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Aurora Gaia

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Xavier

Xavier

AURORA GAIA escrita

Nascida no Porto, a 7 de setembro de 1938, viveu longos anos em Gaia. Reside atualmente no Furadouro, Ovar. Desde sempre associada a projetos de cariz cultural, desenvolveu a sua atividade profissional na televisão – na RTP<7i>, no Monte da Virgem – como caracterizadora. Em 1980, sob a direção de Norberto Barroca, estreou-se na companhia de teatro Seiva Trupe na peça “Quanto vale um poeta”. Seguiram-se “Um cálice de Porto”, “A dama de copas”, “Liberdade em Bremen” e “Marlene”. No Teatro Experimental do Porto (TEP), interpretou “A lenda de Gaia”, “Reginaldo”, “Os fantasmas”, “É urgente o amor”, “Henriqueta Emília da Conceição” e “Felizmente há luar”. A televisão e o cinema têm tido um lugar muito especial na sua vida. No cinema, participou em longas, médias e curtas metragens, entre as quais se destacam os filmes “Uma relação fiel e verdadeira” de Margarida Gil, “Intermitências”, “Estado de graça” e “Quando eu morrer”, estes três últimos exibidos no Fantasporto. Foi, ainda recentemente, protagonista em “Chá da noite” de Luís Moya, faz parte do elenco das séries “Triângulo Jota” e “Lendas de Portugal”. A sua interpretação em “Intermitências” valeu-lhe uma nomeação honrosa. Apesar de aposentada, tem continuado a dedicar-se à formação de caracterização em escolas, coletividades e na Federação Portuguesa de Teatro. Tem-se dedicado à poesia, quer como autora quer como divulgadora. Participação em várias Coletâneas e Rádio. Foi homenageada, pela sua atividade em prol da arte, pelo Teatro, com o prémio Amasporto, em 2005. Em Abril de 2013, lança com sucesso o seu primeiro livro de poesia E por isso eu amo tanto a Palavra. Obra selecionada na Lista Final para o Prémio Literário de Poesia Glória de Sant’Anna 2015. Na “XII Edição do Concurso Nacional de Teatro de 2016” é-lhe atribuído o Prémio Prestígio Personalidade Fundação INATEL 2016. Galardão entregue no Encerramento do Concurso Nacional de Teatro de Póvoa de Lanhoso, pela Vice-Presidente da Fundação INATEL a atriz Inês de Medeiros. Foi homenageada como Personalidade, Caminhos de Memória 2018 da Fundação Dionísio Pinheiro e Alice Cardoso Pinheiro. Em 2019 recebeu a Medalha de Mérito Municipal Prata, atribuída pela Câmara Municipal de Ovar.

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A MINHA RUA

Quero falar-vos da minha rua Era uma vez uma menina Pobrezinha mesmo surdinha mesmo Não nasceu como nascem as outras meninas Não foi por obra e graça do Espírito Santo Não nasceu numa manjedoura de palha dourada Não veio no bico dourado da cegonha Não veio de dentro de uma abóbora Não veio da terra dos franceses Não veio da roda de caridade Não veio sequer enrolada numa folha de couve Era apenas filha da mãe e bastava Foi assim botada na vida e bastava Assim tão sem jeito de contar.

Vou falar-vos do Porto velho e sujo Do Jardim das criadas e magalas Rufias e velhos senis e lixo Prostitutas proxenetas e maricas Onde as pobres crianças pobres Brincavam ao Ana ina não ficas tu eu não Mas eu ficava sempre e tirava a sorte à sorte A sonhar fugia para o lago e com os patos repartia o pão Cantava e chorava as penas dos patos as nossas penas Ah ah ah minha machadinha Quem te pôs a mão sabendo que és minha Sabendo que és minha também eu sou tua Salta machadinha para o meio da rua

Jardim da Cordoaria Jardim dos meninos sem jardim Meninos velhos e sem infância Sem janelas sem sol sem estrelas Ao ver os pássaros voar chorava Por não poder voar ir pelo céu adentro Ir até às estrelas voar no pensamento

Ir para onde houvesse jardins com crianças O importante era ir e não ficar ali esquecida Bom barqueiro bom barqueiro deixai-me passar Tenho filhos pequeninos não os posso criar Passarás passarás mas algum há-de ficar Se não for o da frente há-de ser o de trás E o ceguinho e a menina a cantar cantigas de cordel Eram estórias de faca e alguidar de arrepiar Santa mãe que estás no céu ó mãe Pede a Deus pelos teus filhinhos mãe

Lembro-me do velho coreto da Cordoaria Onde a banda tocava música ao longe Sabem o que é viver no meu Porto Não no Porto dos outros mas no meu Com as suas noites cheias de sombras e histórias E das sombras profundas dos olhos do Sr José O barbeiro poeta lá da rua e a paixão pela Amelinha Menina rica e recatada atrás da cortina a olhar a vida E a batateira sempre a espantar a canalha espantada O Carlinhos da Sé atarefado de cesta de aventais no braço Era perseguido e arreliado pela canalha mas eu protegia-o Lá vai uma lá vão duas três pombinhas a voar uma é minha outra é tua outra para quem agarrar

Sophia em ti convoco a nossa Praça Carlos Alberto Do Soldado Desconhecido hirto frio e um passarinho cuidei dele Teve por caixão uma velha caixa dos meus velhos sapatos de ver a Deus E a Praça dos Leões sempre cheia de estudantes Leões Alados onde estão as vossas asas As vossas capas negras vocês eram a força Eram o viver eram o futuro eram o saber E a água sempre a correr como lágrimas no meu rosto E sabia eu já as minhas limitações porque foi Que toda a ignorância se alojou em nós As pobres crianças pobres Leões Alados vós sabeis porquê porque foi E o Bazar dos Três Vinténs tão lindo mas O burro vai à feira por três vinténs mas

Maravilhoso mundo infantil mundo de brincar Das crianças bem na vida das crianças família Mas não do meu Porto não do Porto que eu vivi Lembras-te daquele narizito colado aos vidros das montras Por ironia continua de nariz colado achatado

E é chato ver a vida a correr além do vidro Babona que estás no meio babona Estás feita uma toleirona babona Estás vendo o anel passar ó babona Sem nunca o poderes achar ó babona Ele aí vai ele aí vem ele por aqui passou

Era bom saltar à fogueira e o alho porro E a erva cidreira as farturas o manjerico E alho porro senhora comadre vá dar o alho a quem você sabe E recacoila recacoila recacoila E o S.João a fazer na caçoila

Saltar à fogueira na Cordoaria descer em fila indiana os Clérigos O doce da Teixeira a regueifa quentinha com manteiga Vianeza Cabrito a assar na padaria e a sardinha assada nas Fontainhas O Notícias a sair quentinho com as quadras Sanjoaninas Ó Sr Polícia cheire o meu alho porro Porra pró homem Foge rapariga se t´apanho nico-te E os balões a pontear o céu como estrelas brilhantes Balão cai cai na quinta do teu pai balão cai cai As cascatas com os santinhos dos santeiros de Gaia Enfeitadas com pratinhas e papeizinhos de rebuçados Era tão linda a minha cascata brilhante de todas as cores Ó meu sinhore dê-me um tostãozinho pró S João Ó minha linda menina o S João também come Oh carago é prá cascata Toma lá rapariga 10 tostões Ei que festa aquela e lá dividíamos Nem sempre tão irmamente como isso Sou primas sou sigas sou trigas E a correr lá íamos comprar Vitórias Eh pá já tens o bacalhau diz lá carago E o cabrito e a cobaia Oh que azar porra S João p´ra ver as moças Fez uma fonte de prata Mas as moças não vão à fonte E S João todo se mata

Igrejas do Carmo São Bento Congregados Onde mulheres gastas cor das pedras Crianças velhas por viver de olhos maiores que a barriga Meninas mulheres cheias de barriga até aos dentes Cheias até à ponta dos cabelos incertos Cheias de fome e de filhos com fome

Vendiam atacadores pentes esticadores pós colarinhos Ó qrida lebeme um raminho de bioletas Por alminha de quem lá tem qinda num me estriei Quem quer esticadores pós colarinhos quem quer Com os seus pregões feitos gemidos quem quer Quem quer e ninguém queria

Tim Tim Tim Tim Havia o carro eléctrico Tim Tim Era amarelo amarelinho Tim Tim Bancos de palhinha e era amarelinho Tim Tim Srs Passageiros chegar à frente por favor Tim Tim E eram encontrões apalpões olha o filho da Que me apalpou o cu era bom ir até ao mar E o mar lá estava e já lá estava o mar Tim Tim Era tão bom ir até lá longe até à Foz ver o mar O mar enrola na areia Ninguém sabe o que ele diz Bate na areia e desmaia Porque se sente feliz

Palácio de Cristal agora feito um espremedor Ir lá era dia de festa os cisnes no lago Flores e um pobre macaco pássaros coloridos Comer a língua da sogra barquilhos Um sorvete de dois tostões do feitio do meu sonho A fava rica camarinhas tremoços pinhões enfiados Pirolitos e com a bolinha jogava ao berlinde Sou primas sou sigas sou trigas

Mas o mais difícil é falar da minha Rua Por pudor por receio de vos chocar Reconhecem-me lá Reconhecem-me lá na minha rua prisão Rua sem calor nas almas feitas de pedra Rua de ódios de raiva funda calcada Rua fria rua feia rua sombria Rua das vidas mal vividas Olhem-me bem de frente Reconhecem–me lá

Rua dos obscuros sentidos Rua suja dos bêbados pelos cantos Rua sempre molhada escorregadia Rua da cadeia das cadeias sem elos

Rua de pouca gente boa sem história Rua do amor alugado no vão de uma escada Rua do amor oferecido nos sexos apodrecidos Rua do desamor rua do ciúme Rua dos mendigos esperando as sopas Rua das esperas nas esquinas Rua dos cães sem dono e sem coleira

Sou o que resta dessa rua sem sol Da casa sem janelas sem nada A minha rua era assim

Aurora Gaia

Todo o texto é intercalado com cantilenas infantis

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