempre estive cansada de mim e sempre calei minha voz quando devia gritar diante das portas, as portas as portas que não queria abrir por estar calada sem a palavra necessária, minha dor que ninguém pode compreender porque não se mostra e se fecha em mim e tanto me fere

a fazer da vida esse mar distante em que viajo quieta a olhar para os lados de meus braços onde guardo minhas pulseiras preces poemas e uma poesia que de mim não diz uma poesia uma poesia que se estende à minha boca à saliva que me escorre: tudo é tão pequeno e pequena sou entre tudo que nada mais sei de mim que deixei de ser.

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Sou a mulher que se vigia e quebra os espelhos quando se mostra minha imagem.

Sou aquela que não sabe, a que esquece, a que sempre se perde.

Aquela que evita, a que morreu ontem à noite, mas descobriu o dia desta manhã.

Sou aquela que ficou em casa a fechar portas e janelas para não fugir de si mesma.

Sou aquela mulher que tentou voar ao mergulhar no abismo.

Aquela que nunca soube fazer as unhas e sair com a roupa do domingo para enganar a aparência de quem esqueceu viver.

Sou aquela que foi à igreja e não voltou nunca mais

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Houve em mim eu mesma havida, como se nascesse no instante inesperado, quando todas as coisas se quebram e a alma queda-se, como diziam os poetas antigos, aqueles que morreram solitários coberto dos sonhos nunca realizados.

Há em mim essa mulher que sonham os poetas em poemas impossíveis de dizer.

Houve em mim o que houve em mim havida, em minha vida, ávida em mim, todos os desejos que me cicatrizaram e costuraram em mim as buscas que me fiz.

Desencontrei-me de mim acostumei-me ao que me fere, mulher que me habito como a uma casa em que abro a porta a ir-me assim despida, assim calada a falar-me por dentro o que não me quero ouvir.

47 POEMAS FEMININOS Álvaro Alves de Faria

Segundo Orígenes de Alexandria, o filósofo neoplatónico grego, o homem interior comporta um espírito e uma alma: o espírito é masculino e a alma é feminina. A estrutura do homem interior suporta-se, assim, na união de elementos distintos de género: o raciocínio e a afectividade; o conhecimento e a abnegação. Esta referência apenas tem razão de ser para justificar a minha leitura de 47 Poemas Femininos, uma vez que, neste conjunto de poemas que determinam um percurso interior, o Poeta, em atitude labiríntica, interpela as faces de Eva que, afinal, existem nele próprio, como certamente em todos os homens, mas assumir e expressar poeticamente esse lado oculto é apanágio de muito poucos.

Note-se bem que Álvaro Alves de Faria não optou pela heteronímia, não foi criar uma personalidade com nome feminino para congeminar 47 poemas, nem tão-pouco os escreveu no feminino. A voz que esta poética revela é uma voz de mulher. Portanto, não existe qualquer equívoco na criação desta obra – ela é tão-só a assunção dessa dualidade que Jung e Bachelard desenvolveram: “animus” (ânimo, espírito) versus “anima” (alma) coexistem no nosso inconsciente; o princípio feminino “yin” e o princípio masculino “yang” conjugam-se como expressão do dualismo e da complementaridade na personalidade interior. Partindo deste pressuposto, o caminho poético escolhido pode parecer máscara ou duplicidade, mas não é. Diria mesmo que se trata, sim, de autenticidade.

O sujeito poético reflecte mesmo sobre esta dualidade, quando, no poema 31, afirma: A alma não existe/ como me dizem os sacerdotes/ mas sei que tenho dentro de mim/ meu espírito/ que tantas vezes a chamar-me/ se desespera. O mais interessante é que esta revelação já tinha sido feita pelo poeta em livros anteriores. Fui encontrar o poema com o título “Masculino” no livro À Flor da Pele, publicado na editora Temas Originais, na Colecção Mínima, que passo a citar: A mulher que vive em mim/ colhe uvas nas quintas/ com um avental de acasos.// Mas sou homem/ e detesto minha condição masculina/ de observar tudo com olhar autoritário.// Prefiro a subtileza feminina,/ aquela que aflora na pele,/ no silêncio da palavra.// A mulher que vive em mim/ morreu ontem./ Matou-se

num momento quieto,/ quando todos os objectos da casa/ estavam se desfazendo.// Não me feriu em nada,/ apenas adormeceu/ com seu comprimido de fazer sonhar.// Vive a colher uvas/ com um avental de acasos/ e as unhas rente à pele dos dedos.// Matou-se como se matam os pássaros,/ mas deixou-me o coração/ pulsando em cima do móvel da sala.

Ao assumir essa voz, o sujeito poético joga com uma frontalidade que, por vezes, aspira a uma inteireza andrógina, tendo a poesia como essência da sua expressão. No poema 7, lê-se: Guardo-me na minha condição/ e a poesia haverá de respeitar-me/ ao dizer-me em suas palavras.// Despida do que me sou,/ vejo-me inteira, sem disfarce,/ inteira, sem receios/, inteirar, sem culpa. E no poema 8, na primeira estrofe, o sujeito poético apropria-se do fingimento poético pessoano, transgredindo-o: Não sinto mais a dor,/ porque já faz parte de mim,/ pulsa comigo o pulso da vida/ e finjo sentir a dor/ que deveras sinto.

Sempre esta voz feminina que realça a dor, o sofrimento, como parte integrante da mulher. No seu percurso pela vida, incorpora-a, numa justificação estóica. A prece é o único bálsamo que a consola, assim como a memória da leveza de momentos vividos como se estivesse numa festa/ vestida de bailarina/ com passos largos/ numa valsa vienense.

No entanto, a condição feminina destrói todos os seus sonhos. O sujeito poético abre o jogo, rasga o sudário e conclui o poema com uma expressiva comparação que vem explicar esse drama interior: Termino-me como um escritor/ que conclui um romance/ e sabe que todos os personagens/ acabam de morrer. Assim, o cepticismo, um desespero inerente, a revolta também, assolam o âmago da consciência desta mulher que declara: estou cansada/ e nada me leva mais/ a acreditar na existência. (poema 9). Ela já não se revê na poesia lírica – aquela que os Clássicos e os Românticos eternizaram na corda tensa entre Eros e Thanatos). Só a poesia, que denuncia o seu infortúnio e a injustiça e o mal-estar que, ao longo de séculos, recaíram sobre ela, a pode dizer, na sua raiva. No poema 29 há uma assunção explícita da identificação: A poesia é mulher/se não fosse mulher/ não seria poesia diz o sujeito-poético; e, como que colando a opinião do escritor a essa voz feminina: A mulher não escreve poemas belos/ mas delicados,/ por mais que

esteja tudo quebrado/ a mulher escreve palavras elegantes/ como a dor/ que nunca pára de doer. Ou então: Há em mim essa mulher/ que sonham os poetas/ em poemas impossíveis de dizer (poema 47).

A sombra que persegue a mulher é a sua outra face, a sua interioridade (Sou a rainha de mim mesmo/ e também/ minha própria sombra/ que não me segue mais). Do mesmo modo, a sua reflexão no espelho leva-a a explicar: Narcisa/ estou partida ao meio/ entre a alma/ e o devaneio/ o pecado/ e o receio. (poema 11), considerando que a intuição, um sexto sentido e a intimidade são qualidades por excelência nela. Por isso, no poema 15, constata: A alma da mulher é diferente/ (...) Vê mais/ sente além/ o que não se alcança/ e se perde/ na própria alma/ que a mulher guarda/ e a ama sozinha. E vai mais longe, o sujeito poético, no poema 13, sendo assertivo ao revelar: Toda mulher tem um amor escondido.// Nem ela sabe,/ mas tem.// Um amor com que sonha/ todos os dias.// Todas as noites/ e madrugadas.// Com esse amor/ essa mulher amanhece// Com ele/ adormece// Mas ele não sabe. E, como se não bastasse toda esta revelação, aind acrescenta no poema 28: O poeta que amo/ é o outro lado de mim/ o que me mantém viva; O poeta que amo/ é meu irmão.

Sabemos que a poesia é a expressão literária que permite penetrar nas recônditas e profundas paragens da consciência, precisamente porque a própria linguagem adquire uma ressonância e simbologia subjectiva, que compete ao leitor captar nas suas faces poliédricas. Escrever poesia é sempre um acto de coragem, de exposição, de exploração do que no mais íntimo de nós pode viver. Neste aspecto, este livro de Álvaro Alves de Faria é simultaneamente uma dádiva íntima, que através da publicação se perpetua, e um hino de empatia com a condição feminina pela forma especular que o poeta usa na sua escrita. Como se a própria poesia que, segundo ele, é mulher convivesse no seu secreto existir com o homem, dotado de outra dimensão que é o ser masculino, e gerasse com ele uma perfeita paixão, no sentido primordial do termo, relacionado com o amor e com o sofrimento, num reflexo permanente que o espelho lhe devolve.

Este complexo entendimento da realidade é manifestado neste poemário em variadas circunstâncias: no desejo de ser mulher na sua inteireza, pautada pelo cansaço feminino, reconhecendo

a falta de afirmação e de liberdade; na rejeição da clausura que a mulher impôs a si própria e na procura incessante do amor; na solidão feminina determinada pelo destino fatal que marca Eva, desde o Paraíso; na aceitação da rotina, se houver o espaço/ e a liberdade de dizer a palavra precisa/ que pega certeira na vida do homem/ e faz renascer/ o que já foi nobre/ alguma vez (poema 23); na passagem inexorável do tempo e na constatação da condição feminina que se rende à compaixão e à resignação (Quero fugir de mim/ mas não consigo,/ guardo-me nas minhas queixas/ para assim morrer comigo. - poema 45); na necessidade da fuga existencial, de resguardo e recolhimento, no sentido de um isolamento que conduz a mulher ao esquecimento do próprio destino; na esperitualidade feminina que se opõe à existência de uma alma na concepção cristã; na conjugalidade como cativeiro; na prece, essa forma de relação com o sagrado que protege e salva da árdua caminhada nesta vida; na efemeridade e na iminência da morte (Parco é o tempo/ que há ainda por viver,/ esse tempo/ esse tempo/ esse dia/ essa hora de morrer// Parco é o corpo/ que em mim se perde/ na mulher que significo. (poema 46).

Em suma, esta é a poesia do que resta viver, como diz o sujeito poético no poema inaugural, a poesia que nos obriga a reflectir, que nos surpreende, que nos comove pela franca partilha do sentir, a poesia dum Poeta maior da Literatura Brasileira que, de livro em livro, nos vai deixando a sua obra e a sua vida.

Leocádia Regalo

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