nº18 2017
“É cedo para dizer que chegou ao fim o ciclo progressista na América Latina” Entrevista de Luis Salas, ex-ministro da Venezuela
Contrarreforma trabalhista: o grande desmanche Ruy Braga
Empreiteiros e poder no Brasil
Pedro Henrique Pedreira Campos
Racismo, ideologia e economia política Silvio Luiz de Almeida
Mais Lênin, ... além de Gramsci Milton Temer
A luta na Palestina hoje Waldo Mermelstein
a saga dos guaranis-kaiowás
S U M Á R I O
EDITORIAL Presidente Juliano Medeiros Diretor-financeiro Lucas Van Ploeg Diretor Técnico Gilberto Maringoni Conselho Editorial Áurea Carolina
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Juliano Medeiros “É CEDO PARA DIZER QUE CHEGOU AO FIM O CICLO PROGRESSISTA NA AMÉRICA LATINA”
4
Entrevista de Luis Salas, ex-ministro da Venezuela CONTRARREFORMA TRABALHISTA: O GRANDE DESMANCHE
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Ruy Braga
Chico Alencar Cid Benjamin Denise Gentil Edmilson Rodrigues Glauber Braga
A REFORMA AGRÁRIA PRECISA DO APOIO DOS TRABALHADORES DAS CIDADES
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Gilmar Mauro
Guilherme Boulos Ivan Valente Jean Wyllys José Paulo Neto Juliano Medeiros
EMPREITEIROS E PODER NO BRASIL
18
Pedro Henrique Pedreira Campos
Luciana Araújo
NÃO GENERALIZEM O CAMPO EVANGÉLICO
Luciana Genro
Henrique Vieira
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Luiz Araújo Luiza Erundina Marcelo Freixo Maria Rita Kehl Michael Löwy Milton Temer
RACISMO, IDEOLOGIA E ECONOMIA POLÍTICA
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Silvio Luiz de Almeida MAIS LÊNIN, ... ALÉM DE GRAMSCI
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Milton Temer A LUTA NA PALESTINA HOJE
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Waldo Mermelstein A Revista Socialismo e Liberdade é uma publicação da Fundação Lauro Campos. Os artigos assinados não representam necessariamente a opinião do veículo, as ideias contidas neles são de responsabilidade de seus autores. Editor-chefe: Cid Benjamin. Comitê Executivo: Carolina Peters, Cid Benjamin, Frederico Henriques, Juliano Medeiros, Luciana Ararújo, Luiz Arnaldo Dias Campos e Milton Temer. Produtor editorial: José Ibiapino Ferreira. Jornalista responsável: Rodolfo Vianna (MTb 54.137/SP). Revisão: Cid Benjamin e Rodolfo Vianna. Projeto Gráfico: Cláudio Zamboni. Editoração Eletrônica: Zaha Comunicação. Endereço para correspondências: Rua Barão de Limeira, 1400 - Campos Elíseos - CEP: 01202-002 - São Paulo-SP - Brasil. Fones (55 11) 2985.6173 - 2985.5876. Site: www.laurocampos.org.br - fundacao@laurocampos.org.br. facebook.com/laurocampos. Tiragem: 8 mil exemplares.
A QUESTÃO DO TRABALHO
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Karl Marx O LÉXICO DE ANTONIO GRAMSCI: ENTRE FILOLOGIA E POLÍTICA
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Álvaro Bianchi RETOMAR STONEWALL E RADICALIZAR O MOVIMENTO LGBT BRASILEIRO
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Cesar Fernandes e Rodrigo Cruz MARTÍRIO, A SAGA DE UM POVO QUE INSISTE EM VIVER NA SUA TERRA Luiz Arnaldo Dias Campos
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O número 18 da revista SOCIALISMO e LIBERDADE chega aos leitores num momento decisivo da crise política que se aprofundou dramaticamente com as revelações que atestam o envolvimento direto do ilegítimo presidente da República em crimes como obstrução de justiça, prevaricação e corrupção passiva. No momento em que o governo golpista buscava demonstrar força junto aos agentes econômicos para viabilizar suas contrarreformas e sobreviver até 2018, as denúncias alteraram o jogo. Tudo isso somado à ofensiva dos setores populares contra Temer demonstra que seu plano de destruir os avanços sociais conquistados pelo povo nos últimos 30 anos corre risco iminente. Por isso, esta edição de SOCIALISMO e LIBERDADE, ainda que preparada antes da divulgação dos áudios que flagram o presidente ilegítimo em transações criminosas com alto representante do capital monopolista brasileiro, vem colaborar com a reflexão sobre a saída para a crise política, social e econômica que assola nosso país. Para isso, compreendendo que a ofensiva do capital sobre os direitos não é um fenômeno exclusivamente nacional, mas expressa uma dinâmica mundial cujas principais expressões são a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais nos Estados Unidos e o fortalecimento do projeto de extrema-direita na Europa, trazemos uma entrevista com Luiz Salas, ex-ministro da Economia do governo bolivariano da Venezuela. De forma transparente e honesta, Salas responde aos questionamentos formulados por mim e pelo economista José Luis Fevereiro sobre a situação política, econômica e social da Venezuela e sobre os rumos daquela que foi, até pouco tempo, a mais pujante experiência de resistência anti-imperialista na América do Sul depois da Revolução Cubana. Os dilemas que Salas apresenta, especialmente no campo econômico, devem servir para a reflexão sobre os caminhos que deveremos apresentar nas eleições presidenciais de 2018 para que a esquerda possa voltar a se postular como alternativa para os trabalhadores e trabalhadoras. Análise que também nos prepara para o futuro é a que nos é oferecida pelo professor da Universidade de São Paulo (USP), Ruy Braga, que trata dos impactos do processo de reestruturação produtiva no Brasil e da ofensiva do capital sobre o mundo do trabalho. Ainda no campo dos problemas relacionados à realidade brasileira, os excelentes artigos de Sílvio Almeida e Pedro Henrique Pereira de Campos analisam, respectivamente, a relação estrutural entre o racismo e a dinâmica da dominação capitalista e a histórica
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simbiose entre o Estado brasileiro e os grandes grupos econômicos da construção civil. O teólogo, pastor e militante do PSOL Henrique Vieira nos traz um texto sobre os desafios para uma maior interlocução da esquerda com os segmentos evangélicos, tema que está na ordem do dia. Já Gilmar Mauro, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), discorre sobre os desafios da reforma agrária na nova configuração do campo brasileiro. Estimulando a reflexão teórica sobre os desafios do passado, do presente e do futuro, temos ainda dois artigos de peso. Álvaro Bianchi e Milton Temer analisam o legado de Gramsci, cujo desaparecimento físico completou 80 anos no último mês de abril, e sua importância para a esquerda brasileira ainda hoje. Reconhecido como um dos mais influentes pensadores marxistas no Ocidente, Gramsci segue atual com suas análises sobre hegemonia, Estado e papel da organização política. Ainda no campo da teoria, trazemos versão inédita de texto escrito por Marx sobre a questão do trabalho. Traduzido para o português por Carolina Peters e Murilo Leite, ele aparece pela primeira vez para o público brasileiro nas páginas de SOCIALISMO e LIBERDADE. Artigo de Waldo Melmerstein, judeu ativista da causa palestina, apresenta reflexões sobre a luta do povo palestino contra a opressão e por sua autodeterminação. E, como temos feito nos últimos números, lembramos a luta da comunidade LGBT por direitos, representada na épica batalha de Stonewal, em artigo de Cesar Fernandes e Rodrigo Cruz. Em outro texto, o cineasta e dirigente do PSOL, Luiz Arnaldo Dias Campos, traz resenha sobre o filme Martírio, de Vincent Carelli, que retrata o drama do povo guarani-kaiowá, vítima da violência do latifúndio contra os povos indígenas. Aliando análises sobre a conjuntura com o resgate das experiências de luta dos povos e a reflexão teórica, SOCIALISMO e LIBERDADE segue dando sua contribuição para que dirigentes, militantes, filiados e simpatizantes do PSOL e do campo democrático e popular possam lutar mais e melhor por um Brasil e um mundo socialistas. Boa leitura! Juliano Medeiros Diretor-presidente da Fundação Lauro Campos
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“É cedo para dizer que chegou ao fim o ciclo progressista na América Latina” Luis Salas, ex-ministro da Venezuela
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ALBA CIUDAD
Entrevista a Juliano Medeiros* e José Luis Fevereiro**
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Luis Salas
Para dirigente, com a Constituinte o país vai discutir mais política e o governo pode recuperar a iniciativa
REPOSITÓRIO FSM
é especulação, monopólio e usura”. Propunha, também, a moratória diante dos credores internacionais da Venezuela para usar os recursos em investimentos produtivos. Formado em sociologia na Universidade Central da Venezuela, Salas fez mestrado no Chile e foi professor de Economia Política da Universidade Bolivariana da Venezuela (UBV). É fundador do Centro de Estudos de Economia Política daquela universidade. Ele respondeu às perguntas da revista SOCIALISMO e LIBERDADE por email. A Revolução Bolivariana foi o mais avançado processo de enfrentamento político contra o imperialismo nas últimas décadas na América Latina. Qual a origem da crise atual? As dificuldades podem ser superadas? A situação que estamos vivendo Hugo Chávez
tem explicações de longo, médio e curto alcance. O processo bolivariano veio na contramão das principais tendências mundiais na última dé-
no, em janeiro do ano passado, Luis Salas tinha apenas 39 anos. Apontado como um dos expoentes da ala mais à esquerda do chavismo, Salas durou pouco no cargo. Pouco mais de um mês depois foi substituído pelo empresário Miguel Perez Abad, que estava à frente do Ministério da Indústria. Salas é um defensor do processo revolucionário venezuelano e, mesmo nas críticas, coloca-se ao lado do governo bolivariano. Ao ser empossado, propunha o aprofundamento do processo revo-
samos por diferentes momentos e vivemos um momento mais agudo, o que tem a ver com alguns fatores. O primeiro, a morte do presidente Chávez no começo de 2013. A partir desse momento, o confronto se torna mais intenso. Depois, houve mudanças na economia mundial, com a queda dos preços das commodities, dentre eles o do petróleo. Isso significou um ciclo menos virtuoso do que o que estávamos vivendo. E eu agregaria um terceiro fator, relacionado com a disputa interna, na qual também o governo tem uma parcela de responsabilidade, porque não soube ou não conseguiu
“Não tem sentido falarmos de infla-
Essa situação, com o tempo, tornou
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lucionário e uma política mais dura
cada. Isso acarretou choques. Pas-
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de Economia do governo venezuela-
“O processo bolivariano veio na contramão das principais tendências mundiais na última década. Isso acarretou choques. Passamos por diferentes momentos e vivemos um momento mais agudo”
e
Economia Produtiva e vice-presidente
S O C I A L I S M O
Quando foi nomeado ministro da
ção e escassez, quando o que temos
mais agudo o confronto.
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contra os sabotadores da economia:
fazer frente a ataques especulativos.
Um dos problemas históricos da Ve-
aparentemente terminaram em fra-
nezuela é a dependência econômica
Isso aconteceu pela natureza dos
frente às flutuações dos preços in-
grupos econômicos dominantes em
ternacionais exigiria maior diversifi-
Venezuela. Nossa economia é dife-
cação da economia? Por que não se
rente da economia brasileira ou ardomina é uma burguesia comercial
ricos da Venezuela é a dependência
e mercantil mais do que uma bur-
econômica do petróleo. E conseguir
guesia industrial. Isto faz com que
que o pais seja imune às consequ-
a burguesia venezuelana seja contra
ências das flutuações dos seus pre-
qualquer processo de industrializa-
ços passa por conseguir avanços
ção clássico, como os que ocorre-
significativos na planificação da
ram em outras partes. Nos anos 40,
economia. Por que não se conse-
tivemos um governo da burguesia
guiu? Isso é um processo lento. E é
industrial que foi derrotado por
preciso uma primeira etapa que crie
esta mesma burguesia comercial e
condições para isso. Quando Chávez
mercantil, a quem não interessava
assumiu a Presidência, em 1999, a
um processo de industrialização,
Venezuela vinha de 20 anos de uma
porque ela vivia e vive fundamen-
crise econômica muito forte, com
talmente das importações. Por outro
índices de desnutrição e evasão es-
lado, ao longo desses anos houve
colar grandes. Assim, o primeiro a
mudanças que, entre outras coisas,
ser feito foi criar certas condições.
significaram a inclusão de peque-
Por um lado, pagar a dívida social
nos e meios empresários agrupados
herdada do neoliberalismo dos anos
numa central que se chama Feindus-
80 e 90. De outro, ser capaz de dar
tria. Ela é diferente da central dos
tiva. Então, é uma questão de etapas na qual se avançou muito, mas em meio à agudização dos conflitos, porque tudo foi feito num clima de disputa. Desde 1999, a Venezuela se os poderes econômicos mundiais e locais, o que fez com que não tivéssemos podido avançar tudo o que gostaríamos.
e
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encontra num duro confronto com
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gentina. Aqui, a burguesia que pre-
De fato, um dos problemas histó-
um salto para uma economia produ-
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do petróleo. Tornar o país defendido
conseguiu isso?
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casso. Por quê?
Administrar uma economia ainda capitalista com um sentido de transformação socialista coloca dificuldades enormes. Isso dificilmente se
“Desde 1999, a Venezuela se encontra num duro confronto com os poderes econômicos mundiais e locais, o que fez com que não tivéssemos podido avançar tudo o que gostaríamos”
grandes empresários, que se chama Fedecâmara. Houve também a aparição de novas formas associativas ou econômicas, como as empresas de propriedade social (EPS) ou empresas mistas, com participação do Estado e das comunidades. Temos tido progressos, mas não tanto nas áreas mais sensíveis, como as de alimentos, produtos de higiene e limpeza ou peças de reposição para automóveis. Aí, o poder dos grandes monopólios é muito forte, e excetuando-se o caso da Polar, que é um monopólio venezuelano, todos os demais são transnacionais, como os
consegue sem algum nível de coope-
que existem nos produtos de higie-
ração de parcelas dos setores econo-
ne e limpeza ou no caso dos alimen-
micamente dominantes. A Venezuela
tos. Assim, não é tão fácil substituí-
fez algumas tentativas para isso, que
-los como gostaríamos.
presa, necessitam certo tempo para
os avanços e quais os limites dessa ex-
se consolidar. Além disso, há mitos a
periência? Por que ela não foi capaz
esse respeito. Muitas foram estatiza-
de assegurar a soberania alimentar da
das por terem sido abandonadas pe-
Venezuela?
los seus donos. Assim, não é verdade
Como foi dito, na Venezuela foi fei-
que o governo as tenha expropriado
ta uma reforma agrária. Chávez avan-
e, depois, não tenha conseguido
çou nesse sentido e proibiu o latifún-
torná-las produtivas. A maioria foi
dio. Uma das grandes conquistas foi
abandonada pelo setor privado em
a democratização do acesso à terra. O
más condições. O que, sim, é verda-
processo teve muitos conflitos políti-
de é que o Estado tomou a seu cargo
cos. Houve de 200 a 300 líderes cam-
mais do que a capacidade gerencial
poneses assassinados por proprietá-
para administrar essas empresas. O
rios de terras ou por grupos ligados a
ideal teria sido que as coisas andas-
eles. Mas não se conseguiu alcançar
sem em sintonia, mas a vida não é as-
a soberania alimentar porque, como
sim. De qualquer forma, é importan-
eu disse, boa parte da produção dos
te que o Estado mantenha um setor.
alimentos mais sensíveis depende de
Isso não deve ser desprezado. E não
nacionalizados. Ainda assim, uma
Nicolás Maduro
é o caso de se começar a reprivatizá-lo com a justificativa de que o setor
rede extensa de pequenos e médios
privado vai fazer isso de forma mais
produtores agrícolas tem conseguido
eficiente. Isso não é verdade.
não seja tão grave a crise que vivemos. Mas esses produtores não têm expressão suficiente para suplantar os monopólios e os oligopólios. Eu diria também que, inclusive, o governo não tem a disposição suficiente para apoiá-los mais, por várias razões. Ainda assim, creio que se está avançando. Mas o problema está na parte mais sensível da economia, com o peso dos monopólios e dos oligopólios, que segue sendo muito grande e exercendo seu poder no mercado. Setores da economia sob administração pública enfrentam, segundo muitos, problemas agudos de gestão. O avanço da estatização foi mais rápido do que o desenvolvimento da capacidade gerencial do Estado? Em parte isso ocorreu, mas também é verdade que muitas dessas empresas foram estatizadas nos últimos
“No Brasil (...) se decidiu conciliar, inclusive nomeando um banqueiro como ministro da economia. Na Venezuela não se chegou a tanto, mas o governo muitas vezes agiu como se (...) cedendo às pressões especulativas pudesse ganhar tempo e (...) acalmar os que nos atacavam”
No cenário atual de crise econômica, com a queda dos preços internacionais do petróleo em relação e o desgaste político, parece que o governo tenta ganhar tempo com o diálogo. Há perspectivas de que a crise diminua a tempo de a esquerda se recuperar e vencer as próximas eleições presidenciais? Esse quadro já vinha sendo anunciado por Chávez em 2010. Mas o governo não foi suficientemente ágil para prever essa situação e atuar. É verdade que denuncia os ataques especulativos, mas nem sempre soube atuar contra eles. Fazendo uma analogia, em que pese as diferenças, isso me faz lembrar um pouco a situação de Dilma Roussef diante dos ataques especulativos dos setores econômiforma, mais do que enfrentá-los, se
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abastecer as cidades e fazer com que
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monopólios ou de oligopólios trans-
e
uma profunda reforma agrária. Quais
tempos e, como toda e qualquer em-
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ALBA CIUDAD
No governo de Chávez teve início
decidiu conciliar, inclusive nome-
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cos brasileiros. No Brasil, de alguma
década anterior. Então, creio que na
podem ser promovidas pelo proces-
da economia. No caso da Venezuela
Venezuela, desde o ponto de vista
so constituinte para ajudar as forças
não se chegou a tanto, mas o gover-
dos números, é indiscutível o êxito
populares diante da burguesia e da
no muitas vezes agiu como se pen-
do controle do câmbio. Mas o que
direita pró-imperialista?
sasse que, cedendo às pressões es-
acontece também é que, nos últi-
O primeiro ponto positivo da
peculativas, pudesse ganhar tempo
mos tempos, pressionado pelos ata-
Constituinte é que a iniciativa polí-
e, talvez, acalmar os que nos ataca-
ques da oposição, o governo optou
tica passa para o governo. Recobra-
mais pela flexibilização, o que não
da a iniciativa, recomeça o debate.
funciona, porque não é interpreta-
trouxe resultados.
Ainda que não haja cessado a vio-
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ando um banqueiro como ministro
vam. Na prática esse mecanismo não
como debilidade. E os inimigos nos
O governo acaba de invocar o artigo
te. Isso já ajuda amainar um pouco
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e
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atacam mais. Entre 2003 e 2012 o
da Constituição que prevê a convoca-
a violência, o que é positivo. E, por
controle do câmbio conseguiu con-
ção de uma assembleia constituinte.
mais golpeado que esteja o chavis-
trolar a inflação e baixá-la a níveis
Como esse processo pode ajudar na
mo, ele tem mais propostas do que
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inferiores à metade do estavam na
superação da crise? Que mudanças
a direita. Efetivamente, pesquisas
do como sinal de boa vontade, mas
lência, hoje se discute a Constituin-
da própria direita mostram que uma
clo de governos progressistas dependeu
das suas principais preocupações,
da expansão econômica que o mundo e
reconhecidas por seus próprios mi-
a América Latina viveram?
não é muito popular. São coisas no estilo Macri, na Argentina, ou Temer, no Brasil. Assim, as propostas do chavismo são muito mais atraentes para a população. Quando se dá o debate, ele fica em vantagem. Então, a Constituinte pode criar um cenário para fortalecer o avanço popular, mas para isso é importante derrotar a violência fascista que tem se manifestado com muita força. As políticas de integração lideradas pela Venezuela - em especial a Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América (Alba) – desempenharam um
progressistas foi dependente da expansão econômica. Esta foi um fator importante, sem dúvida, mas a afirmação é limitada. Além disso, não acredito, diferentemente de alguns setores da esquerda, que esse ciclo tenha chegado ao fim. Em particular no Brasil, houve uma situação muito particular, um golpe de estado. No caso da Argentina, ainda que para os efeitos isso seja irrelevante, não foi tanto a campanha de Macri que venceu. A campanha do kirchnerismo e do justicialismo foi muito ruim e, em boa medida, isso foi mais importante para a derrota do que o desempenho de Macri. Vemos as mobilizações que ocorrem no Brasil, vemos o que está
importante papel na cooperação entre
acontecendo na Argentina, vemos
países cuja orientação econômica con-
que a Venezuela, apesar de todos os
trariava os interesses imperialistas na
prognósticos negativos, vai se sus-
América Latina. Que avanços houve e
tentando. Por isso, é cedo para afir-
que dificuldades esse processo de inte-
mar que chegou ao fim o ciclo dos go-
gração enfrentou?
vernos progressistas. São períodos de
Ele chegou a avançar muitíssimo.
longo prazo na história e eles podem
Existia um eixo que para nós era vi-
atravessar momentos de turbulência.
tal, o que Chávez chamava de eixo
Claro que tampouco se pode afirmar
Caracas-Brasília-Buenos Aires, e que
que esteja havendo uma continuida-
agora está contra a Venezuela. A par-
enorme preocupação dos Estados
de tranquila desse ciclo de governos
tir do que aconteceu no Brasil e na
Unidos, a quem não interessa que
progressistas. Tudo pode acontecer
Argentina, ele acabou. Creio que os
uma economia como a brasileira
e é possível que haja uma restaura-
ataques contra a Venezuela não tem a
saia de sua órbita de influência.
ção neoliberal, mas o processo segue
ver apenas com a Venezuela, mas tam-
aberto ainda. De qualquer forma, é
bém com um processo de desintegra-
Nos últimos anos houve três golpes
preciso lutar para que não haja um
ção da região, que, nos últimos anos,
de estado na América Latina (em
retrocesso a épocas que, de alguma
nos tempos de Lula, Kirchner e Chávez
Honduras, no Paraguai e no Brasil),
forma, já foram superadas na região.
tinha tido uma consolidação regional
além de tentativas de desestabiliza-
forte e muito importante. Perdemos
ção na Bolívia, no Equador e na Ve-
(Tradução: Cid Benjamin e
terreno e este é um terreno que preci-
nezuela. Há projetos conservadores
Javier Torres)
samos recuperar, não somente no caso
retomando terreno na Argentina e
venezuelano, mas em toda a região.
mantendo o protagonismo no Peru e
No caso do Brasil, em particular, há um
na Colômbia. Pode ser dito que o ci-
*Presidente da Fundação Lauro Campos **Economista e dirigente nacional do PSOL
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econômico. O pouco que mostram
mação de que o ciclo dos governos
e
político. E menos ainda um projeto
“É cedo para afirmar que está acabado o ciclo dos governos progressistas. São períodos de longo prazo na história e eles podem atravessar momentos de turbulência. (...) Tudo pode acontecer”
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apresenta abertamente, um projeto
Creio que seria apressada a afir-
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litantes, é que ela não tem, ou não
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a t a q u e s
a o
m u n d o
d o
t r a b a l h o
Contrarreforma trabalhista: o grande desmanche
Ruy Braga* Enquanto escrevo, o governo federal tenta firmar um acordo de líderes na Câmara dos Deputados a fim de garantir a aprovação de um requerimento de urgência para aprovar a contrarreforma trabalhista no início de junho. Mesmo diante da profundidade da crimentares não recuaram da decisão de atacar barbaramente a proteção trabalhista. Afinal, trata-se de uma proposta essencial para assegurar a transição
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para uma estrutura econômica orientada pela acumulação por espoliação.
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e
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se política que assola Brasília, os parla-
reconduzam o país ao século XIX.
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(CLT). O pacote de maldades contra o
E os interesses dos setores empresariais precisam ser assegurados. Custe o que custar. Ainda que as medidas Foram mais de cem alterações na Consolidação das Leis do Trabalho
Foram mais de cem alterações na CLT. O pacote de maldades é muito grande para ser detalhado neste espaço. Apenas para ficarmos em dois exemplos, o projeto aprovado na Câmara permite que grávidas trabalhem em ambientes insalubres e o intervalo na jornada pode ser reduzido para 30 minutos
trabalhador brasileiro é muito grande para ser detalhado neste espaço. Apenas para ficarmos em dois exemplos, o projeto aprovado na Câmara permite que grávidas trabalhem em ambientes insalubres e o intervalo na jornada pode ser reduzido para 30 minutos. No agregado, o projeto condensou um conjunto de medidas que já vinham sendo discutidas na Câmara por meio de uma série de projetos de lei apresentados por acólitos de empresas travestidos de deputados. As principais frentes do ataque são, sinteticamente, a dominância do negociado sobre o legislado, a flexibilização da jornada de trabalho e o bloqueio do acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho. Do ponto de vista do negociado sobre o legislado, é importante destacar que dos cerca de 13 mil sindicatos atuantes no setor privado hoje no país, a esmagadora maioria funciona como
mo terceiro salário em 12 parcelas, por
com o décimo terceiro salário etc. A
empresas benefícios reais para os tra-
exemplo. Numa negociação posterior,
aprovação da contrarreforma criará
balhadores. As razões para isso são va-
bastaria que as empresas apresentas-
uma situação potencialmente explo-
riadas e vão desde o simples burocra-
sem uma proposta de diminuição sa-
siva no país, com um compreensível
tismo sindical até causas estruturais,
larial de 8,5%, caso a inflação seja de
aumento da violência nas relações de
como o aumento do desemprego e do
0%, algo proibido pela legislação atu-
trabalho.
subemprego, além da fragmentação
al, ou mesmo que deixassem de dar o
Em relação à flexibilização da jorna-
das bases dos sindicatos, a pouca tra-
reajuste salarial, caso a inflação fosse
da, o grande risco é a generalização do
dição sindical em muitas regiões, a fra-
de 8,5%, para que o décimo terceiro
trabalho intermitente com a multipli-
gilidade da formação dos dirigentes, a
simplesmente evaporasse.
cação daquilo que na Europa é chama-
repressão etc.
Outra ameaça grave trazida pela con-
do de “mini job”. O trabalhador fica em
Neste contexto, afirmar a dominân-
trarreforma no tocante ao primado do
casa esperando receber uma mensa-
cia do negociado significa eliminar,
legislado é o aumento da insegurança
gem de texto do empregador dizendo
em termos práticos, muitas conquis-
das próprias relações trabalhistas. Afi-
onde e quando ele deve se apresentar.
tas históricas da classe trabalhadora
nal, aproveitando o exemplo anterior,
Assim, o trabalhador fica totalmente
brasileira. A começar pelo décimo ter-
imaginem o que não aconteceria se,
à mercê das flutuações da demanda e
ceiro salário. Afinal, imagine a seguin-
subitamente, os trabalhadores repre-
sem qualquer previsão de quanto rece-
te situação, numa “negociação” entre
sentados por um sindicato inexpres-
berá no fim do mês, tendo em vista que
patrões e empregados, as empresas
sivo percebessem que seus represen-
o empregador paga apenas pelo tempo
e
tem condições de negociar com as
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tantes assinaram um acordo que acaba
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decidem dividir o pagamento do déci-
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AUREMAR FRANCE
uma espécie de fiscal da CLT, pois não
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THOR JORGEN UDVANG
efetivamente trabalhado. Trata-se de um retrocesso aos primórdios do capitalismo, quando a forma típica de remuneração era exatamente o salário por peça produzida pelo operário. Além disso, as formas precárias de contratação, normalmente associadas aos contratos terceirizados para os trabalhadores subalternos e ao chamado “pejotismo” (contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas) para os quadros mais qualificados, deverão se banalizar em um futuro próximo. Em suma, todos perdem renda e têm sua carga de trabalho aumentada. É verdade que isso já acontece hoje em dia, mesmo sem a contrarreforma trabalhista. No entanto, atualmente, existem obstáculos jurídicos à subcontratação de todas as atividades de uma empresa, por exemplo, apenas sendo permitida a terceirização das atividagreve geral de junho-julho de 1917, até
Neste sentido, o atual desmanche
culo de subalternidade do contratado
meados dos anos 1930, com a mal su-
da CLT faz parte de uma ampla reação
para com a empresa contratante, esta
cedida insurreição comunista de 1935.
antipopular, cujo vértice consiste em
é obrigada a pagar-lhe multa e todos
A promulgação da CLT coroou este
deslegitimar as lutas sociais no país, a
os encargos trabalhistas. Estas salva-
ciclo por meio de uma série de con-
fim de aprofundar a exploração e a do-
guardas para o trabalhador desapare-
cessões materiais aos trabalhadores e
minação dos trabalhadores. Trata-se
ceram no projeto de contrarreforma.
que foram estratégicas para o esforço
de uma ofensiva sobre os direitos pre-
Jornadas mais longas e salários me-
industrializante do país. Além disso,
videnciários e trabalhistas que busca
nores: os setores empresariais desejam
a legislação trabalhista delimitou,
consolidar um regime de acumulação
impor aos trabalhadores um verdadei-
pela primeira vez na história brasilei-
por espoliação cujo eixo gravita em
ro desmanche do sistema de proteção
ra, um espaço de conflitos políticos
torno da mercantilização do trabalho.
do trabalho. Assim, além dos ganhos
reconhecido como legítimo. Em ou-
Este regime já havia sido publicamente
imediatos em termos de espoliação dos
tras palavras, por meio da mobiliza-
anunciado em uma entrevista do então
rendimentos do trabalho, os empresá-
ção pela efetivação dos direitos tra-
presidente da Federação das Indús-
rios buscam alcançar outro objetivo
balhistas, existentes na forma da lei,
trias do Estado de São Paulo, a Fiesp,
igualmente importante: deslegitimar
mas ausentes na realidade das em-
o empresário Benjamin Steinbruch,
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as formas de reivindicação historica-
presas, os subalternos se apropria-
ao jornal Folha de S. Paulo, durante a
mente criadas pelos trabalhadores em
ram de uma gramática política que
campanha eleitoral de 2014.
seu processo de construção classista.
foi largamente empregada nas lutas
Na ocasião, após entoar a indefec-
Ou seja, quando nos referimos à CLT,
sociais dos anos 1950, 1960 e 1970.
tível cantilena a respeito do elevado
estamos falando sobre um momento
Isso sem mencionar a influência des-
custo do emprego no Brasil, o dono
decisivo de um longo ciclo de mobili-
ta dinâmica coletiva na conquista
da Companhia Siderúrgica Nacional
zações dos grupos subalternos brasi-
dos direitos sociais universais garan-
(CSN) reivindicou um “país leve na
12
leiros que, em termos globais, vai da
tidos pela Constituição de 1988.
lei trabalhista”, isto é, com jornada
e
L I B E R D A D E
“PJ”, caso fique demonstrado o vín-
R E V I S T A
des-meio. Além disso, na condição de
mais flexível, idade legal diminuída
cristalizaria uma condição social já
e horário de almoço encurtado: “Não
bastante calamitosa.
precisa de uma hora [de almoço]. Se
Ao fim e ao cabo, não parece haver
você vai numa empresa nos EUA, vê
muita dúvida de que essas exigên-
[o trabalhador] comendo o sanduí-
cias empresariais foram plenamente
che com a mão esquerda e operando
incorporadas pela agenda do golpe
a máquina com a mão direita. Tem 15
de 2016, cujo objetivo não declarado
minutos para o almoço”. Por trás das
é assegurar a transição mais rápida
propostas do ex-presidente da Fiesp
possível para um regime de acumula-
já era possível perceber as frentes de
ção focado na espoliação dos direitos
ataque dos interesses patronais in-
dos trabalhadores. Evidentemente,
corporados na proposta de reforma
isto não implica que a exploração do
o legislado, a flexibilização da jornada de trabalho e a universalização da terceirização empresarial. Especificamente em relação à terceirização, mesmo antes da contrarreforma trabalhista, o quadro já era desalentador. De acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), nos últimos três anos, cerca de 70% das indústrias brasileiras contrataram empresas terceirizadas. Dos 50 milhões de trabalhadores com carteira assinada existentes em 2014 no país, 12,7 milhões eram terceirizados, recebendo, em média, salários 30% inferiores em relação aos contratados diretamente. Além 2
disso, eles são mais vulneráveis tanto aos acidentes de trabalho, quanto às condições análogas à escravidão.3 A contrarreforma trabalhista de Temer 1 Ver Fernando Rodrigues, Presidente da Fiesp fala em flexibilizar a lei trabalhista (Folha de S. Paulo, 29 nov. 2014). 2 Para mais detalhes, ver dados citados em Secretaria Nacional de Relações de Trabalho e Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha/dossiê acerca do impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos, cit. 3 Para mais detalhes, ver Jeane Sales e Vitor Araújo Filgueiras, Trabalho análogo ao escravo no Brasil: natureza do fenômeno e regulação (Revista da Abet, v. 12, n. 2, jul-dez 2014).
dido centralidade. No entanto, tendo em vista o prolongamento da crise da globalização, somado à dificuldade de a estrutura social acomodar os conflitos trabalhistas decorrentes da ampliação do assalariamento formal da última década, o governo golpista decidiu orquestrar uma brusca mudança nos rumos da economia. Caso a contrarreforma trabalhista seja aprovada, os golpistas sepultarão um século de lutas sociais em benefício de uma cidadania salarial inclusiva. E os trabalhadores pagarão o pato da crise por meio da evaporação dos rendimentos e da ampliação das jornadas de trabalho. A desigualdade social vai aumentar, minando as bases da retomada do crescimento econômico. Não há dúvidas que entraremos em uma quadra histórica marcada pela guerra da burguesia contra o povo pobre trabalhador. No entanto, resta ainda saber qual a forma política do contragolpe popular. Afinal, assistiremos ao fortalecimento das pulsões reacionárias ou, ao contrário, seremos capazes de construir uma alternativa radical e democrática?
*Professor do Departamento de Sociologia da USP
L I B E R D A D E
ção do princípio do negociado sobre
trabalho assalariado barato tenha per-
e
Michel Temer, isto é, a implementa-
Caso a contrarreforma trabalhista seja aprovada, os golpistas sepultarão um século de lutas sociais em benefício de uma cidadania salarial inclusiva. E os trabalhadores pagarão o pato da crise por meio da evaporação dos rendimentos e da ampliação das jornadas de trabalho
S O C I A L I S M O
trabalhista do governo ilegítimo de
R E V I S T A
1
13
Malgrado todas as suas polêmicas e arbitrariedades, a chamada Operação Lava-Jato tem desnudado com detalhes os mecanismos de escalada do poder econômico sobre a coisa pública no Brasil. Ficou claro com as revelações e os depoimentos o modus operandi da relação dos empresários com o Estado capitalista brasileiro. Particularmente chamou a atenção em todas as investigações realizadas o elevado poder disposto pelos empreiteiros de obras públicas, atores
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
AGÊNCIA 6PHOTO
centrais do processo econômico e político no país.
14
Empreiteiros e poder no Brasil
Pedro Henrique Pedreira Campos*
As empresas de construção que fo-
com práticas cartelistas, como a divi-
necessidades de obras e intervenções
ram investigadas e punidas na opera-
são de obras entre as construtoras e o
na área de infraestrutura.
ção são as maiores do país. Essas em-
acerto do resultado de concorrências.
Se a fundação das principais emprei-
preiteiras foram fundadas sobretudo
Por fim, essas associações serviam
teiras que atuam hoje no Brasil remon-
nos anos 1930 e 1940, quando houve
como polo de organização coletiva e
ta à emergência do Estado varguista,
o advento de um novo padrão de acu-
política desses empresários, que usa-
podemos afirmar que a consolidação
mulação de capital no país, deslocado
vam suas entidades para atuar junto
e a nacionalização do mercado e de
do campo para cidade. O epicentro
ao aparelho de Estado, inscrevendo
obras públicas se deu no governo Ku-
da dinâmica do capitalismo brasileiro
neste último propostas de obras pú-
bitschek (1956-1961). Nesse período,
deixou de se dar na
tivemos uma demanda
matriz primário-ex-
inédita de construção
portadora e deu lugar
de rodovias por parte
ao desenvolvimento
do Estado brasileiro,
calcado no eixo ur-
conforme previsto no
produção
dedicada
principalmente mercado
ao
domésti-
co. Com isso, houve a demanda de uma série de equipamentos de infraestrutura, de modo a fornecer a base desse novo padrão de acumulação. O Estado passou a ser o principal contratador desses empreendimentos, realizando obras públicas na forma de rodovias, usinas de energia etc. Essas empresas nas-
Se a fundação das principais empreiteiras que atuam hoje no Brasil remonta à emergência do Estado varguista, podemos afirmar que a consolidação e a nacionalização do mercado e de obras públicas se deu no governo Kubitschek (1956-1961)
Plano de Metas. Além disso, as obras da nova capital federal previram muito serviço de engenharia para os empreiteiros, que acabaram se aproximando nesses canteiros, nos quais se reuniam empresas de diversas regiões do país. Assim, data justamente do período JK a fundação das primeiras entidades patronais do setor em escala nacional, a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC, funda-
ceram com uma mar-
da no Rio de Janeiro
ca de atuação local e
em 1957) e o Sinicon
origem familiar. Logo
(Sindicato
passaram a se organi-
da Construção Pesada, blicas, pressionando pela orientação
também formado no Rio, em 1959). A
entidades patronais serviam para os
do Orçamento para as suas ativida-
fundação dessas organizações se deu
empresários atuarem coletivamente
des e agindo para pautar as políticas
como fruto da nova demanda de obras
contra os trabalhadores da constru-
públicas e a agenda estatal. Assim,
feita pelo governo federal e também
ção civil, de modo a limitar aumentos
essas entidades atuavam para defen-
como reação à crescente organização
salariais e a conquista de direitos por
der diante da população e do Estado
dos operários da construção civil, que
parte dos operários. Porém, essas for-
os projetos dos empreiteiros como de
exigiam direitos e melhores salários
mas organizativas serviam também
interesses gerais da sociedade, pro-
em um ambiente de inflação acelerada.
para uma atuação combinada das em-
duzindo prioridades nas políticas pú-
Alguns empresários da construção
presas no mercado de obras públicas,
blicas e atuando no sentido de criar
civil participaram do golpe de 1964,
15
S O C I A L I S M O
e
zar em associações e sindicatos. Essas
R E V I S T A
Nacional
L I B E R D A D E
bano-industrial, com
atuando em organizações como o Ipes
mentos facilitados e isenções fiscais
mificação das suas atividades para
(Instituto de Pesquisas e Estudos So-
concedidas nos anos 1970. A ditadura
outros ramos econômicos e também
ciais), que agiu na desestabilização do
também direcionou boa parte do Or-
um processo de internacionalização,
governo João Goulart, na preparação
çamento público para investimentos,
com a realização de obras em outros
do golpe que poria fim à democracia
na forma de rodovias, usinas hidrelé-
países, processo esse que desde aque-
e na elaboração de projetos e políticas
tricas e outras obras de infraestrutura,
la época contava com franco suporte
estatais que seriam postas em prática
em detrimento dos gastos nas áreas de
governamental na forma de ação di-
na ditadura. O primeiro presidente do
saúde e educação.
plomática, financiamentos facilitados
Sinicon, o empresário Haroldo Poland,
Essas políticas fizeram com que a
e outras garantias assumidas pelo Es-
teve uma atuação
tado brasileiro.
intensa no Ipes e le-
A ditadura não beneficiou
teiros a contribuir
empresários apenas
com o organismo.
nas políticas ende-
Ele foi um dos prin-
reçadas diretamen-
cipais agentes civis
te às construtoras.
SHUTTERSTOCK
vou outros emprei-
do golpe empresa-
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
rial-militar de 1964,
16
esses
Também as políticas direcionadas à
tendo estreita rela-
classe trabalhadora
ção com militares
incorreram em fa-
golpistas,
vorecimento
como
aos
Golbery do Couto e
donos dessas em-
Silva, e com empre-
presas. A repressão
sas multinacionais
aos sindicatos, o
estrangeiras.
desmantelamento
Após o apoio de
de centrais e a per-
vários empresários
seguição a líderes
do ramo ao golpe,
operárias inibiram
os
empreiteiros
a organização cole-
de obras públicas
tiva e as reivindica-
constituíram
al-
ções dos trabalha-
guns dos agentes
dores. A ditadura
mais beneficiados
promoveu um arro-
pelas políticas esta-
cho salarial que re-
tais implementadas
baixou custos para
pela ditadura brasi-
os
leira. Foram benefi-
em detrimento das
ciados por medidas
condições de vida
como a reserva de
dos operários. Por
empresários,
mercado no setor de obras públicas,
ditadura fosse um momento excep-
fim, o Estado brasileiro pouco fiscali-
estabelecida por decreto-lei do dita-
cional para os empresários da cons-
zou e puniu empresas que não cum-
dor Artur da Costa e Silva em 1969,
trução civil. Suas empresas cresceram
priam os requisitos básicos de segu-
num momento em que o Congresso
como nunca naquele período e assu-
rança no ambiente de trabalho. Isso
estava fechado. A medida tornava o
miram dimensões impressionantes,
fez com que houvesse uma escalada
mercado de obras contratadas pelo
tornando-se algumas das maiores
sem precedentes dos acidentes de tra-
governo cativo às empresas brasileiras
firmas do país. Não à toa, já naquela
balho no período, muitos deles letais.
e se somava a medidas como financia-
época iniciaram um processo de ra-
O Brasil assumiu a liderança mundial
nas estatísticas desses acidentes e a
junto com os candidatos eleitos. Sua
operários e seguir o cronograma traça-
construção civil era o setor líder de
atuação é multipartidária, de modo a
do, sem pressionar por verbas excep-
mortes e operários feridos entre os di-
ter influência e peso político em qual-
cionais conforme o prazo político da
ferentes ramos econômicos.
quer que seja o ambiente decorrente
obra. Por fim, uma empreiteira pública
Esses empresários souberam fazer
das eleições. Por fim, a situação das
poderia atender as demandas efetivas
a transição para o regime constitu-
obras públicas no Brasil pode ser con-
da população brasileira, na forma de
cional inaugurado em 1988. Apesar
siderada uma catástrofe, já que elas
obras nas áreas de educação, saúde
da diminuição do mercado de obras
são caras, têm má qualidade, atrasam
e saneamento. As empresas públicas
públicas nos anos 1980 e 1990, eles,
e muitas vezes não correspondem às
brasileiras mostram que o discurso
de forma organizada
neoliberal é falacioso,
e muitas vezes cole-
pois elas são eficientes
tiva, mudaram suas
e dispõem de excelente
formas de atuação de
quadro técnico.
Assim, se ao longo do regime ditatorial as atenções dessas empresas estavam voltadas para o Poder Executivo e a interlocução com os militares, com a transição política esses empresários ampliaram sua atuação levando-a ao parlamento, aos partidos e à imprensa. Passaram a se colocar como importantes
financiadores
dade devem discutir o poder dos empresários e a escalada do poder econômico sobre a coisa pública no Brasil. Devem também desenvolver propostas de políticas para o país, de modo a constituir um programa que forneça soluções para os graves problemas nacionais. O momento político forjado pela Operação Lava-Jato
propiciou
um enfraquecimento político dos emprei-
de campanhas eleito-
teiros. Talvez essa seja
rais e a atuar intensa-
justamente a conjun-
mente na tramitação
tura mais adequada
do Orçamento público,
para se discutir a forma
sugerindo emendas parlamentares
prioridades defendidas pela popula-
como se realizam as obras públicas no
com projetos de obras. Com essa atu-
ção brasileira.
país, com propostas para a questão. A
ação, os empreiteiros se credenciaram
Há algo que amedronta imensamen-
proposição de criação de uma empresa
para serem atores decisivos no exercí-
te os empreiteiros: a existência de uma
pública de obras públicas pode ser um
cio do poder no Estado capitalista bra-
empresa pública de obras. Historica-
caminho nesse sentido.
sileiro com a Nova República.
mente eles se opuseram a iniciativas
O poder desses empresários causa
nesse sentido, já que uma empreiteira
uma série de deformidades no Brasil.
pública poderia executar obras a pre-
Ao financiar eleições, juntamente com
ços bem mais baixos que as empresas
outros capitalistas, os empreiteiros se
privadas. Poderia também usar mate-
colocam como agentes que governam
rial de mais qualidade, tratar melhor os
* Professor do Departamento de História e Relações Internacionais da UFRRJ
L I B E R D A D E
durante a ditadura.
ças críticas da socie-
e
que tinham alcançado
Se ao longo do regime ditatorial as atenções dessas empresas estavam voltadas para o Executivo e a interlocução com os militares, com a transição política elas ampliaram sua atuação levando-a ao parlamento, aos partidos e à imprensa
S O C I A L I S M O
econômico e político
A esquerda e as for-
R E V I S T A
modo a manter o peso
17
r e f o r m a
Uma luta que é comum Gilmar Mauro*
2) Produzir matérias primas para o
dez maiores economias do mundo à
mercado;
condição de exportadora de matérias primas e a uma industrialização em
3) Produzir alimentos;
Para entender a questão agrária hoje
aliança com os sistemas oligárquicos
4) Liberar mão de obra do campo
e os desafios que estão colocados não
tem impactos profundos do ponto de
apenas para o Movimento dos Traba-
vista da formação de nossa sociedade.
É o tempo da revolução verde das
lhadores Rurais Sem Terra (MST), mas
A luta pela terra, que se colocou des-
décadas de 1960 e 1970, quando a
para o conjunto da classe trabalhadora
de a resistência indígena, o Quilombo
expressiva produção de maquinaria e
e a sociedade, é necessário resgatar o
dos Palmares, Canudos e Contestado,
agroquímicos possibilitou o desenvol-
fato de que no Brasil, como em parte
deu um salto com as Ligas Campone-
vimento agrícola sem a necessidade da
da América Latina, o processo de de-
sas. Mas este processo foi interrompi-
reforma agrária.
senvolvimento sobre a base da brutal
do com o golpe militar.
para a cidade.
O tema só voltará à pauta nacional de
destruição de populações e de recur-
O projeto de desenvolvimento da
forma relevante com o surgimento do
sos naturais impacta a economia, mas
agricultura brasileira da ditadura de-
MST, em 1984, e até o início dos anos
também a conformação social, cultu-
veria cumprir quatro funções:
2000, quando o governo Fernando
ral, artística e de identidade. O fio histórico-político que aprisiona uma das
Henrique decreta a moratória técnica
1) Continuar produzindo para ex-
da dívida brasileira. Mas retoma o pro-
portação;
cesso de investimentos na agricultura de equilibrar a balança comercial brasileira. Só que isso se dá sob a base de uma nova reorganização da agricultura, que passa novamente a cumprir o papel de exportadora de matérias primas.
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
ARQUIVO MST
com vários programas, na tentativa
18
O governo Lula dá continuidade a esse modelo, em um cenário internacional de elevação dos preços das commodities, priorizando investimentos na modernização da agricultura para exportação. Nesse processo, a agricultura deixou de ser o espaço do fazendeiro, do pro-
ARQUIVO MST
a g r á r i a
Um novo paradigma agroecológico depende da aliança entre trabalhadores da cidade e do campo dutor agrícola ou do latifúndio só, e
a criação de um mercado de massas. O
Compreender esse processo é impor-
se transformou em mais um espaço de
Estado passa a investir na economia fi-
tante para entender por que o debate
valorização do capital como qualquer
nanciando empréstimos, de grupos em-
político do MST sobre a questão agrá-
outro. Sobrando dinheiro no mercado
presariais a habitações populares. Gran-
ria se altera a partir do novo milênio,
internacional, que tinha excesso de li-
des fusões, como a Sadia/Perdigão, se
passando da defesa de uma reforma
quidez, o capital internacional passa a
dão nesse período. E mesmo com muito
agrária mais ou menos ao estilo dis-
comprar terras e investir na agricultu-
endividamento, o mercado de massas
tributivo-produtivista clássico para
ra, que hoje é controlada por grandes
estimulou o crescimento econômico e
a luta por um modelo de desenvolvi-
grupos oligárquicos do capital finan-
uma situação de pleno emprego, muitas
mento agroecológico.
ceiro internacional não só em toda a
vezes precarizado, mas com elevação
cadeia produtiva, como também na
dos salários inclusive.
Há um crescimento econômico sus-
nuiu a demanda da luta pela reforma
rém, cada vez mais, terá que conjugar
tentado em três aspectos fundamentais:
agrária. Muitas pessoas que viam as
a luta econômica com a luta política.
um aumento da demanda externa por
ocupações dos sem-terra como alter-
Até porque se os movimentos sindical
commodities e a consequente elevação
nativa passaram a trabalhar na cidade,
e sociais se restringem a uma condi-
dos preços; o investimento público; e
principalmente na construção civil.
ção de luta economicista, os partidos
Apesar de todas as dificuldades, o MST vai continuar ocupando terras, como forma de luta e de pressão. Porém, cada vez mais, terá que conjugar a luta econômica com a luta política
e
como forma de luta e de pressão. Po-
S O C I A L I S M O
Esse elemento em particular dimi-
L I B E R D A D E
MST vai continuar ocupando terras,
R E V I S T A
comercialização.
Apesar de todas as dificuldades, o
19
O aquecimento global e a falta de água em São Paulo e em outros estados são processos que têm se intensificado em grande medida pela ação da indústria automotiva e petrolífera, mas também do agronegócio políticos distantes da realidade social
la, o modelo de sociedade, a economia,
precisamos mais de reforma agrária. O
caem em um processo de burocratiza-
o modo de produção, a lógica e ordem
capitalismo resolve esse problema. No
ção. E estamos assistindo a isso: par-
do capital. Não à toa a criminalização
entanto, precisamos ter a clareza de
tidos extremamente burocráticos, sem
da luta volta a se acirrar, como temos
que esse uso expulsa o campesinato,
referência para discutir a problemática
visto nos ataques aos povos indígenas
concentra riqueza e terras e é extre-
social, e movimentos sociais extre-
em todo o país, e na chacina que tirou
mamente degradador do meio am-
mamente economicistas, caindo num
as vidas de dez trabalhadores em Pau
biente e de todos os recursos naturais.
reformismo ideológico e negociando
d’Arco no Pará, quando se completam
O aquecimento global e a falta de água
absolutamente tudo em troca de pe-
21 anos do massacre de Eldorado dos
em São Paulo e em outros estados são
quenas coisas.
Carajás sem que os responsáveis te-
processos que têm se intensificado em
nham sido devidamente punidos.
grande medida pela ação da indústria
Com o desenvolvimento do capitalis-
Para fazer esse debate com a socie-
automotiva e petrolífera, mas também
lidado, é necessário lidar com o fato de
dade, precisamos pautar pelo menos
do agronegócio. Ao exportar soja e
que a reforma agrária passa a ser não
três questões fundamentais. A primei-
carne, na verdade estamos exportan-
só uma questão dos sem-terra e dos
ra delas é debater que tipo de uso nós
do a água e luminosidade, coisas que
movimentos camponeses, mas preci-
queremos dar ao solo, à água, aos re-
não se tem como recuperar. E à medida
sa ser discutida com toda a sociedade.
cursos naturais e à biodiversidade? Se
que a nossa economia se torna mais
Isso significa discutir o modelo agríco-
é o uso que estamos dando hoje, não
dependente disso, num processo es-
20
ARQUIVO MST
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
mo na agricultura plenamente conso-
diferentes, hoje 80% da alimentação
não só do modelo agrícola, mas do
sentido já hoje, além do envenena-
mundial se resume a quatro ou cinco
modelo econômico.
mento e daquilo tudo que a gente co-
produtos (arroz, carne, soja, milho e
Não vai haver reforma agrária se não
nhece, toma dimensões catastróficas.
trigo). Esse é o padrão mundial de comi-
houver uma alteração na estrutura de
A segunda questão fundamental é
da, e isso a ordem do capital consegue
poder, e para alterar a estrutura de po-
o tipo de comida que queremos con-
resolver sem necessidade de reforma
der é preciso reconstruir alianças com
sumir? No modelo atual até mesmo a
agrária. Agora, se é isso, temos que ter
o conjunto da classe trabalhadora.
pequena agricultura está submetida
clareza que o processo de contaminação
Assim, a reforma agrária não vai ser
à lógica e à ordem do capital. O pe-
pelos agrotóxicos não é só um processo
mais resolvida só com a ocupação, vai
queno agricultor tem a impressão de
de contaminação para aquele que pro-
ter que ganhar outro espaço de deba-
ter autonomia, mas produz o que o
duz, mas também do solo, da água, de
te político com os demais setores da
mercado quer, submetido à lógica da
todos os recursos naturais. É um proces-
classe trabalhadora e na sociedade.
grande produção. É como se fosse um
so de contaminação para o ser humano.
produtor assalariado, só que muitas
Além do câncer, há estudos efetivos que
vezes com mais precariedade do que
apontam para o fato de que a dislexia e o
um assalariado direto. E a padroniza-
autismo, entre outros problemas de saú
ção do tipo de alimentação consumida
sso a insumos agroecológicos e tecnolo-
restringe cada vez mais a variedade.
gia que garantam produtividade sem im-
Se na Idade Média a sociedade con-
pactar tão gravemente o meio ambiente.
Edição de Luciana Araújo a partir de uma palestra do autor, que revisou e aprovou o texto final *Dirigente nacional do MST
e
zação, o impacto ambiental está sendo
S O C I A L I S M O
Isso implica a necessária mudança
R E V I S T A
sumia mais de mil tipos de produtos
L I B E R D A D E
ARQUIVO MST
trutural que vem desde a nossa coloni-
21
f é
e
p o l í t i c a
Não generalizem o campo evangélico Henrique Vieira*
entre os camponeses. Em todo caso,
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
22
generalizar
existia uma crítica à
o(a)s evangélico(a)s
hierarquização,
é uma tarefa essen-
monopólio sobre a
cial para a esquer-
leitura bíblica e um
da contemporânea.
fomento à liberdade
Entender que nem
de consciência e ao
todos eles e elas são
acesso do povo aos
conservadores é uma
textos sagrados. O
demanda
urgente.
termo “evangélico”
Sabemos que há um
tinha relação com
setor religioso ex-
aquilo que deriva do
tremista, fundamen-
Evangelho, da qua-
talista e com forte
lidade do Evangelho
poder político, eco-
em protesto contra
nômico e midiático,
dogmas que explora-
que
efetivamente
vam os fiéis, em sua
representa um risco
maioria pobre. É des-
à democracia, aos
sa raiz que nascem
direitos humanos e
o
à diversidade. Este
histórico ou clássico
segmento se cons-
e,
titui, cada vez mais,
REPRODUÇÃO
L I B E R D A D E
Não
ao
protestantismo posteriormente,
inúmeras outras verLutero
como projeto político
tentes.
partidário, ocupan-
Este protestantis-
do espaço nos pode-
mo chega mais forte
res legislativos e executivos. Esse cam-
campo evangélico, que nasce das Re-
e de forma mais organizada ao Brasil
po, de fato, precisa ser denunciado e
formas Protestantes dos séculos XV
no século XIX. A primeira onda protes-
pedagogicamente enfrentado. Mas,
e XVI a partir de um racha dentro do
tante é conhecida como Protestantis-
para isso, é preciso perceber que não
catolicismo romano. É preciso falar
mo de Imigração, representada espe-
se trata da totalidade e não representa
em reformas, no plural mesmo, por-
cialmente por anglicanos e luteranos.
a pluralidade da experiência evangéli-
que já ali existiam diferentes mani-
Esta vertente não apresentava um ide-
ca no Brasil e no mundo.
festações teológicas, políticas e ter-
al de evangelização, ou seja, não vinha
O primeiro passo para essa compre-
ritoriais. Aconteceram rachas dentro
para o Brasil tendo a conversão como
ensão é ter uma noção da história do
da nobreza e expressões mais radicais
objetivo, mas, basicamente, buscava
terra, trabalho e renda. Posteriormen-
que mais cresce, demonstrando cada
cas foram militantes contra a ditadura
te, no contexto do fim do século XIX e
vez mais influência no cenário polí-
civil-militar brasileira.
do início do século XX, surgiu a onda
tico nacional. Está posto o desafio, e
Na atualidade existem movimentos
conhecida como Protestantismo de
generalizações não contribuirão para
como a Frente Evangélica pelo Estado
Missão, isto é, com objetivo de evan-
enfrentá-lo.
de Direito, a Frente Teológica Latino
gelização em terras brasileiras. São
Cabe afirmar que também existem
Americana (FTL), o Coletivo Esperan-
expressões dessa vertente as igrejas
muitos movimentos organizados den-
çar, o Coletivo Entre Nós, a Rede Fale,
Batista, Presbiteriana, Congregacional
tro do campo evangélico vinculados à
entre outras expressões organizadas,
e Metodista.
luta por democracia, garantia de di-
além de igrejas locais comprometidas
reitos humanos, laicidade do Estado e
consciente e programaticamente com pautas
ficamente em Belém
Existem diferenças
do Pará, com uma
entre estas organi-
liturgia mais renova-
zações, mas há um
da e com o fenôme-
fio condutor comum
no litúrgico das lín-
que aponta para o
guas estranhas, não
compromisso políti-
inteligíveis à com-
co com a democra-
preensão humana. O
cia, a justiça social
maior exemplo desta
e o combate à desi-
vertente é a Igreja
gualdade e à concen-
Assembleia de Deus
tração de riquezas.
(atualmente a maior
Dentro do campo
denominação evan-
evangélico, desde a
gélica do Brasil).
década 1970, existe
Posteriormente, na
também a chama-
década de 80, ganha
da Missão Integral,
força o movimento
perspectiva
neopentecostal, que
gica que busca uma
tem como caracte-
abordagem
rísticas específicas a
que compreende e
teologia da prospe-
valoriza a integrali-
ridade e a ênfase em
dade da experiência
curas e milagres. O
humana. Seu lema é
maior exemplo des-
REPRODUÇÃO
pentecostal, especi-
populares.
teolóbíblica
“O Evangelho todo, Calvino
ta vertente é a Igreja
para o ser humano todo e para todo ser
de Deus.
humano”. Isto sigpromoção da justiça social, bem como
nifica que o Evangelho não pode ser
apenas para demonstrar como, desde
ao combate à intolerância religiosa.
apático diante das questões sociais,
o início e por natureza, o campo evan-
Um exemplo histórico foi o Congres-
pois elas são partes importantes e
gélico é difuso, diverso, repleto de
so “Cristo e o processo revolucionário
constitutivas da vida. A Missão Inte-
variações e não cabe em uma formu-
brasileiro”, realizado em 1962, em
gral não tem um conteúdo revolucio-
lação única. Esse segmento religioso é
Recife. Naquele contexto havia uma
nário, mas certamente apresenta uma
o que mais cresce no Brasil, especial-
posição daquele campo evangélico em
significativa possibilidade de diálogo
mente entre as camadas populares.
apoio às reformas de base do governo
com todos e todas que desejam a
A Frente Parlamentar Evangélica é a
Jango. Inúmeras lideranças evangéli-
construção de uma sociedade social-
23
S O C I A L I S M O
e
Este breve e resumido histórico é
R E V I S T A
Universal do Reino
L I B E R D A D E
Em 1910 aparece a primeira onda
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
24
dade por sua cor, renda e endereço
intolerâncias e prosseguir na luta. É
Contudo, para além desse campo
encontram em diversas comunidades
preciso furar o bloqueio, vencer o es-
mais organizado, considero importan-
de fé um espaço de autoafirmação,
tigma, compreender a complexidade
te olhar com cautela para a espirituali-
de fala, de valorização das suas vidas.
desse campo, estabelecer pontes pe-
dade evangélica que se desenvolve no
Vale lembrar que o segmento evangé-
dagógicas e incentivar a formação de
dia-a-dia em nosso país. Por que cres-
lico cresce especialmente nas camadas
quadros em nosso partido capazes de
ce tanto? Existiriam nessa experiên-
populares e empobrecidas da socieda-
produzir esta síntese e atuar no traba-
cia dispositivos progressistas e rascu-
de brasileira.
lho de base e pela base. A consolidação
nhos de resistência? Acredito que sim.
Estas observações não têm por obje-
de uma polarização esquerda versus
Um espírito comunitário sobrevive em
tivo, em hipótese alguma, negligenciar
evangélicos não é coerente, nem fru-
muitas igrejas hoje. Em uma socieda-
que existe um extremismo evangélico
tífera ou estratégica. Tal polarização
de individualista, pautada pela com-
de veia patriarcal, racista e lgbtfóbica,
cria um obstáculo para o avanço de
petição, pela concorrência, pelo medo
com graves e perversos efeitos em nos-
pautas populares, além de não ser con-
e pela perda de laços de afetividade,
sa sociedade. É preciso apontar que o
dizente com a realidade.
muitas igrejas ainda se afirmam como
conservadorismo não é monopólio ou
Ainda é preciso, no esforço deste
espaços de convivência, comunhão,
exclusividade dos evangélicos, mas
texto e na condição de teólogo e pas-
escuta, diálogo, percepção e acolhi-
representa um pensamento do sen-
tor, resgatar a memória histórica e
mento de dilemas pessoais e coletivos.
so comum da sociedade brasileira.
subversiva de Jesus Cristo de Nazaré.
Há horizontalidade e empoderamento
O desafio é grande e percebê-lo não
Como afirma dom Pedro Casaldáliga,
de individualidades esquecidas. Mui-
deve nos desanimar, mas, sim, am-
em Jesus, Deus se fez carne e se fez
tas pessoas marginalizadas na socie-
pliar nossa capacidade de enfrentar as
classe. Para os cristãos e as cristãs, Je-
O desafio é grande e percebêlo não deve nos desanimar, mas, sim, ampliar nossa capacidade de enfrentar as intolerâncias e prosseguir na luta. É preciso furar o bloqueio, vencer o estigma, compreender a complexidade desse campo, estabelecer pontes pedagógicas
SIND.MOTORISTAS/SP
mente mais justa e equilibrada.
SIND.MOTORISTAS/SP
terra. A vida de Jesus aponta para um
Irmãos e irmãs combatendo o racismo
tória, a corporeidade, a humanidade.
compromisso radical com os pobres
e afirmando que a Bíblia é um livro
Qualquer expressão teológica que se
e com os corpos vítimas de violência,
negro, apesar da interpretação tantas
afaste dessa dimensão concreta e po-
tortura e exploração. A origem do
vezes branca e racista. Irmãs lutando
lítica da vida vai contra o espírito mais
Evangelho é popular, periférica, antis-
contra o patriarcado e o machismo,
original do Evangelho. Como afirma
sistêmica. É desconfiada e desapegada
tão presentes no cristianismo institu-
Leonardo Boff, “Jesus foi tão humano
das estruturas de poder, pautada em
cional. Irmãos e irmãs lutando contra
que só podia ser Deus”. Isto significa
vínculos comunitários. Resgatar essa
o preconceito que impõe sofrimento e
que a espiritualidade cristã tem os pés
dimensão é desmontar o castelo fun-
mata LGBTs todos os dias. Irmãos e ir-
na terra, na dimensão popular.
damentalista e isso se faz necessário,
mãs que, a partir da sua fé, lutam por
Além disso, cabe lembrar que Jesus
especialmente em nosso tempo, para
terra, moradia, direitos, cidadania e
foi pobre, andou com os miseráveis,
defender a democracia, celebrar a di-
pelo pão de cada dia. Na base de mui-
amaldiçoados e excluídos da sua épo-
versidade, enfrentar discursos de ódio
tos movimentos sociais, como MST e
ca; condenou o acúmulo de riquezas
e afirmar uma prática de amor e o amor
MTST, existem evangélicos e evangé-
e venceu preconceitos históricos. Foi
como prática.
licas nas lutas.
A despeito dos coronéis da fé, mer-
Enfim, é essencial não generalizar o
subversão pelo Império Romano, a pe-
cadores da religião que enriquecem às
campo evangélico e pedagogicamente
dido de uma elite religiosa que o con-
custas do sofrimento do povo, e inde-
partir para o encontro, para o diálogo e
siderava herege e desviado. Em outras
pendentemente dos fiscalizadores dos
para a luta popular.
palavras, Jesus foi vítima da raiva dos
corpos, mais apegados a uma doutri-
fundamentalistas, do próprio Estado
na do que à dignidade humana, exis-
e dos religiosos que se sentiam donos,
tem e resistem evangélico(a)s lutando
defensores e procuradores de Deus na
pela democracia e pelo Estado laico.
*Teólogo, pastor da Igreja Batista do Caminho, militante do PSOL
R E V I S T A
preso, torturado e assassinado por
S O C I A L I S M O
e
sus é o próprio Deus assumindo a his-
L I B E R D A D E
A despeito dos coronéis da fé, mercadores da religião que enriquecem às custas do sofrimento do povo, e (...) dos fiscalizadores dos corpos (...) existem e resistem evangélico(a)s lutando pela democracia e pelo Estado laico
25
o p r e s s ã o
r a c i a l
RACISMO, IDEOLOGIA E HALLEY PACHECO DE OLIVEIRA
Silvio Luiz de Almeida*
O ponto de partida para a compreensão do problema racial é entender que a ideia de “raça” é uma construção
política e que tem um papel determinante nos processos de reprodução social. Isso significa dizer que, em uma sociedade em que as condições econômicas e os espaços de decisão política são estruturados pela desigualdade, a raça, ou mais precisamente, o processo sistêmico de discriminação racial a que chamamos de “racismo”, é um fator historicamente intrínseco à sociabilidade capitalista. Nesse sentido, o racismo confere sentido às desigualdades que constituem a sociedade capitalista, sendo-lhe não uma anomalia, mas um dos modos de regulação mais importantes. São imprescindíveis às sociedades L I B E R D A D E
mecanismos institucionais de controle e estabilização capazes de estabelecer normas e impô-las mediante o uso da força quando necessário. A grande
e
questão é que aquilo que aqui chama-
S O C I A L I S M O
mos de regulação não envolve apenas regras explícitas ou de natureza jurídica. A noção de regulação contempla regras “ocultas”, “não escritas”, ile-
R E V I S T A
gais por vezes, mas que são, no míni-
26
mo toleradas, visto que sua existência é importante para a manutenção de Zumbi dos Palmares
ECONOMIA POLÍTICA determinada ordem social, por mais
escura” e “pobreza”; é preciso que me-
desigual e até injusta que esta possa
canismos ou “aparelhos” (meios de
parecer. O apartheid sul-africano, a
comunicação, escolas, associações re-
Com efeito, não se pode negar que
segregação racial nos EUA, o racismo
ligiosas) criem socialmente o “negro”
há uma economia política do racismo.
científico na República Velha e, depois,
e o “branco”, ou em outros termos,
Tomando-se como exemplo a história
a ideia de democracia racial no Brasil
criem a ligação “natural” e até incons-
do Brasil, nota-se que os “intérpretes
são exemplos de como a formação dos
ciente entre determinadas caracterís-
do Brasil”, inclusive os conservadores
sistemas políticos e econômicos dos
ticas biológicas e/ou culturais e privi-
e reacionários, sempre tiveram a ques-
mencionados países não podem ser
légios ou desvantagens sociais.
tão racial como um dado referencial.
de identidade
Autores do século XIX como Nina Ro-
Por esse motivo é que afirmamos que
de e se reproduz por meio das insti-
drigues, Silvio Romero e Alberto Tor-
qualquer programa ou estratégia polí-
tuições. O racismo é institucional na
res, ainda que de modo distinto, colo-
tica de superação dos problemas na-
medida em que só organizações são
caram a questão do negro como uma
cionais envolve uma inadiável reflexão
capazes de conter fatores de poder que
discussão urgente do debate nacional.
que parta de duas afirmações sobre a
sustentem a desigualdade racial em
O mesmo se passou com os ensaístas
questão racial:
nível sistêmico. E o Estado é a prin-
dos anos XX – com destaque para Oli-
cipal delas. Como a forma política da
veira Vianna – que inseriram a raça no
sociedade capitalista, cabe ao Estado
centro do debate sobre a formação do
manter a coesão de uma sociedade
Estado e a inserção da sociedade bra-
marcada por conflitos e antagonismos
sileira no capitalismo mundial. Já nos
que lhe são inerentes: uma socieda-
anos 30, temos a referência máxima de
de de indivíduos, que se dividem em
Gilberto Freyre. Sobre este autor é im-
O racismo, enquanto processo, ope-
classes, essas classes em grupos nacio-
portante que se diga que resumir suas
ra nos campos subjetivo e objetivo. No
nais, raciais, sexuais etc. O racismo,
ideias à “democracia racial” só serve
campo subjetivo, o racismo se configu-
tal como o sexismo, “normaliza” o fato
para simplificar uma obra que, sem
ra como ideologia, que não se entende
de que algumas pessoas ganharão me-
negar o racismo nela contido, tem pro-
aqui como forma de ocultação ou des-
nos, serão mais exploradas, não serão
pósitos políticos e econômicos muito
vio da realidade, mas como o sentido
ouvidas ou representadas nos espaços
mais sofisticados.
com que as práticas materiais chegam
de decisão ou, ainda, que suas mortes
O que Freyre propõe em sua vasta
à consciência. A cor da pele não é a
não causarão qualquer tipo de como-
obra é uma conciliação entre a burgue-
raça; a raça é o sentido socialmente
ção. Por isso, a questão do racismo vai
sia agrária e a nova burguesia indus-
atribuído à cor da pele. Portanto, não
além do problema da raça: é uma ques-
trial que se formava a partir da relação
é automática a associação entre “pele
tão de economia política.
entre “o moderno e o rústico”, que
27
b) a economia política é também uma questão de identidade e de cultura. O racismo não se resume ao problema da raça
e
blema da “raça”;
S O C I A L I S M O
a) o racismo não se resume ao pro-
L I B E R D A D E
A clivagem racial ganha concretu-
R E V I S T A
entendidos sem o racismo de Estado.
A economia política é uma questão
serviria para alertar sobre os perigos
um promotor, um empresário ou um
de reformas sociais profundas que,
líder político. A terceirizada não é a
sob o pretexto da “modernização”, poderiam comprometer a “democracia racial” já existente. O que se quer evidenciar aqui com o exemplo brasileiro é que o racismo brasileiro não é o resultado de um bando de ignorantes e irracionais, mas sim, uma construção ideológica e de prolongamentos institucionais que até hoje nos conduzem. A pobreza, a violência e a aparente falta de alternativas para superar estas condições encontram forte apoio em uma sociedade que se “acostumou” a ver negros afundando na miséria ou no próprio sangue sem sequer levantar a sobrancelha. Uma sociedade racista não pode lutar contra uma reforma trabalhista que atingirá principalmente pessoas que nunca se parecem com um professor universitário, um advogado, um médico, um juiz,
A pobreza, a violência e a aparente falta de alternativas para superar estas condições encontram forte apoio em uma sociedade que se “acostumou” a ver negros afundando na miséria ou no próprio sangue sem sequer levantar a sobrancelha
pessoa que senta à mesa ou que dá ordens e nem com esta se parece; a terceirizada é, em geral, a pessoa negra, a “tia da limpeza ou do café”, o tipo da pessoa para quem fazer mal não tem consequências. É a mesma mulher negra que quando tem seu filho adolescente assassinado pela polícia fica ajoelhada sobre o corpo com a carteira de trabalho do morto para provar que ele “não era bandido” e que “não merecia morrer”. Só o racismo nos permite constatar com normalidade que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, segundo o Mapa da Violência de 2014. Não há como mobilizar as pessoas contra uma reforma da Previdência que fulminará quem ganha baixos salários, trabalha a maior parte da vida na informalidade, é mulher e
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
MIDIA NINJA
28
que não passa dos 60 anos. E a grande
racismo mais do que são capazes de re-
para mobilizar as energias sociais que
maioria dessas pessoas é negra. Só em
conhecer (o racismo como ideologia se
nos impulsionem para uma verdadeira
uma sociedade racista uma emenda
manifesta no inconsciente), não com-
transformação. No caso de uma socie-
constitucional como a 95/2016 – que
preendem que tal como a economia e a
dade racista como a brasileira, mais
limita gastos públicos nos próximos 20
política, o processo de constituição da
do que conquistar corações e mentes,
anos, o que atingirá serviços públicos
subjetividade é estrutural.
a tarefa é preservar os corpos. Como
essenciais como saúde e educação - é
Não se espere que um jovem negro,
escreveu Florestan Fernandes em O
aprovada sem um debate amplo, pois
cuja preocupação central é não tomar
significado do protesto negro, “a raça
o racismo é um impeditivo da constru-
um tiro nas costas, engaje-se na cons-
se configura como pólvora do paiol, o
ção de qualquer processo democrático.
trução de uma “pauta” progressista
fator que em um contexto de confron-
Qualquer projeto realmente trans-
que não trate a sua vida e o seu futu-
tação poderá levar muito mais longe o
formador no Brasil, especialmente
ro como algo fundamental. Não existe
radicalismo inerente à classe”.
um projeto de cunho socialista, terá
possibilidade de construção, seja de
que contemplar prioritariamente a
um projeto nacional, seja de socialis-
questão racial. Não se trata de “iden-
mo ou de liberdade, se as determina-
titarismo” ou transigências com a pós-
ções da realidade racial não estiverem
-modernidade, discurso que tem sido
na ordem do dia e no horizonte dos
repercutido até por pessoas “progres-
que pensam a conjuntura social. É ne-
* Pós-doutor em filosofia e teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da USP. Presidente do Instituto Luiz Gama. Advogado e professor.
e
cessário conquistar corações e mentes
S O C I A L I S M O
sistas” que, mais atravessadas pelo
R E V I S T A
muitas vezes tem a vida tão degradada
L I B E R D A D E
MIDIA NINJA
29
ORTODOXFOTO
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
r e v o l u ç ã o
30
Mais Lenin, ... além de Gramsci Milton Temer*
Crise no capitalismo é também o momento em que se define uma de duas opções. Ou bem um freio de arrumação ou bem um salto qualitativo progressista na organização social
(megaoperador da globalização especulativa)
Capitalismo é crise. Capitalismo é corrupção. Não são acidentes
qualitativamente mais justa e demo-
duas opções.
crática, através da desconstrução e
Ou bem um freio de arrumação ou bem um salto qualitativo progressista na organização social.
superação do regime vigente. Mas por que a segunda hipótese não é a que se afirma de forma mais cons-
Freio de arrumação entre os mem-
tante? Por que são os agentes respon-
bros e instituições da classe dominan-
sáveis pela crise que terminam, com
te, por meio de fusões de corporações,
algumas exceções, por fazer prevale-
ou pela utilização do Tesouro nacional
cer sua hegemonia?
para manter de pé e mais forte ainda o
Uma explicação está certamente na diferença de dinâmi-
inerentes ao regime.
cas na luta de classes.
EMANUEL KAPLINSKY
de percurso. São partes Inevitável a crise, pela superprodução de mer-
O
desenvolvimento
das forças produtivas
cadorias e superacumu-
se dá de forma muito
lação de capital. Pelo
mais acelerada do que
subconsumo por conta
a formação da cons-
da exploração cada vez
ciência das classes
necessariamente
mais
trabalhadoras quanto
intensa da mais valia
a seu papel de agente
do
Pela
contestador e trans-
diminuição da taxa de
formador da realidade
lucro consequente da
Na disputa do ex-
concorrência entre as
cedente da produção
corporações, na disputa
econômica – a luta de
predatória de mercados
classes – leva vanta-
consumidores.
gem, no momento da
trabalhador.
De uma forma ou de
bola dividida, aquele
outra, ou por todas si-
que já está há mais
multaneamente, a crise
tempo no controle do
existirá enquanto existir
jogo. Tarefa facilitada
o capitalismo.
à burguesia pelo con-
Inevitável também a
trole dos aparelhos ad-
corrupção. É produto
ministrativo e repressi-
“natural” da busca cres-
vos do Estado. Ela joga
cente de aumento de “competitividade”
Fidel Castro
defesa do status quo.
no
Já as classes traba-
vale-tudo do confronto sistema financeiro privado.
lhadoras têm que romper uma mura-
Salto qualitativo progressista, quan-
lha, faina bem mais difícil, antes de
do trabalho escravo. A saída é pela so-
do os de baixo se dão conta de que os
tudo pelo que necessitam organizar
negação de tributos, no drible da lei
de cima não têm mais condições de se
no que antes era fragmentado. A so-
– um dado a mais no estabelecimento
manter hegemônicos apenas com pe-
ciedade civil, nos momentos de chapa
de diferenças que se dará na maior ou
quenas concessões. Quando os de bai-
quente, em grande parte sabe o que
menor competência dos seus “depar-
xo se dão conta de que podem impor
não quer. Mas se divide sobre alvos di-
tamentos financeiros”.
reformas profundas, estruturais, que
ferentes no momento de definir o que
abram caminho para uma sociedade
pretende construir no lugar da socie-
31
Mas crise no capitalismo é também
S O C I A L I S M O
na superexploração da mais-valia ou
R E V I S T A
intraclasse, quando todos se igualam
de beque parado na
L I B E R D A D E
Warren Buffet
o momento em que se define uma de
e
“Na verdade, tem havido uma luta de classes nos últimos 20 anos, e a minha classe venceu. Nós é que tivemos nossos impostos reduzidos significativamente.”
dade que quer superar.
intensidades. Principalmente pela
Interesses localizados, pautas sindicais ou identitárias, aceitas pelos
perado, vale atenção especial. Porque
amortecedores, ao invés de propulso-
gime em sua essência, portanto; de
quem se debruça sobre a história dos
res do movimento.
identificar as sequelas com a natureza
Estados Unidos depois que seu com-
Quando é que tal lógica se rompe?
própria do desenvolvimento capita-
bativo movimento sindical do início
No passado e mesmo no presente,
lista, que a alternativa de esquerda
do século XX foi cooptado ideologica-
exemplos se afirmam.
mais avança.
mente, sabe que falar em socialismo
Ou bem de forma completa, em pro-
Ou seja, não é com promessas de re-
cessos revolucionários – Rússia bol-
formas paliativas, limitadas a reivin-
de Mao, Cuba de Fidel
com a quase derrocada
Castro – ou bem em pro-
dos grandes bancos, por
cessos institucionais em
conta de suas crimino-
nos Democratas americanos, de Bernie Sanders; Labour inglês, onde o socialista Jeremy Corbyn derrotou as correntes neoliberais herdeiras de Tony Blair; Jean Luc Mélenchon, com o France Insoumisse. (França Insubmissa), unindo o Partido Comunista Francês, o Parti de Gauche e os Independentes do campo de Esquerda, no país da
L I B E R D A D E
político e eleitoral. Mas a partir de 2008,
nha; esquerda socialista
e
se tornou autoflagelação. Suicídio
chevique de Lenin, China
mos, de Iglesias, na Espa-
S O C I A L I S M O
plo de Bernie Sanders, por mais ines-
É na capacidade de contestar o re-
mais presente – Pode-
R E V I S T A
comunicação.
Tomado particularmente, o exem-
de cima, terminam por operar como
andamento no contexto
32
intoxicação doutrinaria, via meios de
te, com exemplos práticos.
A partir de 2008, com a quase derrocada dos grandes bancos, por conta de suas criminosas operações especulativas na globalização financeira, o rei ficou nu, as vísceras do regime ficaram expostas, abrindo espaço para a viabilidade crescente de Sanders
sas operações especulativas na globalização financeira, o rei ficou nu, as vísceras do regime ficaram expostas, abrindo espaço para a viabilidade crescente de Sanders. Ele correu o país com o discurso de combate à Wall Street como símbolo de um regime capitalista apodrecido. Falando em socialismo. Não foi ao segundo turno, onde teria tudo para bater Trump, mas afirmou um espaço político
primeira grande revolu-
que não deixará de se
ção popular vitoriosa.
ampliar ao se considera-
Em ambos os casos
rem os termos em que o
– processos insurrecio-
autocrático e destempe-
nais ou disputas institucionais – o
dicações nos limites setoriais isolada-
rado governo atual labuta.
fato marcante é a existência de uma
mente, que o mundo do trabalho vai
É nesse contexto que devemos re-
liderança clara, representativa, até
impedir que a crise promovida pelos
correr à reflexão pioneira de Lênin
carismática. Individual ou partidária.
capitalistas termine sob controle des-
que, diante de condições adversas, se
Uma liderança capaz de formular pro-
ses mesmos capitalistas. Ao preço de
empenha numa proposta partidária
postas que não se mantêm na fron-
concessões, é verdade, desde que não
com claro cunho vanguardista em ter-
teira do palatável ao senso comum
lhes abalem as estruturas.
mos de formulação e de organização.
do conjunto de segmentos sociais
É radicalizando, indo à raiz do pro-
Introduz algo que a vida compro-
alienados, sobre os quais a burgue-
blema, o que não tem nada a ver com
vou ser universal, e que era um pas-
sia exerce sua opressão nas diversas
sectarismo doutrinário, didaticamen-
so adiante da concepção que Marx
e Engels tinham da formação do
poleão I, na decomposição dos regi-
partido operário.
mes feudais pelo continente, após a
Lênin reconhecia que a consciência
Revolução Francesa.
de 64. É nesse cenário que a Esquerda Combativa, a que não se vendeu nem
da transformação de “classe em si”
Poderíamos ter tido sua aplicação
se rendeu, tem que fazer suas opções.
para o de “classe para si”, que o pró-
no Brasil contemporâneo com a elei-
Ruptura insurrecional, por massas
prio proletariado em sua vocação tra-
ção de Luís Inácio em 2002. Desde, é
nas ruas conquistando o aparelho de
deunionista não era capaz de concre-
claro, que ele tivesse seguido a histó-
Estado, não é perceptível num país
tizar, tinha que vir de fora. Tinha que
ria programática do PT, e não tivesse
de complexidade e dimensões conti-
vir de uma intelectualidade conquis-
se submetido à aplicação do pacto
nentais, de várias “nações” regionais
tada ideologicamente para o embate
conservador de alta intensidade onde
como o nosso. Onde o extrativista da
revolucionário.
se viu seu governo pretensamente
Amazônia nada encontra em comum
Mas é principalmente nas suas Te-
popular-democrático
com o gaúcho do Pampa, nem com o
ses de Abril que ele comprova o papel
submetido à
trabalhador dos centros urbanos do
de uma liderança com clareza do
tríade
Sudeste brasileiro.
movimento tático necessário no
É, portanto, pelo mesmo roteiro que
momento histórico dado. Com-
levou Lula ao Planalto, entendo eu,
preendeu que os poucos avanços
que a esquerda deve encontrar o mo-
do governo Kerensky, apoiado
mento de confronto real. Numa
pelos mencheviques, ape-
campanha presidencial. Porque
nas adiava o processo de
é nesse momento que o país
restauração da domi-
se concentra na discussão
nação burguesa na
de modelo de sociedade. De
sucessão do czaris-
regime.
mo. E, mesmo com
Se chegamos com Lula
enormes resistências da
e fomos frustrados, pode-
direção bolchevique, in-
mos chegar com alguém
sistiu e provou na prática
que não tenha medo de
a correção de sua for-
definir uma alterna-
mulação teórica.
tiva radical, anti-
Suas teses se
capitalista, não
comprovaram
sectária
na Revolução
isolacionista.
de Outubro.
Uma bancos, empreiteiras e agronegócio.
conjunt amente,
líder carismático iluminado, que
Quanto ao negativo, está aí o que
com apoio dos segmentos progressis-
Gramsci vem a considerar nos seus
vivemos no Brasil, com o governo
tas da sociedade civil mobilizados, para
Cadernos?
Michel Miguel, e com a parceria cri-
mostrar que outro Brasil é possível.
Pode ser. Mas sem esquecer que o mesmo revolucionário sardo traba-
minosa pmdb/psdb, tentando impor seu pacote de contrarreformas.
Um Brasil soberano, socialista e sob permanente processo de democrati-
lhava sobre dois aspectos desse con-
Distintamente de Lula e Dilma,
zação participativa.
ceito – “cesarismo positivo” e “cesa-
de quem era vice, Michel expli-
Luta que Segue!!
rismo negativo”.
citou um governo de classe. O do
O primeiro, marcando avanços,
grande capital. Um governo de
saltos de qualidade na organização
restauração de um retrocesso po-
social. Que ele exemplifica no pró-
lítico-social mais acelerado até
prio César, da Roma Antiga, e em Na-
do que o imposto pelos tanques
*Jornalista, membro da direção nacional do PSOL
L I B E R D A D E
do
tiva construída
e
“cesarismo”,
maldita do grande capital –
S O C I A L I S M O
do
alterna-
R E V I S T A
Apologia
nem
33
o r i e n t e
m é d i o
/
a p a r t h e i d
APN
A luta na Palestina hoje
Waldo Mermelstein* Neste ano há várias datas marcantes
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
para a Palestina.
34
Há cem anos, a Declaração Balfour, da Inglaterra, favorecia a criação de um “lar nacional judaico” para os judeus, que eram 10% da população. Há 70 anos, a ONU votou a Partilha da Palestina, que dividiu o país dando 51% da área para a minoria judaica que tinha 30% da população. Logo após, os sionistas iniciavam a limpeza étnica que expulsou 80% dos palestinos. Há 50 anos, em 1967, Israel ocupou “provisoriamente” o restante da Pa-
Israel domina toda a vida na Palestina histórica, aquela do mandato britânico. Metade dos palestinos são refugiados, impedidos por Israel de retornar, apesar das repetidas resoluções da ONU. Outros quatro milhões vivem em um regime colonial
lestina. A natureza do Estado de Israel Israel domina toda a vida na Palestina histórica, aquela do mandato britânico. Metade dos palestinos são refugiados, impedidos por Israel de retornar, apesar das repetidas resoluções da ONU. Outros quatro milhões vivem em um regime colonial: na Cisjordânia, cheio de muros, controles militares e 500 mil colonos judeus e em Gaza, numa imensa prisão a céu aberto. Para se entender como Israel manteve essa situação com o apoio esmagador da maioria judaica é preciso saber como funciona o Estado. Nele, os palestinos são 20% da população. São
crita e uma das leis básicas do Estado é a “Lei do Retorno”, que dá aos judeus o “direito” de se tornarem cidadãos de Israel, ao passo que nenhum refugiado palestino o tem. As pesquisas históricas mostram como foram meticulosamente expulsos, mas mesmo se isso não fosse assim, não deveria alterar o seu direito de retorno. Os palestinos têm direito de voto, mas os partidos que questionam o caráter judaico do Estado são proibidos. Noventa e três por cento das terras são controladas pelo Fundo Nacional Judaico, que proíbe a sua concessão a não judeus. Com o controle das instituições do Estado, os judeus se beneficiam desproporcionalmente dos recursos estatais. O Estado impede a construção ou a expansão de bairros ou de cidades palestinas desde a formação de Israel em 1948, o que ex-
de Tel Aviv para se ver isso. Nos territórios ocupados, os colonos são regidos pelas leis israelenses e os palestinos, por leis que remontam ao Mandato Britânico. Além disso, há 6.500 presos políticos palestinos, muitos sem julgamento. Mais de 1.600 deles acabaram de realizar uma greve de fome de 40 dias exigindo condições mínimas dentro das prisões e foram vitoriosos. Essa é a essência do regime de apartheid existente nas fronteiras de Israel. Nelas, o autodenominado Estado “judeu e democrático” só funciona sendo um Estado democrático para os judeus e um estado judaico para os demais. Alternativas para a Palestina A solução para superar a opressão palestina oscila entre duas posições. Há os que propõem dois Estados, de acordo com as fronteiras de antes da guerra de 1967. Isso seria uma solu-
plica a frequência das demolições de
ção injusta, pois deixaria de fora os
casas de palestinos. Os “Comitês de
palestinos de Israel e os refugiados, e
Admissão” locais, com maioria judai-
levaria à formação de um Estado invi-
ca, podem vetar legalmente a presen-
ável, dominado pelo vizinho poderoso.
ça de “indesejados”. Cerca de cem mil
Creio que a opção por um Estado de-
palestinos beduínos vivem em aldeias
mocrático é a única que pode restituir
“não reconhecidas” pelo Estado, sob
os direitos dos palestinos.
constante ameaça de erradicação. Os
Em qualquer caso, o tema dos refu-
melhores empregos e os empréstimos
giados e seus descendentes é essencial
habitacionais e educativos são direcio-
e eles devem poder exercer seu direito
nados aos judeus, por meio do pré-re-
de retorno às terras e às propriedades
quisito de ter servido o exército.
originais, assim como o de receber in-
Quanto aos direitos individuais, a
denizações pelas perdas (mesmo os
discriminação é constante. Por exem-
que não desejarem retornar). A maio-
plo, as reunificações familiares entre
ria dos que vivem como refugiados nos
palestinos cidadãos israelenses e os
países vizinhos e na Cisjordânia e em
dos territórios ocupados são proibidas
Gaza, assim como os deslocados inter-
por lei. Ou então a repressão brutal
nos dentro de Israel (os chamados “au-
quando se solidarizam com os pales-
sentes-presentes” – mais um oximoro
tinos dos territórios ocupados. As ins-
sionista) certamente o farão.
tituições do Estado, em especial as de
A decisão terá que ser dos refugia-
L I B E R D A D E
ções. O país não tem Constituição es-
palestinos. Basta chegar ao aeroporto
e
que é a fonte de todas as discrimina-
segurança, discriminam claramente os
S O C I A L I S M O
cionalidade reconhecida é a judaica, o
A solução para superar a opressão palestina oscila entre duas posições. Há os que propõem dois Estados, de acordo com as fronteiras de antes da guerra de 1967. Isso seria uma solução injusta, pois deixaria de fora os palestinos de Israel e os refugiados, e levaria à formação de um Estado inviável, dominado pelo vizinho poderoso. A opção por um Estado democrático é a única que pode restituir os direitos dos palestinos
R E V I S T A
cidadãos do Estado, mas a única na-
35
dos, livremente e com pleno suporte
língua, a economia e as tradições cul-
financeiro internacional, como apon-
turais. A maioria deles, afora os mais
tam suas organizações. Estudos de
ricos, não tem a opção de fugir para a
um importante pesquisador palestino,
metrópole, como os pieds-noirs da Ar-
Salman Abu Sittah, mostram que a
gélia. Aí incluídos os 50% dos judeus
maior parte das terras de onde provie-
israelenses oriundos dos países ára-
ram os refugiados estão despovoadas,
bes, apesar de sofrerem forte discrimi-
localizando-se longe dos centros urba-
nação dentro da própria nacionalidade
nos de Israel. No caso de um acordo,
dominante.
nos lugares em que não for possível que
A força inegável de Israel como po-
eles voltem aos mesmos lugares (onde
tência regional e nuclear, apoiada
tenham sido construídas universida-
pelos Estados Unidos e pela União Eu-
des ou hospitais, por exemplo), pode-
ropeia, torna ainda mais importante
-se achar outras soluções próximas, se
que, como na África do Sul, um setor
o critério não for racista. Nas cidades
importante, mesmo que não majori-
que foram “judaizadas” a situação será
tário, da nacionalidade opressora seja
mais complicada, mas sempre há saí-
ganho para a luta.
das, desde que haja vontade política
Essa solução enfrentará imensas re-
do Estado: afinal, Israel absorveu um
sistências dentro da população judaica.
milhão de russos na década de 90. Ina-
Para ganhar mais do que indivíduos
ceitáveis são os critérios demográficos
isolados solidários, é necessário um
racistas do establishment sionista,
programa que assegure os direitos na-
lamentavelmente compartilhados por
cionais dos judeus israelenses em um
setores amplos da chamada “esquerda
país descolonizado.
sionista”.
Mas não estamos perante um conflito entre direitos nacionais equivalentes.
Os grupos nacionais na Palestina De fato, já existe um só Estado entre o rio Jordão e o Mediterrâneo - com cerca de 12 milhões de habitantes, metade judeus e metade palestinos – Estado dominado ferreamente por Israel. A Palestina é o último fato colonial
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
ocidental remanescente. Um tipo de
36
colonialismo de povoamento, em que uma população de imigrantes, eles próprios oprimidos em suas terras de origem, conquistaram o novo país e subordinaram, pela exploração ou pela exclusão (em geral de forma combinada), a população original. Após 70 anos, aparentemente esses colonos - como eles próprios se denominavam - e seus descendentes constituíram uma nova nação judia-israelense que se autoidentifica pela
A autodeterminação nacional é um
Os judeus israelenses precisam escolher: que futuro desejam? Um país eternamente militarizado? Continuar sendo párias no Oriente Médio e manter a fina flor de sua juventude como gendarme de outro povo? A condenação mundial cada vez maior?
direito dos oprimidos e não dos opressores. Como nacionalidade opressora, os judeus israelenses teriam que ceder seus privilégios para conviver em igualdade de condições e desfrutar de seus direitos nacionais (direito a língua, cultura, religião, tradições). Os judeus israelenses precisam escolher: que futuro desejam? Um país eternamente militarizado? Continuar sendo párias no Oriente Médio e manter a fina flor de sua juventude como gendarme de outro povo? A condenação mundial cada vez maior? A degeneração racista e a perseguição aos próprios judeus que se atrevam a dissentir, como aponta, entre outras, a lei que criminaliza a recordação da Nakba1? 1 Nakba é uma palavra árabe que significa “catástrofe” ou “desastre” e designa o êxodo palestino de
Novas perspectivas
timento e Sanções), que luta pela
para derrubar o apartheid, o desequi-
Apesar de seus êxitos relativos, Isra-
igualdade de direitos nas fronteiras de
líbrio de forças na Palestina torna fun-
el não pode vencer no médio e longo
1948, pelo fim da ocupação e pelo di-
damental uma pressão externa. Excluir
prazos. A população palestina segue
reito de retorno dos refugiados.
as instituições de Israel das atividades
resistindo e não há hoje condições de
Mesmo em pouco tempo, o BDS é um
econômicas, militares e culturais in-
se repetir a limpeza étnica massiva de
enorme sucesso e começa a preocupar
ternacionais é um poderoso recado,
1947-1948. A sua resistência vem de
Israel. A mais recente adesão foi a da
similar ao que foi dado na luta contra o
longe e inclui várias formas, inclusive
Federação Nacional de Sindicatos da
apartheid sul-africano. Um apoio ma-
a resistência armada, como na defesa
Noruega, com 900 mil filiados.
terial e moral à luta dos palestinos para
mento pelo BDS (Boicote, Desinves-
setores importantes da população se distanciassem de Israel. Um número
1948, quando pelo menos 711 mil árabes palestinos, segundo dados da ONU, fugiram ou foram expulsos de seus lares, em razão da guerra civil de 1947-1948 e da guerra árabe-israelense de 1948.
minoritário, mas crescente, de judeus liberais vem se juntar aos antissionistas de mais longa data. Como na luta
cerca a Palestina. *Tradutor e militante do Movimento por uma Alternativa Independente e Socialista (MAIS)
L I B E R D A D E
com que, mesmo nos Estados Unidos,
e
A novidade desde 2005 é o movi-
derrubar o muro de discriminação que
S O C I A L I S M O
As brutalidades de Israel fizeram
R E V I S T A
frente aos ataques brutais a Gaza.
37 APN
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
MIKE WATERS
a t u a l i d a d e
38
d e M a r x
A QUESTÃO DO TRABALHO
1
Karl Marx
de terem finalmente obtido 10% de
1
aumento sobre seus ganhos anterio-
Oportunidades de ouro e o uso que
res, conseguiram embolsar 16,5 xelins
se faz delas é o título de uma das mais
por semana ao invés de 15. Ora, os sa-
tragicômicas efusões do solene e pro-
lários médios são muito altos calcula-
fundo Economist. As “oportunidades
dos em 15 xelins por semana. Mas não
de ouro” foram, obviamente, ofereci-
importa. Como se tornar um capitalis-
das pelo livre comércio, e o “uso”, ou
ta com 15 xelins por semana! Esse é um
melhor, “abuso” delas se refere àquele
problema que merece ser estudado. Os
feito pelas classes trabalhadoras.
operários tinham a falsa ideia de que para melhorar sua situação deveriam
discípulos! Que moralidade de ouro! Mas, até agora, de acordo com o próprio The Economist, a população diminuiu e ainda não contrabalançou a emigração. A superpopulação, então, não entrará na conta dos desastres da época. “O imediato uso que as classes trabalhadoras deveriam ter feito da sua rara ocasião era acumular poupanças e se tornar capitalistas... Nessa escassa circunstância, elas parecem ter ... ascendido, ou começado a ascender, à posição de capitalistas ... Elas jogaram fora a sua oportunidade”. A oportunidade de se tornar capitalistas! Ao mesmo tempo, The Economist conta aos operários que, depois 1 Texto inédito em português. Publicado pela primeira vez em inglês no dia 28 de novembro de 1853, New-York Daily Tribune, nº 3936
do que lhes seria necessário”. Com 15 xelins por semana tiveram a oportunidade de se tornarem capitalistas, mas com 16,5 essa oportunidade teria ido embora. Por um lado, os operários devem manter a mão de obra escassa e o capital abundante, a fim de poder impor aos capitalistas um aumento de salários. Mas se o capital se revela abundante e o trabalho escasso, eles não podem absolutamente se beneficiar desse poder, para cuja aquisição eles necessitariam parar de se casar e se multiplicar. “Eles têm vivido mais luxuriosamente”. Sob as Leis do Milho, somos informados pelo mesmo The Economist, que eles estavam meio alimentados, meio vestidos e mais ou menos famintos. Se eles fossem então viver de fato, como poderiam conseguir viver menos luxuriosamente que antes? As tabelas de importação foram repetidamente desdobradas por The Economist para provar o crescimento da prosperidade do povo e a solidez do negócio feito. O que foi assim proclamado como uma prova das bênçãos indescritíveis do livre comércio agora é denunciado como demonstração da tola extravagância das classes trabalhadoras. Porém, continuamos sem
L I B E R D A D E
ortodoxa permitida por Malthus e seus
batalhado”, diz The Economist, “mais
e
sar e não se multiplicar, exceto à taxa
tentar melhorar suas rendas. “Eles têm
S O C I A L I S M O
A oportunidade de ouro de não ca-
A oportunidade de ouro de não casar e não se multiplicar, exceto à taxa ortodoxa permitida por Malthus e seus discípulos! Que moralidade de ouro! Mas, até agora, de acordo com o próprio The Economist, a população diminuiu.
continuar aumentando com uma po-
R E V I S T A
As classes trabalhadoras, pela primeira vez, tiveram seu futuro em suas próprias mãos! A população do Reino Unido começou realmente a diminuir, tendo a emigração superado o seu crescimento natural. Como os operários usaram sua oportunidade? O que eles fizeram? Exatamente o que costumavam fazer antigamente, em cada retorno do brilho temporário do sol, casaram e multiplicaram o mais rápido possível...Com esta taxa de aumento, não demorará muito para que a emigração seja efetivamente contrabalançada e a oportunidade de ouro jogada fora.
pulação decrescente e um consumo
39
entender como a importação pode
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
Quanto mais a mãe e a criança compareciam à fábrica, menos a escola poderia ser frequentada. E no final das contas, a que tipo de educação teriam oportunidade esses pais e seus filhos? A oportunidade de aprender como manter a população no ritmo descrito por Malthus, diz The Economist
40
em declínio: como a exportação pode continuar a subir com a diminuição da
pouco frequentadas, ou as mensalidades escolares tão mal pagas.
portações e exportações contraídas. A terceira oportunidade de ouro deveria ter sido a de obter a melhor educação possível para si e para seus filhos, de maneira a se ajustarem à melhoria da situação econômica e aprenderem como fazer seu melhor uso. Infelizmente, somos obrigados a afirmar ... que as escolas raramente foram tão
educação teriam oportunidade esses pais e seus filhos? A oportunidade de
importação e como a indústria e o comércio podem se expandir com as im-
da. E no final das contas, a que tipo de
Há algo de maravilhoso nesse fato?
aprender como manter a população
O comércio ativo era sinônimo de fá-
no ritmo descrito por Malthus, diz The
bricas expandidas, de aumento dos in-
Economist. Educação, diz o senhor
vestimentos em maquinaria, de mais
Cobden, mostraria aos homens que
trabalhadores adultos substituídos por
as instalações sujas, mal ventiladas e
mulheres e crianças, de horas prolon-
abarrotadas não são a melhor forma
gadas de trabalho. Quanto mais a mãe
de conservar a saúde e o vigor. Igual-
e a criança compareciam à fábrica,
mente, talvez, se salvasse um homem
menos a escola poderia ser frequenta-
de morrer de fome contando a ele que
as leis da Natureza demandam um suplemento perpétuo de comida ao corpo humano. A educação, diz The Daily News, teria informado nossas classes
cional das classes trabalhadoras, pode triunfar... segmentem e regionalizem sua luta e vocês possivelmente fracassarão, nacionalizem ela e vocês certamente vencerão.
trabalhadoras como extrair substân-
dir a visita de Ernest Jones à cidade; nenhum salão podia ser reservado para este propósito, e, dessa forma, cartazes foram impressos em Manchester convocando uma reunião ao ar livre. O
cia nutritiva de ossos secos – como
O senhor George Cowell de maneira
informe que o senhor Jones se oporia
fazer bolos de amido para o chá, e
muito cortês moveu um voto de agra-
à greve foi difundido diligentemente
como fazer sopa com o pão que o dia-
decimento, apoiado pelo senhor John
por partes auto interessadas e semeou
bo amassou.
Matthews, a Ernest Jones em razão de
a divisão entre os homens, e cartas fo-
sua visita a Preston e aos serviços pres-
ram enviadas comunicando que não
tados por ele à causa do trabalho.
seria seguro para ele visitar Preston.
Se listarmos então as oportunidades de ouro que foram assim desperdiçadas pelas classes trabalhadoras, elas
Grandes esforços foram feitos por
consistem na oportunidade de ouro de
parte dos donos de fábrica para impe-
(Tradução: Carolina Peters e Murilo Leite)
não se casar, na oportunidade de viver menos luxuriosamente, de não pedir salários mais altos, de se tornarem capitalistas com 15 xelins por semana, de aprenderem como manter o corpo saudável com comida grosseira e como degradar a alma com as pestilentas doutrinas de Malthus. Na última sexta-feira, Ernest Jones visitou a cidade de Preston para se dirigir aos trabalhadores impedidos de entrar na fábrica, falando sobre a questão do trabalho. No momento do encontro, pelo menos 15 mil pessoas (o Preston Pilot estima o número em 12 mil) haviam se juntado no pátio, e o senhor Jones, ao seguir para palanque, foi recebido calorosamente. Reproduzo
e S O C I A L I S M O R E V I S T A
Qual o motivo dessas lutas? Por que acontecem agora? Por que elas irão retornar? Porque as fontes das suas vidas estão seladas pela mão do Capital, que entorna o seu cálice de ouro e deixa a borra para vocês. Por que vocês estão impedidos de entrar na vida quando estão impedidos de entrar na fábrica? Porque vocês não têm outra fábrica para ir – nenhum outro meio de trabalhar pelo seu pão. [...] O que dá ao capitalista esse poder tremendo? O fato de que ele detém todos os meios de emprego... os meios de trabalho são assim a dobradiça sobre a qual o futuro do povo se move... somente um movimento de massas em todos os setores, um movimento na-
L I B E R D A D E
alguns trechos de seu discurso:
41
m a r x i s m o
O léxico de Antonio Gramsci: entre f ilologia e política
Alvaro Bianchi*
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
Nas últimas décadas uma nova onda
42
de estudos gramscianos começou a ganhar corpo na Itália. Jovens pesquisadores, e outros nem tanto, atiraram-se a um trabalho de leitura meticulosa dos textos do marxista sardo, à pesquisa histórica rigorosa, à escavação documental intensa, à reconstrução conceitual e ao trabalho coletivo. Os resultados já são significativos. Importantes descobertas foram feitas sobre a biografia de Gramsci, sobre o processo de composição dos Cadernos do cárcere e sobre a intenção e os moti-
Se se quer estudar o nascimento de uma concepção de mundo que não foi nunca exposta sistematicamente por seu fundador (...) é preciso fazer preliminarmente um trabalho filológico minucioso e conduzido com escrúpulos
vos do autor no processo de produção conceitual. O que caracteriza esses novos estudos é o chamado método filológico: uma atenção particular ao ritmo de composição do texto, ao processo de construção dos conceitos e aos nexos existentes entre esse processo e o contexto histórico e biográfico. O próprio Gramsci já havia apontado esse caminho em uma nota registrada nos seus Cadernos do cárcere: “Se se quer estudar o nascimento de uma concepção de mundo que não foi nunca exposta sistematicamente por seu fundador (...) é preciso fazer preliminarmente
um trabalho filológico minucioso e
co brasileiro desde meados dos anos
conduzido com escrúpulos máximos
1970, a publicação do Dicionário pode
de exatidão, de honestidade científi-
ajudar a esclarecer alguns equívocos
ca, de lealdade intelectual e de ausên-
frequentes e ter um impacto positivo
cia de qualquer preconceito e aprioris-
sobre o debate político na esquerda
mo ou posição preconcebida”. E mais
de nosso país. Dois casos chamam a
adiante sintetizou esse método filoló-
atenção. Primeiro o conceito de hege-
que os aforismos isolados” (Q 16, § 2). O Dicionário gramsciano (19261937), publicado agora em português pela editora Boitempo é um dos feitos dessa nova onda de estudos . A ideia 1
nasceu nos seminários sobre o léxico gramsciano organizados pela International Gramsci Society-Italia, entre 2000 e 2006, nos quais a comunidade de especialistas discutia certas palavras chaves dos Cadernos do cárcere, tais como filosofia da práxis, hegemonia, intelectuais, jacobinismo, bloco histórico e americanismo. Uma primeira versão das contribuições desses seminários foi publicada na Itália com o título de Le parole de Gramsci (Carocci, 2004), um livro organizado por Guido Liguori e Fabio Frosini. O Dicionário era entretanto um projeto muito mais ambicioso, seja pela abrangência, seja pelo número de colaboradores. Orientados por uma mesma metodologia de investigação, os autores procuram auscultar aquele ritmo do pensamento gramsciano, reconstruindo de modo rigoroso sentido dos conceitos. Pesquisadores e o público interessado têm agora acesso a um instrumento de consulta poderoso, capaz de estimular novas investigações, bem como uma compreensão mais apurada das ideias de Antonio Gramsci. Uma vez que o léxico gramsciano é parte constitutiva do discurso políti-
de dominação, embora Gramsci insistisse fortemente em um outro uso: hegemonia como sinônimo de direção moral e intelectual, de consenso ativo. Depois, o conceito de bloco histórico, usado no Brasil para definir uma certa aliança de classes no poder – quase como no conceito poulantizano de “bloco no poder” –, quando para o autor dos Cadernos do cárcere ele era um instrumento conceitual para redefinir em termos não economicistas a relação entre estrutura e superestrutura. Outras situações poderiam ser enumeradas. Não são questões meramente terminológicas. Um trabalho filológico mais rigoroso, como este exposto pelo Dicionário, pode fornecer um conjunto conceitual muito rico para pensar a estratégia socialista no Brasil. Transformados em slogans esses conceitos perderam muitas vezes seu caráter crítico e transformador. Retornar a eles é um bom caminho para pensar a crise atual e as alternativas a ela. E para isso o Dicionário é imprescindível. 1 LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale. Dicionário gramsciano (1926-1937). São
L I B E R D A D E
afirmações particulares e casuais e do
brasileira frequentemente é sinônimo
Paulo: Boitempo, 2017.
e
deve ser mais importante do que as
monia, o qual no léxico da esquerda
*Professor livre-docente do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas e coordenador científico da International Gramsci Society-Brasil.
43
S O C I A L I S M O
do pensamento em desenvolvimento,
O Dicionário gramsciano (1926-1937), publicado agora em português (...) é um dos feitos dessa nova onda de estudos. A ideia nasceu nos seminários sobre o léxico gramsciano organizados pela International Gramsci SocietyItalia, entre 2000 e 2006, nos quais (...) (se) discutia certas palavras chaves dos Cadernos do cárcere, tais como filosofia da práxis, hegemonia, intelectuais, jacobinismo, bloco histórico e americanismo
R E V I S T A
gico: “A pesquisa do leitmotiv, do ritmo
c o m b a t e
à
o p r e s s ã o
Retomar Stonewall e radicalizar o movimento LGBT brasileiro Cesar Fernandes* e Rodrigo Cruz** Estamos às voltas dos 48 anos da rebelião de Stonewall. A série de manifestações que aconteceram no tradicional bar Stonewall Inn em Nova York, em 1969, marcou a história do movimento LGBT norte-americano e sua radicalidade, orientando a luta pela liberdade sexual e de gênero em diversos países. O sistema jurídico, francamente LGBTfóbico - associado ao racismo, ao nacionalismo e ao moralismo cristão - fermentava posições conservadoras contra lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans. Por conta disso, a resistência LGBT verteu-se em movimento organizado, consonante à luta por direitos civis de negras e negros, à contracultura a guerra no Vietnã. Forjou-se uma reação antissistêmica muito incisiva contra o autoritarismo e a violência policial e de Estado, demarcando que
S O C I A L I S M O
estes territórios possíveis para as sociabilidades LGBT seriam defendidos
R E V I S T A
e
L I B E R D A D E
e às manifestações pacifistas contra
tuação de rua, como Marsha P. John-
44
rebelião chegaram a formar coalizões
às últimas consequências. A batalha de Stonewall foi protagonizada por mulheres trans negras e latinas em sison, Miss Major e Sylvia Rivera. As associações políticas fundadas após a
com o Partido dos Panteras Negras,
geralmente posicionados em ONGs
xuais, travestis e transexuais na arena
uma necessária aliança entre setores
para a disputa de editais governamen-
da política institucional, fortalecendo
oprimidos, unidos pela classe e pelo
tais, a advocacy e o lobby parlamentar
intervenções como a do deputado fe-
norte revolucionário.
numa linha de inclusão atrelada à boa
deral Jean Wyllys (PSOL). Como ele,
Neste sentido, recuperar Stonewall
vontade governamental. Além disso, o
precisamos amplificar nosso rechaço
passa fundamentalmente por reto-
movimento enfrenta as contradições
às iniciativas dos setores fundamen-
mar o recorte de clas-
talistas e conservado-
se e o cunho político e
res, aglutinados em
revolucionário da luta
torno do PMDB e seus
pela liberdade sexual
satélites. Recuperar a radica-
Vivemos os impac-
lidade do movimento
tos do esvaziamento
é uma necessidade.
da agenda LGBT por
Interseccionar nossas
parte dos governos
lutas com raça e clas-
petistas, notabilizados
se, impulsionar a or-
pelas alianças políticas
ganização sindical de
com partidos conser-
trabalhadoras
vadores em nome da
organizar essas luta,
governabilidade e da
periféricas, a quem
viabilidade eleitoral.
são reservados os su-
Desde o início, setores
bempregos e o encar-
progressistas menos-
ceramento. Priorizar
prezaram a luta contra
as lutas anti-transfó-
o
fundamentalismo
bicas, dado o grau de
no Congresso Nacio-
violência contra tra-
nal, avaliando que a
vestis e pessoas trans
consequência
desta
no Brasil. Entender
política era circunscri-
que o avanço do con-
ta apenas a mulheres
servadorismo precari-
e LGBTs. Observamos
za nossas vidas como LGBTs e como trabalhadoras e que,
lecidos, se tornaram peça fundamen-
lução apresentada pelo capitalismo à
portanto, lutar contra o fundamenta-
tal, “em nome de Deus e da família”,
situação marginal da população LGBT
lismo também é lutar contra o domínio
do golpe institucional que destituiu a
é a de transformá-la em um nicho de
do capital.
presidenta Dilma em 2016.
mercado, o que dificulta ainda mais a
Além disso, os governos petistas
É possível vencer!
autonomia do movimento.
aprofundaram um processo de coop-
O golpe institucional aprofundou
tação dos movimentos sociais que
a crise política e econômica e tornou
retirou a radicalidade e o protesto de
mais complexas as tarefas do movi-
rua como método prioritário das lutas
mento LGBT. As reformas apresenta-
sociais. Isso impactou profundamente
das por Temer incidem ferozmente nas
a nova geração de ativistas, muitas de-
nossas condições de trabalho e previ-
las LGBT, que vai às ruas ao seu modo,
dência, já precarizadas pela LGBTfobia.
com os recursos e a cultura política de
É fundamental aliar os movimentos de
que dispõe. Confronta-se com setores
rua contra as reformas, à ampliação da
mais tradicionais do movimento LGBT,
representação de lésbicas, gays, bisse-
*Psicólogo especialista em gênero e sexualidade pelo CLAM/Uerj, militante LGBT e do PSOL. **Jornalista, mestre em ciências sociais pela Unifesp e doutorando em sociologia pela Universidade de Lisboa, militante LGBT e do PSOL.
e
da inclusão pela via do consumo. A so-
S O C I A L I S M O
que os fundamentalistas, ultraforta-
L I B E R D A D E
LGBT,
R E V I S T A
e de gênero.
45
/
c i n e m a
DIVULGAÇÃO
c u l t u r a
Luiz Arnaldo Dias Campos*
R E V I S T A
S O C I A L I S M O
e
L I B E R D A D E
Martírio, a saga de um povo que insiste em viver na sua terra
46
Nos dicionários a palavra martírio significa sofrimento prolongado ou
e marcantes, aquilo que é o centro de
do Brasil, realizado pelo Estado bra-
suas vidas: a luta pelo direito de morar
sileiro. O filme retroage até a Guerra
na terra em que estão enterrados seus
do Paraguai, comprovando com farta
avós.
prova documental como, através do
repetitivo. Na tela, as imagens do fil-
Martírio, documentário de Vincent
tempo, os guaranis tiveram suas terras
me que leva esse nome se repetem. E
Carelli, com codireção de Ernesto Car-
roubadas, ao mesmo tempo em que
mostram no acampamento de Pyelito-
valho, é o relato de uma dor que atra-
eram transformados em cortadores de
-Pue, no Mato Grosso do Sul, mulheres
vessa séculos. Mais do que isto, é o
cana, semiescravizados, para os lati-
e homens guaranis-kaiowás afirman-
retrato detalhado e caudaloso de um
fúndios.
do no seu idioma, com gestos fortes
processo de esbulho contra um povo
É uma história de deportações, con-
DIVULGAÇÃO
finamentos, assassinatos e resistência
interpretação de juristas, padrão Gil-
que tem os sucessivos governos como
mar Mendes, para quem a garantia da
personagens macabros. Para Carelli, o
demarcação de terras contida naquele
filme “é o relato da Palestina brasileira,
diploma legal é exclusiva para os in-
a história de como o capitalismo arra-
dígenas que estavam ocupando suas
sou uma sociedade igualitária”.
terras na data da sua promulgação. Ou
A epopeia do documentário teve
seja, exclui do direito aqueles povos,
início em 1988, quando Carelli foi re-
como os guaranis-kaiowás, que, em
gistrar cerimônias religiosas guaranis.
1988, já completamente esbulhados,
Acompanhou aquele povo até 1999,
viviam confinados em exíguos espaços
retornando em 2011, impulsionado
ou na margem das rodovias.
pela notícia do assassinato de um in-
Este absurdo jurídico faz parte da
dígena e a desaparição do seu corpo.
ofensiva anti-indígena posta em mar-
A partir daí, os autores mergulharam
cha pela maioria golpista do Congres-
de corpo inteiro na ciclópica tarefa de
so Nacional que está retalhando terras
desmontar um edifício de inverdades,
protegidas, como as florestas nacio-
que condena os guaranis a viver em
nais, tenciona a extinção da Funai e
guetos chamados de reservas, ou à
quer que deputados e senadores, entre
beira das estradas.
os quais é grande a força da chamada
Em Martírio os contendores se en-
bancada ruralista, passem a demarcar as terras indígenas.
mentos dos indígenas se confrontam
Para todos que lutam contra estas
com depoimentos patéticos da ex-mi-
infâmias, Martírio é uma arma impor-
nistra Kátia Abreu e outros eminentes
tante.
representantes da bancada ruralista,
E é, sobretudo, uma obra profun-
que de forma inacreditável se vitimi-
damente esclarecedora a respeito do
do agronegócio, Martírio não é uma obra que possa, no mau sentido, ser chamada de panfletária. Pelo contrário, com paciência de velho índio empilha os fatos históricos e apresenta provas, convencendo racionalmente os espectadores da causa justa do povo guarani. Mas é um filme que também sabe ser comovente, ao mostrar as profundas diferenças entre aqueles para quem a terra é pura mercadoria e os povos indígenas para quem ela é território, coração e memória, razão primeira da existência de um povo. Martírio não tem receio de ser uma obra engajada. Segundo Carelli, está a serviço da luta contra o “marco temporal“ da Constituinte de 1988, a
um país em que há um Estado que se recusa a reconhecer esta diversidade. Apesar dos avanços da Constituinte de 1988, o Brasil continua sem se reconhecer oficialmente como um país plurinacional, no qual convivem centenas de povos com quase 300 idiomas falados cotidianamente. Esses povos devem ser reconhecidos como sobreviventes de um massacre que se iniciou 500 anos atrás e prossegue até hoje.
L I B E R D A D E
ridículo involuntário dos defensores
Brasil diverso. Mas que, no entanto, é
e
seus algozes. Mas, apesar de expor o
Em Martírio os contendores se enfrentam cara a cara. Na tela, os argumentos dos indígenas se confrontam com depoimentos patéticos da exministra Kátia Abreu e outros eminentes representantes da bancada ruralista, que de forma inacreditável se vitimizam e transformam os guaranis em seus algozes
Gente que, pelo mais elementar senso de justiça, tem direito a viver de acordo com as suas tradições na terra dos seus ancestrais. *Luiz Arnaldo Campos, cineasta e membro do Comitê Executivo da revista SOCIALISMO e LIBERDADE
S O C I A L I S M O
zam e transformam os guaranis em
R E V I S T A
frentam cara a cara. Na tela, os argu-
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CINCO MIL DIAS
O BRASIL NA ERA DO LULISMO